Rand se virou para se ajoelhar atrás do banco do condutor. Não conseguiu deixar de rir de alívio.
— Nós conseguimos, Mat! Eu lhe disse que nós íamos…
As palavras morreram em sua boca quando pôs os olhos em Caemlyn. Depois de Baerlon, ainda mais depois das ruínas de Shadar Logoth, ele havia pensado que sabia como seria uma grande cidade, mas aquilo… aquilo era mais do que ele teria acreditado.
Do lado de fora da grande muralha, prédios se aglomeravam como se todas as cidadezinhas pelas quais passara tivessem sido reunidas e colocadas ali, lado a lado, e compactadas. Estalagens despontavam com seus andares superiores acima dos telhados das casas, com armazéns atarracados, largos e sem janelas, em meio a todos eles. De tijolo vermelho, pedra cinza e branco caiado, juntos e misturados, as construções se espalhavam até onde os olhos podiam ver. Baerlon podia ter desaparecido dentro dela sem ser notada, e Ponte Branca poderia ser engolida vinte vezes e mal fazer marola.
E a muralha em si. Com a altura impressionante de quase dez braças de pura pedra cinza-clara, com veios de prata e branco, ela se estendia num grande círculo, curvando-se para norte e sul até ele se perguntar até onde ela iria. Por toda sua extensão erguiam-se torres, redondas e imponentes acima da altura da própria muralha, com bandeiras vermelhas e brancas drapejando ao vento no alto de cada uma. Do lado de dentro da muralha divisavam-se outras torres, mais finas e ainda mais altas que as muralhas, e cúpulas reluzindo brancas e douradas ao sol. Mil histórias haviam pintado cidades em sua mente, as grandes cidades de reis e rainhas, de tronos, poderes e lendas, e Caemlyn se encaixava naquelas imagens mentais como a água em um jarro.
A carroça seguiu rangendo pela ampla estrada em direção à cidade, rumo aos portões flanqueados por torres. Os carroções de um comboio de mercadores saíram daqueles portões, sob um arco imenso de pedra pelo qual poderiam passar dez gigantes lado a lado. Mercados abertos cercavam a estrada de ambos os lados, com telhas vermelhas e púrpura brilhando, com baias e chiqueiros nos espaços intermediários. Bois mugiam, gansos grasnavam, galinhas cacarejavam, cabritos berravam, ovelhas baliam e pessoas barganhavam a plenos pulmões. Uma muralha de ruído se afunilava, conduzindo-os aos portões de Caemlyn.
— O que foi que eu disse? — Bunt teve de falar mais alto, quase gritando, para ser ouvido. — A maior cidade do mundo. Construída pelos Ogier, sabe? Pelo menos a Cidade Interior e o Palácio. Para vocês verem a idade de Caemlyn. Caemlyn, onde a boa Rainha Morgase, que a Luz a ilumine, faz a lei e mantém a paz em Andor. A maior cidade da terra.
Rand estava pronto para concordar. Boquiaberto, tinha vontade de tampar os ouvidos com as mãos para abafar o burburinho. A estrada estava lotada, tão cheia quanto o Campo no Bel Tine. Lembrou-se de achar inacreditável a quantidade de gente em Baerlon, e quase riu. Olhou para Mat e abriu um sorriso. Mat estava de fato tampando as orelhas com as mãos, e com os ombros encolhidos como se quisesse cobri-las com eles também.
— Como é que nós vamos nos esconder aqui? — perguntou alto quando viu Rand olhando. — Como vamos saber em quem confiar com tanta gente? Tanta maldita gente. Luz, que barulho!
Rand olhou para Bunt antes de responder. O fazendeiro olhava a cidade, fascinado; com o barulho, era possível que ele não tivesse ouvido. Mesmo assim, Rand falou junto ao ouvido de Mat.
— Como eles podem nos encontrar no meio de tanta gente? Não está vendo, seu idiota de cabeça de lã? Estaremos seguros, se você conseguir aprender a segurar essa sua maldita língua! — Ele estendeu a mão para abarcar tudo, os mercados, as muralhas da cidade ainda à frente. — Olhe isso, Mat! Qualquer coisa poderia acontecer aqui. Qualquer coisa! Poderíamos até mesmo encontrar Moiraine esperando por nós, e Egwene, e todos os outros.
— Se estiverem vivos. Se você quer a minha opinião, eles estão tão mortos quanto o menestrel.
