43 Decisões e Aparições

A Aes Sedai parecia saber o que Loial queria dizer, mas ficou quieta. Loial olhava para o chão, esfregando o nariz com um dedo grosso, como se estivesse envergonhado por sua explosão. Ninguém queria falar.

— Por quê? — Rand finalmente perguntou. — Por que nós morreríamos? O que são os Caminhos?

Loial olhou de esguelha para Moiraine, que se virou para pegar uma cadeira diante da lareira. O gatinho se espreguiçou, suas garras arranhando a pedra da lareira, e languidamente saiu dali para esfregar a cabeça nos tornozelos dela, que fez um carinho atrás das orelhas dele com um dedo. O ronronar do gato era um estranho contraponto à voz neutra da Aes Sedai.

— O conhecimento é seu, Loial. Os Caminhos são a única saída para nossa segurança, a única trilha para atrasar o Tenebroso, mesmo que só por um tempo, mas essa é uma história para você contar.

O Ogier não pareceu consolado. Mexeu-se desconfortavelmente em sua cadeira antes de começar.

— Durante o Tempo da Loucura, enquanto o mundo ainda estava em ruptura, a terra estava em revolta, e a humanidade estava sendo dispersa como poeira ao vento. Nós, Ogier, também fomos espalhados, afastados dos pousos, em Exílio e na Longa Peregrinação, quando a Saudade estava gravada em nossos corações. — Ele dirigiu a Moiraine outra olhada de lado. Suas sobrancelhas compridas encolheram-se, formando dois pontos. — Tentarei ser breve, mas isto não é algo que possa ser contado com tanta brevidade. Agora é dos outros que devo falar, os poucos Ogier que ficaram em seus pousos enquanto ao redor deles o mundo se despedaçava. E dos Aes Sedai — ele evitou olhar para Moiraine nesse ponto —, os Aes Sedai homens que morriam ao mesmo tempo que destruíam o mundo em sua loucura. Foi a esses Aes Sedai, os que até aquele momento haviam conseguido evitar a loucura, que os pousos primeiro fizeram a oferta de abrigo. Muitos aceitaram, pois nos pousos eles ficavam protegidos da mácula do Tenebroso que os estava matando. Mas eles perdiam o contato com a Fonte Verdadeira. O problema não era apenas não conseguir manipular o Poder Único, ou tocar a Fonte; eles não conseguiam mais sequer sentir que a Fonte existia. No fim, nenhum deles conseguiu aceitar aquele isolamento, e um a um foram deixando os pousos, torcendo para que àquela altura a mácula tivesse desaparecido. Isso nunca aconteceu.

— Há em Tar Valon — disse Moiraine baixinho — quem diga que o santuário oferecido pelos Ogier prolongou a Ruptura e a agravou. Outras dizem que, se todos aqueles homens tivessem podido enlouquecer ao mesmo tempo, não teria restado nada do mundo. Eu sou da Ajah Azul, Loial; ao contrário da Ajah Vermelha, somos da segunda opinião. O santuário ajudou a salvar o que podia ser salvo. Continue, por favor.

Loial assentiu, satisfeito. Aliviado dessa preocupação, Rand percebeu.

— Como eu estava dizendo — continuou o Ogier —, os Aes Sedai partiram. Mas, antes de ir embora, eles deram um presente aos Ogier em agradecimento pelo abrigo que lhes demos. Os Caminhos. Entre por um Portal dos Caminhos, caminhe durante um dia, e você pode sair por outro Portal dos Caminhos a cem milhas de onde começou. Ou a quinhentas. O tempo e a distância são estranhos nos Caminhos. Diferentes trilhas, diferentes pontes, levam a lugares diferentes, e o tempo que se leva para chegar lá depende da trilha que você pegar. Foi um presente maravilhoso, ainda mais nos tempos de então, pois os Caminhos não fazem parte do mundo que vemos ao nosso redor, nem talvez de nenhum mundo fora deles mesmos. Os Ogier não apenas foram presenteados por não terem de viajar pelo mundo, onde mesmo depois da Ruptura os homens lutavam como animais para viver, para alcançar outro pouso, como dentro dos Caminhos não havia Ruptura. A terra entre dois pousos podia se rachar e se abrir formando desfiladeiros profundos ou se erguer e se transformar em cordilheiras montanhosas, mas no Caminho entre elas não havia mudança.

