O coração de Rand martelava enquanto ele corria e olhava em desalento as colinas áridas que o cercavam. Aquele não era simplesmente um lugar onde a primavera estava demorando a chegar; ali a primavera jamais chegara e jamais chegaria. Nada crescia no solo frio que estalava sob suas botas, nem sequer um pouco de líquen. Ele escalou velozmente rochedos com o dobro de sua altura; a poeira cobria as pedras como se jamais uma gota de água as tivesse tocado. O sol era uma bola inchada cor de sangue, mais inclemente que no dia mais quente do verão e brilhante o bastante para queimar os olhos, destacando-se contra o caldeirão plúmbeo de um céu onde nuvens negras e prateadas rolavam e fervilhavam por todo o horizonte. Apesar das nuvens turbulentas, entretanto, nenhum sopro de brisa tocava a terra, e apesar do sol sinistro, o ar queimava frio, como nas profundezas do inverno.
Rand olhava sobre o ombro a todo instante enquanto corria, mas não conseguia ver seus perseguidores. Somente colinas desoladas e montanhas negras com picos pontudos, muitos dos quais encimados por plumas altas de fumaça negra que subiam para se juntar às nuvens que rolavam pelo ar. Mas se ele não podia ver seus caçadores, podia ouvi-los, uivando atrás dele, vozes guturais gritando com o prazer da caçada, uivando com o prazer do sangue por vir. Trollocs. Eles se aproximavam, e Rand sentiu que suas forças estavam quase esgotadas.
Com uma pressa desesperada, correu cambaleando até o topo de uma cordilheira serrilhada e então caiu de joelhos com um gemido. Abaixo dele, uma parede de rocha reta despencava, uma encosta de trezentos metros de altura despenhando e se transformando em um vasto cânion. Névoas enfumaçadas cobriam o chão, sua espessa superfície cinzenta rolando em ondas sombrias, rolando e quebrando contra a encosta abaixo dele, mais lentamente, porém, do que qualquer onda do oceano. Manchas de neblina reluziram com um brilho vermelho por um instante, como se grandes fogueiras houvessem subitamente irrompido lá embaixo e, depois, se apagado. Trovões roncavam nas profundezas do vale, e relâmpagos estalavam em meio ao cinza, às vezes saltando rumo aos céus.
Não era o vale propriamente dito que lhe sugava as forças e preenchia os espaços vazios com desespero. Do centro dos vapores furiosos uma montanha projetava-se subitamente, uma montanha mais alta que qualquer outra que ele houvesse visto nas Montanhas da Névoa, e tão negra quanto a perda de toda esperança. Essa torre de pedra negra e desolada, uma adaga apunhalando os céus, era a fonte de sua aflição. Ele nunca a vira antes, mas a conhecia. Sua lembrança lhe escapava num átimo, como mercúrio, quando ele tentava tocá-la, mas estava ali, presente. Ele sabia que estava.
Dedos invisíveis o tocavam, puxavam seus braços e pernas, tentando arrastá-lo para a montanha. Seu corpo se contraía, pronto para obedecer. Os braços e as pernas enrijeciam-se como se ele pensasse que podia enterrar os dedos das mãos e dos pés na pedra. Fios fantasmagóricos entrelaçavam-se em torno de seu coração, puxando-o, chamando-o para a montanha alta e íngreme. Lágrimas escorriam por seu rosto, e ele desabou no chão como um saco vazio. Sentiu a força de vontade se esvair de seu corpo como a água vazando de um balde furado. Mais um pouco e ele iria para onde estava sendo chamado. Obedeceria, faria o que lhe mandavam. Subitamente descobriu outra emoção: raiva. Empurrá-lo, puxá-lo… Ele não era uma ovelha para ser tangido para dentro de um redil. A raiva se concentrou em um nó bem apertado, e ele se agarrou a ela como teria se agarrado a uma jangada no meio de um dilúvio.
Sirva-me, uma voz sussurrou na quietude de sua mente. Uma voz familiar. Se ele apurasse o ouvido o suficiente, tinha certeza de que saberia quem era. Sirva-me. Ele sacudiu a cabeça tentando expulsar a voz. Sirva-me! E sacudiu o punho na direção da montanha negra.
“Que a Luz o consuma, Shai’tan!”
Subitamente o cheiro da morte se adensou ao seu redor. Uma figura assomou sobre ele, vestindo um manto da cor de sangue seco, uma figura com um rosto… Ele não queria ver aquele rosto que o olhava de cima. Não queria pensar naquele rosto. Pensar nele era o bastante para lhe causar dor, para transformar sua mente em brasa. Uma mão se estendeu em sua direção. Sem se importar se iria despencar lá do alto, ele se afastou. Precisava escapar. Para bem longe. E caiu, debatendo-se no ar, querendo gritar, sem fôlego para gritar, sem fôlego para nada.
De repente ele não estava mais naquela terra árida, não estava mais caindo. Suas botas se assentavam numa grama invernal amarronzada; pareciam flores. Ele quase riu ao ver árvores e arbustos espalhados, mesmo sem folhas, pontilhando a planície ondulada que agora o cercava. A distância uma única montanha se destacava, o cume partido e fendido, mas essa montanha não trazia nenhuma sensação de medo nem de desespero. Era apenas uma montanha, embora estranhamente deslocada ali, sem nenhuma outra à vista.
