O sol nascendo sobre o Rio Arinelle abriu caminho até a pequena grota não muito longe da margem, onde Nynaeve estava sentada com as costas apoiadas no tronco de um carvalho novo, respirando pesadamente no sono. Seu cavalo também dormia, cabeça baixa e pernas dobradas à maneira dos cavalos. As rédeas estavam enroladas em seu pulso. Quando a luz do sol pousou nas pálpebras do cavalo, o animal abriu os olhos e levantou a cabeça, puxando as rédeas. Nynaeve acordou com um susto.
Por um momento ela ficou parada, tentando descobrir onde estava, então olhou ao redor ainda mais assustada quando se lembrou. Mas só havia as árvores, seu cavalo e um tapete de folhas velhas e secas no fundo da grota. Na penumbra mais profunda, alguns dos cogumelos mão-de-sombra do ano anterior formavam anéis em um tronco caído.
— A Luz a proteja, mulher — murmurou ela, voltando a relaxar —, se você não consegue ficar acordada nem por uma noite. — Ela desamarrou as rédeas e massageou o pulso ao se levantar. — Você podia ter acordado no caldeirão de um Trolloc.
As folhas mortas farfalharam quando ela subiu na beira da grota e espiou. Não havia mais do que um punhado de freixos entre ela e o rio. A casca rachada e os galhos nus lhes davam um aspecto de árvores mortas. Mais adiante, corria o rio largo de águas azul-esverdeadas. Vazio. Vazio de tudo. Grupos dispersos de coníferas, salgueiros e abetos pontilhavam a outra margem, e parecia haver menos árvores do que no lado onde ela estava. Se Moiraine ou algum dos jovens estava lá, estava bem escondido. Naturalmente, não havia motivo para que eles tivessem atravessado, ou tentado atravessar, à vista de onde ela estava. Podiam estar em qualquer lugar dez milhas rio acima ou abaixo. Se é que estavam vivos, depois de ontem à noite.
Com raiva de si mesma por pensar nessa possibilidade, ela deslizou de volta à grota. Nem mesmo a Noite Invernal, ou a batalha antes de Shadar Logoth, a haviam preparado para aquela noite, para aquela coisa, Mashadar. Todo aquele galope frenético, perguntando-se se mais alguém ainda estaria vivo, imaginando quando se defrontaria com um Desvanecido, ou com Trollocs. Ouvira grunhidos e gritos de Trollocs ao longe, e os sons agudos e trêmulos das cornetas dos Trollocs a haviam gelado mais profundamente do que o vento poderia, mas, afora aquele primeiro encontro nas ruínas, ela vira Trollocs apenas uma vez, e mesmo assim já do lado de fora. Uns dez deles pareceram brotar do chão menos de dez braças à frente dela, disparando em sua direção imediatamente, uivando e gritando, brandindo cambões com ganchos. Contudo, enquanto ela tentava dar meia-volta com o cavalo, eles se calaram, erguendo os focinhos para farejar o ar. Ela ficou olhando, estupefata demais para fugir, vendo-os lhe dar as costas e desaparecer na noite. E aquilo havia sido o mais assustador de tudo.
— Eles conhecem o cheiro de quem querem — disse a seu cavalo, parado na grota —, e esse alguém não sou eu. A Aes Sedai tem razão, ao que parece. O Pastor da Noite que a engula.
Tomando uma decisão, ela partiu rio abaixo, conduzindo seu cavalo. Seguia devagar, olhando, desconfiada, para a floresta ao redor; só porque os Trollocs não a haviam querido na noite anterior não significava que a deixariam em paz se topasse com eles novamente. Por mais cuidado que tomasse com a floresta, dava ainda mais atenção ao chão à sua frente. Se os outros tivessem atravessado mais abaixo durante a noite, deveria ver alguns sinais deles, sinais que poderia perder se estivesse montada. Talvez ela até mesmo os encontrasse ainda daquele lado. Se não achasse nada, o rio acabaria por levá-la até Ponte Branca, e de lá havia uma estrada que ia para Caemlyn, seguindo até Tar Valon se preciso fosse.