“Quando os últimos Aes Sedai deixaram os pousos, eles deram aos Anciões uma chave, um talismã, que podia ser usado para semear e fazer crescer mais Caminhos. De certa forma eles são uma coisa viva, os Caminhos e os Portais dos Caminhos. Eu não entendo disso; nenhum Ogier jamais entendeu, e me disseram que mesmo as Aes Sedai esqueceram. Ao longo dos anos, o Exílio terminou para nós. Quando os Ogier que haviam recebido o presente dos Aes Sedai encontravam um pouso onde Ogier haviam retornado da Longa Peregrinação, eles criavam um Caminho até ele. Com a alvenaria que aprendemos durante o Exílio, construímos cidades para os homens e plantamos os bosques para consolar os Ogier que faziam a construção, para que a Saudade não os consumisse. Caminhos foram criados até esses bosques. Havia um bosque, e um Portal dos Caminhos, em Mafal Dadaranell, mas a cidade foi arrasada durante as Guerras dos Trollocs. Não sobrou pedra sobre pedra, e as árvores do bosque foram todas cortadas e queimadas para as fogueiras dos Trollocs. — Ele não deixou dúvidas sobre qual havia sido o maior crime.

— Os Portais dos Caminhos são praticamente impossíveis de destruir — disse Moiraine —, e a humanidade não fica muito atrás. Ainda há pessoas em Fal Dara, embora ela não seja mais a grande cidade que os Ogier construíram, e o Portal dos Caminhos ainda está lá.

— Como eles os construíram? — perguntou Egwene. Seu olhar intrigado foi tanto para Moiraine quanto para Loial. — Os Aes Sedai homens. Se não podiam usar o Poder Único num pouso, como conseguiram criar os Caminhos? Ou eles não usaram o Poder? A parte deles da Fonte Verdadeira estava maculada. Está maculada. Ainda não sei muita coisa do que Aes Sedai podem fazer. Talvez seja uma pergunta boba.

Loial explicou.

— Cada pouso tem um Portal dos Caminhos em seus limites, mas do lado de fora. Sua pergunta não é boba. Você encontrou a raiz de por que não ousamos viajar pelos Caminhos. Nenhum Ogier usou os Caminhos no meu tempo de vida, e mesmo antes. Por edito dos Anciões, de todos os Anciões de todos os pousos, ninguém pode, humano ou Ogier.

“Os Caminhos foram feitos por homens que usavam o Poder maculado pelo Tenebroso. Cerca de mil anos atrás, durante o que vocês humanos chamam de Guerra dos Cem Anos, os Caminhos começaram a mudar. Tão devagar no começo que ninguém realmente notou, eles foram ficando mais frios, úmidos e escuros. Então a escuridão caiu ao longo das pontes. Alguns dos que entravam jamais eram vistos novamente. Viajantes falavam de serem observados da escuridão. Os desaparecimentos se tornavam mais numerosos, e alguns que escapavam saíam enlouquecidos, devaneando sobre Machin Shin, o Vento Negro. Curandeiras Aes Sedai conseguiram ajudar alguns, mas, mesmo com essa ajuda, eles nunca mais foram os mesmos. E nunca se lembraram de nada do que havia acontecido. E no entanto foi como se a escuridão se tivesse infundido em seus ossos. Eles nunca mais voltaram a rir, e temiam o som do vento.”

Por um momento houve silêncio, com a exceção do ronronar do gato ao lado da cadeira de Moiraine e do crepitar do fogo soltando fagulhas. E então Nynaeve explodiu num arroubo de raiva:

— E você espera que nós sigamos com você para esse lugar? Você deve estar louca!