Um rio largo fluía perto da montanha, e em uma ilha no meio desse rio havia uma cidade como as das histórias dos menestréis, uma cidade cercada por muralhas altas que emitiam um brilho branco e prateado ao sol cálido. Com um misto de alívio e alegria, ele partiu na direção das muralhas, em busca da segurança e da serenidade que de algum modo sabia que encontraria atrás delas.
Ao se aproximar ele distinguiu torres altíssimas, muitas ligadas por espantosas passarelas que cruzavam o céu aberto. Pontes elevadas arqueavam-se de ambas as margens do rio até a cidade insular. Mesmo de longe ele conseguia ver um trabalho rendilhado nas pedras daqueles vãos, parecendo delicadas demais para suportar as águas velozes que corriam abaixo delas. Além daquelas pontes estava a segurança. Santuário.
Subitamente um frio percorreu os seus ossos; uma umidade gelada cobriu sua pele, e o ar ao seu redor tornou-se fétido e úmido. Sem olhar para trás, ele correu, fugindo do perseguidor cujos dedos congelantes roçavam suas costas e puxavam seu manto, correu da figura devoradora de luz com o rosto que… Ele não conseguia se lembrar do rosto, exceto como terror. Não queria se lembrar do rosto. Ele correu, e o chão passava por baixo dos seus pés, colinas redondas e campinas planas… e ele queria uivar como um cão enlouquecido. À frente, a cidade se afastava. Quanto mais corria, mais longe ficavam as muralhas brancas reluzentes e o refúgio. Iam ficando cada vez menores, até que no horizonte restava apenas um pontinho pálido. A mão fria de seu perseguidor o agarrava pelo colarinho. Se aqueles dedos o tocassem, ele sabia que ficaria louco. Ou pior. Muito pior. No momento em que essa certeza lhe ocorreu ele tropeçou e caiu…
“Nãããão!”, gritou.
…e gemeu quando as pedras do pavimento o fizeram perder o fôlego numa pancada seca. Sem nada entender, ele se levantou. Estava parado no início de uma das pontes maravilhosas que vira sobre o rio. Pessoas sorridentes passavam por ele de ambos os lados, pessoas vestidas com tantas cores que o faziam pensar num campo de flores. Algumas delas falavam com ele, mas Rand não conseguia entender, embora as palavras soassem como se devesse entendê-las. Mas os rostos eram amigáveis, e as pessoas faziam gestos para que ele seguisse em frente, atravessando a ponte com seu intrincado trabalho de cantaria, na direção das muralhas cintilantes, raiadas de prata, e das torres mais além. Na direção da segurança que ele sabia que o aguardava ali.
Juntou-se à multidão que descia a ponte e entrou na cidade por portões maciços montados em muralhas altas e impecáveis. Do lado de dentro havia uma terra de maravilhas onde mesmo a menor estrutura parecia um palácio. Era como se os construtores tivessem recebido a ordem de pegar pedra, tijolo e azulejo e criar uma beleza para tirar o fôlego dos mortais. Não havia edifício, não havia monumento que não o fizesse arregalar os olhos. As ruas se enchiam de música, mil canções diferentes, mas todas se fundindo com o clamor das multidões para criar uma harmonia grandiosa e alegre. Os aromas de perfumes adocicados e de temperos picantes, de comidas maravilhosas e miríades de flores, todos flutuavam no ar, como se todos os cheiros bons do mundo estivessem reunidos ali.
A rua pela qual ele adentrou a cidade, ampla e pavimentada com pedra cinza lisa, estendia-se reta à sua frente na direção do centro da localidade. Ao seu final assomava uma torre maior e mais alta que qualquer outra na cidade, uma torre tão branca quanto neve que acabara de cair. Essa torre era onde estavam a segurança e o conhecimento que ele buscava. Mas a cidade era algo que ele jamais havia sonhado ver. Decerto não faria diferença caso se atrasasse só um pouco em sua caminhada até a torre… Ele dobrou em uma rua lateral estreita, onde malabaristas passeavam entre ambulantes que vendiam estranhas frutas.
À frente, descendo a rua, havia uma torre branca como a neve. A mesma torre. Daqui a um instantinho, ele pensou e dobrou outra esquina. No fim dessa rua, lá estava a mesma torre branca. Teimosamente, ele virou outra esquina, e outra, e a cada vez a torre de alabastro surgia diante de seus olhos. Ele girou para fugir dela… e deteve-se subitamente. À sua frente, a torre branca. E teve medo de olhar para trás, medo de que ela estivesse lá também.
Os rostos ao seu redor ainda eram amigáveis, mas cheios de uma esperança estilhaçada, uma esperança que ele havia despedaçado. As pessoas ainda gesticulavam para que ele avançasse, gestos de quem implorava. Na direção da torre. Os olhos brilhavam com uma necessidade desesperada, e somente ele poderia satisfazê-la, somente ele poderia salvá-los.
Muito bem, pensou. A torre era, afinal de contas, aonde ele queria ir.
Já em seu primeiro passo adiante a decepção desvaneceu os que o rodeavam, e sorrisos cingiram cada um dos rostos. Eles o acompanharam, e criancinhas cobriram seu caminho com pétalas de flores. Olhou para trás, confuso, imaginando para quem seriam as flores, mas atrás só havia mais pessoas sorridentes gesticulando para que seguisse em frente. Devem ser para mim, pensou e se perguntou por que aquilo subitamente não parecia mais estranho. Mas o assombro durou apenas um instante antes de desaparecer; tudo era como deveria ser.