A perspectiva era quase o suficiente para intimidá-la. Antes, ela se afastara de Campo de Emond não mais que os rapazes. Barca do Taren já lhe parecera estranha; Baerlon a teria deixado pasma se ela não estivesse tão concentrada em encontrar Egwene e os outros. Mas não permitiu que nada disso enfraquecesse sua resolução. Mais cedo ou mais tarde encontraria Egwene e os rapazes. Ou encontraria um jeito de fazer a Aes Sedai responder pelo que quer que tivesse acontecido com eles. Uma coisa ou outra, jurou ela.
De quando em quando encontrava rastros, muitos rastros, mas seus melhores esforços não eram suficientes para dizer se aqueles que os haviam feito estavam procurando algo, caçando ou sendo caçados. Alguns haviam sido feitos por botas que podiam pertencer tanto a humanos quanto a Trollocs. Outros eram marcas de cascos, como de bodes ou bois; esses com certeza eram Trollocs. Mas nunca um sinal claro que ela pudesse dizer definitivamente que vinha de qualquer daqueles que ela procurava.
Havia percorrido talvez quatro milhas quando o vento trouxe até ela um leve cheiro de fumaça de lenha. Vinha de mais abaixo no rio, e não de muito longe, pensou. Hesitou apenas um momento antes de amarrar seu cavalo a um abeto, bem afastado do rio, num pequeno e denso bosque de coníferas que deveria manter o animal oculto. A fumaça poderia significar Trollocs, mas a única forma de descobrir era olhar. Tentou não pensar no uso que os Trollocs poderiam estar fazendo de uma fogueira.
Abaixada, foi se esgueirando de uma árvore a outra, amaldiçoando mentalmente as saias que tinha de manter levantadas. Vestidos não eram feitos para espreitar ninguém. O som de um cavalo a fez ir mais devagar, e, quando finalmente olhou com cuidado ao redor do tronco de um freixo, o Guardião estava desmontando de seu cavalo de guerra negro em uma pequena clareira na margem. A Aes Sedai encontrava-se sentada num tronco ao lado de uma fogueirinha onde uma chaleira com água começava a ferver. Atrás dela, sua égua branca procurava algo para comer entre ervas esparsas. Nynaeve permaneceu onde estava.
— Todos se foram — anunciou Lan, em tom sombrio. — Quatro Meios-homens partiram para o sul cerca de duas horas antes do amanhecer, até onde pude descobrir. Eles não deixam muitos vestígios. Mas os Trollocs desapareceram. Até mesmo os cadáveres, e os Trollocs não são conhecidos por carregarem seus mortos. A menos que estejam famintos.
Moiraine jogou um punhado de alguma coisa dentro da água fervente e tirou a chaleira do fogo.
— Sempre se pode torcer para que eles tenham voltado para Shadar Logoth e sido consumidos por ela, mas seria esperar demais por isso.
O odor delicioso de chá chegou ao nariz de Nynaeve. Luz, não deixe meu estômago roncar.
— Não havia nenhum sinal claro dos rapazes, nem de nenhum dos outros. As trilhas estão confusas demais para dizer qualquer coisa. — Em seu esconderijo, Nynaeve sorriu; o fracasso do Guardião era uma pequena vingança para o dela. — Mas há outra coisa importante, Moiraine — continuou Lan, franzindo a testa. Ele dispensou com um gesto a oferta de chá da Aes Sedai e começou a marchar de um lado para o outro na frente da fogueira, uma das mãos no punho da espada e o manto mudando de cores quando ele se virava. — Eu pude aceitar Trollocs nos Dois Rios, até mesmo uma centena deles. Mas isso? Devia haver quase mil à nossa caça ontem.
— Tivemos muita sorte por nem todos terem ficado para vasculhar Shadar Logoth. Os Myrddraal devem ter duvidado que fôssemos nos esconder lá, mas eles também temiam retornar a Shayol Ghul deixando até uma possibilidade por menos que fosse inexplorada. O Tenebroso nunca foi um mestre tolerante.
