A aldeia era maior que a maioria; mas ainda era uma cidadezinha insignificante para ter um nome como Quatro Reis. Como de costume, a Estrada de Caemlyn passava pelo centro da pequena cidade, mas outra rodovia de tráfego bem pesado vinha do sul também. Em sua maioria, as aldeias eram mercados e pontos de encontro dos fazendeiros da área, mas não havia muitos fazendeiros por ali. Quatro Reis sobrevivia como parada para comboios de carroções de mercadores a caminho de Caemlyn e das cidades mineiras nas Montanhas da Névoa, além de Baerlon, bem como das aldeias no meio do caminho. Pela estrada do sul seguia o comércio de Lugard com as minas a oeste; mercadores de Lugard indo a Caemlyn tinham uma rota mais direta. A área ao redor contava com poucas fazendas, que quase não eram o bastante para alimentar a si mesmas e à cidade, e tudo na aldeia girava em torno dos mercadores e seus carroções, os homens que os dirigiam e os trabalhadores que carregavam as mercadorias.
Havia áreas de terra nua, batida até virar pó, por toda Quatro Reis, cheias de carroções estacionados roda a roda e abandonados, a não ser por alguns guardas entediados. Estábulos e cavalariças ladeavam as ruas, todas largas o bastante para permitir a passagem dos carroções e com sulcos fundos deixados pela passagem de muitas rodas. Não havia campo, e as crianças brincavam nesses sulcos, desviando-se de carroções e dos xingamentos de seus condutores. As mulheres da aldeia, as cabeças cobertas por lenços, mantinham os olhos abaixados e caminhavam apressadas, às vezes seguidas por comentários dos carroceiros que faziam Rand enrubescer; até Mat se assustou com alguns deles. Não havia mulheres fofocando por cima da cerca com as vizinhas. Casas precárias de madeira praticamente colavam-se umas nas outras, separadas apenas por vielas estreitas, e a caiação, onde alguém tivesse se dado ao trabalho de caiar as tábuas marcadas pelo tempo, era quase apagada, como se havia anos não recebessem uma nova demão. Postigos pesados nas casas não se abriam fazia tanto tempo que as dobradiças eram massas sólidas de ferrugem. Por toda parte havia barulho, clangor de oficinas de ferreiros, gritos dos condutores dos carroções, risadas estrondosas que vinham das estalagens da cidade.
Rand desceu da parte de trás de um carroção de mercador com cobertura de lona quando passaram por uma estalagem toda colorida, pintada em tons vivos de verde e amarelo que atraíam o olhar de longe entre as casas cor de chumbo. A fila dos carroções seguiu em frente. Nenhum dos condutores sequer pareceu notar que ele e Mat haviam sumido; o crepúsculo avançava, e todos só conseguiam pensar em desatrelar os cavalos e chegar às estalagens. Rand tropeçou numa vala, depois saltou rapidamente para evitar um carroção pesado que vinha chegando pelo outro lado. O condutor o xingou aos gritos ao passar. Uma mulher da aldeia desviou dele e se apressou sem sequer olhar em seus olhos.
— Este lugar… eu não sei — disse. Achou que ouvia música em meio ao burburinho, mas não sabia dizer de onde vinha. Talvez da estalagem, mas era difícil saber. — Não gosto daqui. Talvez seja melhor a gente seguir em frente desta vez.
Mat lhe dirigiu um olhar de escárnio, depois virou os olhos para o céu. Nuvens negras engrossavam acima de sua cabeça.
— E dormir sob uma cerca-viva esta noite? Com o que vem aí? Já voltei a me acostumar com camas. — Ele inclinou a cabeça para apurar o ouvido, depois soltou um grunhido. — Talvez um desses lugares não tenha músicos. De qualquer maneira, aposto que não têm malabarista. — Ele pendurou o arco nos ombros e seguiu para a porta amarelo berrante, estudando tudo com olhos semicerrados. Rand o seguiu, vacilante.
Havia músicos lá dentro, a cítara e o tambor quase afogados por risadas roucas e gritos bêbados. Rand nem se deu ao trabalho de encontrar o senhorio. As duas estalagens seguintes também tinham músicos, e a mesma cacofonia ensurdecedora. Homens vestidos com roupas simples enchiam as mesas e andavam aos tropeços, agitando canecas e tentando acariciar criadas que serviam e se desviavam com sorrisos congelados e resignados no rosto. Os prédios tremiam com a algazarra, e o cheiro era acre, um fedor de vinho velho e corpos sujos. Dos mercadores, em suas sedas, veludos e rendas, nem sinal; salas de jantar particulares nos andares de cima protegiam-lhes os ouvidos e os narizes. Rand e Mat apenas enfiavam a cabeça pela porta antes de ir embora. Rand já começava a achar que não teriam escolha a não ser seguir em frente.
A quarta estalagem, a Carroceiro Dançante, estava em silêncio.
Ela era tão colorida quanto as outras, amarela com detalhes vermelhos brilhantes e um verde-bílis de doer os olhos, embora ali a tinta estivesse rachada e descascando. Rand e Mat entraram.
Apenas meia dúzia de homens se sentava às mesas que preenchiam o salão, todos debruçados sobre suas canecas, cada qual sozinho e melancólico com seus pensamentos. Os negócios definitivamente não iam bem, mas já tinham tido dias melhores. O número de criadas era o mesmo dos fregueses e elas se ocupavam pelo salão. Havia muita coisa a fazer… o chão estava incrustado de sujeira e teias de aranha enchiam os cantos do teto… mas a maioria não fazia nada de realmente útil. Só se movia para que não fosse vista parada.
Um homem ossudo com cabelos compridos e grudentos que caíam até os ombros se virou e olhou para eles de cara feia quando passaram pela porta. O primeiro ronco lento de trovão se fez ouvir em Quatro Reis.
— O que vocês querem? — O homem esfregava as mãos num avental engordurado que lhe caía até os tornozelos. Rand ficou se perguntando se havia mais sujeira no avental ou nas mãos do homem. Ele era o primeiro estalajadeiro magro que Rand via na vida. — Então? Falem alguma coisa, comprem uma bebida ou saiam daqui! Por acaso pareço um show de raridades?
Enrubescendo, Rand começou a fala decorada que havia aperfeiçoado nas estalagens anteriores àquela.