— O que você escolheria então? — perguntou Moiraine baixinho. — Os Mantos-brancos dentro de Caemlyn ou os Trollocs lá fora? Lembre-se de que só a minha presença já confere uma certa proteção contra as obras do Tenebroso.

Nynaeve se recostou com um suspiro exasperado.

— Você ainda não me explicou — disse Loial — por que eu deveria violar o edito dos Anciões. E não tenho qualquer desejo de entrar nos Caminhos. Lamacentas que sejam, as estradas que os homens fazem têm me servido bem o bastante desde que deixei o Pouso Shangtai.

— Humanidade e Ogier, tudo o que vive está em guerra com o Tenebroso — disse Moiraine. — A maior parte do mundo nem sequer sabe disso ainda, e a maioria dos poucos que sabem combate em escaramuças e acredita que elas são batalhas. Enquanto o mundo se recusa a acreditar, o Tenebroso pode estar à beira da vitória. Existe poder suficiente no Olho do Mundo para libertá-lo de sua prisão. Se o Tenebroso tiver encontrado algum jeito de usar o Olho do Mundo a seu favor…

Rand queria que os lampiões do aposento estivessem acesos. A noite caía sobre Caemlyn, e o fogo da lareira não fornecia luz suficiente. Ele não queria sombras na sala.

— O que podemos fazer? — interrompeu Mat bruscamente. — Por que somos tão importantes? Por que temos de ir até a Praga? A Praga!

Moiraine não levantou a voz, mas esta preencheu o aposento, impossível de ignorar. Sua cadeira à beira do fogo subitamente parecia um trono. Até mesmo Morgase teria empalidecido em sua presença.

— Uma coisa nós podemos fazer. Podemos tentar. O que parece acaso muitas vezes é o Padrão. Três fios se juntaram aqui, cada um dando um aviso: o Olho. Não pode ser acaso; é o Padrão. Vocês três não escolheram; vocês foram escolhidos pelo Padrão. E vocês estão aqui, onde o perigo é conhecido. Vocês podem não agir, e talvez condenar o mundo. Fugir, esconder-se, não salvará vocês da trama do Padrão. Vocês podem tentar. Podem ir até o Olho do Mundo, três ta’veren, três pontos centrais da Teia, no lugar onde está o perigo. Deixem o Padrão ser tecido ao redor de vocês lá, e vocês podem salvar o mundo da Sombra. A escolha é de vocês. Eu não posso forçá-los a ir.

— Eu vou — disse Rand, tentando soar decidido. Por mais tenazmente que procurasse o vazio, imagens não paravam de passar por sua cabeça. Tam, a casa da fazenda e o rebanho no pasto. Havia sido uma vida boa; ele nunca quisera de fato nada além daquilo. Sentiu consolo, um pequeno consolo, em ouvir Perrin e Mat se juntarem a ele em concordância. Pareciam estar com a boca tão seca quanto a dele.

— Suponho que não haja escolha para Egwene, nem para mim — disse Nynaeve.

Moiraine assentiu.

— Vocês fazem parte do Padrão também, as duas, de certa forma. Talvez não ta’veren. Talvez. Mas são fortes mesmo assim. Sei disso desde Baerlon. E sem dúvida desta vez os Desvanecidos também sabem. E Ba’alzamon. Entretanto, vocês têm tanta opção quanto os rapazes. Podem permanecer aqui e prosseguir até Tar Valon depois que o resto de nós tiver partido.

— Ficar para trás! — exclamou Egwene. — Deixar o resto de vocês correr perigo enquanto nos escondemos embaixo das cobertas? De jeito nenhum! — Ela encarou o olhar da Aes Sedai e recuou um pouco, mas nem todo o seu ar desafiador desapareceu. — De jeito nenhum — murmurou, teimosa.

— Suponho que isso significa que nós duas acompanharemos vocês. — Nynaeve parecia resignada, mas seus olhos brilharam quando ela acrescentou: — Você ainda precisa das minhas ervas, Aes Sedai, a menos que tenha subitamente adquirido alguma habilidade da qual não sei. — Sua voz tinha uma atitude desafiadora que Rand não entendeu, mas Moiraine se limitou a assentir e virou-se para o Ogier.

