36 A Teia do Padrão

Mestre Gill os levou até uma mesa de canto no salão e mandou uma das criadas lhes trazer comida. Rand balançou a cabeça quando viu os pratos, com algumas fatias finas de carne coberta de molho, uma porção pequena de folhas de mostarda e duas batatas em cada prato. Mas seu gesto foi de tristeza e resignação, e não de raiva. Não havia o bastante de nada, dissera o estalajadeiro. Pegando o garfo e a faca, Rand se perguntou o que aconteceria quando não restasse mais nada. Isso fez seu prato pela metade parecer um banquete. E o fez tremer.

Mestre Gill escolheu uma mesa bem distante de todos, e sentou-se de costas para o canto, a fim de vigiar o aposento. Ninguém podia se aproximar o suficiente para ouvir o que diziam sem que ele visse. Quando a criada se afastou, ele disse suavemente:

— Agora, por que vocês não me contam sobre esse problema de vocês? Se vou ajudar, é melhor saber no que estou me metendo.

Rand olhou para Mat, mas este estava olhando para seu prato de testa franzida, como se estivesse zangado com a batata que cortava. Rand respirou fundo.

— Na verdade, eu mesmo não entendo — começou.

Evitou complicar a história, e manteve os Trollocs e Desvanecidos de fora. Quando alguém oferecia ajuda, não adiantava dizer que se tratava de fábulas. Mas ele tampouco achava que fosse justo subestimar o perigo; não era justo arrastar para o problema alguém que não fazia ideia de onde iria se meter. Alguns homens estavam atrás dele e de Mat, e de outros amigos deles também. Esses homens apareciam onde eram menos esperados, eram mortalmente perigosos e tinham a intenção de matar a ele e seus amigos, ou pior. Moiraine dissera que alguns deles eram Amigos das Trevas. Thom não confiava completamente em Moiraine, mas permanecera com eles, dissera, por causa de seu sobrinho. Eles haviam se separado durante um ataque enquanto tentavam chegar a Ponte Branca, e então, lá, Thom morrera salvando-os de outro ataque. E havia acontecido outras tentativas. Ele sabia que tinha furos na história, mas foi o melhor que conseguiu fazer sem dizer mais do que era seguro.

— Nós simplesmente seguimos até Caemlyn — explicou. — Esse era o plano original. Caemlyn, e depois Tar Valon. — Ele se mexeu, incomodado, na ponta da cadeira. Depois de manter tudo em segredo por tanto tempo, era estranho contar a alguém mesmo o pouco que ele estava dizendo. — Se continuarmos nessa rota, os outros serão capazes de nos encontrar mais cedo ou mais tarde.

— Se estiverem vivos. — Mat resmungou para seu prato.

Rand não olhou para Mat. Algo o levou a acrescentar:

— Ajudar-nos pode lhe trazer problemas.

Mestre Gill dispensou esse comentário com um gesto da mão rechonchuda.

— Não é que eu queira problemas, mas não seria minha primeira vez. Nenhum maldito Amigo das Trevas vai me fazer dar as costas aos amigos de Thom. Agora, esta sua amiga do norte… se ela vier para Caemlyn, eu ficarei sabendo. Há pessoas aqui que ficam de olho em idas e vindas como essa, e as notícias correm.

Rand hesitou, mas acabou perguntando:

— E Elaida?

O estalajadeiro também hesitou, e finalmente sacudiu a cabeça.

— Acho que não. Talvez, se vocês não tivessem ligação com Thom. Ela descobriria isso na hora, e aí onde vocês estariam? Não há como saber. Talvez numa cela. Ou pior. Dizem que ela sente as coisas… o que aconteceu, o que vai acontecer. Dizem que ela pode ir direto ao que um homem quer esconder. Eu não sei, mas não me arriscaria. Se não fosse por Thom, vocês poderiam procurar os Guardas. Eles cuidariam de qualquer Amigo das Trevas bem rápido. Mas, ainda que vocês conseguissem deixar de mencionar Thom para os Guardas, isso chegaria aos ouvidos de Elaida assim que mencionassem os Amigos das Trevas, e aí vocês voltariam à estaca zero.

— Nada de Guardas — concordou Rand. Mat assentiu vigorosamente enquanto enfiava um garfo na boca e deixava o molho escorrer pelo queixo.

— O problema é que vocês estão metidos no limiar da política, rapaz, mesmo que isso não tenha sido provocado por vocês, e a política é um pântano nebuloso cheio de cobras.

— E se… — começou Rand, mas o estalajadeiro fez uma careta de repente, sua cadeira rangendo sob seu peso enorme quando ele ficou ereto.

