3 O Mascate

Pencas de panelas chacoalhavam ruidosamente quando o carroção do mascate passou ribombando sobre as toras pesadas da Ponte das Carroças. Ainda cercado por uma nuvem de aldeões e fazendeiros que haviam chegado para o Festival, o vendedor puxou as rédeas dos cavalos e fez com que parassem diante da estalagem. De todas as direções surgiam pessoas, aumentando a multidão ao redor da grande carroça, de rodas mais altas do que qualquer uma daquelas pessoas cujos olhos não desgrudavam do mascate acima delas, no banco do condutor.

O homem na carroça era Padan Fain, um sujeito pálido e magricela, com braços desengonçados e um narigão que mais parecia um bico. Fain, sempre sorridente e gargalhando como se soubesse uma piada que ninguém mais conhecia, levava sua carroça e seus cavalos para Campo de Emond toda primavera, desde que Rand podia se lembrar.

A porta da estalagem se abriu de supetão bem no instante em que os cavalos se detinham com um tilintar dos arreios, e o Conselho da Aldeia apareceu, liderado por Mestre al’Vere e por Tam. Eles saíram marchando com determinação, até mesmo Cenn Buie, no meio de toda a gritaria animada dos outros que pediam alfinetes, rendas, livros e uma dezena de outras coisas. Com relutância, a multidão se abriu para deixá-los passar, fechando o caminho rapidamente atrás deles sem que cessassem os gritos para o vendedor. Mais do que tudo, os aldeões pediam notícias.

Aos olhos dos aldeões, agulhas, chá e coisas do gênero não eram mais que a metade da carga da carroça de um mascate. Igualmente importantes eram as notícias de fora, notícias do mundo além dos Dois Rios. Alguns mascates simplesmente contavam o que sabiam, vomitando tudo de uma vez, um amontoado de bobagens que para eles não tinham a menor importância. Outros precisavam ter cada palavra arrancada deles, falando de má vontade, com maus modos. Fain, porém, falava à vontade, ainda que muitas vezes em tom provocador, e desandava a contar histórias, dando um espetáculo capaz de rivalizar com o de qualquer menestrel. Ele gostava de ser o centro das atenções, exibindo-se como um galo nanico, com todos os olhos voltados para ele. Nesse momento, ocorreu a Rand que Fain talvez não gostasse muito de encontrar um menestrel de verdade em Campo de Emond.

O mascate deu ao Conselho e aos aldeões exatamente a mesma atenção enquanto lutava para amarrar as rédeas, o que significava praticamente nenhuma. Ele assentia para ninguém em particular. Sorria sem sorrir e acenava, distraído, para pessoas das quais era particularmente amigo, embora sua amizade sempre fosse de um tipo peculiarmente distante, calorosa sem nunca se aproximar demais.

As exigências para que ele falasse foram aumentando, mas Fain aguardou, desincumbindo-se de uma tarefa ou outra no banco do condutor, até que a multidão e a expectativa atingissem o nível que ele desejava. Só o Conselho permanecia em silêncio. Eles mantinham a dignidade que cabia à sua posição, mas as nuvens cada vez mais densas de fumaça de cachimbo que se elevavam sobre suas cabeças demonstravam quanto esforço isso demandava.

Rand e Mat enfiaram-se na multidão, aproximando-se o máximo possível do carroção. Rand teria parado a meio caminho, mas Mat foi se espremendo por entre a massa, puxando-o consigo, até ficarem bem atrás do Conselho.

— Eu estava pensando que você ia ficar lá na fazenda o Festival inteiro — Perrin Aybara gritou para Rand acima do clamor.

Meia cabeça mais baixo que Rand, o aprendiz de ferreiro de cabelos encaracolados era tão troncudo que parecia ter a largura de um homem e meio, com braços e ombros fortes o bastante para rivalizar com os do próprio Mestre Luhhan. Ele poderia facilmente ter aberto caminho empurrando as pessoas na multidão, mas isso não era do seu feitio. Ele escolhia o caminho cuidadosamente, pedindo desculpas às pessoas, que mal notavam qualquer coisa que não fosse o mascate. Mas ele se desculpava mesmo assim, e tentava não empurrar ninguém enquanto pelejava por entre a multidão até Rand e Mat.

— Imagine só — disse ele quando finalmente os alcançou. — O Bel Tine e um mascate, os dois ao mesmo tempo. Aposto que haverá fogos de artifício mesmo.

— Você não sabe nem um quarto da história. — Mat riu.