O sorriso desapareceu do rosto de Rand, e ele se virou para olhar os portões que se aproximavam. Qualquer coisa podia acontecer numa cidade como Caemlyn. Ele se ateve, teimoso, a esse pensamento.
O cavalo não conseguia andar mais rápido, por mais que Bunt sacudisse as rédeas; quanto mais perto dos portões chegavam, mais densa a multidão ficava, pessoas se empurrando coladas, pressionando as carroças e os carroções que iam entrando. Rand ficou feliz por ver que uma boa parte era de jovens a pé, cobertos de poeira e com poucos pertences. Qualquer que fosse a idade, grande parte da multidão que ia na direção dos portões tinha um aspecto fatigado de viagem, carroças caindo aos pedaços e cavalos cansados, roupas amarrotadas por muitas noites de sono difícil, passos arrastados e olhos cansados. Mas, cansados ou não, os olhares se fixavam nos portões como se passar para dentro das muralhas fosse acabar com toda a fadiga.
Meia dúzia de Guardas da Rainha postava-se junto aos portões, seus coletes vermelhos e brancos limpos e malhas e placas polidas, num contraste agudo com a maioria das pessoas que afluíam sob o arco de pedra. Costas rígidas e cabeças retas, eles olhavam os recém-chegados com desconfiança e desdém. Estava claro que prefeririam mandar voltar a maioria dos que entravam. Entretanto, além de manter a passagem livre para o tráfego que deixava a cidade e dizer palavras duras para os que tentassem forçar passagem rápido demais, eles não impediam ninguém de passar.
— Fiquem em seus lugares. Não empurrem. Não empurrem! Que a Luz os cegue! Há espaço para todos, que a Luz nos ajude. Fiquem em seus lugares.
A carroça de Bunt passou pelos portões com a maré lenta da multidão e entrou em Caemlyn.
A cidade ficava sobre colinas baixas, como degraus subindo em direção a um centro. Outra muralha cercava esse centro, reluzindo num branco puro e percorrendo as colinas. Do lado de dentro havia ainda mais torres e domos, em branco, ouro e púrpura, com sua elevação no topo das colinas fazendo-as parecer olhar de cima para o resto de Caemlyn. Rand achou que aquilo devia ser a Cidade Interior da qual Bunt havia falado.
A Estrada de Caemlyn propriamente dita mudava assim que entrava na cidade, tornando-se um amplo bulevar, dividido ao meio por largas faixas de grama arborizadas. A grama estava marrom, e os galhos das árvores estavam nus, mas as pessoas passavam apressadas como se não vissem nada fora do normal, rindo, conversando, discutindo, fazendo tudo que as pessoas fazem. Como se não tivessem ideia de que não houvera primavera naquele ano, e poderia não haver. Elas não viam, Rand percebeu, não conseguiam ou não queriam ver. Seus olhos passavam ao largo dos galhos sem folhas, e elas caminhavam pela grama morta e moribunda sem olhar para baixo uma vez sequer. O que não viam podiam ignorar; o que não viam não estava de fato ali.
Olhando boquiaberto para a cidade e as pessoas, Rand foi pego de surpresa quando a carroça virou numa rua lateral, mais estreita que o bulevar, mas ainda duas vezes mais larga que qualquer rua em Campo de Emond. Bunt fez o cavalo parar e se virou para olhar os dois, hesitante. Ali, o tráfego era um pouco mais leve; a multidão se dividia ao redor da carroça sem reduzir a velocidade.
— O que você está escondendo debaixo do seu manto é realmente o que Holdwin diz?
Rand estava no ato de jogar seus alforjes sobre os ombros. Sequer piscou.
— O que você quer dizer? — Sua voz também estava firme. O estômago estava todo embrulhado, mas a voz mostrava-se firme.
Mat abafou um bocejo com uma das mãos, mas enfiou a outra embaixo do casaco, segurando a adaga de Shadar Logoth, Rand sabia, e seus olhos tinham um olhar duro, de animal caçado, sob o cachecol que lhe envolvia a cabeça. Bunt evitou olhar para Mat, como se soubesse que havia uma arma naquela mão escondida.
— Nada, eu acho. Agora olhem só. Se vocês ouviram que eu estava vindo para Caemlyn, ficaram ali tempo suficiente para ouvir o resto. Se eu estivesse atrás de recompensa, teria dado alguma desculpa para entrar na Ganso e Coroa e falar com Holdwin. Só que eu não gosto muito de Holwdin, e não gosto nem um pouco daquele amigo dele. Parece-me que ele quer vocês dois mais que… qualquer outra coisa.