A cozinheira encontrava-se em pé na porta da cozinha, limpando as mãos no avental. Quando viu o estalajadeiro olhando, fez um gesto para que ele fosse até lá, depois sumiu de volta à cozinha.

— Até parece que sou casado com ela — suspirou Mestre Gill. — Descobre coisas que precisam de conserto antes que eu saiba que há algo de errado. Se não são os ralos ou as calhas entupidas, são os ratos. Eu mantenho este lugar limpo, entendam, mas, com tanta gente na cidade, os ratos estão por toda parte. Aglomere muito as pessoas e você terá ratos, e Caemlyn passou a ter uma praga deles de repente. Vocês não acreditariam no que um bom gato, um rateiro de primeira, está valendo hoje em dia. O quarto de vocês fica no sótão. Vou dizer às garotas qual é; qualquer uma delas poderá levá-los até lá. E não se preocupem com Amigos das Trevas. Não posso dizer muita coisa boa a respeito dos Mantos-brancos, mas, com eles e os Guardas, essa laia não vai dar as caras em Caemlyn. — Sua cadeira rangeu de novo quando ele a empurrou para trás e se levantou. — Espero que não sejam os ralos de novo.

Rand voltou à comida, mas ele viu que Mat havia parado de comer.

— Achei que você estava com fome — disse ele. Mat ficava olhando para a comida, empurrando um pedaço de batata em um círculo com o garfo. — Você precisa comer, Mat. Precisamos conservar as forças se quisermos chegar a Tar Valon.

Mat soltou, baixinho, uma risada amarga.

— Tar Valon! Todo esse tempo era Caemlyn. Moiraine estaria esperando por nós em Caemlyn. Nós iríamos encontrar Perrin e Egwene em Caemlyn. Tudo estaria bem se conseguíssemos chegar a Caemlyn. Bem, aqui estamos, e nada está bem. Nada de Moiraine, nada de Perrin, nada de ninguém. Agora tudo vai ficar bem se conseguirmos chegar a Tar Valon.

— Estamos vivos — disse Rand, com mais rispidez do que havia pretendido. Ele respirou fundo e tentou moderar o tom de voz. — Estamos vivos. Isto é ótimo. E eu pretendo continuar vivo. Pretendo descobrir por que somos tão importantes. Eu não vou desistir.

— Todas essas pessoas, e qualquer uma delas pode ser um Amigo das Trevas. Mestre Gill prometeu nos ajudar rápido demais. Que tipo de homem simplesmente não dá a mínima para Aes Sedai e Amigos das Trevas? Não é natural. Qualquer pessoa decente nos diria para dar o fora, ou… ou… ou sei lá.

— Coma — disse Rand gentilmente, e ficou olhando até Mat começar a mastigar um pedaço de carne.

Ele deixou as mãos descansando ao lado do prato por um minuto, pressionando-as contra a mesa para evitar que tremessem. Estava apavorado. Não com Mestre Gill, claro, mas tinha motivos suficientes. Aquelas muralhas altas da cidade não deteriam um Desvanecido. Talvez ele devesse contar isso ao estalajadeiro. Mas, mesmo que Mestre Gill acreditasse, será que ele estaria disposto a ajudar se achasse que um Desvanecido poderia aparecer na Bênção da Rainha? E os ratos? Talvez ratos proliferassem quando houvesse muita gente, mas ele se lembrou do sonho que não fora um sonho em Baerlon, e uma pequena espinha se partindo. Às vezes o Tenebroso usa comedores de carniça como seus olhos, fora o que Lan dissera. Corvos, ratos…

Comeu, mas, quando acabou, não conseguia se lembrar do sabor de uma única garfada.

Uma criada da casa, a que estava polindo candelabros quando eles entraram, levou-os até o quarto no sótão. Uma lucarna se abria na parede externa inclinada, com uma cama de cada lado e ganchos próximos à porta para pendurarem seus pertences. A garota de olhos escuros retorcia a saia e dava risadinhas toda vez que olhava para Rand. Ela era bonita, mas ele sabia que se lhe dissesse qualquer coisa faria apenas papel de bobo. Ela o fez desejar ter o jeito que Perrin tinha com as garotas; ficou feliz quando ela saiu.

Esperou algum comentário de Mat, mas, assim que ela saiu, Mat se jogou numa das camas, ainda com manto e botas, e virou o rosto para a parede.

Rand pendurou suas coisas, olhando para as costas de Mat. Achou que ele estava com a mão embaixo do casaco, segurando a adaga novamente.

— Você vai ficar deitado aqui em cima, escondido? — perguntou.