Primeiro uma, depois outra pessoa começou a cantar, até que todas as vozes se ergueram em um hino glorioso. Ele ainda não conseguia compreender as palavras, mas uma dúzia de harmonias entrelaçadas entoava aos brados a alegria e a salvação. Músicos dançavam no meio da multidão que fluía, adicionando flautas, harpas e tambores de diversos tamanhos ao hino, e todas as canções que ele ouvira antes se misturavam naturalmente. Garotas dançavam ao seu redor, depositando guirlandas de botões de cheiro doce sobre seus ombros, pondo-as em seu pescoço. Elas sorriam para ele, cujo deleite crescia a cada passo. Ele não conseguiu deixar de sorrir de volta. Seus pés coçavam para se juntar à dança e, ao pensar nisso, ele já estava dançando, os passos se encaixando como se conhecesse aquela dança desde que nascera. Ele jogou a cabeça para trás e riu; seus pés pareciam mais leves do que jamais haviam sido, dançando com… Não conseguia lembrar o nome, mas isso não parecia importante.
É seu destino, uma voz sussurrou em sua cabeça, e o sussurro era um acorde no hino.
Carregando-o como um graveto na crista de uma onda, a multidão fluiu para uma praça enorme no meio da cidade, e pela primeira vez ele viu que a torre branca se elevava de um grandioso palácio de mármore branco, esculpido em vez de construído, paredes curvas e amplos domos e torres delicadas tocando o céu. O conjunto todo o fez arquejar, assombrado. Degraus largos de pedra branca subiam da praça, e ao pé daquela escadaria as pessoas se detiveram, mas a música delas subiu ainda mais. As vozes que se elevavam impulsionaram seus pés. Seu destino, a voz sussurrou, agora insistente, ansiosa.
Ele não estava mais dançando, mas tampouco parou. Subiu as escadas sem hesitação. Aquele era o lugar ao qual pertencia.
Volutas cobriam as portas maciças no alto das escadas, relevos tão intrincados e delicados que ele não conseguia imaginar uma faca com a lâmina fina o suficiente para se encaixar ali. Os portais se abriram, ele entrou, e então se fecharam com o ecoar de um trovão.
— Estávamos esperando por você — sibilou o Myrddraal.
Rand se levantou de um salto, tremendo e ofegando, o olhar fixo. Tam ainda dormia na cama. Lentamente sua respiração foi se normalizando. Achas um tanto consumidas ardiam na lareira, já com uma boa camada de brasas ao redor das grades de ferro; alguém havia estado ali para cuidar do fogo enquanto ele dormia. Um cobertor caíra quando ele acordara, e estava aos seus pés. A maca improvisada tinha desaparecido também, e os mantos dele e de Tam haviam sido pendurados na porta.
Ele enxugou o suor frio do rosto com a mão não muito firme e perguntou-se se nomear o Tenebroso em sonho atraía sua atenção do mesmo jeito que fazê-lo em voz alta.
O crepúsculo escurecia a janela; a lua estava bem alta no céu, redonda e gorda, e as estrelas vespertinas brilhavam sobre as Montanhas da Névoa. Ele havia dormido o dia inteiro. Esfregou um ponto dolorido na lateral do corpo. Aparentemente havia dormido com o cabo da espada espetando-o nas costelas. Com isso, um estômago vazio e a noite anterior, não era de surpreender que houvesse tido pesadelos.
Sua barriga roncou. Ele se levantou, enrijecido, e foi até a mesa onde a Senhora al’Vere havia deixado a bandeja. Puxou de lado o guardanapo branco. Apesar do tempo dormindo, o caldo de carne ainda estava morno, e o pão, crocante também. A mão da Senhora al’Vere era evidente; a bandeja havia sido trocada. Uma vez tendo decidido que você precisava de uma refeição quentinha, ela não desistia até a comida estar dentro de você.
Ele engoliu um pouco de caldo e mal conseguiu colocar carne e queijo entre dois pedaços de pão antes de meter tudo na boca. Dando grandes mordidas, ele voltou à cama.
A Senhora al’Vere aparentemente também cuidara de Tam. Ele havia sido despido, suas roupas agora estavam limpas e cuidadosamente dobradas na mesinha de cabeceira, e um cobertor fora puxado até seu queixo. Quando Rand tocou a testa do pai, Tam abriu os olhos.
— Aí está você, garoto. Marin disse que você estava aqui, mas eu não conseguia sequer me sentar para ver. Ela disse que você estava cansado demais para que ela o acordasse só para eu poder vê-lo. Nem mesmo Bran consegue fazê-la mudar de ideia quando ela se decide.
A voz de Tam estava fraca, mas seu olhar era límpido e firme. A Aes Sedai tinha razão, pensou Rand. Com descanso ele ficaria tão bem quanto antes.
— O senhor quer alguma coisa para comer? A Senhora al’Vere deixou uma bandeja.
— Ela já me alimentou… se é que se pode dizer isso. Não me deixou comer nada a não ser caldo. Como pode um homem evitar pesadelos com nada a não ser caldo na… — Tam tirou a mão de sob a coberta e tocou a espada na cintura de Rand. — Então não foi um sonho. Quando Marin me disse que eu estava doente, achei que eu houvesse… Mas você está bem. Isso é tudo o que importa. E a fazenda?
Rand respirou fundo.
— Os Trollocs mataram as ovelhas. Acho que mataram a vaca também, e a casa precisa de uma boa limpeza. — Ele conseguiu dar um sorriso fraco. — Tivemos mais sorte do que alguns. Eles queimaram metade da aldeia.