— Eu toco flauta, e meu amigo faz malabarismo, e você não verá dois melhores que nós em um ano. Por um bom quarto e uma boa refeição, vamos encher este seu salão. — Ele se lembrou dos salões cheios que já vira naquela noite, e especialmente do homem que havia vomitado bem à sua frente no último deles. Precisara dar um bom salto para manter as botas intocadas. Hesitou um pouco, mas respirou fundo e continuou: — Vamos encher sua estalagem com homens que irão compensar, com a comida e bebida que comprarem vinte vezes o pouco que custamos. Por que…
— Eu já tenho um homem que toca dulcimer — disse o estalajadeiro, azedo.
— Você tem um bêbado, Saml Hake — disse uma das criadas. Ela passava por ele com uma bandeja e duas canecas, e fez uma pausa para oferecer a Rand e Mat um sorriso rechonchudo. — Na maioria das vezes, ele não consegue ver o suficiente para encontrar o salão — confidenciou num sussurro alto. — Não o vejo faz dois dias.
Sem tirar os olhos de Rand e Mat, Hake casualmente virou as costas da mão no rosto dela. A mulher deu um grunhido surpreso e desabou pesadamente no chão sujo; uma das canecas quebrou, e o vinho derramado escorreu em pequenos riachos pela poeira.
— Você vai ser descontada pelo vinho e pela caneca quebrada. Vá pegar novas bebidas. E depressa. Os homens não pagam para esperar enquanto você fica de preguiça. — O tom dele era tão casual quanto o golpe. Nenhum dos frequentadores ergueu a vista do próprio vinho, e as outras criadas voltaram os olhos em outra direção.
A mulher rechonchuda esfregou a bochecha e lançou um olhar de puro ódio para Hake, mas recolheu a caneca vazia e os pedaços quebrados em sua bandeja e saiu sem dizer palavra.
Hake ficou ali chupando os dentes, pensativo, olhando para Rand e Mat. Seu olhar demorou-se na espada com a marca da garça.
— Quer saber? — disse finalmente. — Vocês podem ficar com dois catres num depósito vazio lá nos fundos. Quartos são muito caros para dar. E vocês comem depois que todo mundo tiver ido embora. Deve sobrar alguma coisa.
Rand desejou que houvesse uma estalagem em Quatro Reis que ainda não tivessem visitado. Desde Ponte Branca, ele havia encontrado frieza, indiferença e hostilidade direta, mas nada que lhe desse a sensação de desconforto que aquele homem e aquela aldeia lhe traziam. Disse a si mesmo que era só a sujeira, a pobreza e o barulho, mas a sensação ruim persistia. Mat observava Hake como se suspeitasse de alguma armadilha, mas não deu nenhum sinal de querer desistir da Carroceiro Dançante e dormir sob uma cerca-viva. Trovões sacudiram as janelas. Rand suspirou.
— Os catres servirão se estiverem limpos, e se houver cobertores limpos suficientes. Mas nós comemos duas horas depois que escurecer totalmente, não depois, e do melhor que você tiver. Olhe. Vamos lhe mostrar o que sabemos fazer. — Estendeu a mão para a caixa da flauta, mas Hake sacudiu a cabeça.
— Não interessa. Este bando aqui se satisfaz com qualquer tipo de barulho contanto que pareça música. — Olhou mais uma vez a espada de Rand; seu sorriso fino não tocava nada a não ser os lábios. — Comam quando quiserem, mas se não puserem gente aqui dentro vão para o olho da rua. — Indicou dois homens de rosto austero sentados contra a parede atrás dele. Eles não estavam bebendo, e seus braços eram grossos como pernas. Quando Hake assentiu para eles, seus olhares deslizaram até Rand e Mat, secos e sem expressão.
Rand pôs uma das mãos no cabo da espada, torcendo para que o embrulho no estômago não se refletisse em seu rosto.
— Contanto que tenhamos o que foi acordado — disse ele num tom de voz uniforme.
Hake piscou, e por um momento ele próprio pareceu desconfortável. Subitamente ele assentiu:
— Foi o que eu disse, não foi? Bem, comecem logo. Vocês não vão trazer ninguém ficando aí parados. — E se afastou, fazendo cara feia e gritando com as criadas como se elas estivessem deixando de atender uns cinquenta clientes.
Havia uma pequena plataforma elevada na outra ponta do salão, perto da porta dos fundos. Rand colocou um banco em cima dela e ajeitou seu manto, o cobertor e o manto embrulhado de Thom atrás do banco com a espada em cima de tudo.
Ficou se perguntando se havia sido sábio em continuar usando a espada abertamente. Espadas eram coisa comum, mas a marca da garça sempre atraía atenção e especulação. Não de todos, mas qualquer um que reparasse o fazia se sentir pouco à vontade. Ele podia estar deixando um rastro claro para os Myrddraal… se é que os Desvanecidos precisavam desse tipo de rastro. Parecia que não. De qualquer maneira, relutava em deixar de usá-la. Tam a dera para ele. Seu pai. Enquanto usasse a espada, ainda haveria alguma conexão entre Tam e ele, um fio que lhe dava o direito de ainda chamar Tam de pai. Tarde demais agora, pensou. Não tinha certeza do que queria dizer com isso, mas sabia que era verdade. Tarde demais.
Na primeira nota de “Galo do Norte”, a meia dúzia de frequentadores no salão levantou a cabeça, tirando os olhos do vinho. Até mesmo os dois leões de chácara se inclinaram um pouquinho para a frente. Todos aplaudiram quando ele terminou, incluindo os dois leões de chácara, e mais uma vez, quando Mat fez uma chuva de bolas coloridas girar em suas mãos. Do lado de fora, o céu voltou a resmungar. A chuva estava custando a cair, mas era possível sentir a pressão; quanto mais ela demorasse, com mais força desabaria.
A notícia se espalhou e, quando escureceu do lado de fora, a estalagem estava lotada de homens rindo e falando tão alto que Rand mal conseguia ouvir o que estava tocando. Só os trovões lá no alto sobrepujavam o ruído no salão. Os relâmpagos piscavam nas janelas, e nos poucos momentos de mais tranquilidade ele conseguia ouvir baixinho a chuva caindo no telhado. Os homens que entravam passaram a deixar trilhas de água no chão.
