Perrin seguiu na frente, dirigindo-se às entranhas da estalagem. Rand estava tão concentrado no que pretendia dizer a Nynaeve que não viu Min até ela agarrar seu braço e puxá-lo para o lado. Os outros ainda seguiram alguns passos pelo corredor antes de perceber que ele havia parado. Então também pararam, meio impacientes para seguir, meio relutantes em fazê-lo.
— Não temos tempo para isso, garoto — disse Thom mal-humorado.
— Vá fazer uns malabarismos, ande! — disse Min bruscamente para o grisalho menestrel, afastando Rand ainda mais dos outros.
— Eu realmente não tenho tempo — observou Rand. — Decerto não para mais conversas tolas sobre fugir e coisas do gênero. — Ele tentou soltar o braço, mas cada vez que ele soltava, ela o agarrava novamente.
— E eu também não tenho tempo para suas tolices. Quer ficar quieto? — Ela lançou um rápido olhar para os demais, depois se aproximou, abaixando a voz. — Uma mulher chegou agora há pouco… mais baixa que eu, de olhos escuros e cabelos escuros numa trança que vai até a cintura. Ela faz parte disso, juntamente com o restante de vocês.
Por um minuto Rand ficou simplesmente olhando fixo para ela. Nynaeve? Como ela pode estar envolvida? Luz, como eu posso estar envolvido?
— Isso é… impossível.
— Você a conhece? — sussurrou Min.
— Sim, e ela não pode estar envolvida em… no que quer que você…
— As fagulhas, Rand. Ela deu de cara com a Senhora Alys entrando, e houve fagulhas, só com as duas. Ontem eu não conseguia ver fagulhas sem pelo menos três ou quatro de vocês juntos, mas hoje tudo está mais nítido e mais furioso. — Ela olhou para os amigos de Rand, que esperavam impacientemente, e estremeceu antes de se voltar para ele. — Eu quase me espanto que a estalagem não pegue fogo. Vocês todos estão correndo mais perigo hoje que ontem. Desde que ela chegou.
Rand olhou de relance para seus amigos. Thom, as sobrancelhas unidas formando um espesso V, estava inclinado para a frente, prestes a tomar alguma atitude para apressá-lo.
— Ela não fará nada para nos machucar — disse ele para Min. — Preciso ir agora. — Dessa vez, conseguiu arrancar seu braço da mão dela.
Ignorando o grito esganiçado dela, ele se juntou aos outros, e prosseguiram pelo corredor. Rand só olhou para trás uma vez. Min sacudiu o punho em sua direção e bateu o pé.
— O que ela tinha a dizer? — perguntou Mat.
— Nynaeve faz parte disso — disse Rand sem pensar e depois dirigiu um olhar tão duro a Mat que o pegou boquiaberto. Então a compreensão se espalhou lentamente pelo rosto de Mat.
— Parte do quê? — perguntou Thom baixinho. — Aquela garota sabe de alguma coisa?
Enquanto Rand ainda estava tentando formular em sua cabeça o que dizer, Mat falou:
— É claro que ela faz parte disso — respondeu ele, mal-humorado. — Parte do mesmo azar que estamos tendo desde a Noite Invernal. Talvez a Sabedoria aparecer aqui não seja grande coisa para você, mas eu preferia a presença dos Mantos-brancos.
— Ela viu Nynaeve chegar — disse Rand. — Viu-a falar com a Senhora Alys e achou que pudesse ter algo a ver conosco. — Thom lhe lançou um olhar de esguelha e agitou o bigode com um bufo, mas os outros pareceram aceitar a explicação de Rand. Ele não gostava de guardar segredos de seus amigos, mas o segredo de Min poderia ser tão perigoso para ela quanto os deles eram para si próprios.
Perrin parou subitamente na frente de uma porta e, apesar de seu tamanho, pareceu estranhamente hesitante. Respirou bem fundo, olhou para os companheiros, respirou fundo mais uma vez, abriu lentamente a porta e entrou. Um a um, os outros o seguiram. Rand foi o último, e fechou a porta com grande relutância.