— Não tente fugir do assunto. Você sabe do que eu estou falando. Se aqueles mil estavam aqui para serem mandados para os Dois Rios, por que não foram? Só existe uma resposta. Eles só foram mandados depois que atravessamos o Taren, quando se percebeu que um Myrddraal e cem Trollocs não eram suficientes. Como? Como eles foram enviados? Se mil Trollocs podem ser trazidos até um ponto tão distante da Praga, tão rapidamente, sem serem vistos, para não falar em serem retirados da mesma maneira, será que dez mil podem ser enviados para o coração de Saldaea, Arafel ou Shienar? As Terras da Fronteira poderiam ser tomadas em um ano.
— O mundo inteiro será tomado em cinco se não encontrarmos esses rapazes — disse Moiraine simplesmente. — A questão também me preocupa, mas não tenho respostas. Os Caminhos estão fechados, e não existe uma Aes Sedai poderosa o bastante para Viajar, desde o Tempo da Loucura. A menos que um dos Abandonados esteja à solta, queira a Luz que isto não aconteça, nem agora nem nunca, ainda não há quem possa. De qualquer maneira, acho que nem mesmo todos os Abandonados juntos poderiam transportar mil Trollocs. Vamos lidar com os problemas que temos diante de nós aqui e agora; todo o resto deve esperar.
— Os garotos. — Não era uma pergunta.
— Não fiquei parada enquanto você esteve fora. Um deles atravessou o rio, vivo. Quanto aos outros, havia um traço fraco rio abaixo, mas ele se desfez quando o encontrei. O vínculo havia sido rompido horas antes que eu iniciasse minha busca.
Abaixada atrás da árvore, Nynaeve franziu a testa, intrigada.
Lan parou de andar.
— Você acha que os Meios-homens que estão indo para o sul estão com eles?
— Talvez. — Moiraine se serviu de uma xícara de chá antes de continuar. — Mas não vou admitir a possibilidade de que eles estejam mortos. Não posso. Não me atrevo. Você sabe o quanto está em jogo. Preciso daqueles rapazes. Que Shayol Ghul os cace, eu já espero. Oposição dentro da Torre Branca, até mesmo do Trono de Amyrlin, eu aceito. Sempre haverá Aes Sedai que aprovam uma única solução. Mas… — Subitamente ela pousou a xícara e se endireitou, fazendo uma careta. — Se você vigiar demais o lobo — resmungou ela —, um rato lhe morde o calcanhar. — E ela então olhou diretamente para a árvore atrás da qual Nynaeve estava se escondendo. — Senhora al’Meara, pode sair agora, se quiser.
Nynaeve se levantou, desajeitada, limpando apressadamente folhas mortas do vestido. Lan havia girado para encarar a árvore assim que os olhos de Moiraine se moveram; sua espada estava na mão antes que ela terminasse de dizer o nome de Nynaeve. Então ele tornou a embainhá-la com mais força do que o necessário. Seu rosto estava quase tão inexpressivo quanto sempre, mas Nynaeve achou ter visto um quê de contrariedade no jeito como a boca do Guardião se crispou. Ela sentiu uma pontada de satisfação; pelo menos ele não havia percebido sua presença.
Mas essa satisfação durou apenas um momento. Ela fixou os olhos em Moiraine e caminhou até ela, firme em seu propósito. Queria permanecer fria e calma, mas sua voz tremia de fúria.
— No que você meteu Egwene e os rapazes? Em que tramas perversas das Aes Sedai você está planejando usá-los?
A Aes Sedai pegou sua xícara e provou calmamente o chá. Entretanto, quando Nynaeve chegou mais perto, Lan estendeu um braço para barrar seu caminho. Ela tentou empurrá-lo para o lado, e ficou surpresa quando o braço do Guardião não se moveu mais do que o faria um galho de carvalho. Ela não era frágil, mas os músculos dele eram como ferro.
— Chá? — ofereceu Moiraine.
— Não, eu não quero chá nenhum. Não beberia o seu chá nem que estivesse morrendo de sede. Você não vai usar ninguém de Campo de Emond nos seus esqueminhas sujos de Aes Sedai.
— Você não tem muito motivo para falar, Sabedoria. — Moiraine demonstrava mais interesse no chá quente do que em qualquer coisa que ela estivesse falando. — Você também pode usar o Poder Único, de certa forma.