Sempre que ele fazia uma pausa, vozes gritavam nomes de canções em meio ao burburinho. Ele não reconhecia uma boa parte dos títulos, mas, quando pedia para que alguém cantarolasse um pedacinho da canção, frequentemente descobria que a conhecia. O mesmo acontecera em outros lugares antes. “Jaim Alegre” ali era “O Flerte de Rhea”, e em uma parada anterior se chamava “Cores do Sol”. Alguns nomes permaneciam os mesmos; outros mudavam numa distância de dez milhas. E ele também havia aprendido novas canções. “O Mascate Bêbado” era uma delas, embora às vezes ela se chamasse “Latoeiro na Cozinha”. “Dois Reis Vieram Caçar” era “Dois Cavalos Correndo”, além de vários outros nomes. Ele tocava as que conhecia, e os homens socavam as mesas exigindo mais.
Outros pediam que Mat voltasse a fazer malabarismos. Às vezes acontecia uma briga entre aqueles que queriam música e os que preferiam malabares. Em dado momento uma faca surgiu, uma mulher gritou e um homem recuou de uma mesa com sangue correndo pelo rosto, mas Jak e Strom, os dois leões de chácara, chegaram rapidamente e, com completa imparcialidade, jogaram todos os envolvidos na rua, com galos na cabeça. Essa era sua tática com qualquer problema. As conversas e os risos continuaram como se nada tivesse acontecido. Ninguém sequer olhou ao redor, exceto aqueles em que os leões de chácara esbarravam no caminho para a porta.
As mãos dos frequentadores também mostravam-se abusadas quando uma das atendentes se distraía. Mais de uma vez Jak ou Strom tiveram de resgatar uma das mulheres, embora nessas ocasiões eles não tivessem muita pressa. Do jeito como Hake se comportava, gritando e admoestando a mulher envolvida, ele sempre a considerava culpada, e os olhos cheios de lágrimas e os pedidos de desculpas gaguejados diziam que ela estava disposta a aceitar a opinião dele. As mulheres pulavam sempre que Hake franzia a testa, mesmo que ele estivesse olhando para outra direção. Rand ficou se perguntando por que elas aguentavam aquilo.
Hake sorria quando olhava para Rand e Mat. Depois de um tempo Rand percebeu que Hake não estava sorrindo para eles; os sorrisos vinham quando o olhar deslizava para trás deles, para onde estava a espada com a marca da garça. Uma vez, quando Rand colocou a flauta trabalhada em ouro e prata ao lado de sua banqueta, a flauta também recebeu um sorriso.
Na vez seguinte em que trocou de lugar com Mat na frente do pequeno palco, Rand se curvou para falar no ouvido de Mat. Mesmo tão de perto ele precisou falar alto, mas com todo o barulho ele duvidava que alguém mais pudesse ouvir.
— Hake vai tentar nos roubar.
Mat assentiu, como se já estivesse esperando aquilo.
— Vamos ter de bloquear nossa porta esta noite.
— Bloquear nossa porta? Jak e Strom podem quebrar uma porta com os punhos. Vamos dar o fora daqui.
— Espere pelo menos até comermos. Estou faminto. Eles não podem fazer nada aqui — acrescentou Mat. O salão lotado gritava impaciente para que continuassem. Hake fuzilava os dois com o olhar. — Seja como for, você quer dormir lá fora esta noite? — Um estrondo particularmente forte abafou todos os outros ruídos, e por um instante a luz dos relâmpagos que vinha pelas janelas ficou mais forte que a dos lampiões.
— Eu só quero sair sem arrebentarem a minha cabeça — disse Rand, mas Mat já estava voltando para seu descanso na banqueta. Rand deu um suspiro e começou a tocar “A Estrada para Dun Aren”. Muitos ali pareciam gostar daquela canção; ele já a havia tocado quatro vezes, e ainda gritavam pedindo por ela.
A questão era que Mat tinha razão, até certo ponto. Ele também estava com fome. E não podia ver como Hake lhes traria qualquer problema enquanto o salão estivesse cheio, e este ficava cada vez mais cheio. Para cada homem que ia embora ou era atirado para fora por Jak e Strom, dois vinham da rua. Eles gritavam pedindo o malabarista ou uma canção em particular, mas na maioria das vezes estavam interessados em beber e passar a mão nas criadas. Mas um homem era diferente.
Ele se destacava de todas as formas em meio à multidão na Carroceiro Dançante. Os mercadores aparentemente não tinham serventia para aquela estalagem caindo aos pedaços; não havia sequer salas de jantar privadas para eles, até onde Rand conseguia ver. Todos os frequentadores se vestiam humildemente, com a pele áspera de homens que trabalhavam ao sol e ao vento. Aquele homem tinha carne nos ossos, embora fosse esguio, e suas mãos tinham um aspecto suave; ele vestia um casaco de veludo, e um manto de veludo verde-escuro forrado de seda azul-escura pendia de seus ombros. Todas as suas roupas tinham um corte caro. Os sapatos eram sapatilhas de veludo macio, não botas, e não haviam sido feitos para as ruas sujas de Quatro Reis; aliás, nem para qualquer outra rua.
Ele chegou bem depois de escurecer, sacudindo a chuva do manto enquanto olhava ao redor, a boca torcida de nojo. Vasculhou o aposento uma vez, já se virando para ir; então, subitamente se assustou com alguma coisa que Rand não pôde ver e se sentou a uma mesa que Jak e Strom haviam acabado de esvaziar. Uma criada parou em sua mesa e depois lhe trouxe uma caneca de vinho, que ele empurrou para o lado e não voltou a tocar. Ela pareceu ter pressa de afastar-se da mesa dele nas duas vezes, embora ele não tentasse tocá-la ou mesmo olhar para ela. Fosse o que fosse que ela vira nele e que a havia deixado inquieta, outros que se aproximavam também notaram. Pois, apesar de seu aspecto suave, sempre que um condutor de carroções com as mãos calejadas decidia compartilhar sua mesa, bastava um olhar para que o homem fosse procurar outro lugar. Ele se sentava como se não existisse mais ninguém no salão a não ser ele… e Rand e Mat. Estes dois ele observava sobre mãos entrelaçadas que reluziam com um anel em cada dedo. Observava-os com um sorriso de reconhecimento satisfeito.
Rand murmurou para Mat enquanto trocavam mais uma vez de lugar, e Mat assentiu.