— Eu não sei o que ele quer — disse Rand. — Nós nunca o vimos antes. — Poderia até ser verdade. Ele não conseguia distinguir um Desvanecido de outro.
— Bom, como eu digo, eu não sei de nada, e acho que não quero saber. Já há problema suficiente para todo mundo sem que eu precise sair procurando mais.
Mat demorou a pegar as próprias coisas, e Rand já estava na rua antes que ele começasse a descer. Rand aguardou impacientemente. Rígido, Mat deu as costas à carroça, abraçando arco e aljava e o rolo do cobertor ao peito, resmungando baixinho. Sombras pesadas escureciam suas pálpebras inferiores.
O estômago de Rand roncou, e ele fez uma careta. A fome combinada com um revirar ácido no estômago o fez ter medo de vomitar. Mat o encarava, esperando. Para que lado ir? O que fazer agora?
Bunt se inclinou e fez um gesto para que ele se aproximasse. Ele foi, na esperança de receber algum conselho sobre Caemlyn.
— Eu esconderia essa… — O velho fazendeiro fez uma pausa e olhou ao redor, desconfiado. Pessoas passavam pelos dois lados da carroça, mas, tirando umas poucas imprecações sobre estarem bloqueando o caminho, ninguém lhes dava a menor atenção. — Pare de usá-la — disse. — Esconda, venda. Dê. Meu conselho é esse. Uma coisa dessas vai chamar atenção, e eu acho que você não quer nada disso.
Endireitou-se subitamente, estalando a língua para o cavalo, e seguiu devagar pela rua lotada sem dizer mais uma palavra nem olhar para trás. Um carroção carregado de barris veio na direção deles. Rand pulou fora do caminho, cambaleou, e quando tornou a olhar, Bunt e sua carroça haviam sumido de vista.
— O que vamos fazer agora? — perguntou Mat. Ele umedeceu os lábios, fitando de olhos arregalados todas as pessoas que passavam apressadas e os prédios que se agigantavam, com até seis andares. — Estamos em Caemlyn, mas o que vamos fazer? — Ele havia destampado as orelhas, mas suas mãos tremiam como se ele quisesse pô-las de volta. Um zumbido pairava sobre a cidade, o ruído baixo e constante de centenas de lojas trabalhando, milhares de pessoas conversando. Para Rand, era como estar dentro de uma colmeia gigante. — Mesmo que estejam aqui, Rand, como poderíamos encontrá-los em tudo isto?
— Moiraine nos encontrará — disse Rand devagar. A imensidão da cidade lhe pesava nos ombros; queria sair dali, esconder-se de todas aquelas pessoas e daquele ruído. O vazio lhe escapava, apesar dos ensinamentos de Tam; seus olhos traziam a cidade inteira com eles. Concentrou-se no que estava imediatamente à sua volta, ignorando tudo o que se encontrava mais além. Olhando apenas aquela única rua, ela quase parecia Baerlon. Baerlon, o último lugar em que haviam todos achado que estavam a salvo. Ninguém mais está a salvo. Talvez eles estejam mesmo todos mortos. O que fazer então?
— Eles estão vivos! Egwene está viva! — afirmou ferozmente. Diversos passantes olharam com estranheza para ele.
— Talvez — disse Mat. — Talvez. E se Moiraine não nos encontrar? E se ninguém nos encontrar a não ser o… o… — Ele estremeceu, incapaz de dizer a palavra.
— Vamos pensar nisso quando chegar a hora — respondeu Rand com firmeza. — Se acontecer. — A pior das hipóteses significava procurar Elaida, a Aes Sedai do Palácio. Seguiria até Tar Valon primeiro. Não sabia se Mat se lembrava do que Thom dissera sobre a Ajah Vermelha… e a Negra… mas ele certamente lembrava. Seu estômago começou a dar voltas novamente. — Thom disse para procurarmos uma estalagem chamada A Bênção da Rainha. É para lá que iremos primeiro.
— Como? Não temos condições nem sequer de dividir uma refeição.
— Pelo menos é um lugar por onde começar. Thom achou que poderíamos encontrar ajuda lá.