— Estou cansado — resmungou Mat.

— Ainda temos perguntas a fazer ao Mestre Gill. Ele pode até ser capaz de nos dizer como encontrar Egwene e Perrin. Eles já podem estar em Caemlyn, se conseguiram manter seus cavalos.

— Eles estão mortos — disse Mat para a parede.

Rand hesitou, depois desistiu. Fechou a porta devagar e saiu, torcendo para que Mat realmente dormisse.

Lá embaixo, entretanto, não conseguiu encontrar Mestre Gill em parte alguma, embora o olhar aguçado da cozinheira dissesse que ela também estava procurando por ele. Durante um tempo Rand ficou sentado no salão, mas quando deu por si estava olhando discretamente cada frequentador que entrava; cada estranho que podia ser qualquer um, ou qualquer coisa, especialmente no momento em que não passava de uma silhueta com um manto na porta. Um Desvanecido no aposento seria como uma raposa num galinheiro.

Um Guarda entrou, vindo da rua. O homem, uniformizado de vermelho, parou logo depois de passar da porta, correndo um olhar frio por aqueles no aposento que eram obviamente de fora da cidade. Rand estudou o tampo da mesa quando os olhos do Guarda recaíram sobre ele; quando voltou a olhar para cima, o homem havia desaparecido.

A criada de olhos escuros estava passando, com os braços cheios de toalhas.

— Eles fazem isso às vezes — disse ela, num tom de confidência ao passar por ele. — Só para ver se não há nenhum problema. Eles cuidam da boa gente da Rainha, cuidam mesmo. Você não tem nada com que se preocupar. — Ela deu um risinho.

Rand balançou a cabeça. Nada com que se preocupar. O Guarda não iria abordá-lo e exigir saber se ele conhecia Thom Merrilin. Estava ficando tão mal quanto Mat. Empurrou a cadeira para trás.

Outra criada estava verificando o óleo nos lampiões ao longo da parede.

— Há outro aposento onde eu possa me sentar? — Rand perguntou a ela. Ele não queria voltar para cima e se trancar com Mat em seu isolamento mal-humorado. — Talvez uma sala de jantar particular que não esteja sendo usada?

— Tem a biblioteca. — Ela apontou para uma porta. — Por ali, à sua direita, no fim do corredor. Pode estar vazia a esta hora.

— Obrigado. Se encontrar Mestre Gill, pode lhe dizer que Rand al’Thor precisa falar com ele se tiver um minuto?

— Vou dizer — respondeu ela e sorriu. — A cozinheira também quer falar com ele.

O estalajadeiro provavelmente estava se escondendo, ele pensou ao dar-lhe as costas.

Quando entrou no aposento ao qual ela o havia direcionado, parou e olhou, estupefato. As prateleiras deviam conter trezentos ou quatrocentos livros, mais do que ele jamais havia visto em um só lugar antes. Encadernados em tecido, em couro, com detalhes dourados. Apenas uns poucos tinham lombadas de madeira. Seus olhos percorreram, famintos, os títulos, descobrindo antigos favoritos. As Jornadas de Jain, o Viajante. Os Ensaios de Willim de Maneches. Ele ficou sem fôlego ao ver um exemplar encadernado em couro das Viagens Entre o Povo do Mar. Tam sempre quisera ler esse.

Imaginando Tam, virando o livro nas mãos com um sorriso, sentindo-o antes de se acomodar diante da lareira com seu cachimbo para ler, sua própria mão segurou firme o punho da espada com uma sensação de perda e vazio que diminuiu todo o prazer que sentia com os livros.

Ouviu alguém pigarrear atrás dele, e subitamente percebeu que não estava só. Pronto para se desculpar por sua rudeza, ele se virou. Estava acostumado a ser mais alto que quase todos, mas dessa vez seus olhos subiram e subiram e subiram, e seu queixo caiu. Então chegou à cabeça, que quase tocava o teto de cerca de duas braças de altura. Um nariz tão largo quanto o rosto, que mais parecia um focinho. Sobrancelhas que pendiam como caudas, emoldurando olhos pálidos do tamanho de xícaras de chá. Orelhas que terminavam em pontas peludas que atravessavam uma juba negra. Trolloc! Ele soltou um grito e tentou recuar e sacar a espada. Tropeçou nos próprios pés e caiu sentado com força.