— Eu vi — resmungou. — Quem é ele? Não paro de pensar que o conheço.
O mesmo pensamento havia ocorrido a Rand, lá no fundo da sua memória, mas ele não conseguia trazê-lo à tona. Entretanto, tinha certeza de que aquele era um rosto que jamais vira antes.
Quando já haviam se apresentado por duas horas, até onde podia estimar, Rand enfiou a flauta na caixa e ele e Mat recolheram seus pertences. No momento em que desciam da plataforma baixa, Hake veio correndo, o rosto estreito contorcido de raiva.
— Está na hora de comer — disse Rand para detê-lo —, e não queremos que roubem nossas coisas. Quer avisar ao cozinheiro? — Hake hesitou, ainda zangado, tentando sem sucesso tirar os olhos do que Rand segurava nos braços. Rand deslocou casualmente suas sacolas para poder descansar uma das mãos sobre a espada. — Ou você pode tentar nos botar para fora. — Ele deu a ênfase deliberadamente, então acrescentou: — Ainda resta muita noite pela frente para nós tocarmos. Precisamos ficar de pé se quisermos nos apresentar bem o bastante para fazer com que esta multidão continue gastando dinheiro. Por quanto tempo você acha que este salão permanecerá cheio se cairmos de fome?
Os olhos de Hake se repuxaram ante o salão cheio de homens pondo dinheiro em seu bolso. Então ele se virou e enfiou a cabeça pela porta que dava para a parte de trás da estalagem.
— Dê comida para eles! — gritou. Virando-se para Rand e Mat, ele rosnou: — Não levem a noite toda. Eu espero que vocês fiquem aqui até o último homem ir embora.
Alguns dos frequentadores gritavam pelo músico e pelo malabarista, e Hake se virou para apaziguá-los. O homem da capa de veludo era um dos ansiosos. Rand fez sinal para Mat segui-lo.
Uma porta pesada separava a cozinha da frente da estalagem, e, exceto quando ela se abria para deixar passar uma atendente, o ruído da chuva que batia no telhado era mais alto na cozinha do que os gritos do salão. Era um cômodo grande, quente e fumegante por causa dos fornos e fogões, com uma mesa imensa coberta por comida sendo preparada e pratos prontos para serem servidos. Algumas das criadas estavam sentadas espremidas num banco perto da porta dos fundos, massageando os pés e conversando todas ao mesmo tempo com a cozinheira gorda, que respondia e sacudia uma colher de pau para enfatizar o que dizia. Todas levantaram a cabeça quando Rand e Mat entraram, mas isso não reduziu a velocidade da conversa nem interrompeu a massagem nos pés.
— Devíamos sair daqui enquanto temos chance — disse Rand baixinho, mas Mat balançou a cabeça, os olhos fixos nos dois pratos que a cozinheira estava enchendo de carne, batatas e ervilhas. Ela mal olhou para os dois, continuando a conversa com as outras mulheres enquanto empurrava coisas de lado na mesa com os cotovelos e punha os pratos ali, acrescentando garfos.
— Temos tempo suficiente para comer. — Mat escorregou para um banco e começou a usar o garfo como se fosse uma pá.
Rand suspirou, mas seguiu o exemplo de Mat. Comera apenas a ponta de um pão desde a noite anterior. Seu estômago estava vazio como a bolsa de um mendigo, e os aromas de comida que enchiam a cozinha não estavam ajudando. Num instante estava de boca cheia, embora a cozinheira estivesse reenchendo o prato de Mat antes que ele tivesse acabado metade do dele.
Não era sua intenção bisbilhotar a conversa das mulheres, mas algumas palavras chegaram até ele e o tomaram de assalto.
— Parece loucura.
— Loucura ou não, foi o que ouvi. Ele passou por metade das estalagens da cidade antes de chegar aqui. Simplesmente entrou, olhou ao redor e saiu sem dizer uma palavra, inclusive na Estalagem Real. Como se nem estivesse chovendo.
— Talvez ele tenha achado que aqui era o lugar mais confortável. — Isso provocou muitas gargalhadas.
— O que ouvi dizer é que ele só chegou a Quatro Reis depois do cair da noite, e seus cavalos estavam arfando, como se tivessem sido muito exigidos.
— De onde ele veio, para ser apanhado assim na estrada no escuro? Ninguém a não ser um idiota ou um louco viaja para qualquer lugar e planeja assim tão mal.
— Bem, talvez ele seja um idiota, mas é um idiota rico. Ouvi dizer que ele tem até outra carruagem para os servos e a bagagem. Ali tem dinheiro, ouçam o que eu digo. Viram aquele manto? Eu não me importaria de ter um daqueles.
— Ele é meio cheinho para o meu gosto, mas sempre digo que um homem nunca é gordo demais se vier com ouro suficiente. — Todas se dobraram de tanto rir, e a cozinheira jogou a cabeça para trás, gargalhando estrepitosamente.
Rand deixou o garfo cair no prato. Um pensamento indesejado borbulhou em sua mente.
— Volto num minuto — disse. Mat mal assentiu, enfiando um pedaço de batata na boca.
Rand pegou o cinturão da espada juntamente com seu manto ao se levantar, e o prendeu à cintura no caminho para a porta dos fundos. Ninguém lhe deu a menor atenção.
A chuva caía a cântaros. Ele pôs o manto nos ombros e puxou o capuz sobre a cabeça, segurando o manto junto ao corpo enquanto atravessava o pátio do estábulo numa corrida. Uma cortina de água ocultava tudo, exceto quando um raio caía, mas ele encontrou o que estava procurando. Os cavalos haviam sido levados para dentro do estábulo, mas as duas carruagens de verniz preto reluziam na chuva do lado de fora. No breve clarão ele leu um nome em letras douradas nas portas da carruagem. Howal Gode.
Sem se dar conta da chuva que caía sobre ele, ficou ali parado, olhando para o nome que não conseguia mais ver. Lembrou-se da última vez em que havia visto carruagens de verniz preto com os nomes dos donos na porta, e homens esbeltos e bem alimentados vestindo mantos de veludo forrados de seda e sapatilhas de veludo. Ponte Branca. Um mercador de Ponte Branca poderia ter uma razão perfeitamente legítima para estar a caminho de Caemlyn. Uma razão que o manda para metade das estalagens na cidade antes de escolher aquela na qual você está? Uma razão que o faz olhar para você como se tivesse encontrado o que está procurando?