Era o aposento onde haviam comido na noite anterior. Um fogo crepitava na lareira, e uma bandeja de prata polida estava no meio da mesa, com um bule e cálices de prata reluzentes. Moiraine e Nynaeve estavam sentadas nas cabeceiras da mesa, sem tirar os olhos uma da outra. Todas as outras cadeiras estavam vazias. As mãos de Moiraine repousavam sobre a mesa, tão imóveis quanto seu rosto. A trança de Nynaeve estava jogada sobre o ombro, a ponta presa em um punho fechado; ela ficava dando pequenos puxões, do jeito que costumava fazer quando estava sendo mais teimosa que de costume com o Conselho da Aldeia. Perrin tinha razão. Apesar do fogo, parecia estar fazendo um frio de congelar, e tudo isso vinha das duas mulheres à mesa.
Lan estava encostado na cornija da lareira, olhando para as chamas e esfregando as mãos em busca de calor. Egwene, as costas coladas na parede, vestia o manto com o capuz levantado. Thom, Mat e Perrin pararam, indecisos, diante da porta.
Dando desconfortavelmente de ombros, Rand caminhou até a mesa. Às vezes você tem de agarrar o lobo pelas orelhas, lembrou a si mesmo. Mas também recordou outro velho ditado: Quando você prende um lobo pelas orelhas, soltar é tão difícil quanto segurar. Sentiu os olhos de Moiraine nele, e também os de Nynaeve, e seu rosto ficou quente, mas ele se sentou mesmo assim, entre as duas.
Por um minuto o aposento ficou tão imóvel quanto uma escultura, e então Egwene e Perrin, e finalmente Mat, dirigiram-se relutantes à mesa e se sentaram — mais para o meio, com Rand. Egwene puxou o capuz ainda mais para a frente, o bastante para ocultar metade de seu rosto, e todos evitaram olhar diretamente para alguém.
— Bem — Thom resfolegou, de seu lugar ao lado da porta —, pelo menos essa parte já passou.
— Já que todos estão aqui — disse Lan, deixando a lareira e enchendo um dos cálices de prata com vinho —, talvez você finalmente aceite isto. — Ofereceu o cálice a Nynaeve, que o olhou com desconfiança. — Não precisa ter medo — insistiu, paciente. — Você viu o estalajadeiro trazer o vinho, e nenhum de nós teve chance de colocar nada dentro dele. É bastante seguro.
A boca da Sabedoria se apertou de raiva ao ouvir a palavra medo, mas ela aceitou o cálice com um “obrigada” murmurado.
— Eu estou interessado — disse ele — em saber como você nos encontrou.
— Eu também. — Moiraine inclinou-se para a frente com atenção. — Talvez você esteja disposta a falar agora que Egwene e os rapazes foram trazidos até você.
Nynaeve provou o vinho antes de responder à Aes Sedai.
— Não havia para onde vocês irem a não ser Baerlon. No entanto, para me garantir, segui sua trilha. Até que vocês ziguezaguearam bastante. Mas suponho que não iam querer arriscar encontrar gente decente.
— Você… seguiu nossa trilha? — perguntou Lan, surpreso pela primeira vez desde que Rand conseguia se lembrar. — Devo estar ficando descuidado.
— Você deixou pouquíssimos vestígios, mas eu sei rastrear tão bem quanto qualquer homem dos Dois Rios, exceto talvez Tam al’Thor. — Ela hesitou, depois acrescentou: — Até meu pai morrer, ele me levava para caçar, e me ensinou o que teria ensinado aos filhos que nunca teve. — Ela olhou para Lan de modo desafiador, mas este só assentiu com aprovação.
— Se você consegue seguir uma trilha que eu tentei esconder, ele lhe ensinou bem. Poucos conseguem fazer isso, mesmo nas Terras da Fronteira.