— Bem, Loial, filho de Arent filho de Halan?

Loial abriu a boca duas vezes, as orelhas peludas tremelicando, antes de falar.

— Sim… bem… O Homem Verde. O Olho do Mundo. Eles são mencionados nos livros, é claro, mas não acho que algum Ogier os tenha realmente visto em, hã, um bom tempo. Suponho… Mas precisa ser pelos Caminhos? — Moiraine assentiu, e suas sobrancelhas compridas caíram até as pontas baterem nas bochechas. — Muito bem, então. Suponho que deva guiar vocês. O Ancião Haman diria que não mereço menos que isso por ser tão ansioso o tempo todo.

— Nossas escolhas estão feitas, então — disse Moiraine. — E, agora que elas foram feitas, precisamos decidir o que fazer a respeito delas, e como.

Planejaram por muito tempo noite adentro. Moiraine fez a maior parte do planejamento, com os conselhos de Loial em relação aos Caminhos, mas escutou perguntas e sugestões de todos. Assim que a escuridão caiu, Lan se juntou a eles, acrescentando seus comentários naquele tom férreo. Nynaeve fez uma lista dos suprimentos de que necessitavam, mergulhando sua pena no tinteiro com mão firme, apesar de o tempo todo resmungar baixinho.

Rand queria ser tão pragmático quanto a Sabedoria. Não conseguia parar de andar para cima e para baixo, como se tivesse energia para queimar ou explodir com ela. Sabia que sua decisão estava tomada, sabia que era a única que ele podia tomar com o conhecimento de que dispunha, mas isso não fazia com que gostasse daquilo. A Praga. Shayol Ghul ficava em algum lugar na Praga, além das Terras Devastadas.

Ele podia ver a mesma preocupação nos olhos de Mat, o mesmo medo que ele sabia ser visível nos seus próprios. Mat estava sentado, apertando as mãos. Os dedos estavam brancos. Se ele as soltasse, Rand pensou, agarraria a adaga de Shadar Logoth.

Não havia a menor preocupação no rosto de Perrin, mas o que havia ali era pior: uma máscara de resignação cansada. Era como se Perrin tivesse lutado contra alguma coisa até não poder mais e estivesse apenas esperando que ela acabasse com ele. E, no entanto, às vezes…

— Nós fazemos o que é necessário, Rand — disse ele. — A Praga… — Por um instante aqueles olhos amarelos se iluminaram, ávidos, clarões no cansaço constante de seu rosto, como se tivessem vida própria, independente do corpulento aprendiz de ferreiro. — Há caça boa ao longo da Praga — sussurrou ele. Depois estremeceu, como se tivesse se dado conta do que dissera, e mais uma vez seu rosto voltou à resignação.

E Egwene. Rand puxou-a de lado a certa altura, até o lado da lareira, onde os que planejavam ao redor da mesa não poderiam ouvir.

— Egwene, eu… — Os olhos dela, como grandes lagos escuros a atraí-lo, fizeram-no parar e engolir em seco. — É de mim que o Tenebroso está atrás, Egwene. De mim, Mat e Perrin. Não quero saber o que Moiraine Sedai diz. De manhã, você e Nynaeve podem ir para casa, ou para Tar Valon, ou para onde quer que queiram ir, e ninguém tentará impedir vocês. Nem os Trollocs, nem os Desvanecidos, nem ninguém. Desde que vocês não estejam conosco. Vá para casa, Egwene. Ou para Tar Valon. Mas vá.

Ele esperou que ela lhe dissesse que tinha tanto direito de ir para onde queria quanto ele, que ele não tinha o direito de lhe dizer o que fazer. Para sua surpresa, ela sorriu e tocou seu rosto.