Perrin o fitou, desconfiado, depois olhou para Rand.

— É verdade — gritou Rand, então fez um gesto apontando a massa de pessoas que crescia cada vez mais, todas falando ao mesmo tempo. — Mais tarde. Eu explico mais tarde. Mais tarde, eu disse!

Nesse momento Padan Fain levantava-se no banco da carroça, e a multidão ficou em silêncio por um instante. As últimas palavras de Rand explodiram no silêncio absoluto, apanhando o mascate com um braço levantado dramaticamente e a boca aberta. Todos se viraram para olhar Rand. O homenzinho ossudo em cima da carroça, pronto para arrebatar a todos na expectativa de suas primeiras palavras, dirigiu a Rand um olhar agudo e perscrutador.

O rosto de Rand ficou vermelho, e ele desejou ser do tamanho de Ewin para não se destacar tão claramente. Seus amigos também mexeram-se, pouco à vontade. Fora somente no ano anterior que Fain lhes dera atenção pela primeira vez, reconhecendo-os como homens. Fain normalmente não tinha tempo para alguém que fosse jovem demais para comprar um bom lote de mercadorias de seu vagão. Rand torceu para não ser relegado novamente à condição de criança aos olhos do mascate.

Pigarreando bem alto, Fain ajeitou seu manto pesado.

— Não, mais tarde não — declamou o mascate, mais uma vez erguendo a mão num gesto grandioso. — Eu lhes contarei agora. — Enquanto falava, fazia gestos largos, lançando as palavras sobre a multidão. — Vocês pensam que estão enfrentando problemas nos Dois Rios, não é? Ora, o mundo inteiro tem problemas, desde a Grande Praga, ao sul, até o Mar das Tempestades, do Oceano de Aryth, a oeste até o Deserto Aiel, a leste. E mesmo além. O inverno foi o mais duro que vocês já viram, frio o suficiente para congelar seu sangue e rachar seus ossos? Ahhh! O inverno foi rigoroso em toda parte. Nas Terras da Fronteira, as pessoas chamariam seu inverno de primavera. Mas a primavera não chega?, vocês se perguntam. Os lobos têm atacado suas ovelhas? Talvez até homens? É assim que tem sido? Ora, ora. A primavera está atrasada em toda parte. Há lobos em todo lugar, todos famintos por qualquer carne em que possam cravar os dentes, seja de ovelha, vaca ou homem. Mas existem coisas piores do que os lobos ou o inverno. Há gente que ficaria feliz em ter apenas os pequenos problemas de vocês.

Ele fez uma pausa para gerar expectativa.

— O que poderia ser pior do que lobos matando ovelhas e homens? — Cenn Buie exigiu saber, e outros murmuraram em apoio.

— Homens matando homens. — A resposta do mascate, em tons portentosos, trouxe murmúrios chocados que aumentavam à medida que ele prosseguia. — Estou falando de guerra. Há guerra em Ghealdan, guerra e loucura. As neves da Floresta de Dhallin estão vermelhas com o sangue dos homens. Os corvos e seus gritos enchem o ar. Exércitos marcham para Ghealdan. Nações, grandes casas e grandes homens, estão enviando seus soldados para lutar.

— Guerra? — A boca de Mestre al’Vere encaixou desajeitadamente a palavra com a qual não estava acostumada. Ninguém nos Dois Rios jamais tivera qualquer coisa a ver com uma guerra. — Por que eles estão em guerra?

Fain sorriu de orelha a orelha, e Rand teve a sensação de que ele estava zombando do isolamento dos aldeões e da ignorância deles. O mascate inclinou-se para a frente como se fosse compartilhar um segredo com o Prefeito, mas seu sussurro tinha a intenção de ser ouvido por mais gente, e foi o que aconteceu:

— O estandarte do Dragão foi erguido, e os homens se reuniram para se opor a isso. E para apoiar.

Um longo arquejo escapou de todas as gargantas ao mesmo tempo, e Rand estremeceu involuntariamente.

— O Dragão! — alguém gemeu. — O Tenebroso está solto em Ghealdan!

— Não o Tenebroso — grunhiu Haral Luhhan. — O Dragão não é o Tenebroso. E é um Dragão falso, de qualquer maneira.

— Vamos ouvir o que Mestre Fain tem a dizer — disse o Prefeito, mas ninguém queria se calar assim tão facilmente.

As pessoas gritavam de todos os lados, homens e mulheres berrando um mais alto que o outro.