— Eu não posso… Rand, eles estão por toda parte. — Mat baixou os olhos até as pedras do calçamento e pareceu encolher, tentando se afastar das pessoas ao redor deles. — Para onde quer que a gente vá, eles estão bem atrás de nós, ou à nossa espera. Eles estarão na Bênção da Rainha também. Eu não posso… Nada vai deter um Desvanecido.
Rand agarrou o colarinho de Mat com a mão, que com muito esforço ele impedia de tremer. Precisava de Mat. Talvez os outros estivessem vivos… Luz, por favor!… mas, naquele momento, eram apenas Mat e ele. Pensar em prosseguir sozinho… Ele engoliu em seco e sentiu o gosto de bile.
Olhou ao redor rapidamente. Ninguém parecia ter ouvido Mat mencionar o Desvanecido; a multidão forçava passagem, perdida em suas próprias preocupações. Ele aproximou o rosto do de Mat.
— Nós chegamos até aqui, não chegamos? — perguntou, num sussurro rouco. — Não nos pegaram ainda. Vamos conseguir chegar até o fim. Basta não desistirmos. Eu não vou simplesmente desistir e esperar por eles como uma ovelha pelo abate. Não vou! Bem, você vai ficar parado aqui até morrer de fome? Ou até eles virem apanhá-lo num saco?
Ele soltou Mat e lhe deu as costas. Suas unhas estavam cravadas nas palmas das mãos, mas estas ainda tremiam. De repente Mat estava caminhando ao seu lado, os olhos ainda abaixados, e Rand soltou um longo suspiro.
— Desculpe, Rand — resmungou Mat.
— Esqueça — disse Rand.
Os olhos de Mat mal se erguiam o suficiente para que ele evitasse esbarrar nas pessoas enquanto as palavras saíam numa voz sem vida.
— Não consigo parar de pensar que nunca mais vou ver minha casa. Eu quero ir para casa. Pode rir se quiser; eu não ligo. O que eu não daria para ter minha mãe me fazendo um sermão neste momento. É como um peso no meu cérebro; um peso quente. Estranhos por todos os lados, e nenhum jeito de saber em quem confiar, se é que posso confiar em alguém. Luz, os Dois Rios estão tão longe que parecem estar do outro lado do mundo. Estamos sozinhos, e nunca vamos voltar para casa. Nós vamos morrer, Rand.
— Ainda não — retorquiu Rand. — Todo mundo morre. A Roda gira. Mas eu não vou me enroscar num canto e esperar que isso aconteça.
— Parece Mestre al’Vere falando — resmungou Mat, mas sua voz já havia se animado um pouco.
— Ótimo — disse Rand. — Ótimo. — Luz, permita que os outros estejam todos bem. Por favor, não nos deixe sozinhos.
Ele começou a pedir orientações sobre como chegar à Bênção da Rainha. As respostas variavam imensamente — um impropério contra todos que não ficavam em seus devidos lugares ou um dar de ombros e um olhar vazio sendo as mais comuns. Outros passavam direto sem mais que um olhar de relance, se tanto.
Um homem de rosto largo, quase tão grande quanto Perrin, inclinou a cabeça e disse:
— A Bênção da Rainha, hein? Vocês garotos da roça são homens da Rainha? — Ele usava um laço branco no chapéu de aba larga e uma faixa branca no braço de seu casaco longo. — Bem, vocês chegaram tarde demais.
Ele saiu gargalhando estrondosamente, deixando Rand e Mat se entreolhando, intrigados. Rand deu de ombros: havia muita gente esquisita em Caemlyn, gente como ele nunca havia visto antes.
Algumas pessoas se destacavam na multidão, com a pele muito escura ou muito clara, casacos de cortes estranhos ou cores vivas, chapéus pontudos ou com penachos longos. Havia mulheres com véus cobrindo o rosto, mulheres com vestidos armados de largura igual à altura de quem o usava, mulheres com vestidos que deixavam mais pele à mostra que qualquer empregada de taverna que ele já vira. Ocasionalmente uma carruagem, toda pintada em cores vivas e folheada a ouro, espremia-se pelas ruas lotadas atrás de uma parelha de quatro ou seis cavalos com plumas nos arreios. Liteiras estavam por toda parte, os carregadores abrindo caminho sem se importar com quem empurravam para os lados.