— Gostaria que vocês humanos não fizessem isso — lamentou uma voz profunda como o toque de um surdo. As orelhas peludas estremeceram violentamente, e a voz se encheu de tristeza. — Tão poucos de vocês se lembram de nós. Suponho que a culpa seja nossa mesmo. Bem poucos de nós têm saído entre os homens desde que a Sombra caiu sobre os Caminhos. Isso foi há… ah, seis gerações. Logo depois da Guerra dos Cem Anos. — A cabeça peluda balançou e soltou um suspiro digno de um touro. — Tempo demais, tempo demais, e tão poucos para viajar e ver que era o mesmo que nada.

Rand ficou ali sentado por um minuto, boquiaberto, olhando para a aparição trajada em botas de bico largo até os joelhos e um casaco azul-escuro abotoado do pescoço à cintura que então se abria até o alto das botas como um kilt sobre calças largas. Numa das mãos havia um livro, que parecia minúsculo em comparação com um dedo da grossura de três marcando a página.

— Pensei que você fosse… — começou Rand, mas então se conteve. — O que você…? — Não soou melhor. Levantando-se, ele ofereceu cautelosamente a mão num cumprimento. — Meu nome é Rand al’Thor.

Uma enorme mão, do tamanho de um pernil, engolfou a dele; foi acompanhada de uma mesura formal.

— Loial, filho de Arent, filho de Halan. Seu nome canta em meus ouvidos, Rand al’Thor.

Isso soou como um cumprimento ritual para Rand. Ele retribuiu a mesura.

— Seu nome canta em meus ouvidos, Loial, filho de Arent… ah… filho de Halan.

Tudo aquilo era um tanto irreal. Ele ainda não sabia o que Loial era. O toque dos dedos imensos de Loial era surpreendentemente gentil, mas mesmo assim Rand ficou aliviado por ter sua mão de volta inteira.

— Vocês humanos são muito temperamentais — disse Loial, em seu retumbante baixo profundo. — Eu já tinha ouvido todas as histórias, e lido os livros, é claro, mas não acreditei. No meu primeiro dia em Caemlyn, não pude crer na confusão. Crianças choravam, mulheres gritavam, e uma multidão me perseguiu por toda a cidade, brandindo porretes, facas e tochas e gritando: “Trolloc!” Receio que eu estivesse quase começando a ficar um pouco aborrecido. Não sei o que poderia ter acontecido se um grupo dos Guardas da Rainha não tivesse aparecido.

— Foi uma sorte — disse Rand baixinho.

— Sim, mas até mesmo os Guardas pareciam sentir quase tanto medo de mim quanto os outros. Já faz quatro dias que estou em Caemlyn, e não fui capaz de pôr o nariz para fora desta estalagem. O bom Mestre Gill chegou até a me pedir para não usar o salão. — Suas orelhas estremeceram. — Não que ele não tenha sido muito hospitaleiro, entenda. Mas aconteceu uma certa confusão naquela primeira noite. Todos os humanos pareciam querer ir embora ao mesmo tempo. Tantos gritos, berros, todos tentando atravessar a porta juntos. Alguns deles poderiam ter se machucado.

Rand ficou olhando, fascinado, para aquelas orelhas que tremiam.

— Eu lhe digo, não foi para isso que deixei o pouso.

— Você é um Ogier! — exclamou Rand. — Espere! Seis gerações? Você mencionou a Guerra dos Cem Anos! Quantos anos você tem? — No instante em que fez a pergunta, percebeu que tinha sido grosseiro, mas Loial mostrou-se mais defensivo que ofendido.

— Noventa anos — disse o Ogier muito sério. — Daqui a apenas mais dez vou poder me dirigir ao Cepo. Acho que os Anciões deviam ter me deixado falar, já que eles estavam decidindo se eu podia partir ou não. Mas também eles sempre se preocupam com qualquer um de qualquer idade indo para Fora. Vocês humanos são tão apressados, tão erráticos… — Ele piscou e fez uma pequena mesura. — Por favor, me perdoe. Eu não devia ter dito isso. Mas vocês realmente brigam o tempo todo, mesmo quando não há necessidade.

— Sem problema — disse Rand. Ele ainda estava tentando assimilar a idade de Loial. Mais velho do que o idoso Cenn Buie, e ainda não era velho o bastante para… Sentou-se em uma das cadeiras de espaldar alto. Loial sentou-se em outro assento, feito para acomodar duas pessoas; ele o preenchia por completo. Sentado, era tão alto quanto a maioria dos homens em pé. — Pelo menos eles deixaram você partir.

Loial olhou para o chão, franzindo o nariz e esfregando-o com um dedo grosso.