Rand estremeceu, e subitamente percebeu a chuva escorrendo por suas costas. A trama do tecido de seu manto era bem fechada, mas ele não fora feito para aquele tipo de aguaceiro. Rand correu de volta para a estalagem, pisando em poças cada vez mais fundas. Jak bloqueou a porta quando ele fez menção de passar.
— Ora, ora, ora. Aqui fora sozinho no escuro. O escuro é perigoso, garoto.
A chuva colava o cabelo de Rand na testa. O pátio do estábulo estava vazio, a não ser por eles dois. Ele se perguntou se Hake havia decidido que queria a espada e a flauta tanto assim a ponto de esquecer a multidão no salão.
Tirando água dos olhos com uma das mãos, ele pôs a outra na espada. Mesmo molhado, o couro enrugado oferecia uma pegada firme para seus dedos.
— Hake decidiu que aqueles homens todos vão ficar só por causa da cerveja dele, em vez de irem aonde há entretenimento também? Se foi isso, vamos considerar a refeição pelo que fizemos até agora e vamos embora.
Seco na porta, o homenzarrão olhou para a chuva lá fora e resfolegou.
— Nesse tempo? — Os olhos dele foram até a mão de Rand na espada. — Sabe, eu e Strom fizemos uma aposta. Ele acha que você roubou isso da sua avó. Já eu acho que sua avó chutaria você de cara no chiqueiro e depois o poria para secar. — Ele sorriu. Seus dentes eram tortos e amarelados, e o sorriso o fazia parecer ainda mais maligno. — A noite ainda é longa, garoto.
Rand passou direto por ele, e Jak o deixou entrar com uma risada maléfica.
Do lado de dentro, ele jogou o manto de lado e caiu sentado à mesa de onde havia saído minutos antes. Mat havia acabado o segundo prato e estava atacando um terceiro, comendo mais devagar, mas ainda concentrado, como se pretendesse comer até a última garfada mesmo que isso o matasse. Jak se pôs à porta que dava para o pátio do estábulo, encostado na parede, observando os dois. Nem mesmo a cozinheira pareceu ter qualquer vontade de conversar com ele ali.
— Ele é de Ponte Branca — disse Rand baixinho. Não havia necessidade de dizer quem era “ele”. A cabeça de Mat girou em sua direção, um pedaço de bife na ponta do garfo suspenso a meio caminho da boca. Consciente de Jak observando, Rand mexeu a comida no seu prato. Ele não conseguiria fazer uma garfada descer mesmo que estivesse morrendo de fome, mas tentou fingir interesse nas ervilhas enquanto falava com Mat sobre as carruagens e sobre o que as mulheres haviam dito, caso Mat não tivesse escutado.
Obviamente não escutara. Mat ficou piscando, surpreso, e assoviou por entre os dentes, depois franziu a testa para a carne em seu garfo, grunhiu e jogou o garfo no prato. Rand quis que ele pelo menos fizesse um esforço para parecer discreto.
— Atrás de nós — disse Mat quando terminou. Os vincos em sua testa ficaram mais fundos. — Um Amigo das Trevas?
— Talvez. Não sei. — Rand olhou de relance para Jak, e o homenzarrão se espreguiçou de modo elaborado, dando de ombros com músculos tão grandes quanto os de um ferreiro.
— Você acha que a gente consegue passar por ele?
— Não sem que ele faça barulho suficiente para trazer Hake e o outro. Eu sabia que a gente nunca deveria ter parado aqui.
Rand abriu a boca, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa Hake veio do salão. Strom assomava imenso atrás dele. Jak se colocou na frente da porta dos fundos.
— Vocês vão comer a noite toda? — gritou Hake. — Eu não alimentei vocês para ficarem aqui sem fazer nada.
Rand olhou para o amigo. Mais tarde, disse Mat, apenas movendo os lábios, e eles juntaram suas coisas sob os olhos vigilantes de Hake, Strom e Jak.
No salão, gritos por malabares e nomes de canções irromperam em meio à balbúrdia assim que Rand e Mat apareceram. O homem do manto de veludo, Howal Gode, ainda parecia ignorar todos ao seu redor, mas mesmo assim estava sentado na ponta da cadeira. Ao vê-los, voltou a se recostar, o sorriso de satisfação retornando aos lábios.
Rand assumiu o primeiro turno na frente do tablado, tocando “Tirando Água do Poço” sem prestar muita atenção. Ninguém pareceu reparar em algumas notas erradas. Tentou pensar em como escapariam, e tentou evitar olhar para Gode também. Se ele estava atrás deles, não havia por que deixá-lo saber que eles sabiam. Quanto a escapar…
Não havia percebido antes que bela armadilha uma estalagem dava. Hake, Jak e Strom nem precisavam ficar muito atentos a eles; a multidão lhes informaria se ele ou Mat deixasse o tablado; enquanto o salão estivesse cheio, Hake não podia mandar Jak e Strom atrás deles, mas enquanto o salão estivesse cheio eles não podiam sair sem Hake saber. E Gode também observava cada movimento deles. Era tão engraçado que ele teria rido se não estivesse a ponto de vomitar. Eles teriam simplesmente de ficar de olho e esperar uma oportunidade.
Quando trocou de lugar com Mat, Rand grunhiu para si mesmo. Mat fuzilava Hake, Strom e Jak com os olhos, sem ligar se eles reparavam ou se perguntavam por quê. Quando não estava jogando as bolas, sua mão ficava debaixo do casaco. Rand sibilou, censurando-o, mas ele não prestou atenção. Se Hake visse aquele rubi, podia nem esperar até que estivessem sozinhos. Se os homens da sala comunitária o vissem, metade deles poderia se juntar a Hake.
E, o pior de tudo, Mat dirigia ao mercador de Ponte Branca — o Amigo das Trevas? — um olhar duas vezes mais intenso do que a qualquer outra pessoa, e Gode reparou. Não havia como não reparar. Mas isso não perturbou em nada sua postura. Ao contrário, ele sorriu ainda mais e assentiu para Mat como se estivesse cumprimentando um velho conhecido. Então olhou para Rand e ergueu uma sobrancelha questionadora. Rand não queria saber qual era a pergunta. Tentou evitar olhar para o homem, mas sabia que era tarde demais para isso. Tarde demais. Tarde demais novamente.