Nynaeve voltou a empurrar o braço de Lan; ele continuou imóvel, e ela decidiu ignorá-lo.
— Por que você não experimenta me acusar de ser um Trolloc?
O sorriso de Moiraine tinha tanto ar de quem sabia mais do que estava falando que Nynaeve teve vontade de bater nela.
— Você acha que posso ficar cara a cara com uma mulher que pode tocar a Fonte Verdadeira e canalizar o Poder Único, ainda que apenas de vez em quando, sem saber o que ela é? Assim como você sentiu o potencial de Egwene. Como acha que eu sabia que você estava atrás daquela árvore? Se eu não estivesse distraída, teria percebido no instante exato em que você se aproximou. Você com certeza não é um Trolloc para que eu possa sentir o mal do Tenebroso. Então, o que foi que eu senti, Nynaeve al’Meara, Sabedoria de Campo de Emond e usuária inconsciente do Poder Único?
Lan estava olhando para Nynaeve de um jeito que não lhe agradava; surpreso e intrigado, ao que lhe pareceu, embora nada tivesse mudado em seu rosto a não ser os olhos. Egwene era especial; disso ela sempre soubera. Egwene daria uma ótima Sabedoria. Eles estão trabalhando em conjunto, ela pensou, tentando me desequilibrar.
— Eu não vou ouvir mais nada disso. Você…
— Você precisa ouvir — disse Moiraine com firmeza. — Tive minhas suspeitas em Campo de Emond mesmo antes de conhecer você. As pessoas me diziam como a Sabedoria estava irritada por não ter previsto o rigor do inverno e a primavera tardia. Diziam-me como ela era boa em prever o tempo, as colheitas; diziam como as curas dela eram maravilhosas, como ela às vezes sarava ferimentos capazes de deixar as pessoas aleijadas, e os curava tão bem que mal se via uma cicatriz, e as pessoas nem sequer mancavam ou sentiam dor. As únicas palavras duras que ouvi a seu respeito foram de algumas pessoas que a achavam jovem demais para essa responsabilidade, e isso só reforçou minhas suspeitas. Tanta habilidade com tão pouca idade…
— A Senhora Barran me ensinou bem. — Ela tentou olhar para Lan, mas os olhos dele ainda a deixavam incomodada, então decidiu olhar para o rio, por cima da cabeça da Aes Sedai. Como a aldeia ousa ficar de mexericos na frente de uma estrangeira! — Quem disse que eu era jovem demais? — exigiu saber.
Moiraine sorriu, recusando-se a se deixar distrair.
— Ao contrário da maioria das mulheres que afirmam escutar o vento, você tem mesmo essa capacidade, às vezes. Ah, isso nada tem a ver com o vento, é claro. Está ligado ao Ar e à Água. Não é algo que precise ser ensinado; nasceu com você, assim como nasceu com Egwene. Mas você aprendeu a lidar com isso, coisa que ela ainda precisa aprender. Dois minutos depois de ficar cara a cara com você, eu já sabia. Lembra-se de como lhe perguntei de repente se você era a Sabedoria? Ora, por que pensa que eu fiz isso? Não havia nada que a distinguisse de qualquer outra moça bonita se aprontando para o Festival. Mesmo procurando por uma Sabedoria jovem, eu esperava alguém com uma vez e meia a sua idade.
Nynaeve se lembrava bem demais daquele encontro; aquela mulher, mais segura de si do que qualquer uma do Círculo das Mulheres, com um vestido mais bonito do que qualquer outro que ela já tivesse visto, dirigindo-se a ela como se ela fosse uma criança. Então, Moiraine havia subitamente piscado, como se surpresa, e do nada perguntado…
Ela passou a língua pelos lábios subitamente secos. Os dois estavam olhando para ela, o rosto do Guardião tão impossível de ler quanto uma pedra, o da Aes Sedai, compreensivo, mas bastante atento. Nynaeve balançou a cabeça.
— Não! Não, é impossível. Eu saberia. Vocês estão apenas tentando me enganar, e isso não vai funcionar.