Rand viu uma briga começar assim, um grupo agressivo de homens balançando os punhos enquanto outro homem, de pele muito clara, usando um casaco de listras vermelhas, descia da liteira caída de lado. Dois homens vestidos de maneira rústica, que pareciam estar apenas de passagem por ali até então, pularam em cima dele antes que saísse do caminho. A multidão que havia parado para ver começou a ficar furiosa, resmungando e brandindo os punhos. Rand puxou Mat pela manga e saiu apressado. Mat não precisou de um segundo chamado. O rugido de um pequeno tumulto os acompanhou rua abaixo.
Por diversas vezes outros homens se aproximaram dos dois, e não o contrário. Suas roupas cheias de pó os marcavam como recém-chegados, e eles pareciam agir como um ímã para certos tipos. Sujeitos furtivos que ofereciam relíquias de Logain com olhares inquietos e pés prontos para correr. Rand calculou que lhe ofereceram pedaços suficientes do manto do falso Dragão e fragmentos de sua espada para fazer duas espadas e meia dúzia de mantos. O rosto de Mat brilhou com interesse, pelo menos da primeira vez, mas Rand dava a todos um não seco, e eles o aceitavam com um aceno de cabeça e um rápido “A Luz ilumine a Rainha, bom mestre”, e sumiam. A maior parte das lojas tinha pratos e copos pintados com cenas exóticas que propunham mostrar o falso Dragão sendo exibido diante da Rainha. E havia Mantos-brancos nas ruas. Cada qual caminhava em um espaço aberto que se movia junto com ele, assim como em Baerlon.
Passar despercebido foi algo sobre o que Rand pensou bastante. Ele mantinha o manto sobre a espada, mas isso não seria suficiente por muito tempo. Mais cedo ou mais tarde alguém iria se perguntar o que ele estava escondendo. Ele não iria, não podia, aceitar o conselho de Bunt para deixar de usá-la, não seu vínculo com Tam. Com seu pai.
Muitos outros na multidão usavam espadas, mas nenhuma com a marca da garça para chamar atenção. Todos os homens de Caemlyn, entretanto, e alguns dos estranhos, tinham suas espadas envoltas em faixas de pano, bainha e punho, vermelhas amarradas com cordas brancas, ou brancas amarradas com cordas vermelhas. Uma centena de marcas da garça podia se esconder embaixo daquelas faixas e ninguém veria. Além disso, seguir a moda local faria com que eles parecessem mais ajustados ao lugar.
Uma boa quantidade de lojas apresentava na frente bancadas que exibiam os panos e cordões, e Rand parou em uma delas. O pano vermelho era mais barato que o branco, embora ele não conseguisse ver diferença entre eles além da cor, de modo que comprou esse e o cordão branco para combinar, apesar das queixas de Mat sobre quão pouco dinheiro ainda tinham. O vendedor de lábios contraídos os olhou de cima a baixo com a boca torcida enquanto aceitava os cobres de Rand, e os xingou quando Rand pediu para amarrar sua espada em um lugar ali dentro.
— Não viemos ver Logain — disse Rand pacientemente. — Viemos só para ver Caemlyn. — Lembrou-se de Bunt e acrescentou: — A maior cidade do mundo. — A carranca do vendedor permaneceu. — Que a Luz ilumine a boa Rainha Morgase — insistiu Rand, esperançoso.
— Se vocês criarem qualquer problema — disse o homem, amargo —, há cem homens ao alcance da minha voz que virão e cuidarão de vocês mesmo que os Guardas não o façam. — Fez uma pausa para cuspir, errando por pouco o pé de Rand. — Vão logo cuidar da vidinha suja de vocês.
Rand assentiu como se o homem tivesse se despedido alegremente deles e puxou Mat para longe dali. Mat continuou olhando para trás, na direção da loja, grunhindo para si mesmo, até Rand levá-lo para um beco vazio. De costas para a rua, nenhum passante podia ver o que estavam fazendo. Rand tirou o cinturão da espada e começou a envolver a bainha e o punho com o tecido.
— Aposto que ele cobrou o dobro por esse maldito pano — disse Mat. — O triplo.
Não era tão fácil quanto parecia amarrar as faixas de pano e o cordão para que a coisa toda não caísse.
— Todo mundo vai tentar nos passar a perna, Rand. Eles pensam que nós viemos ver o falso Dragão, assim como os outros. A gente vai ter sorte se ninguém acertar nossa cabeça enquanto estivermos dormindo. Isto aqui não é lugar para nós. Tem gente demais. Vamos partir para Tar Valon agora. Ou para o sul, para Illian. Eu não me importaria em ver as pessoas se reunindo para a Caçada à Trombeta. Se não pudermos ir para casa, então pelo menos vamos embora.