— Bem, quanto a isso… Sabe, o Cepo estava em reunião não fazia muito tempo, nem mesmo um ano, mas eu podia dizer pelo que havia ouvido que, quando eles chegassem a uma decisão, eu estaria velho o bastante para ir sem a permissão deles. Receio que eles hão de dizer que não tive muita paciência, mas eu simplesmente… parti. Os Anciões sempre disseram que eu era cabeça quente demais, e receio ter provado que eles tinham razão. Pergunto-me se eles já perceberam que parti. Mas eu tinha de ir.

Rand mordeu o lábio para evitar rir. Se Loial era um Ogier de cabeça quente, ele podia imaginar como seria a maioria dos Ogier. A reunião começara não fazia muito tempo, nem mesmo um ano? Mestre al’Vere simplesmente balançaria a cabeça, pasmo; uma reunião de Conselho de Aldeia que durasse metade de um dia já faria todo mundo ficar inquieto, até mesmo Haral Luhhan. Uma onda de saudade de casa o atingiu, dificultando sua respiração por causa das lembranças de Tam, e Egwene, e da Estalagem Fonte de Vinho, e do Bel Tine no Campo em dias mais felizes. Ele as afastou à força.

— Se não se importa que eu pergunte — disse, pigarreando —, por que você quis vir… ah, para Fora… tanto assim? Eu gostaria de nunca ter saído de casa.

— Para ver, ora — disse Loial, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. — Eu li os livros, todos os relatos de viajantes, e começou a arder em mim a sensação de que eu tinha de ver, não só ler. — Seus olhos pálidos brilharam, e as orelhas se enrijeceram. — Estudei cada fragmento que consegui encontrar sobre viagens, sobre os Caminhos, e os costumes das terras humanas, e as cidades que construímos para vocês após a Ruptura do Mundo. E quanto mais eu lia, mais sabia que tinha de ir para Fora, para aqueles lugares onde havíamos estado, e ver os bosques com meus próprios olhos.

Rand piscou.

— Bosques?

— Sim, os bosques. As árvores. Apenas algumas das Grandes Árvores, é claro, subindo, altaneiras, para o céu a fim de manter viva a lembrança dos pousos. — Sua cadeira gemeu quando ele deslocou o peso para a frente, gesticulando com as mãos, uma das quais ainda segurava o livro. Seus olhos brilhavam mais do que nunca, e as orelhas quase estremeceram. — Na maioria das vezes eles utilizavam as árvores da terra e da região. Não se pode fazer a terra ir contra si mesma. Não por muito tempo; a terra se rebela. Você precisa moldar a visão à terra, não a terra à visão. Em cada bosque foi plantada cada árvore que cresceria e floresceria naquele lugar, cada uma equilibrada com relação à seguinte, cada qual colocada para complementar as outras, para o melhor crescimento, é claro, mas também de forma que o equilíbrio cantasse aos olhos e ao coração. Ah, os livros falavam de bosques que faziam Anciões chorarem e rirem ao mesmo tempo, bosques para permanecer verdes para sempre na memória.

— E quanto às cidades? — perguntou Rand. Loial lhe dirigiu um olhar intrigado. — As cidades. As cidades que os Ogier construíram. Aqui, por exemplo. Caemlyn. Foram Ogier que construíram Caemlyn, não foram? As histórias contam isso.

— Trabalhar com pedra… — Loial deu de ombros, um movimento enorme. — Foi algo que aprendemos nos anos após a Ruptura, durante o Exílio, quando ainda estávamos tentando reencontrar os pousos. É uma coisa boa, suponho, mas não é a coisa genuína. Por mais que você tente, e eu li que os Ogier que construíram as cidades realmente tentaram, não se consegue dar vida à pedra. Uns poucos ainda trabalham com pedra, mas apenas porque vocês humanos danificam os prédios tão frequentemente com suas guerras. Havia um punhado de Ogier em… ah… Cairhien, é como se chama agora… quando passei por lá. Por sorte eram de outro pouso, então não sabiam nada a meu respeito, mas mesmo assim ficaram desconfiados por eu estar Fora sozinho tão jovem. Suponho que tenha sido bom também não haver razão para eu ficar por lá. De qualquer maneira, trabalhar com pedra é simplesmente uma coisa que nos foi imposta pela trama do Padrão; os bosques vieram do coração.

Rand balançou a cabeça. Metade das histórias com as quais ele crescera havia acabado de vir abaixo.

— Eu não sabia que os Ogier acreditavam no Padrão, Loial.