Subitamente Nynaeve enterrou o rosto no cálice. Os olhos de Rand se arregalaram. Ela estava corando. Nynaeve jamais se mostrava desconcertada. Zangada, sim; ultrajada, com frequência; mas jamais descomposta. Mas estava corando, com certeza, e tentando esconder isso no vinho.
— Talvez agora — disse Moiraine, baixinho — você responda algumas das minhas perguntas. Eu respondi as suas de bom grado.
— Com um punhado de historinhas de menestrel — retorquiu Nynaeve. — Os únicos fatos que consigo ver são que quatro jovens foram levados para longe por uma Aes Sedai, e a razão disso só a Luz sabe.
— Dissemos a você que isso não é sabido aqui — disse Lan com rispidez. — Precisa aprender a segurar a língua.
— Por que eu deveria? — Nynaeve quis saber. — Por que deveria ajudar a esconder vocês, ou o que vocês são? Eu vim para levar Egwene e os rapazes de volta a Campo de Emond, não para ajudar vocês a sequestrá-los.
Thom interrompeu, um tom de escárnio na voz.
— Se quiser que vejam a aldeia deles novamente, e você mesma também, é melhor ter mais cuidado. Há aqui em Baerlon quem a mataria — ele gesticulou com a cabeça na direção de Moiraine — por causa do que ela é. E ele também — indicou Lan. Então, avançou abruptamente e pôs os punhos sobre a mesa. Inclinou-se na direção de Nynaeve, e seu longo bigode e sobrancelhas grossas de repente pareceram ameaçadores.
Os olhos dela se arregalaram, e ela começou a se inclinar para trás, afastando-se dele; então as costas dela se enrijeceram em desafio. Thom não pareceu notar, e continuou numa voz suave e lúgubre:
— Eles viriam correndo para esta estalagem como um enxame de formigas assassinas ao ouvir um rumor que seja, um sussurro. O ódio deles é grande a esse ponto, seu desejo de matar ou capturar qualquer um que seja como esses dois. E a garota? Os garotos? Você? Vocês estão todos associados a eles, o bastante para os Mantos-brancos, de qualquer maneira. Você não ia gostar do jeito como eles fazem perguntas, especialmente quando a Torre Branca está envolvida. Os Questionadores dos Mantos-brancos supõem que você seja culpada antes mesmo de começarem, e só têm uma sentença para esse tipo de culpa. Eles não se interessam em descobrir a verdade; acham que já a conhecem. Tudo que buscam com seus ferros quentes e alicates é uma confissão. É melhor se lembrar de que alguns segredos são perigosos demais para se dizer em voz alta, mesmo quando você pensa que sabe quem está ouvindo. — Ele se endireitou com um resmungo: — Acho que tenho dito muito isso às pessoas ultimamente.
— Sábias palavras, menestrel — disse Lan. O Guardião tinha aquela expressão nos olhos mais uma vez, como se estivesse medindo e avaliando. — Estou surpreso com sua preocupação.
Thom deu de ombros.
— Todos sabem que cheguei com vocês também. Não quero saber de um Questionador com um ferro quente mandando eu me arrepender de meus pecados e caminhar na Luz.
— Esta — Nynaeve interrompeu com acidez — é apenas mais uma razão para que eles voltem comigo pela manhã. Ou esta tarde. Quanto mais cedo estivermos longe de vocês, e no caminho de volta para Campo de Emond, melhor.
— Não podemos — disse Rand, feliz por seus amigos todos terem falado ao mesmo tempo. Assim o olhar furioso de Nynaeve teve de ser dividido; e ela não poupou ninguém. Mas ele havia sido o primeiro a falar, e todos ficaram em silêncio, fitando-o. Até mesmo Moiraine se recostou em sua cadeira, observando-o acima dos dedos entrelaçados. Para ele, era um esforço olhar nos olhos da Sabedoria. — Se voltarmos a Campo de Emond, os Trollocs vão voltar também. Eles estão… nos caçando. Não sei por que, mas estão. Talvez possamos descobrir por que em Tar Valon. Talvez possamos descobrir como detê-los. É o único jeito.