— É claro que você não sabe — disse Moiraine em tom tranquilizador. — Por que você deveria suspeitar? Por toda sua vida você ouviu sobre escutar o vento. De qualquer maneira, você preferiria anunciar a todo Campo de Emond que era uma Amiga das Trevas a admitir para si mesma, mesmo nos recantos mais fundos de sua mente, que tem alguma coisa a ver com o Poder Único, ou com as temidas Aes Sedai. — Um quê de divertimento perpassou o rosto de Moiraine. — Mas eu posso lhe dizer como isso começou.
— Eu não quero ouvir mais nenhuma das suas mentiras — respondeu Nynaeve, mas a Aes Sedai continuou falando.
— Talvez cerca de oito ou dez anos atrás… a idade varia, mas a coisa sempre acontece numa idade bem tenra… você desejava alguma coisa mais do que qualquer outra no mundo, algo de que você precisava. E você conseguiu. Um galho subitamente caindo onde você pudesse apanhá-lo a fim de sair de um lago e não se afogar. Um amigo, ou um animal de estimação, melhorando quando todos pensavam que ia morrer.
“Você não sentiu nada de especial naquele momento, mas uma semana ou dez dias depois teve sua primeira reação ao fato de tocar a Fonte Verdadeira. Talvez uma febre e calafrios que surgiram subitamente e a fizeram ficar de cama, para desaparecer depois de apenas algumas horas. Nenhuma das reações, e elas variam, dura mais do que algumas horas. Dores de cabeça, entorpecimento e euforia, tudo isso misturado, e você correndo riscos tolos ou agindo de forma imatura. Uma tontura súbita, quando você tropeçava e caía sempre que tentava se mover, quando não conseguia dizer uma frase sem que a língua mutilasse metade das palavras. E outras coisas mais. Você se lembra?”
Nynaeve se sentou pesadamente no chão; as pernas não suportavam seu peso. Ela se lembrava, mas balançou a cabeça em negativa assim mesmo. Tinha de ser coincidência. Ou então Moiraine havia feito mais perguntas em Campo de Emond do que ela pensava. A Aes Sedai fizera uma quantidade enorme de perguntas. Tinha de ser isso. Lan lhe estendeu a mão, mas ela nem sequer notou.
— Irei além — disse Moiraine quando Nynaeve continuou em silêncio. — Você usou o Poder para Curar ou Perrin ou Egwene em algum momento. Uma afinidade se desenvolve. Você consegue sentir a presença de alguém a quem Curou. Em Baerlon você foi direto à Cervo e Leão, embora não fosse a estalagem mais próxima de nenhum portão pelo qual você pudesse ter entrado. Das pessoas de Campo de Emond, apenas Perrin e Egwene estavam na estalagem quando você chegou. Foi Perrin ou foi Egwene? Ou os dois?
— Egwene — murmurou Nynaeve. Ela nunca pensara muito na capacidade que às vezes tinha de dizer quem estava se aproximando dela, mesmo quando não podia ver a pessoa; e até aquele instante não havia se dado conta de que era sempre alguém em quem suas curas haviam funcionado de forma quase milagrosa. E ela sempre soubera quando o remédio iria funcionar para além das expectativas, sempre sentira a certeza quando dizia que as colheitas seriam especialmente boas, ou que as chuvas viriam cedo ou tarde. Era como ela achava que deveria ser. Nem todas as Sabedorias conseguiam escutar o vento, mas as melhores sim. Era o que a Senhora Barran sempre dizia, assim como dizia que Nynaeve seria uma das melhores.
“Ela teve febre quebranta. — Nynaeve mantinha a cabeça abaixada e falava para o chão. — Eu ainda era aprendiz da Senhora Barran, e ela me colocou para vigiar Egwene. Eu era jovem, e não sabia que a Sabedoria já tinha tudo sob controle. Febre quebranta é algo terrível de ver. A criança estava encharcada de suor, e gemia e se revirava na cama até eu não conseguir entender por que não ouvia seus ossos se partindo. A Senhora Barran havia me dito que a febre cederia em um dia, dois no máximo, mas achei que ela estava sendo gentil comigo. Achei que Egwene estivesse morrendo. Eu costumava tomar conta dela às vezes quando ela era bem pequena, quando a mãe dela estava ocupada, e comecei a chorar porque seria obrigada a vê-la morrer. Quando a Senhora Barran voltou uma hora depois, a febre havia cedido. Ela ficou surpresa, mas se preocupou comigo mais do que com Egwene. Sempre achei que ela acreditava que eu tinha dado alguma coisa à criança e estava assustada demais para admitir. Sempre achei que ela estava tentando me consolar, para garantir que eu soubesse que não havia ferido Egwene. Uma semana mais tarde, caí no chão de sua sala, alternando tremores e febre alta. Ela me pôs na cama, mas na hora da ceia tudo havia passado.”