— Eu vou ficar — disse Rand. — Se eles já não estiverem aqui, virão para cá mais cedo ou mais tarde, procurando por nós.
Ele não sabia ao certo se havia feito as amarrações como todos faziam, mas as garças na bainha e no punho estavam escondidas e ele achou que estava tudo firme. Quando voltou para a rua, estava certo de que tinha uma coisa a menos com que se preocupar. Mat seguia ao lado dele, relutante como se estivesse sendo puxado por uma coleira.
Pouco a pouco Rand foi conseguindo as orientações que queria. No começo eram vagas, algo como “mais ou menos naquela direção” e “vá por ali”. Mas, quanto mais perto chegavam, mais claras eram as instruções, até que finalmente pararam na frente de um prédio grande de pedra, com uma placa em cima da porta rangendo ao vento. Um homem ajoelhado diante de uma mulher com cabelos ruivos acobreados e uma coroa, uma de suas mãos repousando sobre a cabeça curvada dele. A Bênção da Rainha.
— Tem certeza? — perguntou Mat.
— É claro — disse Rand. Respirou fundo e empurrou a porta.
O salão era grande, com revestimento de madeira escura, e era aquecido pelo fogo de duas lareiras. Uma criada varria o chão, embora ele estivesse limpo, e outra polia candelabros no canto. Ambas sorriram para os dois recém-chegados antes de voltarem ao trabalho.
Apenas algumas mesas estavam ocupadas, mas uma dúzia de homens era uma multidão àquela hora da manhã, e, se ninguém parecia exatamente feliz em vê-los, pelo menos todos pareciam limpos e sóbrios. O cheiro de rosbife e pão assando vinham da cozinha e fizeram a boca de Rand se encher de água.
O estalajadeiro era gordo, ele ficou contente em ver, um homem de rosto rosado com um avental branco engomado, cabelos grisalhos penteados para trás sobre uma careca que não conseguiam cobrir direito. Seu olhar aguçado os analisou da cabeça aos pés, roupas sujas de pó, trouxas e botas gastas, mas ele também tinha um sorriso pronto e agradável. Basel Gill era seu nome.
— Mestre Gill — disse Rand —, um amigo nosso nos disse que viéssemos aqui. Thom Merrilin. Ele… — O sorriso do estalajadeiro vacilou. Rand olhou para Mat, mas ele estava ocupado demais sentindo os aromas que vinham da cozinha para reparar em qualquer outra coisa. — Há algo de errado? O senhor o conhece?
— Conheço — disse Gill, seco. Parecia mais interessado na caixa da flauta ao lado de Rand do que em qualquer outra coisa. — Venham comigo. — Ele fez um gesto com a cabeça na direção dos fundos do prédio. Rand deu um puxão em Mat para que ele acordasse, e então ele o seguiu, perguntando-se o que estava acontecendo.
Na cozinha, Mestre Gill fez uma pausa para falar com a cozinheira, uma mulher gorda, com os cabelos presos num coque atrás da cabeça, que quase se equiparava ao estalajadeiro no peso. Ela não parou de mexer suas panelas enquanto Mestre Gill falava. Os cheiros eram tão bons — dois dias de fome eram um belo tempero para qualquer coisa, mas aquilo ali tinha um cheiro tão bom quanto a cozinha da Senhora al’Vere — que o estômago de Rand roncou. Mat estava se inclinando, com o nariz na direção das panelas. Rand lhe deu um cutucão; Mat limpou apressadamente o queixo onde a baba havia começado a escorrer.
Então o estalajadeiro os empurrou com pressa pela porta dos fundos. No pátio do estábulo ele olhou ao redor, certificando-se de que ninguém mais estava por perto, depois se virou para eles. Para Rand.
— O que tem aí na caixa, rapaz?
— A flauta de Thom — disse Rand devagar. Ele abriu a caixa, como se mostrar a flauta folheada a ouro e prata fosse ajudar. A mão de Mat se esgueirou para dentro do casaco.
Mestre Gill não tirou os olhos de Rand.
— Sim, eu a reconheço. Eu o vi tocá-la muitas vezes, e provavelmente não existem duas iguais fora de uma corte real. — Os sorrisos agradáveis desapareceram, e seus olhos aguçados ficaram subitamente afiados como uma faca. — Como você a conseguiu? Thom daria o braço, mas não daria essa flauta.