Contou a Tam tudo que havia acontecido, ou pelo menos a maior parte. Tam escutou com atenção e fez perguntas incisivas. Rand se viu tendo de contar sobre o retorno à casa da fazenda depois de esconder-se na floresta, e isso levou ao Trolloc que ele havia matado. Teve de contar que Nynaeve dissera que Tam estava morrendo para explicar por que a Aes Sedai havia cuidado dele em lugar da Sabedoria. Os olhos de Tam se arregalaram com isso, uma Aes Sedai em Campo de Emond. Mas Rand não viu necessidade de repassar cada passo da jornada da fazenda até ali, nem seus temores nem o Myrddraal na estrada. Certamente não os pesadelos enquanto dormia à beira da cama. E não via razão, em especial, para mencionar os devaneios de Tam durante a febre. Ainda não. A história de Moiraine, porém, não havia como evitar.
— Bem, essa é uma história digna de um menestrel — murmurou Tam quando Rand chegou ao fim. — O que os Trollocs iriam querer com vocês, rapazes? Ou o Tenebroso, que a Luz nos ajude?
— O senhor acha que ela estava mentindo? Mestre al’Vere disse que ela estava dizendo a verdade sobre apenas duas fazendas terem sido atacadas. E sobre a casa de Mestre Luhhan e a de Mestre Cauthon.
Tam ficou em silêncio por um momento antes de pedir:
— Diga-me o que ela falou. As palavras exatas que ela usou, veja bem. Exatamente como ela as disse.
Rand tentou se concentrar. Quem se lembra das palavras exatas que ouviu? Mordeu o lábio e coçou a cabeça, e pouco a pouco foi falando, o mais fielmente possível.
— Não consigo lembrar de mais nada — concluiu ele. — Não tenho certeza se alguma parte ela não contou um pouco diferente, mas de qualquer maneira é quase isso.
— Está bom o bastante. Tem de estar, não é? Sabe, rapaz, as Aes Sedai são traiçoeiras. Elas não mentem, não diretamente, mas a verdade que uma Aes Sedai lhe conta nem sempre é a verdade que você pensa. Tome cuidado quando estiver perto dela.
— Eu já ouvi as histórias — Rand retorquiu. — Não sou criança.
— Não é, não é mesmo. — Tam suspirou pesadamente, então deu de ombros, irritado. — Eu deveria ir com você, mesmo assim. O mundo fora dos Dois Rios não é nem um pouco parecido com Campo de Emond.
Era uma abertura para perguntar sobre as viagens de Tam e todo o resto, mas Rand não a aproveitou. Em vez disso, ficou boquiaberto.
— Assim, sem mais nem menos? Pensei que o senhor fosse ter mil razões para eu não ir. — Percebeu que estivera torcendo para que Tam tivesse mil razões, e das boas.
— Talvez não mil — disse Tam, resfolegando —, mas algumas me vieram à mente. Só que elas não têm importância. Se os Trollocs estão atrás de você, estará mais seguro em Tar Valon do que aqui. Só se lembre de manter-se sempre alerta. Aes Sedai fazem coisas por suas próprias razões, e nem sempre são as razões que você pensa.
— O menestrel disse uma coisa parecida — observou Rand, devagar.
— Então ele sabe do que está falando. Ouça com atenção, pense bem, e segure a língua. Este é um bom conselho para quaisquer assuntos além dos Dois Rios, especialmente lidando com Aes Sedai. E com Guardiões. Conte alguma coisa a Lan, e será o mesmo que ter contado a Moiraine. Se ele é um Guardião, está ligado a ela tão certamente quanto o sol nasceu esta manhã, e não vai guardar muitos segredos, se é que vai guardar algum.
Rand sabia pouco a respeito da ligação entre Aes Sedai e Guardiões, embora ela desempenhasse um grande papel em todas as histórias sobre Guardiões que ele já ouvira. Tinha algo a ver com o Poder, uma dádiva para o Guardião ou talvez alguma espécie de troca. Os Guardiões recebiam toda sorte de benefícios, de acordo com as histórias. Eles se curavam mais rapidamente que outros homens e resistiam mais tempo sem comida, água ou sono. Supostamente, podiam pressentir a presença de Trollocs, se estivessem perto o bastante, e de outras criaturas do Tenebroso também, o que explicava como Lan e Moiraine haviam tentado alertar a aldeia antes do ataque. Quanto ao que a Aes Sedai ganhava com isso, as histórias não contavam, mas ele não ia acreditar que elas não ganhassem nada.
— Vou tomar cuidado — disse Rand. — Só queria saber por quê. Não faz o menor sentido. Por que eu? Por que nós?
— Eu também queria saber, garoto. Sangue e cinzas, como queria saber! — Tam deu um suspiro profundo. — Mas não faz sentido tentar colocar um ovo quebrado de volta na casca, eu acho. Quanto tempo você tem antes de ir embora? Vou poder me levantar em um ou dois dias, e poderemos cuidar de começar um novo rebanho. Oren Dautry tem bons animais, que poderia estar disposto a ceder, já que os pastos se foram todos, e Jon Thane também.
— Moiraine… a Aes Sedai disse que o senhor tinha de ficar na cama. Ela disse semanas.
Tam abriu a boca, mas Rand continuou:
— E ela falou com a Senhora al’Vere.
— Ah. Bem, talvez eu possa convencer Marin. — Mas Tam não parecia esperançoso. Dirigiu um olhar afiado a Rand. — O jeito como você evitou responder significa que tem de partir logo. Amanhã? Ou esta noite?