— Obrigada, Rand — disse baixinho. Ele piscou e fechou a boca enquanto ela continuava. — Mas você sabe que eu não posso. Moiraine Sedai nos disse o que Min viu em Baerlon. Você devia ter me dito quem era Min. Eu achei… Bem, Min diz que eu também faço parte disso. E Nynaeve. Talvez eu não seja ta’veren — ela se atrapalhou com a palavra —, mas o Padrão me manda para o Olho do Mundo também, ao que parece. O que quer que envolva você me envolve também.

— Mas, Egwene…?

— Quem é Elayne?

Por um momento ele ficou olhando fixamente para ela, e então contou a verdade.

— A Filha-herdeira do trono de Andor.

Os olhos dela pareceram se incendiar.

— Se você não consegue falar sério por mais de um minuto, Rand al’Thor, não quero mais falar com você.

Incrédulo, ele a viu, rígida, retornar à mesa, onde se apoiou nos cotovelos perto de Moiraine para escutar o que o Guardião dizia. Preciso falar com Perrin, pensou Rand. Ele sabe como lidar com as mulheres.

Mestre Gill entrou diversas vezes, primeiro para acender os lampiões, depois para trazer comida pessoalmente, e mais tarde para relatar o que estava acontecendo lá fora. Mantos-brancos estavam vigiando a estalagem de duas posições: mais acima e mais abaixo na rua. Havia acontecido um tumulto nos portões que davam para a Cidade Interna, com os Guardas da Rainha prendendo tanto rosetas brancas quanto vermelhas. Alguém havia tentado talhar a Presa do Dragão na porta da frente e fora despachado pela bota de Lamgwin.

Se o estalajadeiro achava estranho que Loial estivesse com eles, não deu a entender. Respondeu as poucas perguntas que Moiraine lhe fez sem tentar descobrir o que eles estavam planejando, e, a cada vez que aparecia, batia na porta e esperava que Lan a abrisse, como se a estalagem e a biblioteca não fossem dele. Em sua última visita, Moiraine lhe deu a folha de pergaminho preenchida pela letra bonita de Nynaeve.

— Não será fácil, a esta hora da noite — disse ele, balançando a cabeça enquanto corria os olhos pela lista —, mas eu consigo arranjar tudo.

Moiraine acrescentou uma sacolinha de couro surrado, que tilintou quando a entregou a ele pelos cordões.

— Ótimo. E cuide para que sejamos acordados antes do dia nascer. Os vigias estarão menos alertas.

— Vamos deixá-los vigiando uma toca vazia, Aes Sedai. — Mestre Gill sorriu.

Rand bocejava quando saiu do aposento arrastando as pernas com os outros em busca de banho e cama. Enquanto se limpava esfregando o corpo com um pedaço de tecido áspero em uma das mãos e uma grande barra de sabão amarelo na outra, seus olhos vagaram até a banqueta ao lado da banheira de Mat. A ponta da bainha dourada da adaga de Shadar Logoth espiava de sob a ponta do casaco bem dobrado de Mat. Lan também olhava de relance para ela de vez em quando. Rand se perguntou se era realmente tão seguro assim tê-la por perto como Moiraine afirmava.

— Você acha que meu pai vai acreditar nisso? — Mat deu uma gargalhada, esfregando as costas com uma escova de cabo comprido. — Eu, salvando o mundo? Minhas irmãs não vão saber se riem ou se choram.

Ele falava como o velho Mat. Rand queria poder esquecer a adaga.

Estava escuro como breu quando ele e Mat finalmente subiram até seu quarto no sótão, as estrelas ocultas pelas nuvens. Pela primeira vez em muito tempo Mat tirou a roupa antes de se deitar, mas também enfiou casualmente a adaga embaixo do travesseiro. Rand apagou a vela e deitou-se. Ele conseguia sentir que havia algo errado na outra cama, não em Mat, mas embaixo de seu travesseiro. Ainda se preocupava com isso quando o sono chegou.

Desde o primeiro instante ele percebeu que era um sonho, um daqueles que não eram inteiramente sonhos. Estava em pé, olhando para a porta de madeira, com a superfície escura, rachada e toda lascada. O ar era frio e úmido, pesado, com o cheiro de matéria em decomposição. Ao longe, o ruído de água gotejando, os pingos nas poças produzindo ecos ocos pelos corredores de pedra.