Nynaeve jogou as mãos para o céu.
— Você está parecendo Tam. Ele mandou que o carregassem até o encontro da aldeia e tentou convencer todo mundo. Já havia tentado com o Conselho. Só a Luz sabe como sua… Senhora Alys — pronunciou o nome com um desprezo imenso — conseguiu fazer com que ele acreditasse; normalmente ele tem um pouco mais de bom senso que a maioria dos homens. De qualquer maneira, o Conselho é um bando de tolos na maioria das vezes, mas não tolos o bastante para isso, e tampouco os outros na aldeia. Eles concordaram que vocês tinham de ser encontrados. Então Tam quis ser o encarregado de vir atrás de vocês, mesmo sem ser capaz de ficar em pé. A idiotice deve estar no sangue da família.
Mat pigarreou, depois resmungou:
— E o meu pai? O que foi que ele disse?
— Ele tem medo de que você tente seus truques com estrangeiros e acabe apanhando. Parecia ter mais medo disso do que da… Senhora Alys aqui. Mas, também, ele nunca foi muito mais inteligente do que você.
Mat pareceu não saber ao certo como assimilar o que ela dissera, nem como responder, nem sequer se deveria responder.
— Eu espero — Perrin começou, hesitante —, quero dizer, suponho que Mestre Luhhan não tenha ficado muito satisfeito com minha partida também.
— Você esperava que ele ficasse? — Nynaeve sacudiu a cabeça em sinal de desgosto e olhou para Egwene. — Talvez eu não deva ficar surpresa com essa idiotice vinda de vocês três, mas pensei que outros tivessem mais discernimento.
Egwene se recostou de modo a ficar protegida por Perrin.
— Eu deixei um bilhete — disse ela baixinho. Puxou o capuz do manto como se tivesse medo de que os cabelos soltos aparecessem. — Expliquei tudo. — O rosto de Nynaeve ficou mais severo.
Rand suspirou. A Sabedoria estava a ponto de dar um de seus famosos açoites verbais, e tinha todo o jeito de ser um de primeira. Se ela firmasse sua posição no calor da raiva, se dissesse que pretendia levá-los de volta a Campo de Emond não importasse o que qualquer pessoa falasse, por exemplo, seria quase impossível demovê-la. Ele abriu a boca.
— Um bilhete! — começou Nynaeve, no instante em que Moiraine disse:
— Nós duas ainda precisamos conversar, Sabedoria.
Se Rand pudesse ter se contido, ele o teria feito, mas as palavras saíram como se ele tivesse aberto uma comporta em vez da boca.
— Tudo isso está muito bom, mas não muda nada. Não podemos voltar. Precisamos prosseguir. — Ele falou mais devagar ao chegar ao fim, e sua voz foi afundando até terminar num sussurro, com a Sabedoria e a Aes Sedai olhando ao mesmo tempo para ele. Era o tipo de olhar que ele recebia se encontrasse com mulheres falando sobre assuntos do Círculo das Mulheres, o tipo que dizia que ele havia se metido onde não lhe dizia respeito. Recostou-se, desejando estar em outro lugar.
— Sabedoria — disse Moiraine —, você precisa crer que eles estão mais seguros comigo do que estariam nos Dois Rios.
— Mais seguros! — Nynaeve jogou a cabeça de lado em sinal de desprezo. — Foi você quem os trouxe até aqui, onde os Mantos-brancos estão. Os mesmos Mantos-brancos que, se o menestrel estiver dizendo a verdade, podem feri-los por sua causa. Diga-me como eles estão mais seguros, Aes Sedai.