— Esta noite — disse Rand baixinho, e Tam assentiu com tristeza.
— Sim. Bem, se deve ser feito, melhor não atrasar. Mas vamos ver quanto a esse negócio de “semanas”. — Ele puxou as cobertas com mais irritação que força. — Talvez eu siga em alguns dias de qualquer maneira. Alcance vocês na estrada. Vamos ver se Marin consegue me manter na cama quando eu quiser me levantar.
Ouviu-se uma batida na porta, e Lan enfiou a cabeça no quarto.
— Despeça-se rápido, pastor, e venha. Parece que há um problema.
— Problema? — perguntou Rand, e o Guardião grunhiu, impaciente.
— Só se apresse logo!
Rand agarrou seu manto, apressado. Começou a soltar o cinto da espada, mas Tam disse:
— Fique com ela. Você provavelmente vai precisar mais do que eu, embora, se a Luz quiser, nenhum de nós precisará. Cuide-se, rapaz. Está me ouvindo?
Ignorando os grunhidos constantes de Lan, Rand se curvou para dar um abraço em Tam.
— Eu vou voltar. Prometo que vou.
— É claro que sim. — Tam riu. Retribuiu o abraço com fraqueza e terminou dando palmadinhas nas costas de Rand. — Eu sei disso. E vou ter o dobro de ovelhas para você cuidar quando voltar. Agora vá, antes que o sujeito acabe tendo um troço.
Rand tentou ficar ali mais um pouco, tentou encontrar as palavras para a pergunta que não queria fazer, mas Lan entrou no quarto para pegá-lo pelo braço e puxá-lo para o corredor. O Guardião havia vestido uma túnica verde-escura fosca de escamas de metal sobrepostas. Sua voz estava áspera de irritação.
— Precisamos correr. Você não entende a palavra problema?
Do lado de fora do quarto, Mat aguardava, de casaco, manto e com o arco nas mãos. Uma aljava pendia de sua cintura. Ele se balançava, ansioso, nos calcanhares e não parava de olhar na direção das escadas com o que parecia uma mistura de impaciência e medo.
— Isso não se parece muito com as histórias, não é, Rand? — perguntou, rouco.
— Que tipo de problema? — Rand quis saber, mas o Guardião correu à frente dele em vez de responder, descendo os degraus de dois em dois, e Mat saiu correndo atrás dele com gestos rápidos para que Rand os seguisse.
Vestindo seu manto, ele os alcançou no pé da escada. Apenas uma luz baça enchia o salão; metade das velas havia se apagado e a maior parte das que restavam estava chegando ao fim. O salão estava vazio, exceto pelos três. Mat encontrava-se ao lado de uma das janelas da frente, espiando lá fora como se tentasse não ser visto. Lan abriu uma fresta na porta e espiou o quintal da estalagem.
Perguntando-se o que poderiam estar observando, Rand foi juntar-se a eles. O Guardião murmurou para que tomasse cuidado, mas abriu a porta um pouco mais para dar espaço para que Rand olhasse também.
No começo ele não teve certeza do que exatamente estava vendo. Uma multidão de aldeões, mais de trinta, aglomerados perto da carcaça queimada da carroça do mascate, a noite afastada pelas tochas que alguns deles carregavam. Moiraine os encarava, de costas para a estalagem, apoiada com aparente casualidade em seu cajado. Hari Coplin destacava-se à frente da multidão com seu irmão, Darl, e Bili Congar. Cenn Buie também estava lá, parecendo pouco à vontade. Rand se assustou ao ver Hari agitar o punho na direção de Moiraine.
— Vá embora daqui! — gritou o fazendeiro de cara amarrada.
Umas poucas vozes na multidão repetiram o que ele disse, mas com hesitação, e ninguém avançou. Eles podiam estar dispostos a confrontar uma Aes Sedai do meio da multidão, mas ninguém queria ser identificado isoladamente. Não por uma Aes Sedai que tinha todos os motivos para se ofender.
— Você trouxe esses monstros! — rugiu Darl.
Ele agitou uma tocha acima da cabeça, e ouviram-se gritos de “Foi você quem os trouxe!” e “A culpa é sua”, liderados por seu primo Bili.
Hari deu uma cotovelada em Cenn Buie, e o velho telhador franziu os lábios e o olhou de esguelha.
— Aquelas coisas… aqueles Trollocs só apareceram depois que você veio para cá — resmungou Cenn, tão baixo que mal pôde ser ouvido. Ele balançava a cabeça de um lado para outro amargamente, como se desejasse estar em outro lugar e procurando uma maneira de chegar lá. — Você é uma Aes Sedai. Não queremos ninguém da sua espécie nos Dois Rios. Aes Sedai levam problemas aonde quer que vão. Se você ficar, só vai trazer mais.
Seu discurso não teve eco nos aldeões reunidos, e Hari fez uma careta de frustração. O povo dos Dois Rios podia se defender se fosse atacado, mas a violência estava longe de ser algo comum, e ameaçar pessoas além de um simples punho brandido na cara de alguém era incomum para eles. Cenn Buie, Bili Congar e os Coplins se viram sozinhos na frente da multidão. Bili parecia querer recuar também.
Hari se assustou um pouco, incomodado com a falta de apoio, mas se recuperou rapidamente.
— Vá embora! — Ele tornou a gritar, no que foi ecoado por Darl e, de modo mais fraco, por Bili. Hari olhou fuzilando para os outros, e a maior parte da multidão não conseguiu olhar nos olhos dele.