Somente uma coisa parecia perturbar o equilíbrio do homem do manto de veludo: a espada de Rand. Ele a havia deixado na cintura. Dois ou três homens se levantaram, cambaleantes, para perguntar se Rand achava que estava tocando tão mal que precisava de proteção, mas nenhum deles reparou na garça no cabo. Gode reparou. Suas mãos pálidas se fecharam, e ele franziu a testa para a espada por um longo tempo antes que o sorriso voltasse. Quando voltou, não estava tão seguro quanto antes.
Pelo menos uma coisa boa, pensou Rand. Se ele acreditar que faço jus à marca da garça, talvez nos deixe em paz. Então só precisaremos nos preocupar com Hake e seus capangas. Não era lá um pensamento muito reconfortante, e, com ou sem espada, Gode continuava observando. E sorrindo.
Para Rand a noite pareceu durar um ano inteiro. Todos aqueles olhos voltados para ele: Hake, Jak e Strom, como abutres observando uma ovelha presa num pântano, e Gode, esperando como algo ainda pior. Começou a achar que todos no salão observavam com algum motivo oculto. O vapor do vinho quente e o fedor de corpos sujos e suados faziam sua cabeça girar, e o burburinho de vozes o açoitava até sua visão ficar turva e até mesmo o som de sua flauta arranhava seus ouvidos. O som do trovão parecia ribombar dentro de sua cabeça. O cansaço pendia sobre ele como um peso de ferro.
No fim das contas, a necessidade de levantar com a aurora começou a levar os homens com relutância para a escuridão. Um fazendeiro tinha de prestar contas apenas a si mesmo, mas os mercadores eram notoriamente pouco compreensivos quanto a ressacas quando estavam pagando os condutores. No começo da madrugada o salão foi se esvaziando lentamente à medida que até mesmo aqueles que tinham quartos no andar de cima subiam, cambaleantes, em busca de suas camas.
Gode foi o último freguês. Quando Rand pegou a caixa de couro da flauta, bocejando, Gode se levantou e jogou o manto sobre o braço. As criadas limpavam, resmungando umas com as outras sobre a bagunça de vinho derramado e pratos quebrados. Hake estava trancando a porta da frente com uma chave grande. Gode abordou Hake num canto por um momento, e Hake chamou uma das mulheres para que o levasse a um quarto. O homem do manto de veludo deu um sorriso sagaz para Mat e Rand antes de desaparecer escada cima.
Hake estava olhando para Rand e Mat, ladeado por Jak e Strom.
Rand rapidamente terminou de pendurar suas coisas nos ombros, segurando tudo desajeitadamente atrás de si com a mão esquerda para poder alcançar a espada. Ele não fez nenhum movimento na direção dela, mas queria saber que ela estava a postos. Reprimiu um bocejo; a extensão de seu cansaço era algo que eles não deveriam saber.
Mat pendurou no ombro o arco e seus poucos outros pertences de modo desajeitado, mas enfiou a mão embaixo do casaco enquanto via Hake e seus capangas se aproximarem.
Hake carregava um lampião, e, para surpresa de Rand, ele fez uma pequena mesura e um gesto indicando uma porta lateral.
— Seus catres são por ali. — Apenas um ligeiro retorcer dos lábios estragou sua atuação.
Mat apontou para Jak e Strom com o queixo.
— Você precisa desses dois para nos mostrar nossas camas?
— Eu sou um homem de propriedade — disse Hake, alisando a frente de seu avental sujo —, e todo cuidado é sempre pouco para homens de propriedade. — Um som violento de trovão sacudiu as janelas, e ele olhou de relance, mas significativamente, para o teto, então dirigiu aos dois um sorriso de dentes salientes. — Vocês querem ver suas camas ou não?
Rand ficou imaginando o que aconteceria se eles dissessem que queriam ir embora. Se você realmente soubesse mais sobre o uso de uma espada do que os poucos exercícios que Lan lhe mostrou…
— Mostre o caminho — disse, tentando endurecer a voz. — Não gosto de ninguém atrás de mim.
Strom deu um risinho, mas Hake assentiu placidamente, virou-se na direção da porta lateral, e os dois homenzarrões foram caminhando atrás dele. Respirando fundo, Rand lançou um olhar frustrado na direção da porta da cozinha. Se Hake já tinha trancado a porta dos fundos, correr agora só daria início ao que ele estava esperando evitar. Seguiu soturnamente o dono da estalagem.
Na porta lateral ele hesitou, e Mat se colou às suas costas. O motivo para o lampião de Hake era evidente. A porta dava para um corredor negro como piche. Somente o lampião que Hake carregava, marcando Jak e Strom em silhueta, lhe dava a coragem de seguir em frente. Se eles se virassem, ele saberia. E faria o quê? O chão rangia sob suas botas.
O corredor terminava em uma porta tosca e sem pintura. Não vira se havia outra porta no caminho. Hake e os capangas passaram, e ele seguiu rapidamente, antes que eles pudessem ter chance de montar uma armadilha, mas Hake apenas levantou o lampião bem alto e fez um gesto indicando o aposento.
— Aqui está.
Um velho depósito, ele o havia chamado, e pelo aspecto não era usado fazia algum tempo. Barris envelhecidos pelo tempo e caixotes quebrados tomavam metade do chão. Goteiras pingavam de mais de um ponto do teto, e uma vidraça quebrada na janela suja deixava o vento soprar a chuva livremente para dentro. Coisas soltas impossíveis de identificar atulhavam as prateleiras, e uma grossa camada de poeira cobria quase tudo. A presença dos catres prometidos era uma surpresa.
A espada o deixa nervoso. Ele não vai tentar nada até que estejamos ferrados no sono. Rand não tinha intenção de dormir sob o teto de Hake. Assim que o dono da estalagem saísse, ele pretendia pular pela janela.
— Serve — disse. Manteve os olhos em Hake, desconfiado, atento a um sinal para os dois homens sorridentes ao lado do estalajadeiro. Fez um esforço para não passar a língua nos lábios. — Deixe o lampião.