— Há muitos perigos dos quais não posso protegê-los — concordou Moiraine. — Assim como você não pode protegê-los de serem atingidos por um raio se eles voltarem para casa. Mas não é de raios que eles devem ter medo, e nem mesmo dos Mantos-brancos. É do Tenebroso, e dos asseclas do Tenebroso. Dessas coisas eu posso protegê-los. Tocar a Fonte Verdadeira, tocar saidar, me confere essa proteção, assim como a todas Aes Sedai. — A boca de Nynaeve se contraiu, cética. A de Moiraine também, com raiva, mas ela seguiu em frente, a voz dura, no limite da paciência. — Mesmo aqueles coitados que se veem usando o Poder por um curto período adquirem isso, embora algumas vezes tocar saidin proteja e noutras a mancha os torne mais vulneráveis. Mas eu, ou qualquer Aes Sedai, posso estender minha proteção a quem estiver próximo de mim. Nenhum Desvanecido pode machucá-los enquanto estiverem perto de mim, como estão agora. Nenhum Trolloc pode chegar a um quarto de milha sem que Lan perceba, sem que ele sinta o mal deles. Você pode oferecer metade disso se eles voltarem a Campo de Emond com você?
— Falácia — disse Nynaeve. — Temos um ditado nos Dois Rios que diz: “Quer o urso derrote o lobo ou o lobo derrote o urso, o coelho sempre sai perdendo.” Leve suas disputas para outro lugar e deixe a gente de Campo de Emond fora disso.
— Egwene — disse Moiraine, depois de um momento —, leve os outros e deixe a Sabedoria sozinha comigo um pouco. — O rosto dela estava impassível; Nynaeve endireitou-se à mesa, como se se preparasse para uma luta corpo a corpo.
Egwene levantou-se de um pulo, o desejo de agir com dignidade obviamente em conflito com seu desejo de evitar um confronto com a Sabedoria por causa de seus cabelos sem trança. Mas não teve dificuldade para reunir todos só com o olhar. Mat e Perrin afastaram suas cadeiras apressadamente, fazendo murmúrios educados enquanto o que tentavam realmente era não sair correndo para a porta. Até mesmo Lan se dirigiu para lá a um sinal de Moiraine, levando Thom consigo.
Rand os seguiu, e o Guardião fechou a porta, montando guarda do outro lado do corredor. Sob os olhos de Lan os outros percorreram uma curta distância no corredor; não lhes seria permitida sequer a menor chance de escutar. Quando haviam se afastado o suficiente do seu ponto de vista, Lan se recostou na parede. Mesmo sem o manto de cores mutantes, estava tão imóvel que seria fácil não reparar na sua presença até quase esbarrar nele.
O menestrel resmungou alguma coisa sobre ter mais o que fazer com seu tempo e saiu com um duro “Lembrem-se do que eu disse” para os rapazes. Ninguém mais parecia inclinado a sair.
— O que ele quis dizer com isso? — perguntou Egwene distraída, os olhos na porta que escondia Moiraine e Nynaeve. Ela não parava de mexer no cabelo, como se dividida entre continuar a esconder o fato de que ele não estava mais trançado e descer o capuz do manto.
— Ele nos deu alguns conselhos — disse Mat.
Perrin lançou-lhe um olhar duro.
— Ele disse para não abrirmos a boca até termos certeza do que íamos dizer.
— Isso me parece um bom conselho — disse Egwene, mas obviamente seu interesse não era genuíno.
Rand estava mergulhado em seus próprios pensamentos. Como Nynaeve poderia fazer parte daquilo? Como qualquer um deles poderia estar envolvido com Trollocs e Desvanecidos, e Ba’alzamon aparecendo nos sonhos deles? Era loucura. Ele se perguntou se Min havia contado a Moiraine a respeito de Nynaeve. O que elas estão falando ali dentro?
Não fazia ideia de quanto tempo ficara ali em pé parado quando a porta finalmente se abriu. Nynaeve saiu e levou um susto quando viu Lan. O Guardião murmurou algo que a fez virar a cabeça com raiva, então passou por ela e entrou na sala de onde ela saíra.