— Ele a deu para mim. — Rand tirou o manto embrulhado de Thom de suas costas e o colocou no chão, desdobrando o suficiente para mostrar os retalhos coloridos, bem como a ponta da caixa da harpa. — Thom está morto, Mestre Gill. Se ele era seu amigo, eu lamento. Ele também era meu amigo.
— Morto, você diz. Como?
— Um… um homem tentou nos matar. Thom jogou isto para mim e nos mandou correr. — Os remendos se agitaram ao vento como borboletas. A garganta de Rand embargou; ele dobrou o manto cuidadosamente. — Teríamos sido mortos se não fosse por ele. Estávamos vindo juntos para Caemlyn. Ele nos disse para virmos aqui, para sua estalagem.
— Vou acreditar que ele está morto — disse o estalajadeiro lentamente — quando eu vir o corpo. — Ele empurrou o manto embrulhado com a ponta do pé e pigarreou. — Não, não, eu acredito que você viu o que viu; só não acredito que ele esteja morto. Ele é um homem mais duro de matar do que vocês podem acreditar, o velho Thom Merrilin.
Rand pôs a mão no ombro de Mat.
— Está tudo bem, Mat. Ele é um amigo.
Mestre Gill olhou de relance para Mat e deu um suspiro.
— Suponho que eu seja.
Mat se endireitou devagar, cruzando os braços sobre o peito. Mas ainda observava o estalajadeiro, desconfiado, e um músculo em sua bochecha repuxava.
— Vindo para Caemlyn, você diz? — O estalajadeiro sacudiu a cabeça. — Este é o último lugar da terra para o qual eu esperava que Thom viesse, exceto talvez Tar Valon. — Ele esperou que um cavalariço passasse, conduzindo um cavalo, e mesmo assim abaixou a voz. — Imagino que vocês tenham tido problemas com as Aes Sedai.
— Sim — grunhiu Mat, ao mesmo tempo que Rand falou:
— O que faz o senhor pensar isso?
Mestre Gill deu uma risada seca.
— Eu conheço o homem, é só. Ele pularia de cabeça nesse tipo de problema, especialmente para ajudar dois rapazes da idade de vocês… — As reminiscências em seus olhos desapareceram, e ele se endireitou com um olhar cauteloso. — Agora… ah… Não estou fazendo acusação nenhuma, garoto, mas… ah… Imagino que nenhum de vocês dois possa… ah… o que estou querendo dizer é que… ah… qual é exatamente a natureza do seu problema com Tar Valon, se não se importam que eu pergunte?
A pele de Rand se arrepiou toda quando ele percebeu o que o homem estava sugerindo. O Poder Único.
— Não, não, nada parecido com isso. Eu juro. Havia até uma Aes Sedai nos ajudando. Moiraine era… — mordeu a língua, mas a expressão do estalajadeiro não mudou em nenhum momento.
— Fico feliz por ouvir isso. Não que eu tenha muito amor pelas Aes Sedai, mas melhor elas do que… aquela outra coisa. — Ele balançou a cabeça devagar. — Está se falando muito naquele tipo de coisa com essa história de trazer Logain para cá. Não quis ofender, entendam, mas… bem, eu precisava saber, não é?
— Não nos ofendemos — disse Rand. O murmúrio de Mat poderia ter sido qualquer coisa, mas o estalajadeiro pareceu entendê-lo da mesma maneira que Rand.
— Vocês dois parecem do tipo certo, e eu acredito que vocês eram… são… amigos de Thom, mas estes são tempos difíceis e dias duros. Não suponho que possam pagar, certo? Não, achei que não. Não há nada sobrando, e o pouco que há custa os olhos da cara, então eu lhes darei camas… não as melhores, mas quentes e secas, e algo para comer, e não posso prometer mais do que isso, por mais que queira.
— Obrigado — disse Rand, lançando um olhar intrigado para Mat. — É mais do que eu esperava. — O que seria o tipo certo, e por que ele deveria prometer mais?
— Bem, Thom é um bom amigo. Um velho amigo. Cabeça quente, e suscetível a dizer a pior coisa possível justamente à pessoa a quem não deveria, mas um bom amigo mesmo assim. Se ele não aparecer… bem, pensaremos em algo, então. É melhor que vocês não falem mais sobre Aes Sedai ajudando vocês. Eu sou um bom homem da Rainha, mas há muitos em Caemlyn neste instante que entenderiam isso errado, e não estou falando só dos Mantos-brancos.