“É tão ruim quanto o Tenebroso!”

“O Dragão fez o mundo ruir, não foi?”

“Foi ele quem começou! Ele provocou o Tempo da Loucura!”

“Vocês conhecem as profecias! Quando o Dragão renascer, seus piores pesadelos vão parecer seus sonhos mais doces!”

“Ele é apenas outro falso Dragão. Tem de ser!”

“Que diferença isso faz? Você se lembra do último Dragão falso. Ele também começou uma guerra. Milhares morreram, não é verdade, Fain? Ele sitiou Illian.”

“Estes são tempos ruins! Ninguém reivindicou ser o Dragão Renascido por duas décadas, e agora são três nos últimos cinco anos. Tempos ruins! Olhem só o clima como está!”

Rand trocou olhares com Mat e Perrin. Os olhos de Mat brilhavam de empolgação, mas Perrin tinha a testa franzida, preocupado. Rand podia se lembrar de cada história que havia ouvido sobre os homens que se consideravam o Dragão Renascido, e se, por um lado todos haviam se mostrado falsos Dragões ao morrer ou desaparecer sem realizar nenhuma das profecias, por outro o que haviam feito já era ruim o bastante. Nações inteiras devastadas por batalhas, e cidades e vilarejos incendiados. Os mortos caíam como folhas de outono, e os refugiados entupiam as estradas como ovelhas num redil. Assim os mascates diziam, e os mercadores, e ninguém nos Dois Rios com algum bom senso duvidava. O mundo ia acabar, diziam alguns, quando o verdadeiro Dragão renascesse.

— Parem com isso! — gritou o Prefeito. — Fiquem quietos! Parem de ficar dando trela à imaginação. Deixem que Mestre Fain nos fale sobre esse falso Dragão.

As pessoas começaram a se aquietar, mas Cenn Buie se recusou a ficar em silêncio.

— Mas será mesmo um falso Dragão? — o telhador perguntou com amargura.

Mestre al’Vere piscou como se apanhado de surpresa, então retrucou:

— Não aja como um velho tolo, Cenn!

Mas Cenn havia incendiado a multidão novamente.

“Ele não pode ser o Dragão Renascido! A Luz nos ajude, ele não pode ser!”

“Buie, seu velho tolo! Você quer chamar o azar, não quer?”

“Vai dizer o nome do Tenebroso a seguir! Você está possuído pelo Dragão, Cenn Buie! Está tentando trazer o mal para todos nós!”

Cenn olhou ao redor com ar desafiador, não se deixando intimidar pelos que o fitavam de cara fechada, e elevou a voz:

— Eu não ouvi Fain dizer que esse Dragão era falso. Vocês ouviram? Usem os olhos! Onde estão as colheitas que deveriam estar na altura dos joelhos ou até mais altas? Por que ainda é inverno, se a primavera já devia estar aqui há um mês?

Vários gritos para Cenn segurar a língua se fizeram ouvir.

— Eu não vou ficar quieto! Esta conversa também não me agrada, mas não vou enfiar a cabeça em um cesto até um homem de Barca do Taren chegar para cortar minha garganta. E não vou ficar aqui ao bel-prazer de Fain, não desta vez. Desembuche logo, mascate. O que foi que você ouviu? Hein? O tal homem é um Dragão falso?

Se Fain estava perturbado pela notícia que trazia ou pelo alvoroço que havia provocado, não demonstrou. Simplesmente deu de ombros e encostou um dedo ossudo no nariz.

— Bem, quanto a isso, quem poderá dizer até tudo acabar? — Ele fez uma pausa com um de seus sorrisos misteriosos, passando os olhos pela multidão como se imaginando como ela reagiria e achando isso divertido. — O que sei — disse, casualmente demais — é que ele sabe usar o Poder Único. Os outros não sabiam. Mas ele consegue canalizá-lo. O chão se abre sob os pés de seus inimigos, e paredes firmes desabam com seu grito. Raios vêm quando ele chama e atingem o que ele aponta. Foi isso que ouvi, e de homens em quem acredito.

Fez-se um silêncio atordoado. Rand olhou para os amigos. Perrin parecia não gostar do que via, mas Mat ainda parecia empolgado.

Tam, o rosto um pouco menos composto que de costume, puxou o Prefeito para perto, mas, antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, Ewin Finngar irrompeu a falar.