— Claro que acreditamos. A Roda do Tempo tece o Padrão das Eras, e as vidas são os fios que ela tece. Ninguém sabe dizer como o fio de sua própria vida será tecido dentro do Padrão, ou como o fio de um povo será tecido. Ela nos deu a Ruptura do Mundo, e o Exílio, e a Pedra, e a Saudade, e acabou nos devolvendo os pousos antes que todos morrêssemos. Às vezes penso que a razão pela qual vocês humanos são do jeito que são é porque seus fios são tão curtos. Eles precisam pular no meio da trama. Ah, pronto, fiz de novo. Os Anciões dizem que vocês humanos não gostam de ser lembrados do tempo tão curto que vivem. Espero não ter ferido seus sentimentos.

Rand riu e balançou a cabeça.

— De jeito nenhum. Suponho que seria divertido viver tanto tempo quanto vocês, mas nunca pensei a respeito. Acho que viver tanto quanto o velho Cenn Buie já seria o bastante para qualquer um.

— Ele é um homem muito velho?

Rand apenas assentiu. Não ia explicar que o velho Cenn Buie não era tão velho quanto Loial.

— Bem — disse Loial —, talvez vocês humanos tenham de fato vidas curtas, mas fazem tanta coisa com elas, sempre pulando de um lado para outro, sempre tão apressados! E vocês têm o mundo inteiro para isso. Nós, Ogier, estamos presos aos nossos pousos.

— Você está Fora.

— Por algum tempo, Rand. Mas um dia terei de voltar. Este mundo é seu, seu e da sua espécie. Os pousos são meus. Aqui Fora há muito barulho e confusão. E tanta coisa mudou em relação ao que eu havia lido…

— Bem, as coisas mudam ao longo dos anos. Algumas, pelo menos.

— Algumas? Metade das cidades sobre as quais li não existe mais, e a maioria das restantes é conhecida por nomes diferentes. Cairhien, por exemplo. O nome adequado da cidade é Al’cair’rahienallen, Colina da Aurora Dourada. Eles nem sequer se lembram, apesar do nascer do sol em seus estandartes. E o bosque de lá? Duvido que ele tenha sido cuidado desde as Guerras dos Trollocs. É apenas outra floresta agora, onde eles cortam lenha. As Grandes Árvores desapareceram todas, e ninguém se lembra delas. E aqui? Caemlyn ainda é Caemlyn, mas eles deixaram a cidade crescer bem em cima do bosque. Não estamos nem a um quarto de milha do centro dele bem aqui onde estamos sentados… ou de onde o centro dele deveria estar. Não restou uma árvore sequer. Eu também estive em Tear e Illian. Nomes diferentes, e nenhuma lembrança. Só há pasto para seus cavalos onde ficava o bosque em Tear, e em Illian o bosque é o parque do Rei, onde ele caça seus cervos, e ninguém pode entrar sem a permissão dele. Tudo mudou, Rand. Tenho muito receio de encontrar a mesma coisa em todo lugar aonde for. Todos os bosques perdidos, todas as memórias perdidas, todos os sonhos mortos.

— Você não pode desistir, Loial. Não pode desistir jamais. Se desistisse, seria o mesmo que estar morto. — Rand afundou novamente em sua cadeira até onde podia ir, o rosto ficando vermelho. Ele esperou que o Ogier risse dele, mas em vez disso Loial concordou muito sério com um aceno de cabeça.

— Sim, é assim a sua espécie, não é? — A voz do Ogier mudou, como se ele estivesse citando alguém. — Até que os abrigos se vão, até que a água se vá, saltando na Sombra com os dentes à mostra, gritando em desafio com seu último fôlego, para cuspir no olho do Tira-visão no Último Dia. — Loial inclinou a cabeça peluda esperando algo, mas Rand não fazia ideia do quê.

Um minuto se passou com Loial esperando, depois outro, e suas sobrancelhas começaram a abaixar, intrigadas. Mas ele ainda assim ficou esperando, num silêncio cada vez mais incômodo para Rand.

— As Grandes Árvores — disse Rand finalmente, só para que alguma coisa quebrasse aquele silêncio —, elas são como Avendesora?

Loial se endireitou na cadeira de repente; a cadeira gemeu e rangeu tão alto que Rand achou que ela iria desmontar.

— Você sabe que não é isso. Logo você.

— Eu? Como é que eu iria saber?

— Está brincando comigo? Às vezes vocês do Deserto Aiel acham engraçadas as coisas mais estranhas.

— O quê? Eu não sou do Deserto Aiel! Eu sou dos Dois Rios. Eu nunca sequer vi um Aiel!

Loial balançou a cabeça, e os tufos em suas orelhas se projetaram para fora e para baixo.

— Está vendo? Está tudo mudado, e metade do que eu sei é inútil. Espero não tê-lo ofendido. Tenho certeza de que seus Dois Rios são um lugar muito bom, seja lá onde for.