Mat bufou.
— Para mim, os corvos podem levar todas as Aes Sedai direto para Shayol Ghul!
— Cuidado com a língua — retrucou Mestre Gill. — Eu disse que não as amo; não disse que sou um tolo que acha que elas estão por trás de tudo o que há de errado. A Rainha apoia Elaida, e os Guardas defendem a Rainha. A Luz faça com que as coisas não deem errado a ponto de mudar. De qualquer maneira, ultimamente alguns Guardas têm esquecido de suas posições o suficiente para serem um tanto duros com as pessoas que ouvem falando contra as Aes Sedai. Não quando estão de serviço, graças à Luz, mas já aconteceu mesmo assim. Eu não preciso de Guardas de folga quebrando meu salão para ensinar uma lição a vocês, e não preciso de Mantos-brancos incitando alguém a pintar a Presa do Dragão na minha porta. Então, se vocês quiserem alguma ajuda de mim, guardem seus pensamentos sobre as Aes Sedai para si mesmos, bons ou ruins. — Ele fez uma pausa pensativa e então acrescentou: — Talvez seja melhor que vocês também não mencionem o nome de Thom onde qualquer pessoa, exceto eu, possa ouvir. Alguns dos Guardas têm memória longa, e a Rainha também. Não há necessidade de se correr risco.
— Thom teve problemas com a Rainha? — perguntou Rand, incrédulo, e o estalajadeiro riu.
— Então ele não lhes contou tudo. Não sei por que deveria. Por outro lado, não sei por que vocês também não devam saber. Não que seja exatamente um segredo. Vocês pensam que todo menestrel se acha tão bom quanto Thom? Bom, pensando bem, acho que sim, mas sempre me pareceu que Thom tinha essa característica um pouco mais desenvolvida. Ele nem sempre foi menestrel, sabiam?, vagando de aldeia em aldeia e dormindo frequentemente debaixo de uma cerca-viva. Houve um tempo em que Thom Merrilin era o bardo da Corte bem aqui em Caemlyn, e era conhecido em cada corte real de Tear a Maradon.
— Thom? — espantou-se Mat.
Rand assentiu lentamente. Ele conseguia visualizar Thom na corte de uma Rainha, com sua postura imponente e seus gestos grandiosos.
— Ele era — disse Mestre Gill. — Não foi muito depois da morte de Taringail Damodred que o… problema com seu sobrinho aconteceu. Houve quem dissesse que Thom era, digamos, mais próximo da Rainha do que seria adequado. Mas Morgase era uma viúva jovem, e Thom estava em seu auge, e a Rainha pode fazer o que desejar, em minha opinião. Só que ela sempre teve um temperamento difícil, nossa boa Morgase, e ele partiu sem dizer uma palavra quando soube em que tipo de problema seu sobrinho estava metido. A Rainha não gostou muito disso. Também não gostou que ele se metesse em assuntos das Aes Sedai. Não posso dizer que acho que isso era certo também, sobrinho ou não. De qualquer maneira, quando voltou, ele disse algumas palavras, isso é certo. Palavras que não se dizem a uma Rainha. Palavras que você não diz a nenhuma mulher com o espírito de Morgase. Elaida se voltou contra ele por causa de sua tentativa de se meter nos negócios de Tar Valon com seu sobrinho, e entre o temperamento da Rainha e a animosidade de Elaida, Thom deixou Caemlyn apenas meio passo à frente de um passeio até a prisão, senão até o machado do carrasco. Até onde sei, o edito ainda vale.
— Se foi há tanto tempo — disse Rand —, talvez ninguém se lembre.
Mestre Gill balançou a cabeça.
— Gareth Bryne é Capitão-general dos Guardas da Rainha. Foi ele quem pessoalmente comandou os Guardas que Morgase enviou para trazer Thom de volta acorrentado, e duvido que ele jamais tenha se esquecido que retornou de mãos vazias para descobrir que Thom já havia voltado ao palácio e partido novamente. E a Rainha nunca esquece nada. Você já viu uma mulher que esquecesse? Nossa, mas Morgase ficou fora de si. Juro que a cidade inteira andou na ponta dos pés e sussurrando por um mês inteiro. Também há muitos outros Guardas velhos o bastante para lembrar. Não, melhor você manter Thom como um segredo tanto quanto essa sua Aes Sedai. Venham, vou lhes dar de comer. Vocês estão com cara de quem está com o estômago grudado nas costas.