Hake grunhiu, mas enfiou o lampião em uma prateleira. Hesitou, olhando para eles, e Rand teve certeza de que ele ia dar a ordem para que Jak e Strom pulassem em cima deles, mas seus olhos se dirigiram à espada de Rand com uma expressão calculista no rosto, e ele fez um gesto brusco com a cabeça para os dois homenzarrões. As caras largas deles demonstraram surpresa por um instante, mas eles o acompanharam para fora do cômodo sem olhar para trás.
Rand esperou que o crec-crec-crec de seus passos desaparecesse, depois contou até cinquenta antes de enfiar a cabeça no corredor. A escuridão era quebrada apenas por um retângulo de luz que parecia distante como a lua: a porta para o salão. Quando ele enfiou a cabeça, algo grande se moveu na escuridão perto da outra porta. Jak ou Strom, montando guarda.
Um rápido exame da porta lhe disse tudo o que ele precisava saber, e pouco disso era bom. As tábuas eram grossas e resistentes, mas não havia tranca, e nenhuma barra do lado de dentro. Mas pelo menos ela abria para dentro do cômodo.
— Achei que eles viriam para cima da gente — disse Mat. — O que estão esperando? — Ele havia sacado a adaga, e a segurava com tanta força que os dedos estavam brancos. A luz do lampião reluzia na lâmina. Seu arco e sua aljava jaziam esquecidos no chão.
— Que a gente durma. — Rand começou a mexer entre os barris e caixotes. — Venha e me ajude a encontrar alguma coisa para bloquear a porta.
— Por quê? Você não pretende realmente dormir aqui, pretende? Vamos sair pela janela e dar o fora. Prefiro estar molhado que morto.
— Um deles está no fim do corredor. Se fizermos qualquer barulho, eles estarão em cima de nós antes que possamos piscar. Acho que Hake iria preferir nos enfrentar acordados do que correr o risco de nos deixar escapar.
Resmungando, Mat começou a procurar também, mas não havia nada de útil no lixo espalhado no chão. Os barris estavam vazios, os caixotes, quebrados e lascados, e tudo junto empilhado na frente da porta não impediria ninguém de abri-la. Então alguma coisa familiar em uma prateleira chamou a atenção de Rand. Duas cunhas, cobertas de ferrugem e poeira. Ele as pegou com um sorriso.
Enfiou as duas apressadamente embaixo da porta e, quando o trovão seguinte sacudiu a estalagem, empurrou-as com força à custa de dois chutes com o calcanhar. O som do trovão diminuiu, e ele conteve a respiração, apurando o ouvido. Tudo o que Rand escutou foi a chuva batucando no telhado. Nenhuma tábua rangendo sob pés em disparada.
— A janela — disse.
Ela não era aberta havia anos, a julgar pela quantidade de sujeira incrustada ao seu redor. Juntaram-se e empurraram com toda a força. Os joelhos de Rand ficaram trêmulos antes que a janela cedesse; ela gemia a cada polegada, relutante. Quando a abertura ficou grande o bastante para que eles pudessem passar, ele se agachou e então parou.
— Sangue e cinzas! — grunhiu Mat. — Não admira que Hake não tenha se preocupado com a possibilidade de fugirmos.
Barras de ferro em uma esquadria reluziam molhadas à luz do lampião. Rand empurrou-as; eram sólidas como um rochedo.
— Eu vi uma coisa — disse Mat. Ele começou a procurar apressadamente no meio do lixo nas prateleiras e voltou com um pé de cabra enferrujado. Enfiou a ponta dele embaixo da esquadria de ferro em um dos lados, e Rand fez uma careta.
— Lembre-se do barulho, Mat.
Mat fez uma careta e resmungou baixinho, mas esperou. Rand pôs as mãos no pé de cabra e tentou encontrar uma boa base na poça d’água cada vez maior embaixo da janela. O trovão soava, e eles faziam força. Com um gemido torturado de pregos que fazia os pelos da nuca de Rand se arrepiarem, a esquadria se deslocou… um quarto de polegada, se tanto. Calculando o momento de acordo com as trovoadas e os relâmpagos, eles tornaram a fazer força com o pé de cabra. Nada. Um quarto de polegada. Nada. Um fiozinho de cabelo. Nada. Nada.
Subitamente os pés de Rand escorregaram na água, e os dois caíram no chão. O pé de cabra bateu contra as barras como um gongo. Rand ficou deitado numa poça, prendendo a respiração e apurando o ouvido. Silêncio, a não ser pela chuva.
Mat massageou os dedos machucados e fuzilou Rand com o olhar.
— Nesse ritmo a gente nunca vai sair daqui. — A esquadria de ferro não cedera o suficiente para dois dedos passarem. Dezenas de pregos grossos cruzavam a abertura estreita.
— Temos de continuar tentando — disse Rand ao se levantar. Mas, ao colocar o pé de cabra sob a borda da moldura, a porta rangeu quando alguém tentou abri-la. As cunhas de partir lenha a mantinham fechada. Ele trocou um olhar de preocupação com Mat, que puxou a adaga novamente. A porta cedeu mais um pouquinho com um rangido.
Rand respirou fundo e tentou manter a voz firme.
— Vá embora, Hake. Estamos tentando dormir.
— Receio que estejam me confundindo. — A voz era tão ardilosa e cheia de si que já identificava o dono. Howal Gode. — Mestre Hake e seus… asseclas não nos perturbarão. Eles dormem a sono solto, e pela manhã só se perguntarão para onde vocês foram. Deixem-me entrar, jovens amigos. Precisamos conversar.
— Não temos nada para falar com você — disse Mat. — Vá embora e deixe a gente dormir.
A risadinha de Gode era cheia de malícia.
— É claro que temos coisas para falar. Vocês sabem disso tão bem quanto eu. Eu vi nos olhos de vocês. Posso sentir isso vindo de vocês em ondas. Parte de vocês já pertence ao meu mestre. Parem de fugir e aceitem. As coisas serão tão mais fáceis para vocês. Se as bruxas de Tar Valon os encontrarem, vocês desejarão ter cortado as próprias gargantas antes que elas acabem com vocês, mas não serão capazes de fazer isso. Só meu mestre pode proteger vocês delas.
Rand custou a engolir em seco.
— Não sabemos do que você está falando. Deixe-nos em paz. — As tábuas do corredor rangeram. Gode não estava só. Quantos homens ele poderia ter trazido em duas carruagens?