— Ele vai ficar maluco e morrer! Nas histórias, homens que canalizam o Poder sempre ficam loucos, e depois definham e morrem. Só mulheres podem tocar o Poder. Ele não sabe disso? — Ewin abaixou-se, esquivando-se de um cascudo de Mestre Buie.

— Chega disso agora, garoto. — Cenn sacudiu um punho encarquilhado na cara de Ewin. — Mostre o devido respeito e deixe o assunto com os mais velhos. Vá embora daqui!

— Calma, Cenn — grunhiu Tam. — O garoto só está curioso. Não há necessidade dessas suas bobagens.

— Aja como um homem de sua idade — acrescentou Bran. — E, para variar, lembre-se de que você é um membro do Conselho.

O rosto enrugado de Cenn foi escurecendo a cada palavra de Tam e do Prefeito, até ficar quase roxo.

— Vocês sabem de que tipo de mulher ele está falando. Pare de franzir a testa para mim, Luhhan, e você também, Crawe. Esta é uma aldeia decente, de gente decente, e já é ruim o suficiente ter Fain aqui falando de Dragões falsos usando o Poder sem esse garoto tolo possuído pelo Dragão metendo Aes Sedai na história. Algumas coisas não deveriam sequer ser mencionadas, e não me interessa se vocês vão deixar aquele menestrel idiota contar a história que quiser. Isso não é certo nem decente.

— Nunca vi, ouvi nem cheirei nada que não pudesse ser comentado — disse Tam.

Fain, porém, ainda não havia terminado.

— As Aes Sedai já estão na história. — O mascate ergueu a voz. — Um grupo delas partiu a cavalo de Tar Valon para o sul. Já que ele consegue lidar com o Poder, somente as Aes Sedai podem derrotá-lo, por todas as batalhas que travam, ou lidar com ele assim que for derrotado. Se ele for derrotado.

Alguém na multidão gemeu alto, e até mesmo Tam e Bran trocaram olhares preocupados. A multidão de aldeões formava grupos compactos, e alguns se enrolaram um pouco mais em seus mantos, embora o vento tivesse na verdade diminuído.

— É claro, ele será derrotado! — alguém gritou.

“Eles sempre são derrotados no fim, os falsos Dragões.”

“Ele tem de ser derrotado, não tem?”

“E se não for?”

Tam havia finalmente conseguido falar baixinho no ouvido do Prefeito, e Bran, assentindo a intervalos e ignorando o burburinho ao redor deles, esperou até o outro terminar antes de levantar a própria voz.

— Vocês todos, ouçam. Calem-se e ouçam! — Os gritos se tornaram murmúrios novamente. — Isso vai além de meras notícias do mundo lá fora. A questão deve ser discutida pelo Conselho da Aldeia. Mestre Fain, se puder se juntar a nós na estalagem, temos perguntas a fazer.

— Uma boa caneca de vinho quente até que não me cairia mal agora — o mascate respondeu com uma risada. Ele desceu da carroça com um pulo, limpou no casaco a poeira da estrada que estava em suas mãos e ajeitou, animado, seu manto. — Vocês podem cuidar dos meus cavalos, por gentileza?

“Eu quero ouvir o que ele tem a dizer!” Mais de uma voz se elevou em protesto.

— Vocês não podem levá-lo! Minha mulher me mandou comprar alfinetes! — Esse era Wit Congar, que se encolheu um pouco com os olhares que alguns dos outros lhe dirigiram, mas ainda assim manteve-se firme.

— Nós também temos o direito de fazer perguntas — alguém no fundo da multidão gritou. — Eu…

— Fiquem quietos! — o Prefeito urrou, produzindo um silêncio assustado. — Quando o Conselho tiver feito suas perguntas, Mestre Fain voltará para lhes contar todas as notícias. E vender a vocês suas panelas e alfinetes. Hu! Tad! Levem os cavalos de Mestre Fain para o estábulo.

Tam e Bran ladearam o mascate, o resto do Conselho se reuniu atrás deles, e o grupo inteiro seguiu apressado para a Estalagem Fonte de Vinho, fechando com firmeza a porta na cara daqueles que tentaram entrar depois. Bater na porta provocou um único grito do Prefeito:

— Vão para casa!

As pessoas ficaram perambulando diante da estalagem, resmungando sobre o que o vendedor itinerante falara, e o que aquilo queria dizer, e que perguntas o Conselho estaria fazendo, e por que o povo deveria ter permissão de fazer suas próprias perguntas. Alguns espiavam pelas janelas da frente da estalagem, e outros chegaram até mesmo a interpelar Hu e Tad, embora não estivesse claro o que se esperava que eles soubessem. Os dois impassíveis cavalariços limitaram-se a grunhir em resposta, e continuaram removendo metodicamente os arreios dos cavalos. Um a um, eles levaram dali os animais de Fain e, após o último, não voltaram.