Quando acabou de falar, escondeu o rosto nas mãos. A Aes Sedai escolheu um bom exemplo, ela pensou, a Luz que a queime! Usando o Poder como uma Aes Sedai. Uma Aes Sedai Amiga das Trevas nojenta!
— Você teve muita sorte — disse Moiraine, e Nynaeve se endireitou. Lan deu um passou para trás, como se aquela conversa não fosse assunto dele, e foi se ocupar com a sela de Mandarb, sem sequer olhar para elas.
— Sorte!
— Você conseguiu um controle rústico sobre o Poder, mesmo que tocar a Fonte Verdadeira ainda seja aleatório. Se não tivesse feito isso, ele já o teria matado. Como provavelmente matará Egwene se você conseguir impedi-la de ir a Tar Valon.
— Se eu aprendi a controlá-lo… — Nynaeve engoliu em seco. Era como admitir novamente que podia fazer o que a Aes Sedai disse. — Se eu aprendi a controlá-lo, ela também pode. Não há necessidade de ir para Tar Valon e se envolver nas intrigas de vocês.
Moiraine balançou a cabeça lentamente.
— As Aes Sedai procuram garotas que podem tocar a Fonte Verdadeira sem orientação com a mesma dedicação com que buscam homens que possam fazê-lo. Não é o desejo de engrossar nossas fileiras, ou pelo menos não só isso, nem o medo de que essas mulheres façam mau uso do Poder. O controle rústico que elas podem conseguir, se a Luz iluminá-las, raramente é suficiente para causar grandes estragos, especialmente porque tocar de verdade a Fonte está além do controle delas sem uma professora, e só acontece de modo aleatório. E, é claro, elas não sofrem a loucura que leva os homens a cometerem o mal ou ações perversas. Nós queremos salvar suas vidas. As vidas daquelas que nunca conseguem nenhum controle.
— A febre e os tremores que eu tive não poderiam matar ninguém — insistiu Nynaeve. — Não em três ou quatro horas. Eu tive as outras coisas também, e elas também não matariam ninguém. E pararam depois de alguns meses. E aí?
— Foram apenas reações — disse Moiraine pacientemente. — A cada vez, a reação se dá mais próxima do toque da Fonte, até que as duas acontecem quase juntas. Depois disso, nenhuma outra reação pode ser vista, mas é como se um relógio tivesse começado a contar. Um ano. Dois anos. Conheço uma mulher que durou cinco anos. A cada quatro que possuem a habilidade inata que você e Egwene têm, três morrem se não as encontramos e treinamos. Não é uma morte tão horrível quanto a dos homens, mas tampouco é bonita, se é que qualquer morte pode ser considerada bela. Convulsões. Gritos. Leva dias, e assim que se inicia não há nada que se possa fazer para detê-la, nem com todas as Aes Sedai de Tar Valon reunidas.
— Você está mentindo. Todas aquelas perguntas que fez em Campo de Emond. Você descobriu sobre a febre de Egwene, sobre a minha febre e meus tremores, tudo. Você inventou tudo isso.
— Você sabe que não fiz isso — respondeu Moiraine gentilmente.
Com relutância, mais relutância do que jamais tivera em relação a qualquer coisa na vida, Nynaeve assentiu. Fora um último e teimoso esforço para negar o que era evidente, e isso jamais trazia nada de bom, por mais desagradável que a coisa fosse. A primeira aprendiz da Senhora Barran havia morrido da maneira que a Aes Sedai descrevera quando Nynaeve ainda brincava de bonecas, e houvera uma moça em Trilha de Deven apenas alguns anos antes. Ela também era aprendiz de Sabedoria, uma que conseguia escutar o vento.