Negue-o. Negue-o, e o poder dele falhará.

Ele fechou os olhos e se concentrou na Bênção da Rainha, em sua cama, em si mesmo dormindo na cama. Quando abriu os olhos, a porta ainda estava lá. Os ecos da água começaram a combinar com as batidas do seu coração, como se sua pulsação estivesse marcando o compasso deles. Procurou a chama e o vazio, conforme Tam lhe ensinara, e encontrou tranquilidade interior, mas nada fora dele havia mudado. Devagar, abriu a porta e entrou.

Tudo estava como ele se lembrava no aposento que parecia escavado a fogo na rocha. Janelas altas em arco davam para uma varanda sem sacada, e além dela as camadas de nuvens corriam como um rio na cheia. Os lampiões de metal preto, suas chamas brilhantes demais para os olhos, reluziam, pretos e no entanto de algum modo tão brilhantes quanto se fossem de prata. O fogo rugia mas não emitia calor na apavorante lareira, onde cada pedra parecia vagamente um rosto atormentado.

Tudo estava igual, mas havia uma coisa diferente: sobre o tampo polido da mesa, três pequenas figuras, as formas toscas e sem feições de homens, como se o escultor, apressado, não tivesse finalizado o trabalho com a argila. Ao lado de uma delas havia um lobo, seus detalhes nítidos enfatizados pela crueza da forma do homem, e outro segurava uma minúscula adaga, um ponto vermelho no cabo reluzindo na luz. O último empunhava uma espada. Os pelos da nuca se arrepiando, Rand se aproximou o suficiente para ver a garça em riqueza de detalhes na pequena lâmina.

Ele levantou a cabeça em pânico e encarou diretamente o espelho solitário. Seu reflexo era ainda um borrão, mas não tão nebuloso quanto antes. Ele quase conseguia ver as próprias feições. Se imaginasse que estava forçando bem a vista, quase poderia dizer quem era.

— Você se escondeu de mim por tempo demais.

Ele girou nos calcanhares, a respiração presa na garganta. Um instante antes estava sozinho, mas naquele momento Ba’alzamon encontrava-se diante das janelas. Quando ele falava, cavernas de chamas substituíam seus olhos e sua boca.

— Tempo demais, mas não muito mais tempo.

— Eu renego você — disse Rand com a voz rouca. — Eu nego que você tenha qualquer poder sobre mim. Eu nego a sua existência.

Ba’alzamon riu, um som rico que vinha de dentro do fogo.

— Você acha que é assim tão fácil? Você sempre pensou assim. Todas as vezes que nos defrontamos, você achou que podia me desafiar.

— Como assim todas as vezes? Eu renego você!

— Você sempre renega. No começo. Esta disputa entre nós já aconteceu incontáveis vezes. A cada vez seu rosto é diferente, e seu nome também, mas é você a cada uma delas.

— Eu renego você. — Era um sussurro desesperado.

— Todas as vezes você volta sua força patética contra mim, e a cada vez, no fim, você sabe qual de nós dois é o senhor. Era após Era, você se ajoelha aos meus pés, ou morre desejando que ainda tivesse forças para se ajoelhar. Pobre tolo, você nunca conseguirá me vencer.

— Mentiroso! — gritou Rand. — Pai das Mentiras. Pai dos Tolos se não consegue fazer melhor que isso. Os homens encontraram você na última Era, na Era das Lendas, e o prenderam no seu lugar novamente.

Ba’alzamon tornou a rir, um riso de escárnio que soava como badaladas de um sino, tão altas que Rand desejou tampar os ouvidos para não ouvir mais. Forçou as mãos a permanecerem ao lado do corpo. Com ou sem vazio, elas estavam tremendo quando as risadas finalmente pararam.