Rand ignorou a multidão. Ele se sentou na beira da velha fundação de pedra, embrulhou-se bem no próprio manto e ficou olhando para a porta da estalagem. Ghealdan. Tar Valon. Os nomes por si só já eram estranhos e empolgantes. Eram lugares que ele conhecia apenas das notícias trazidas pelos mascates, e de histórias contadas pelos guardas dos mercadores. Aes Sedai, guerras e falsos Dragões: disso eram feitas as histórias contadas tarde da noite na frente da lareira, com uma vela criando estranhas formas na parede e o vento uivando nos postigos. No todo, ele preferia as nevascas e os lobos. No entanto, devia ser diferente lá fora, além dos Dois Rios… Como viver no meio da história contada por um menestrel. Uma aventura. Uma longa aventura. Uma vida inteira de aventuras.

Lentamente os aldeões se dispersaram, ainda resmungando e balançando a cabeça. Wit Congar fez uma pausa para olhar para dentro do carroção agora abandonado, como se pudesse encontrar outro mascate escondido ali. Por fim, restaram apenas alguns dos mais jovens. Mat e Perrin dirigiram-se para onde Rand estava.

— Não vejo como o menestrel vai conseguir superar isso — disse Mat, empolgado. — Será que a gente ainda vai ver esse falso Dragão?

Perrin sacudiu a cabeça desgrenhada.

— Eu não quero vê-lo. Talvez em algum outro lugar, mas não nos Dois Rios. Não se isso significar a guerra.

— Não se isso significar termos Aes Sedai aqui, tampouco — acrescentou Rand. — Ou vocês já esqueceram quem provocou a Ruptura? O Dragão pode ter começado, mas foram as Aes Sedai que realmente partiram o mundo.

— Certa vez, ouvi uma história — começou Mat devagar — do guarda de um comprador de lã. Ele disse que o Dragão renasceria na hora de maior necessidade da humanidade e nos salvaria a todos.

— Bem, ele era um idiota se acreditava nisso — disse Perrin com firmeza. — E você foi idiota de ouvir. — Ele não soava zangado; era difícil Perrin se zangar. Mas às vezes ficava exasperado com as fantasias imprevisíveis de Mat, e havia um toque dessa exasperação em sua voz. — Suponho que ele também tenha afirmado que depois todos iríamos viver numa nova Era das Lendas.

— Eu não disse que acreditava nisso — protestou Mat. — Apenas ouvi. Nynaeve também ouviu, e achei que ela fosse esfolar a mim e ao guarda juntos. Ele disse… o guarda disse… que muita gente acredita nisso, só que tem medo de dizer, medo das Aes Sedai ou dos Filhos da Luz. Ele não falou mais nada depois que Nynaeve desceu a lenha na gente. Ela contou ao mercador, que afirmou que aquela era a última viagem do guarda com ele.

— Uma boa medida — disse Perrin. — O Dragão vindo nos salvar? Isso me parece papo de Coplin.

— Que tipo de necessidade seria grave o bastante para que recorrêssemos ao Dragão para nos salvar? — ponderou Rand. — Seria o mesmo que pedir ajuda ao Tenebroso.

— Ele não disse — respondeu Mat pouco à vontade. — Nem mencionou nenhuma nova Era das Lendas. Disse que o mundo seria destroçado pela vinda do Dragão.

— Isso com certeza nos salvaria — disse Perrin secamente. — Outra Ruptura.

— Que me queimem! — grunhiu Mat. — Só estou dizendo a vocês o que o guarda falou.

Perrin sacudiu a cabeça.

— Só espero que as Aes Sedai e o Dragão, falso ou não, fiquem onde estão. Talvez assim os Dois Rios sejam poupados.

— Você acha que elas são mesmo Amigas das Trevas? — Mat franzia a testa, pensativo.

— Quem? — perguntou Rand.

— As Aes Sedai.

Rand olhou para Perrin, que deu de ombros.

— As histórias… — ele começou devagar, mas Mat o cortou.

— Nem todas as histórias dizem que elas servem ao Tenebroso, Rand.

— Pela Luz, Mat! — retrucou Rand. — Foram elas que provocaram a Ruptura. O que mais você quer?