Subitamente Bran al’Vere e Haral Luhhan saíram das sombras, parando a certa distância tanto da Aes Sedai quanto da multidão. Em uma das mãos o Prefeito levava casualmente o grande martelo de madeira que usava para enfiar torneiras em barris.
— Alguém aí sugeriu tocar fogo na minha estalagem? — ele perguntou baixinho.
Os dois Coplins deram um passo para trás, e Cenn Buie afastou-se deles. Bili Congar mergulhou na multidão.
— Isso não — disse Darl, rápido. — Nós nunca dissemos isso, Bran… hã, Prefeito.
Bran assentiu.
— Então talvez eu tenha ouvido vocês ameaçando hóspedes da minha estalagem.
— Ela é uma Aes Sedai. — Hari começou, zangado, mas suas palavras foram cortadas quando Haral Luhhan se aproximou.
O ferreiro simplesmente se espreguiçou, esticando os braços grossos sobre a cabeça, fechando os punhos maciços até os dedos estalarem, mas Hari olhou para o homem atarracado como se um daqueles punhos tivesse sido sacudido debaixo de seu nariz. Haral cruzou os braços diante do peito.
— Perdão, Hari. Não tive a intenção de interrompê-lo. O que você ia dizendo mesmo…?
Mas Hari, os ombros curvados como se estivesse tentando se dobrar para dentro de si mesmo e sumir, parecia não ter mais nada a dizer.
— Estou surpreso com vocês, gente — Bran rugiu. — Paet al’Caar, a perna do seu garoto foi quebrada ontem à noite, mas eu o vi andando e apoiando-se nela hoje… graças a ela. Eward Candwin, você estava caído de bruços com um corte nas costas feito um peixe pronto para ser limpo, até ela pôr as mãos em você. Agora parece que isso aconteceu há um mês, e a menos que eu esteja muito enganado em breve não lhe restará nem cicatriz. E você, Cenn. — O telhador começou a se misturar à multidão, mas deteve-se, desconfortavelmente imobilizado pelo olhar de Bran. — Eu ficaria chocado ao ver qualquer homem do Conselho da Aldeia aqui, Cenn, mas você mais do que todos. Seu braço ainda estaria pendendo inútil ao lado do corpo, uma massa de queimaduras e escoriações, se não fosse por ela. Ainda que não tenha gratidão, você não tem vergonha?
Cenn ergueu um pouco a mão direita, e então desviou o olhar, evitando-a, zangado.
— Não posso negar o que ela fez — ele resmungou, parecendo de fato envergonhado. — Ela ajudou a mim e a outros — continuou em um tom de súplica —, mas é uma Aes Sedai, Bran. Se aqueles Trollocs não vieram por causa dela, por que vieram? Não queremos nada com Aes Sedai nos Dois Rios. Deixe que elas fiquem com seus problemas longe de nós.
Uns poucos homens, seguros no fundo da multidão, gritaram então: “Não queremos problemas com Aes Sedai!”, “Mandem-na embora!”, “Expulsem-na!”, “Por que vieram, se não por causa dela?”.
Uma expressão de desprezo surgiu no rosto de Bran, mas, antes que ele pudesse falar, Moiraine subitamente ergueu sobre a cabeça seu cajado de vinhas esculpidas, girando-o com ambas as mãos. O arquejo de Rand ecoou o dos aldeões, pois uma chama branca sibilante explodiu em cada extremidade do cajado, destacando-se diretamente como pontas de lança apesar do girar do bastão. Até Bran e Haral afastaram-se dela. Moiraine baixou os braços bruscamente à frente, deixando o cajado paralelo ao chão, mas o fogo pálido ainda se projetava, mais brilhante que as tochas. Os homens recuaram, levantando as mãos para proteger os olhos da dor daquele brilho ofuscante.
— Foi nisso que o sangue de Aemon se transformou? — A voz da Aes Sedai não era alta, mas sobrepujava todos os outros sons. — Gente mesquinha lutando pelo direito de se esconder como coelhos? Vocês se esqueceram de quem são, esqueceram-se do que são, mas eu esperava que lhes restasse alguma coisa, alguma memória no sangue e nos ossos. Algum vestígio que os preparasse para a longa noite por vir.
Ninguém falou. Os dois Coplins pareciam desejar jamais abrir a boca novamente.
Por fim, Bran disse:
— Esquecemos de quem somos? Somos quem sempre fomos. Fazendeiros, pastores e artesãos honestos. Gente dos Dois Rios.
— Ao sul — disse Moiraine — fica o rio que vocês chamam de Rio Branco; mais longe, porém, a leste, os homens ainda o chamam pelo nome correto. Manetherendrelle. Na Língua Antiga, Águas do Lar da Montanha. Águas cristalinas que um dia cruzaram uma terra de bravura e beleza. Dois mil anos atrás o Manetherendrelle fluía pelas muralhas de uma cidade montanhesa tão bela de se contemplar que os pedreiros Ogier vinham admirá-la, assombrados. Essa região era coberta por fazendas e aldeias, e o que vocês chamam de Floresta de Sombras também, e além. Mas todo aquele povo pensava em si mesmo como o povo do Lar da Montanha, o povo de Manetheren.
“O Rei deles era Aemon al Caar al Thorin, Aemon filho de Caar filho de Thorin, e Eldrene ay Ellan ay Carlan era sua Rainha. Aemon, tão destemido que o maior cumprimento por coragem que qualquer um podia dar, mesmo entre seus inimigos, era dizer a um homem que ele tinha coração de Aemon. Eldrene era tão linda que se dizia que as flores desabrochavam para fazê-la sorrir. Bravura e beleza e sabedoria e um amor que a morte não podia destruir. Chorem, se vocês têm coração, pela perda deles, até mesmo pela perda da memória deles. Chorem pela perda do sangue deles.”