— Você tem grande potencial, eu acho — continuou Moiraine. — Com treinamento, poderia se tornar até mesmo mais poderosa que Egwene, e eu acredito que ela possa vir a se tornar uma das mais poderosas Aes Sedai que já vimos em séculos.
Nynaeve se afastou da Aes Sedai como se ela fosse uma víbora.
— Não! Eu não quero ter nada a ver com… — Com o quê? Comigo mesma? Ela parou, derrotada, e sua voz hesitou. — Eu gostaria muito que você não contasse nada disso a ninguém. Por favor. — Essas últimas palavras quase ficaram presas em sua garganta. Preferia que Trollocs tivessem aparecido ali a ter sido forçada a pedir um favor àquela mulher. Mas Moiraine apenas assentiu, concordando, e parte de sua disposição retornou. — Nada disso explica o que você quer com Rand, Mat e Perrin.
— O Tenebroso os quer — respondeu Moiraine. — Se o Tenebroso quer alguma coisa, eu me oponho a isso. Pode existir uma razão mais simples, ou melhor? — Ela terminou seu chá, observando Nynaeve sobre a borda da xícara. — Lan, precisamos partir. Sul, eu acho. Receio que a Sabedoria não vá nos acompanhar.
A boca de Nynaeve crispou com o jeito como a Aes Sedai disse a palavra “Sabedoria”; parecia sugerir que ela estava dando as costas a grandes coisas em detrimento de algo pequeno. Ela não me quer com eles. Está tentando fazer com que eu lhes dê as costas, volte para casa e os deixe sozinhos com ela.
— Ah, sim, eu irei com vocês. Não podem me impedir.
— Ninguém tentará impedi-la — disse Lan ao voltar a se juntar a elas. Ele esvaziou a chaleira em cima do fogo e mexeu as cinzas com um pedaço de pau. — Uma parte do Padrão? — perguntou a Moiraine.
— Talvez — respondeu ela, pensativa. — Eu devia ter conversado com Min mais uma vez.
— Sabe, Nynaeve, sua companhia é bem-vinda. — Houve uma hesitação na maneira como Lan disse o nome dela, com um vestígio de um “Sedai” não dito logo depois.
Nynaeve se enfureceu, interpretando isso como zombaria, e também se enfureceu com a maneira como eles falavam de coisas na frente dela — coisas sobre as quais ela nada sabia — sem a cortesia de uma explicação. Mas não ia lhes dar a satisfação de perguntar.
O Guardião continuou se preparando para a partida, seus gestos econômicos tão seguros e rápidos que em um instante estava tudo pronto — alforjes, cobertores e todo o resto presos atrás das selas de Mandarb e Aldieb.
— Vou buscar o seu cavalo — disse ele a Nynaeve ao terminar de amarrar a última correia de sela.
Começou a subir a margem do rio, e ela se permitiu um pequeno sorriso. Depois da maneira como o havia observado sem ser descoberta, ele ia tentar encontrar o cavalo dela sem ajuda. Descobriria que ela pouco deixava em termos de rastros quando estava seguindo alguém. Seria um prazer quando ele voltasse de mãos abanando.
— Por que para o sul? — perguntou a Moiraine. — Ouvi você dizer que um dos garotos está do outro lado do rio. E como você sabe?
— Eu dei a cada um dos rapazes uma moeda, que criou uma espécie de vínculo entre mim e eles. Contanto que eles estejam vivos e de posse dessas moedas, serei capaz de encontrá-los. — Nynaeve voltou seus olhos na direção em que o Guardião havia seguido, e Moiraine balançou a cabeça. — Não assim. Esse vínculo só me permite saber se eles ainda estão vivos, e encontrá-los caso nos separemos. Prudente sob tais circunstâncias, não acha?