— Sei lá. — Mat suspirou, mas no instante seguinte já estava sorrindo de novo. — O velho Bili Congar diz que essas coisas não existem. Aes Sedai. Amigas das Trevas. Diz que são somente histórias. E que tampouco acredita no Tenebroso.

Perrin bufou.

— Papo de Coplin vindo de um Congar. O que mais você esperava?

— O velho Bili invocou o Tenebroso. Aposto que dessa você não sabia.

— Pela Luz! — disse Rand baixinho.

O sorriso de Mat se alargou.

— Foi na primavera passada, pouco antes de as lagartas aparecerem nos campos dele e nos de ninguém mais. Pouco antes de todos na casa dele caírem doentes com febre do olho amarelo. Eu o ouvi fazer isso. Ele ainda diz que não acredita, mas sempre que lhe peço para invocar o Tenebroso agora, ele joga alguma coisa em cima de mim.

— Você é mesmo burro o bastante para fazer isso, não é, Matrim Cauthon? — Nynaeve al’Meara entrou no meio deles, a trança escura puxada sobre o ombro quase se eriçando de raiva.

Rand mais que depressa se pôs de pé. Magra e mal passando do ombro de Mat, naquele momento a Sabedoria parecia mais alta que qualquer um deles, e o fato de ser jovem e bonita não alterava nada.

— Suspeitei de algo desse tipo em relação a Bili Congar na época, mas achei que você pelo menos tivesse mais juízo para saber que não deve ficar tentando convencê-lo a fazer uma coisa assim. Você pode ter idade suficiente para se casar, Matrim Cauthon, mas na verdade ainda não deveria ter saído da barra das saias de sua mãe. Daqui a pouco, você é quem vai invocar o Tenebroso.

— Não, Sabedoria — protestou Mat, com cara de quem queria estar em qualquer lugar menos ali. — Foi o velho Bil… quer dizer, Mestre Congar, não eu! Sangue e cinzas, eu…

— Olha essa língua, Matrim!

Rand se endireitou, embora o olhar feroz dela não estivesse direcionado a ele. Perrin parecia igualmente desconcertado. Mais tarde iriam quase certamente queixar-se de terem sido admoestados por uma mulher que não era nem tão mais velha — isso sempre acontecia depois de uma das broncas de Nynaeve, ainda que nunca na frente dela —, mas a diferença de idade sempre parecia mais do que suficiente quando se estava cara a cara com ela. Especialmente se estivesse zangada. O cajado em sua mão era grosso em uma das extremidades e quase um graveto na outra, e Nynaeve era capaz de dar uma bordoada em qualquer um que, na sua opinião, estivesse agindo como tolo — na cabeça, nas mãos ou nas pernas —, sem se importar com idade ou posição social.

A Sabedoria prendera tanto sua atenção que no começo Rand não viu que ela não estava só. Quando percebeu seu erro, começou a pensar em ir embora, independentemente do que Nynaeve diria ou faria mais tarde.

Egwene estava parada alguns passos atrás da Sabedoria, observando tudo com atenção. Da mesma altura que Nynaeve e com os mesmos cabelos escuros, ela poderia naquele momento ser um reflexo do humor da outra, braços cruzados sob os seios, os lábios apertados em sinal de desaprovação. O capuz de seu manto cinza-claro sombreava-lhe o rosto, e os grandes olhos castanhos não tinham naquele momento nenhum traço de riso.

Se houvesse alguma justiça no mundo, pensou, ser dois anos mais velho que ela deveria lhe dar uma certa vantagem, mas não era assim que as coisas funcionavam. Nem em seus melhores momentos ele era muito ágil com a língua quando falava com alguma garota da aldeia, não como Perrin, mas sempre que Egwene lhe dirigia aquele olhar intenso, com os olhos tão arregalados quanto possível, como se toda a sua atenção estivesse voltada para ele, Rand simplesmente parecia não conseguir fazer as palavras saírem como queria. Talvez ele conseguisse escapar assim que Nynaeve terminasse. Mas sabia que não iria a lugar nenhum, mesmo sem entender por quê.

— Se você já me olhou o bastante com essa cara de cordeiro aluado, Rand al’Thor — disse Nynaeve —, quem sabe não consegue me dizer por que estavam conversando sobre uma coisa que até mesmo vocês três, seus bezerros superdesenvolvidos, deveriam ter o bom senso de nem sequer pronunciar.