— Alguém me contou — disse Rand — que ele um dia se chamou Manetheren. Eu nunca tinha ouvido falar, mas quem sabe você…

As orelhas do Ogier se agitaram, felizes.

— Ah! Sim. Manetheren. — Os tufos desceram novamente. — Havia um belo bosque lá. Sua dor canta no meu coração, Rand al’Thor. Nós não conseguimos chegar a tempo.

Loial fez uma mesura de onde estava, e Rand retribuiu o gesto. Ele suspeitava que Loial ficaria magoado se ele não o fizesse, pensaria que era no mínimo rude. Ficou imaginando se Loial achava que ele tinha o mesmo tipo de memória que os Ogier pareciam ter. Os cantos da boca e dos olhos de Loial estavam certamente voltados para baixo, como se ele estivesse compartilhando da dor da perda de Rand, como se a destruição de Manetheren não fosse algo ocorrido mais ou menos dois mil anos antes, algo de que Rand só sabia por causa da história de Moiraine.

Depois de algum tempo, Loial suspirou.

— A Roda gira — disse ele —, e ninguém conhece o seu giro. Mas você está quase tão longe de casa quanto eu. Uma distância bem considerável, do jeito que as coisas estão hoje. Quando os Caminhos eram abertos livremente, é claro… mas isso foi há muito tempo. Diga-me: o que o traz tão longe? Há alguma coisa que você queira ver também?

Rand abriu a boca para dizer que tinham vindo para ver o falso Dragão… e não conseguiu. Talvez fosse porque Loial agia como se não fosse mais velho do que Rand, noventa anos de idade ou não. Talvez para um Ogier noventa anos fosse o equivalente da idade dele. Fazia muito tempo desde que conseguira realmente conversar com alguém sobre o que estava acontecendo. Sempre havia o medo de que as pessoas fossem Amigos das Trevas, ou de que achassem que ele o era. Mat estava tão ensimesmado, alimentando seus temores com as próprias desconfianças, que não dava para conversar com ele. Rand se viu contando a Loial sobre a Noite Invernal. Não uma história vaga sobre Amigos das Trevas; mas a verdade sobre os Trollocs arrombando sua porta, e um Desvanecido na Estrada da Pedreira.

Parte dele sentia-se horrorizada com o que estava fazendo, mas era quase como se ele fosse duas pessoas, uma tentando segurar a língua enquanto a outra sentia apenas o alívio de ser capaz de finalmente contar tudo. O resultado foi que ele tropeçou, gaguejou e pulou de um lado para outro da história. Shadar Logoth e a perda de seus amigos na noite, sem saber se estavam vivos ou mortos. O Desvanecido em Ponte Branca, e Thom morrendo para que eles pudessem escapar. O Desvanecido em Baerlon. Amigos das Trevas depois, Howal Gode, e o garoto que tinha medo deles, e a mulher que tentara matar Mat. O Meio-homem do lado de fora da Ganso e Coroa.

Quando ele começou a falar sobre sonhos, mesmo a parte dele que queria desabafar sentiu os pelos se eriçarem na nuca. Ele se conteve e trincou os dentes. Respirando pesado pelo nariz, ficou observando o Ogier com desconfiança, torcendo para que ele achasse que se tratava de pesadelos. A Luz sabia que tudo aquilo soava como um pesadelo, ou o suficiente para dar pesadelos a qualquer um. Talvez Loial pensasse simplesmente que ele estava ficando louco. Talvez…

Ta’veren — disse Loial.

Rand piscou.

— O quê?

Ta’veren — Loial coçou atrás de uma das orelhas pontudas com um dedo grosso e deu de ombros levemente. — O Ancião Haman sempre dizia que eu nunca escutava, mas às vezes escutava sim. Às vezes eu escutava. Você sabe como o Padrão é tecido, sim?

— Nunca parei realmente para pensar nisso — disse Rand, devagar. — Ele simplesmente é.

— Sim, bem. Não exatamente. Sabe, a Roda do Tempo tece o Padrão das Eras, e os fios que ela utiliza são vidas. Não é fixo, o Padrão. Nem sempre. Se um homem tenta mudar a direção de sua vida, e o Padrão tem espaço para isso, a Roda simplesmente tece e acomoda isso. Sempre existe espaço para pequenas mudanças, mas às vezes o Padrão simplesmente não aceita uma mudança grande, não importa o quanto você tente. Entende?

Rand assentiu.

— Eu poderia viver na fazenda ou em Campo de Emond, e essa seria uma mudança pequena. Mas se eu quisesse ser um rei… — Ele deu uma risada, e Loial deu um sorriso que quase partiu seu rosto em dois. Seus dentes eram brancos, e do tamanho de cinzéis.