Nynaeve se virou na direção de Rand, e pela primeira vez ele percebeu que os outros haviam desaparecido silenciosamente. Ele não queria encarar a Sabedoria sozinho, mas não podia sair no momento que seus olhos se encontravam. Olhos particularmente perscrutadores, pensou ele, intrigado. O que foi que elas disseram? Ele se endireitou quando ela se aproximou.
Ela indicou a espada de Tam.
— Ela parece se adequar a você agora, embora eu achasse melhor que não fosse assim. Você cresceu, Rand.
— Em uma semana? — Ele riu, mas o riso pareceu forçado, e ela balançou a cabeça como se ele não compreendesse. — Ela convenceu você? — perguntou ele. — É realmente o único jeito. — Fez uma pausa, pensando nas fagulhas de Min. — Você vem conosco?
Nynaeve arregalou bem os olhos.
— Ir com vocês? Por que eu faria isso? Mavra Mallen veio de Trilha de Deven para cuidar das coisas até eu retornar, mas vai querer voltar para casa assim que puder. Ainda espero fazer com que vocês vejam a razão e voltem comigo.
— Não podemos. — Ele achou ter visto alguma coisa se mover na porta ainda aberta, mas estavam sozinhos no corredor.
— Você me disse isso, e ela também. — Nynaeve franziu a testa. — Se ela não estivesse metida nisso tudo… Aes Sedai não são de confiança, Rand.
— Você fala como se realmente acreditasse em nós — disse ele devagar. — O que aconteceu na reunião da aldeia?
Nynaeve olhou novamente para a porta antes de responder. Agora não havia nenhum movimento ali.
— Foi uma confusão, mas ela não precisa saber que não conseguimos lidar direito com nossos problemas. E acredito em apenas uma coisa: vocês todos estarão em perigo enquanto estiverem com ela.
— Alguma coisa aconteceu — insistiu ele. — Por que quer que voltemos se acha que existe uma chance de que estejamos certos? E por que, entre todos, você? Era mais fácil mandarem o Prefeito, e não a Sabedoria.
— Você cresceu mesmo. — Ela sorriu, e por um momento o divertimento dela fez com que ele ficasse sem graça. — Lembro de um tempo em que você não teria questionado aonde escolho ir nem o que escolho fazer, aonde fosse ou o que fosse. Um tempo só uma semana atrás.
Ele pigarreou e insistiu.
— Não faz sentido. Por que você está realmente aqui?
Ela olhou meio de lado para a porta ainda aberta, então o pegou pelo braço.
— Vamos andar enquanto conversamos. — Ele se deixou ser conduzido para longe, e, quando estavam suficientemente distantes da porta para não serem ouvidos, ela recomeçou. — Como eu disse, a reunião foi uma confusão. Todos concordaram que alguém tinha de ser mandado atrás de vocês, mas a aldeia se dividiu em dois grupos. Um queria resgatar vocês, embora tenha havido considerável discussão sobre como isso seria feito, já que vocês estavam aqui com uma… com alguém da espécie dela.
Ele ficou feliz por ela se lembrar de tomar cuidado com o que dizia.
— Os outros acreditaram em Tam? — perguntou Rand.
— Não exatamente, mas achavam que vocês não deveriam estar no meio de estranhos também, especialmente não com alguém como ela. De qualquer maneira, entretanto, quase todos os homens queriam estar no grupo. Tam, Bran al’Vere, com as balanças do cargo penduradas no pescoço, e Haral Luhhan, até que Alsbet fez com que ele se sentasse. Até mesmo Cenn Buie. A Luz me poupe de homens que pensam com os cabelos do peito. Embora eu não conheça nenhum outro tipo. — Ela bufou alto e olhou para ele com ar de acusação. — De qualquer maneira, imaginei que levaria mais um dia, talvez dois, antes que eles chegassem a alguma decisão, e de algum modo… de algum modo eu tinha certeza de que não podíamos esperar tanto tempo. Então, convoquei o Círculo das Mulheres e disse a elas o que tinha de ser feito. Não posso dizer que elas gostaram, mas viram que era o certo. E é por isso que estou aqui; porque os homens de Campo de Emond são cabeças-duras. Eles provavelmente ainda estão discutindo sobre quem enviar, embora eu tenha deixado recado de que cuidaria do assunto.