— Não gosto de nada que conecte você a qualquer um de Campo de Emond — disse Nynaeve com teimosia. — Mas se ajudar a encontrá-los…
— Ajudará. Eu buscaria o jovem que está do outro lado do rio primeiro, se pudesse. — Por um momento, a voz da Aes Sedai ganhou um quê de frustração. — Ele está a apenas algumas milhas de nós. Mas não posso me dar ao luxo de usar esse tempo. Ele deverá chegar a Ponte Branca em segurança agora que os Trollocs se foram. Os dois que desceram o rio podem estar precisando mais de mim. Eles perderam suas moedas, e os Myrddraal ou os estão perseguindo ou estão tentando interceptar a todos nós em Ponte Branca. — Ela suspirou. — Preciso cuidar da necessidade maior primeiro.
— Os Myrddraal poderiam… poderiam tê-los matado — disse Nynaeve.
Moiraine balançou a cabeça levemente, negando a sugestão como se ela fosse trivial demais para ser levada em conta. A boca de Nynaeve se contraiu.
— Onde está Egwene, então? Você nem sequer a mencionou.
— Eu não sei — admitiu Moiraine —, mas espero que ela esteja segura.
— Você não sabe? Você espera? Toda aquela conversa sobre salvar a vida dela levando-a para Tar Valon e ela pode estar morta até onde você sabe!
— Eu poderia procurar por ela e dar ao Myrddraal mais tempo antes de ir em socorro dos dois jovens que foram para o sul. São eles que o Tenebroso deseja, não ela. Eles não se importariam com Egwene, não enquanto suas verdadeiras presas permanecerem à solta.
Nynaeve se lembrou de seu próprio encontro com os Trollocs, mas se recusou a reconhecer o bom senso no que Moiraine dizia.
— Então o melhor que você tem a oferecer é que ela pode estar viva, se tiver tido sorte. Viva, talvez sozinha, assustada, até mesmo ferida, a dias da aldeia mais próxima ou de qualquer socorro a não ser nós. E sua intenção é abandoná-la.
— Ela pode estar igualmente segura com o rapaz do outro lado do rio. Ou a caminho de Ponte Branca com os outros dois. De qualquer modo, não há mais Trollocs aqui para ameaçá-la, e ela é forte, inteligente e bem capaz de encontrar seu caminho até Ponte Branca sozinha. Você prefere ficar para o caso de ela precisar de ajuda, ou quer tentar ajudar aqueles que sabemos que estão em necessidade? Você prefere que eu vá procurá-la e deixe os garotos… e os Myrddraal que certamente os estão perseguindo… irem? Por muito que eu torça pela segurança de Egwene, Nynaeve, luto contra o Tenebroso, e por ora é isto que define meu caminho.
A calma de Moiraine não se abateu em nenhum instante enquanto ela apresentava as horríveis alternativas. Nynaeve queria gritar com ela. Fechando os olhos com força para evitar as lágrimas, virou o rosto para que a Aes Sedai não pudesse ver. Luz, uma Sabedoria deveria cuidar de toda a sua gente. Por que preciso fazer essa escolha?
— Ah, Lan está de volta — disse Moiraine, levantando-se e ajeitando o manto sobre os ombros.
Para Nynaeve foi apenas um pequeno golpe quando o Guardião surgiu com seu cavalo, saindo do meio das árvores. Mesmo assim, seus lábios se apertaram quando ele lhe entregou as rédeas. Teria se sentido um pouco melhor se tivesse havido um vestígio de arrogância no rosto dele em vez daquela insuportável calma pétrea. Os olhos dele se arregalaram ao verem o rosto dela, que lhe deu as costas para enxugar as lágrimas. Como ele ousa fazer pouco do meu choro?
— Você vem, Sabedoria? — perguntou Moiraine com frieza.
Ela dirigiu um último e lento olhar para a floresta, perguntando-se se Egwene estaria ali, antes de montar tristemente em seu cavalo. Lan e Moiraine já estavam em suas selas, virando as montarias para o sul. Ela seguiu, rígida, recusando-se a se permitir olhar para trás; em vez disso, manteve os olhos em Moiraine. A Aes Sedai tinha tanta confiança em seu poder e em seus planos, ela pensou, mas se eles não encontrassem Egwene e os rapazes, todos eles, vivos e ilesos, nem todo o seu poder seria capaz de protegê-la. Nem todo o seu Poder. Eu posso usá-lo, mulher! Você mesma me disse. Posso usá-lo contra você!