— Seu verme, você não sabe absolutamente nada. Tão ignorante quanto um besouro embaixo de uma pedra, e igualmente fácil de esmagar. Esta luta tem se dado desde o momento da criação. Os homens sempre pensam se tratar de uma guerra nova, mas é simplesmente a mesma guerra redescoberta. Mas agora a mudança sopra nos ventos do tempo. Mudança. Desta vez não há volta. Aquelas Aes Sedai orgulhosas que pensam em colocar você contra mim. Eu as acorrentarei e as porei para correr nuas cumprindo as minhas ordens, ou enviarei suas almas para o Poço da Perdição para que gritem por toda a eternidade. Todas, a não ser aquelas que já servem a mim. Estas ficarão apenas um degrau abaixo de mim. Você pode escolher se juntar a elas, com o mundo rastejando aos seus pés. Ofereço mais uma vez, uma última vez. Você pode ficar acima delas, acima de cada poder e domínio, à minha exceção. Houve ocasiões em que você fez essa escolha, ocasiões em que você viveu o suficiente para conhecer seu poder.

Negue-o! Rand agarrou-se ao que podia negar.

— Nenhuma Aes Sedai serve a você. Outra mentira!

— Foi isso o que elas lhe disseram? Há dois mil anos percorri o mundo com meus Trollocs, e até entre Aes Sedai eu encontrei quem conhecesse o desespero, quem soubesse que o mundo não podia resistir a Shai’tan. Por dois mil anos a Ajah Negra caminhou entre as outras, invisível nas sombras. Talvez até mesmo as que afirmam ajudar você.

Rand sacudiu a cabeça, tentando afastar as dúvidas que surgiam dentro dele, todas as dúvidas que tinha a respeito de Moiraine, sobre o que a Aes Sedai queria dele, sobre o que ela planejava para ele.

— O que você quer de mim? — gritou. Negue-o! A Luz me ajude a negá-lo!

— Ajoelhe-se! — Ba’alzamon apontou para o chão a seus pés. — Ajoelhe-se e me reconheça como seu senhor! No fim, você fará isso. Você será minha criatura, ou conhecerá a morte.

A última palavra ecoou pelo aposento, reverberando de volta a si mesma, duplicando e replicando, até Rand levantar as mãos como se para proteger a cabeça de um golpe. Cambaleando para trás até bater na mesa, ele gritou, tentando afogar o som em seus ouvidos.

— Nããããããão!

Ao gritar, ele girou, derrubando as figuras no chão. Alguma coisa espetou sua mão, mas ele ignorou, pisando a argila até as figuras aos seus pés se tornarem manchas disformes. Mas, quando seu grito falhou, o eco ainda estava lá, cada vez mais forte:

morte-morte-morte-morte-morte-Morte-Morte-Morte-Morte-Morte-MORTE-MORTE-MORTE-MORTE-MORTE

O som o puxou como um redemoinho, atraindo-o, despedaçando o vazio em sua mente. A luz enfraqueceu, e sua visão se estreitou até formar um túnel com Ba’alzamon em pé no último ponto brilhante, lá no fim, diminuindo até o tamanho de sua mão, uma unha, o nada. O eco turbilhonava ao seu redor, tragando-o rumo à escuridão e à morte.

Quando ele atingiu o chão, o impacto o despertou, ainda lutando para nadar e sair daquela escuridão. O quarto estava escuro, mas não tão escuro assim. Freneticamente, ele tentou se concentrar na chama, jogou o medo dentro dela, mas a calma do vazio lhe escapava. Tremores percorreram seus braços e pernas, mas ele manteve a imagem da chama única até o sangue parar de pulsar nos ouvidos.

Mat estava se revirando na cama, gemendo enquanto dormia.

— Eu nego você, nego você, nego você… — As palavras foram se extinguindo até se tornarem gemidos ininteligíveis.

Rand estendeu a mão para acordá-lo com uma sacudidela, e ao primeiro toque Mat se sentou com um grunhido estrangulado. Por um momento Mat ficou olhando ao redor como um louco, depois respirou fundo e estremeceu, levando as mãos à cabeça. Subitamente ele se virou, enfiando as mãos embaixo do travesseiro, depois se afundou na cama, segurando a adaga com cabo de rubi de encontro ao peito. Virou a cabeça para olhar para Rand, o rosto oculto nas sombras.