— Deixem de ser tolos, meus jovens amigos. Vocês sabem. Sabem muito bem. O Grande Senhor das Trevas marcou vocês como sendo dele. Está escrito que, quando ele acordar, os novos Senhores do Medo estarão lá para louvá-lo. Vocês devem ser dois deles, caso contrário eu não teria sido enviado até aqui para encontrá-los. Vida eterna, e poder além dos sonhos. — Sua voz estava repleta de fome por esse poder.
Rand olhou para trás e viu a janela no instante em que um raio partiu o céu, e quase gemeu. O breve relâmpago mostrou homens do lado de fora, homens que ignoravam a chuva que os encharcava enquanto permaneciam ali, vigiando a janela.
— Estou me cansando disto — anunciou Gode. — Vocês vão se submeter ao meu mestre, ao mestre de vocês, ou serão obrigados a isso. O que não seria nada agradável para vocês. O Grande Senhor das Trevas governa a morte, e ele pode conferir a vida na morte ou a morte em vida conforme desejar. Abram esta porta. De um jeito ou de outro, sua fuga chegou ao fim. Abram, eu já disse!
Ele devia ter dito mais alguma coisa também, pois subitamente um corpo pesado se chocou contra a porta, que estremeceu, e as cunhas deslizaram uma fração de polegada com um ruído de ferrugem arranhando a madeira do piso. Uma, duas vezes a porta tremeu enquanto corpos se jogavam contra ela. Às vezes as cunhas aguentavam firme; outras, deslizavam mais um pouquinho, e, um pouquinho de cada vez, a porta vinha inexoravelmente para dentro.
— Rendam-se — exigiu Gode, no corredor —, ou passem a eternidade desejando tê-lo feito!
— Se nós não temos escolha… — Mat lambeu os lábios sob o olhar de Rand. Seus olhos dardejavam como os de um texugo encurralado; seu rosto estava branco, e ele falava ofegante. — A gente podia concordar e escapar depois. Sangue e cinzas, Rand, não há saída!
As palavras pareceram chegar a Rand através de chumaços de lã enfiados em seus ouvidos. Não há saída. No alto, trovões ressoaram e foram abafados quando um relâmpago cortou o ar. Preciso encontrar uma saída. Gode gritava com eles, exigindo, apelando. A porta deslizou mais uma polegada… Uma saída!
A luz encheu o aposento, inundando a visão; o ar rugiu e ardeu. Rand sentiu quando foi arremessado contra a parede. Ele escorregou e desabou, as orelhas zumbindo e cada pelo em seu corpo arrepiado. Atordoado, ele se levantou, cambaleante. Os joelhos tremiam, e ele pôs a mão na parede para se firmar. Olhou ao redor, espantado.
O lampião, caído de lado na beirada de uma das poucas prateleiras que se agarravam às paredes, ainda queimava e iluminava. Todos os barris e caixotes, alguns escurecidos e queimando, jaziam onde haviam sido atirados. A janela, barras e tudo, e a maior parte da parede também, havia desaparecido, deixando um buraco cheio de lascas. O teto cedera, e colunas de fumaça enfrentavam a chuva ao redor das margens serrilhadas da abertura. A porta estava pendurada pelas dobradiças, inclinada para o corredor.
Com uma sensação de irrealidade e zonzo, Rand ergueu o lampião. Parecia que a coisa mais importante do mundo era garantir que ele não se quebrasse.
Uma pilha de caixotes subitamente se mexeu, e Mat se levantou do meio dela. Ele trançou os pés, piscando e se apalpando como se querendo saber se tudo ainda estava no devido lugar. Ele olhou para Rand.
— Rand? É você? Você está vivo. Achei que nós dois tivéssemos… — Ele parou, mordendo o lábio e estremecendo. Rand levou um momento para perceber que ele estava rindo, e à beira da histeria.
— O que houve, Mat? Mat? Mat! O que houve?
Um último tremor arrebatou Mat, e então ele parou.
— Um raio, Rand. Eu estava olhando para a janela quando ele acertou as barras. Um raio. Não consigo ver… — Ele parou, apertando os olhos para ver a porta inclinada, e sua voz ficou subitamente sóbria. — Onde está Gode?
Nada se movia no corredor escuro além da porta. De Gode e seus companheiros não havia sinal nem som, embora qualquer coisa pudesse estar à espreita na escuridão. Rand se pegou torcendo para que estivessem mortos, mas não teria posto a cabeça no corredor para descobrir nem que lhe oferecessem uma coroa. Nada se movia na noite além de onde a parede havia estado, mas outros estavam de pé. Gritos confusos vinham do andar de cima da estalagem, e os sons pesados de pés correndo.
— Vamos embora enquanto podemos — disse Rand.
Separando apressadamente seus pertences do entulho, ele agarrou o braço de Mat e puxou e guiou o amigo pelo buraco aberto para a noite lá fora. Mat agarrava seu braço, cambaleando a seu lado com a cabeça inclinada para a frente num esforço para enxergar.
Quando a chuva bateu no rosto de Rand, um relâmpago caiu em forquilha sobre a estalagem, e ele parou num tranco. Os homens de Gode ainda estavam ali, caídos, com os pés voltados na direção da abertura, na chuva, seus olhos abertos encarando o céu.
— O que foi? — perguntou Mat. — Sangue e cinzas! Mal consigo ver minha maldita mão!
— Nada — respondeu Rand. Sorte. A sorte da Luz… Será? Tremendo, ele guiou Mat cuidadosamente para se desviar dos corpos. — Só os raios.
Não havia luz a não ser os relâmpagos, e ele cambaleou nas valas enquanto corriam aos tropeços para longe da estalagem. Com Mat praticamente pendurado nele, cada tropeço quase os derrubava, mas, cambaleantes e ofegantes, eles fugiram.
Rand olhou para trás uma vez, antes que a chuva engrossasse e se tornasse uma cortina ensurdecedora que bloqueava a visão da Carroceiro Dançante. O relâmpago marcou a silhueta de um homem nos fundos da estalagem, um homem erguendo o punho para eles, ou para o céu. Gode ou Hake, ele não sabia, mas qualquer um dos dois era tão ruim quanto o outro. A chuva caía num dilúvio, isolando-os numa muralha de água. Ele correu noite adentro, tentando ouvir em meio ao rugido da tempestade algum som de perseguição.