A história de Nynaeve explicava sua presença ali, mas não servia para tranquilizá-lo. Ela ainda estava determinada a levá-los de volta.
— O que ela disse a você ali dentro? — perguntou. Moiraine certamente teria dado todos os argumentos possíveis, mas, se ela tivesse deixado algum de lado, ele o forneceria.
— Mais do mesmo — replicou Nynaeve. — E ela queria saber sobre vocês, rapazes. Para ver se conseguia entender por que vocês… atraíram o tipo de atenção que atraíram… ela disse. — Fez uma pausa, observando-o pelo canto do olho. — Ela tentou disfarçar, porém, mais do que tudo, queria saber se algum de vocês havia nascido fora dos Dois Rios.
O rosto dele subitamente ficou tenso como a pele de um tambor. Ele conseguiu dar um riso rouco.
— Ela acha umas coisas esquisitas. Espero que você tenha garantido a ela que nascemos todos em Campo de Emond.
— É claro — respondeu ela. Apenas uma pausa ínfima antes da resposta dela, tão ínfima que ele a teria perdido se não estivesse procurando por ela.
Tentou pensar em algo a dizer, mas sua língua parecia uma tira de couro. Ela sabe. Ela era a Sabedoria, afinal, e a Sabedoria devia saber de tudo a respeito de todos. Se ela sabe, não foi sonho de febre. Ah, que a Luz me ajude, pai!
— Você está bem? — perguntou Nynaeve.
— Ele disse… disse que eu… não era filho dele. Quando estava delirando… com a febre. Ele disse que me encontrou. Achei que era só… — Sua garganta começou a queimar, e ele precisou parar.
— Ah, Rand. — Ela parou e tomou seu rosto entre as mãos. Precisou estender os braços para fazer isso. — Pessoas dizem coisas estranhas quando estão com febre alta. Coisas distorcidas. Coisas que não são verdadeiras, nem reais. Ouça-me bem. Tam al’Thor saiu em busca de aventura quando era um rapaz da sua idade. Eu me lembro direitinho quando ele voltou a Campo de Emond, um homem adulto com uma esposa ruiva estrangeira e um bebê embrulhadinho em cobertas. Lembro de Kari al’Thor aninhando aquela criança nos braços com o mesmo amor e prazer que já vi em qualquer mãe com seu filho. Filho dela, Rand. Você. Agora você se recomponha e pare com essa bobagem.
— É claro — disse ele. Eu nasci mesmo fora dos Dois Rios. — É claro. — Talvez Tam estivesse tendo um sonho febril, e talvez tivesse encontrado um bebê após uma batalha. — Por que você não disse isso a ela?
— Não é da conta de nenhum estrangeiro.
— Algum dos outros nasceu fora? — Assim que a pergunta foi feita, ele balançou a cabeça. — Não, não responda. Também não é da minha conta. — Mas seria bom saber se Moiraine tinha algum interesse especial nele, além do interesse que demonstrava no grupo inteiro. Teria?
— Não, não é da sua conta — concordou Nynaeve. — Pode não significar nada. Ela poderia estar simplesmente buscando cegamente um motivo, qualquer motivo, pelo qual essas coisas estão atrás de vocês. Atrás de todos vocês.
Rand conseguiu um sorriso.
— Então você acredita que eles estão nos caçando.
Nynaeve balançou a cabeça secamente.
— Você certamente aprendeu a distorcer as palavras desde que a conheceu.
— O que você vai fazer? — perguntou ele.
Ela o estudou; ele a encarou com firmeza.
— Hoje, vou tomar um banho. Quanto ao resto, vamos ter de ver, não é mesmo?