Então ela fez silêncio, mas ninguém falou. Rand estava tão preso quanto os outros no feitiço que ela havia criado. Quando ela tornou a falar, ele bebeu de suas palavras, e o resto das pessoas também.
— Por quase dois séculos as Guerras dos Trollocs haviam devastado os quatro cantos do mundo, e, onde quer que houvesse batalhas, o estandarte da Águia Vermelha de Manetheren estava à frente. Os homens de Manetheren eram uma pedra no sapato do Tenebroso e um espinho em sua mão. Cantem Manetheren, que nunca se dobrou à Sombra. Cantem Manetheren, a espada que não podia ser quebrada.
“Eles estavam longe, os homens de Manetheren, em Campo de Bekkar, o chamado Campo de Sangue, quando chegaram notícias de um exército de Trollocs marchando rumo a seu lar. Longe demais para fazer outra coisa senão aguardar para ouvir sobre a morte de sua terra, pois as forças do Tenebroso queriam dar fim a ela. Matar o poderoso carvalho cortando-lhe as raízes. Longe demais para fazer outra coisa a não ser lamentar. Mas eles eram os homens do Lar da Montanha.
“Sem hesitar, sem pensar na distância que deveriam viajar, eles marcharam do próprio campo da vitória, ainda cobertos de pó, suor e sangue. Por dias e noites eles marcharam, pois haviam visto o horror que um exército de Trollocs deixava em seu rastro, e nenhum daqueles homens poderia dormir enquanto tamanho perigo ameaçasse Manetheren. Eles avançaram como se seus pés tivessem asas, marchando mais longe e mais rápido que os amigos esperavam ou os inimigos temiam. Quando os exércitos do Tenebroso desceram sobre as terras de Manetheren, os homens do Lar da Montanha estavam diante eles, com as costas para o Tarendrelle.”
Um aldeão deu um pequeno viva, mas Moiraine continuou como se não tivesse ouvido.
— A hoste que enfrentou os homens de Manetheren era suficiente para assustar o mais bravo dos corações. Corvos enegreciam o céu; Trollocs enegreciam a terra. Trollocs e seus aliados humanos. Trollocs e Amigos das Trevas às dezenas de dezenas de milhares, e Senhores do Medo no comando. À noite suas fogueiras superavam as estrelas em número, e o amanhecer revelou o estandarte de Ba’alzamon na vanguarda. Ba’alzamon, Coração das Trevas. Um nome antigo para o Pai das Mentiras. O Tenebroso não pôde se livrar de sua prisão em Shayol Ghul, pois, se isso tivesse acontecido, nem todas as forças da humanidade reunidas teriam conseguido resistir, mas havia poder ali. Senhores do Medo, e um mal que fazia aquele estandarte da destruição da luz parecer a coisa certa e congelar as almas dos homens que o encarassem.
“E, no entanto, eles sabiam o que precisavam fazer. Sua terra natal estava logo do outro lado do rio. Eles deveriam manter aquela hoste, e o poder que a comandava, longe do Lar da Montanha. Aemon enviara mensageiros. Recebera a promessa de auxílio se conseguissem resistir três dias no Tarendrelle. Aguentar por três dias com toda a probabilidade de serem derrotados logo na primeira hora. Mas, de algum modo, com ataques sangrentos e uma defesa desesperada, eles se aguentaram por uma, duas, três horas. Por três dias lutaram e, embora a terra tivesse se tornado um quintal de açougueiro, não permitiram que o Tarendrelle fosse cruzado. Na terceira noite nenhuma ajuda havia chegado, nem tampouco mensageiros, e eles continuaram lutando, sozinhos. Por seis dias. Por nove. E no décimo dia Aemon conheceu o gosto amargo da traição. Nenhuma ajuda viria, e eles não podiam mais impedir a travessia do rio.”
— O que eles fizeram? — Hari quis saber.
O fogo das tochas vacilava na brisa fria da noite, mas ninguém fez um movimento para trazer o manto mais para perto de si.
— Aemon atravessou o Tarendrelle — disse-lhes Moiraine —, destruindo as pontes atrás de si. E enviou mensagens por toda a sua terra para que o povo fugisse, pois sabia que os poderes da horda de Trollocs encontrariam um jeito de atravessar o rio. Ainda enquanto a mensagem seguia, a travessia dos Trollocs começou, e os soldados de Manetheren retomaram o combate, para comprar com suas vidas as horas que pudessem a fim de que seu povo escapasse. Da cidade de Manetheren, Eldrene organizou a fuga do povo para as florestas mais fechadas e as montanhas mais longínquas.
“Mas alguns não fugiram. Primeiro num fiozinho, depois num rio, depois num dilúvio, homens acorreram, não para a segurança, mas para se juntar ao exército que combatia por sua terra. Pastores com arcos, fazendeiros com ancinhos e lenhadores com machados. As mulheres também apareceram, carregando as armas que conseguiram encontrar e marchando lado a lado com seus homens. Todos que fizeram aquela jornada sabiam que nunca voltariam. Mas era a terra deles. Fora a terra de seus pais e seria a de seus filhos, e eles foram pagar seu preço. Não se desistiu de um só palmo de terra até que estivesse encharcado de sangue, mas finalmente o exército de Manetheren foi forçado a recuar, até aqui, até este lugar que vocês hoje chamam de Campo de Emond. E aqui as hordas de Trollocs os cercaram.”