Rand levou um susto e afastou os olhos de Egwene; ela havia aberto um sorriso desconcertante quando a Sabedoria começara a falar. A voz de Nynaeve era áspera, mas ela também tinha no rosto o início de um sorriso cúmplice… até Mat dar uma gargalhada. O sorriso da Sabedoria desapareceu, e o olhar que ela lançou a Mat cortou a risada dele e a transformou em um grasnido estrangulado.

— Então, Rand? — perguntou Nynaeve.

Pelo canto do olho ele viu Egwene ainda sorrindo. Qual é a graça que ela está vendo nisso?

— Era natural falarmos disso, Sabedoria — ele apressou-se a dizer. — O mascate… Padan Fain… hã… Mestre Fain… trouxe notícias de um falso Dragão em Ghealdan, e de uma guerra, e de Aes Sedai. O Conselho achou que isso era importante o bastante para conversarem com ele. Do que mais estaríamos falando?

Nynaeve balançou a cabeça.

— Então é por isso que a carroça do mascate está abandonada. Ouvi as pessoas correrem para ir ao encontro dele, mas eu não poderia deixar a Senhora Ayellin antes de a febre dela ceder. O Conselho está interrogando o mascate sobre o que está acontecendo em Ghealdan, não é? Se bem os conheço, estão fazendo todas as perguntas erradas e deixando de fazer as certas. Será preciso que o Círculo das Mulheres descubra algo de útil. — Ajeitando o manto firmemente sobre os ombros, ela desapareceu no interior da estalagem.

Egwene não seguiu a Sabedoria. Quando a porta da estalagem se fechou atrás de Nynaeve, a jovem se colocou à frente de Rand. Seu rosto já não estava franzido, mas seus olhos que não piscavam o faziam se sentir desconfortável. Ele olhou para os amigos, mas eles se afastaram, o sorriso aberto ao abandoná-lo.

— Você não deveria deixar Mat metê-lo em suas tolices, Rand — disse Egwene, tão solene quanto uma Sabedoria, então de repente deu um risinho. — Não o vejo com essa cara desde que Cenn Buie pegou você e Mat trepados nas macieiras dele quando tinham dez anos.

Ele mudou o peso do corpo para a outra perna e olhou de relance para os amigos. Eles não estavam muito longe dali, Mat gesticulando, empolgado, enquanto falava.

— Dança comigo amanhã? — Não era isso que Rand pretendia dizer. Ele queria dançar com ela, mas ao mesmo tempo tudo que menos queria era o desconforto que sentia quando estava com ela. Que era o que ele estava sentindo naquele exato instante.

Os cantos da boca de Egwene curvaram-se de súbito num sorrisinho.

— À tarde — ela disse. — Vou estar ocupada de manhã.

Dos outros veio a exclamação de Perrin:

— Um menestrel!

Egwene virou-se naquela direção, mas Rand pôs a mão no braço dela.

— Ocupada? Com quê?

Apesar do frio, ela empurrou para trás o capuz do manto e com aparente casualidade puxou os cabelos para a frente, sobre o ombro. Da última vez em que ele a vira, seus cabelos pendiam em ondas escuras abaixo dos ombros, com apenas uma fita vermelha mantendo-os afastados do rosto; agora estavam penteados em uma longa trança.

Ele olhou para aquela trança como se ela fosse uma víbora, depois olhou de relance para o Pau da Primavera, agora erguendo-se solitário no Campo, pronto para o dia seguinte. Pela manhã, as mulheres solteiras em idade de se casar dançariam ao redor do Pau. Rand engoliu em seco. Por alguma razão, nunca lhe havia ocorrido que ela chegaria à idade de se casar ao mesmo tempo que ele.

— Só porque alguém tem idade para se casar — ele murmurou —, não quer dizer que deva. Não imediatamente.

— É claro que não. Ou nunca, pensando bem.

Rand piscou, surpreso.

— Nunca?

— Uma Sabedoria quase nunca se casa. Sabe, Nynaeve está me ensinando. Ela diz que levo jeito, que posso aprender a escutar o vento. Nynaeve diz que nem todas as Sabedorias conseguem isso, mesmo que digam que sim.

— Sabedoria! — Ele riu, sem perceber o brilho perigoso nos olhos dela. — Nynaeve será Sabedoria por pelo menos mais uns cinquenta anos. Provavelmente mais. Você vai passar o resto da vida como aprendiz dela?