— Sim, é isso mesmo. Mas às vezes a mudança escolhe você, ou a Roda escolhe a mudança para você. E às vezes a Roda dobra um fio de vida, ou vários fios, de forma tal que todos os fios em volta são forçados a girar em torno deles, e os segundos forçam outros fios, que por sua vez forçam mais outros, e assim por diante. Aquela primeira dobra para compor a Teia, isso é ta’veren, e não há nada que você possa fazer para mudá-la, não até que o próprio Padrão mude. A Teia, ta’maral’ailen, como ela é chamada, pode durar semanas, ou anos. Pode envolver uma cidade, ou até mesmo todo o Padrão. Artur Asa-de-gavião era ta’veren. Lews Therin Fratricida também era, suponho. — Ele soltou uma risadinha retumbante. — O Ancião Haman teria orgulho de mim. Ele não parava de falar, e, apesar de os livros sobre viagens serem muito mais interessantes, eu escutava às vezes.

— Isso tudo é muito bom — disse Rand —, mas não entendo o que tem a ver comigo. Eu sou um pastor, não outro Artur Asa-de-gavião. Nem Mat, nem Perrin. Isso é simplesmente… ridículo.

— Eu não disse que você era, mas quase pude sentir o Padrão girando em torno de você ao ouvi-lo contar sua história, e eu não tenho nenhum Talento para isso. Você é ta’veren, sim. Você e talvez seus amigos também. — O Ogier fez uma pausa, esfregando pensativamente a ponta do nariz largo. Por fim ele assentiu para si mesmo como se tivesse chegado a uma decisão. — Eu quero viajar com você, Rand.

Por um minuto Rand ficou olhando fixamente para ele, perguntando-se se havia ouvido direito.

— Comigo?! — exclamou quando conseguiu falar. — Não ouviu o que eu disse a respeito de…? — Olhou subitamente para a porta. Ela estava bem fechada, e era espessa o bastante para que qualquer um que tentasse escutar do outro lado ouvisse apenas um murmúrio, mesmo com a orelha colada à madeira. Mesmo assim, ele continuou falando com voz baixa. — A respeito de quem está me caçando? Além do mais, pensei que você quisesse ir ver suas árvores.

— Há um bosque muito bom em Tar Valon, e me disseram que as Aes Sedai o mantêm bem cuidado. Além disso, não quero só ver as árvores. Talvez você não seja outro Artur Asa-de-gavião, mas, pelo menos durante algum tempo, parte do mundo irá se moldar ao seu redor. Talvez esteja se moldando ao seu redor neste exato momento. Até mesmo o Ancião Haman iria querer ver isso.

Rand hesitou. Seria bom ter mais alguém junto. Do jeito como Mat vinha se comportando, estar com ele era quase como estar sozinho. O Ogier era uma presença reconfortante. Talvez ele fosse jovem da maneira como os Ogier calculavam idade, mas ele parecia imóvel como uma rocha, como Tam. E Loial havia estado em todos aqueles lugares, e sabia sobre outros. Ele olhou para o Ogier, sentado ali com sua cara larga, o retrato da paciência. Sentado ali, e mais alto sentado que a maioria dos homens em pé. Como se esconde alguém com quase duas braças de altura? Ele suspirou e balançou a cabeça.

— Não acho que seja uma boa ideia, Loial. Mesmo que Moiraine nos encontre aqui, estaremos em perigo durante todo o caminho até Tar Valon. Se ela não nos encontrar… — Se ela não nos encontrar, então está morta, e todos os outros também. Oh, Egwene. Balançou com força a cabeça. Egwene não estava morta, e Moiraine os encontraria.

Loial olhou para ele com simpatia e tocou seu ombro.

— Tenho certeza de que seus amigos estão bem.

Rand assentiu em agradecimento. Sua garganta estava apertada demais para falar.

— Você pelo menos conversará comigo de vez em quando? — Loial suspirou, um som baixo, profundo. — E talvez me enfrente em um jogo de pedras? Não falo com ninguém há dias, com exceção do bom Mestre Gill, e ele está ocupado a maior parte do tempo. A cozinheira parece fustigá-lo sem dó nem piedade. Talvez ela é que seja de fato a dona da estalagem, não?

— Sim, claro. — A voz de Rand saiu rouca. Ele pigarreou, limpando a garganta, e tentou sorrir. — E se nos encontrarmos em Tar Valon você poderá me mostrar o bosque de lá. — Eles têm de estar bem. A Luz permita que estejam todos bem.

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