A voz dela evocava o som de lágrimas frias.
— Cadáveres de Trollocs e de renegados humanos se empilhavam aos montes, mas um número cada vez maior subia por aquelas pilhas de carnificina em intermináveis ondas de morte. Só podia haver um fim. Nenhum homem ou mulher que houvesse estado sob o estandarte da Águia Vermelha no amanhecer daquele dia vivia quando a noite caiu. A espada que não podia ser quebrada fora estilhaçada.
“Nas Montanhas da Névoa, sozinha na cidade vazia de Manetheren, Eldrene sentiu Aemon morrer, e seu coração morreu com ele. E onde seu coração havia estado restou apenas a sede de vingança. Vingança por seu amor, vingança por seu povo e sua terra. Movida pela tristeza, ela buscou a Fonte Verdadeira e lançou o Poder Único sobre o exército Trolloc. E os Senhores do Medo morreram onde estavam, quer em seus conselhos secretos, quer no meio de alguma exortação aos seus soldados. Num piscar de olhos os Senhores do Medo e os generais da hoste do Tenebroso irromperam em chamas. O fogo consumiu seus corpos, e o terror consumiu seu exército recém-vitorioso.
“Desse momento em diante eles correram como feras em um incêndio na floresta, sem pensar em nada a não ser escapar. Para o norte e o sul eles fugiram. Milhares se afogaram tentando cruzar o Tarendrelle sem a ajuda dos Senhores do Medo, e no Manetherendrelle eles destruíram as pontes com receio do que poderia estar em seu encalço. Onde encontravam pessoas, matavam e queimavam, mas fugir era a necessidade que os dominava. Até que, por fim, não restou nenhum deles nas terras de Manetheren. Foram dispersos como pó diante de um redemoinho. A vingança final veio mais lenta, mas veio, quando eles foram caçados por outros povos, por outros exércitos em outras terras. Não restou ninguém vivo entre aqueles que mataram em Campo de Aemon.
“Mas o preço foi alto para Manetheren. Eldrene havia absorvido mais do Poder Único do que qualquer humano jamais poderia esperar sem auxílio. Quando os generais inimigos morreram, ela também morreu, e os fogos que a consumiram devoraram a cidade vazia de Manetheren, até mesmo suas pedras, até a rocha viva das montanhas. Mas o povo fora salvo.
“Nada havia restado de suas fazendas, suas aldeias ou sua cidade grandiosa. Alguns diriam que nada restara para eles, nada a não ser fugir para outras terras onde poderiam recomeçar. Não foi o que eles disseram. Tinham pagado um preço muito alto em sangue e esperança pela própria terra, tal como jamais se pagara antes, e doravante estavam presos àquele solo por laços mais fortes que o aço. Outras guerras os arrasariam nos anos por vir, até que seu cantinho do mundo fosse esquecido e finalmente eles não mais soubessem o que eram as guerras e como guerrear. Manetheren jamais se ergueu. Suas torres enormes e fontes murmurantes se tornaram como um sonho a se apagar lentamente da memória de seu povo. Mas eles, e seus filhos, e os filhos de seus filhos, continuaram com a terra que era sua. Mantiveram-se nela quando os longos séculos haviam lavado de suas lembranças o porquê. Continuaram nela até que, hoje, aqui estão vocês. Chorem por Manetheren. Chorem pelo que se perdeu para sempre.”
As chamas do cajado de Moiraine se apagaram, e ela o abaixou como se pesasse cinquenta quilos. Por um longo momento, o gemido do vento era o único ruído. Então Paet al’Caar passou abrindo caminho pelos Coplins.
— Não sei quanto à sua história — disse o fazendeiro de queixo comprido. — Eu não sou uma pedra no sapato do Tenebroso, e provavelmente jamais serei. Mas meu Wil está andando por sua causa, e por isso eu me envergonho de estar aqui. Não sei se a senhora pode me perdoar, mas, perdoando ou não, eu vou embora. E, por mim, a senhora pode ficar em Campo de Emond o tempo que quiser.
Abaixando rapidamente a cabeça, numa quase mesura, ele voltou a abrir caminho na multidão. Outros então começaram a murmurar, oferecendo uma penitência envergonhada antes de também saírem de fininho, um a um. Os Coplins, mais uma vez carrancudos, olharam os rostos ao seu redor e sumiram na noite sem dizer uma só palavra. Bili Congar havia desaparecido antes mesmo de seus primos.
Lan puxou Rand para trás e fechou a porta.
— Vamos, garoto. — O Guardião se dirigiu para os fundos da estalagem. — Venham comigo, vocês dois. Depressa!
Rand hesitou, trocando um olhar questionador com Mat. Enquanto Moiraine contava a história, nem mesmo os Dhurrans de Mestre al’Vere poderiam tê-lo arrastado de lá, mas agora outra coisa continha seus pés. Aquele era o verdadeiro começo, deixar a estalagem e seguir o Guardião noite adentro… Ele se sacudiu e tentou se sentir mais resoluto. Não tinha escolha a não ser ir, mas voltaria a Campo de Emond, por mais longe que aquela jornada o levasse.
— O que vocês estão esperando? — Lan perguntou da porta nos fundos do salão. Com um susto, Mat correu até ele.
Tentando se convencer de que estava começando uma grande aventura, Rand os seguiu pela cozinha às escuras, saindo para o estábulo.