— Existem outras aldeias — ela respondeu acaloradamente. — Nynaeve diz que as aldeias ao norte do Taren sempre escolhem uma Sabedoria de longe. Acham que isso evita que ela tenha favoritos entre o povo da aldeia.

O ar divertido dele desapareceu tão rapidamente quanto havia surgido.

— Fora dos Dois Rios? Eu nunca mais veria você.

— E você não ia gostar disso? Ultimamente não tem dado nenhum sinal de que se importaria.

— Ninguém jamais sai dos Dois Rios — ele continuou. — Talvez alguém de Barca do Taren, mas eles todos são estranhos mesmo. Não parecem gente dos Dois Rios.

Egwene deu um suspiro exasperado.

— Bem, talvez eu também seja estranha. Talvez eu queira ver alguns dos lugares sobre os quais ouço falar nas histórias. Já pensou nisso?

— É claro que já. Às vezes eu sonho acordado, mas sei a diferença entre o que é sonho e o que é real.

— E eu não sei? — perguntou ela, furiosa, e prontamente lhe virou as costas.

— Não foi o que eu quis dizer. Eu estava falando de mim. Egwene?

Ela puxou o manto bruscamente em torno do corpo, uma muralha para mantê-lo a distância, e afastou-se alguns passos, o corpo rígido. Ele esfregou a cabeça, frustrado. Como explicar? Não era a primeira vez que ela espremia suas palavras e extraía significados que ele não sabia que havia ali. No humor em que ela se encontrava, um passo em falso só tornaria as coisas piores, e ele tinha certeza de que quase tudo o que dissesse seria um passo em falso.

Então Mat e Perrin voltaram. Egwene ignorou a aproximação deles. Eles a olharam, hesitantes, e então se acercaram de Rand.

— Moiraine deu uma moeda a Perrin também — disse Mat. — Igual a nossa. — Ele fez uma pausa antes de acrescentar: — E ele viu o cavaleiro.

— Onde? — Rand quis saber. — Quando? Mais alguém o viu? Você contou a alguém?

Perrin levantou as mãos grandes num gesto lento.

— Uma pergunta de cada vez. Eu o vi nos arredores da aldeia, observando a ferraria, ontem ao crepúsculo. Ele me deu arrepios. Contei a Mestre Luhhan, só que, quando ele foi olhar, não havia ninguém lá. Ele disse que eu estava vendo sombras. Mas carregou seu maior martelo enquanto apagávamos o fogo da forja e guardávamos as ferramentas. Ele nunca tinha feito isso antes.

— Então ele acreditou em você — disse Rand.

Mas Perrin deu de ombros.

— Não sei. Perguntei a ele por que estava carregando o martelo se tudo o que vi foram sombras, e ele disse alguma coisa sobre lobos se atrevendo o bastante para entrar na aldeia. Talvez achasse que era isso o que eu tinha visto, mas devia saber que conheço a diferença entre um lobo e um homem a cavalo, mesmo no crepúsculo. Eu sei o que vi, e ninguém vai me fazer acreditar em outra coisa.

— Acredito em você — disse Rand. — Lembre-se, eu também o vi.

Perrin deu um grunhido de satisfação, como se antes não estivesse muito certo daquilo.

— Do que vocês estão falando? — Egwene perguntou de repente.

Rand desejou ter falado mais baixo. É o que teria feito se tivesse percebido que ela estava escutando. Mat e Perrin, sorrindo feito bobos, apressaram-se em contar a ela de seus encontros com o cavaleiro de negro, mas Rand manteve-se em silêncio. Tinha certeza de que sabia o que ela iria dizer quando eles acabassem.

— Nynaeve tem razão — Egwene anunciou aos céus quando os dois jovens se calaram. — Nenhum de vocês está pronto para sair da barra das saias da mãe. As pessoas andam a cavalo, sabiam? Isso não faz delas monstros saídos de uma história de menestrel.

Rand assentiu para si mesmo; exatamente como ele havia pensado. Ela acercou-se dele.

— E você tem espalhado essas histórias. Às vezes não tem juízo, Rand al’Thor. O inverno já foi assustador demais. Você não precisa ficar por aí apavorando as crianças.

Rand fez uma careta amarga.

— Eu não espalhei nada, Egwene. Mas vi o que vi, e não foi um fazendeiro procurando uma vaca perdida.

Egwene respirou fundo e abriu a boca, mas o que quer que fosse dizer se perdeu quando a porta da estalagem se abriu e um homem de cabelos brancos desgrenhados saiu correndo como se estivesse sendo perseguido.

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