— Ele voltou, Rand.

— Eu sei.

Mat assentiu.

— Havia três figuras…

— Eu também vi.

— Ele sabe quem eu sou, Rand. Eu apanhei a que tinha a adaga, e ele disse: “Então esse é você.” E, quando voltei a olhar, a figura tinha o meu rosto. O meu rosto, Rand! Ela parecia de carne. Eu sentia como se fosse feita de carne. A Luz me ajude, eu podia sentir minha própria mão me segurando, como se eu fosse a figura.

Rand ficou em silêncio por um instante.

— Você precisa continuar a negá-lo, Mat.

— Eu fiz isso, e ele riu. Não parava de falar a respeito de uma tal de guerra eterna, e dizia que nós havíamos nos encontrado umas mil vezes antes, e… Luz, Rand, o Tenebroso sabe quem eu sou.

— Ele me disse a mesma coisa. Não acho que ele saiba — acrescentou lentamente. — Acho que ele não sabe qual de nós… — Qual de nós o quê?

Ao se levantar, sentiu uma pontada de dor na mão. Aproximando-se da mesa, ele conseguiu acender a vela depois de três tentativas, e abriu a mão espalmada à luz. Havia uma lasca grossa de madeira escura enfiada na palma, lisa e polida de um dos lados. Ele ficou olhando fixamente para ela, sem respirar. Bruscamente, estava ofegante, puxando a lasca, atrapalhando-se na pressa.

— Qual é o problema? — perguntou Mat.

— Nada.

Por fim ele conseguiu segurá-la e, com um puxão forte, a arrancou. Soltando um grunhido enojado, ele a deixou cair, mas o grunhido engasgou em sua garganta. Assim que a lasca deixou seus dedos, ela desapareceu.

Mas a ferida ainda estava em sua mão, sangrando. Havia água no jarro de pedra. Ele encheu a bacia, as mãos tremendo tanto que ele derramou água na mesa. Lavou as mãos apressadamente, apertando a palma até o polegar arrancar mais sangue, depois tornou a lavá-la. Estava aterrorizado só de pensar que uma farpa mínima que fosse pudesse ter permanecido em sua pele.

— Luz — disse Mat —, ele também me fez sentir sujo. — Mas ainda assim ficou onde estava, segurando a adaga com ambas as mãos.

— Sim — disse Rand. — Sujo. — Ele pegou desajeitadamente uma toalha de cima da pilha ao lado da bacia. Bateram à porta, e ele deu um pulo. Bateram novamente. — Sim? — perguntou.

Moiraine enfiou a cabeça dentro do quarto.

— Vocês já estão acordados. Ótimo. Vistam-se e desçam. Precisamos sair antes de começar a amanhecer.

— Agora? — Mat gemeu. — Ainda não dormimos nem uma hora.

— Uma hora? — disse ela. — Vocês dormiram quatro. Agora depressa. Não temos muito tempo.

Rand trocou um olhar confuso com Mat. Podia se lembrar com clareza de cada segundo do sonho. Ele havia começado assim que fechara os olhos, e durara apenas minutos.

Moiraine devia ter captado alguma coisa naquela troca de olhares. Ela lhes dirigiu um olhar penetrante e entrou no quarto.

— O que aconteceu? Os sonhos?

— Ele sabe quem eu sou — disse Mat. — O Tenebroso conhece o meu rosto.

Rand ergueu a mão sem dizer uma só palavra, a palma voltada para ela. Mesmo à escassa luz de uma só vela o sangue era bem visível.

A Aes Sedai deu um passo à frente e segurou a mão estendida, passando o polegar pela palma da mão dele, cobrindo a ferida. Um frio o atravessou até os ossos, tão gelado que os dedos dele se contraíram numa câimbra e ele precisou lutar para mantê-los abertos. Quando ela retirou seus dedos, o frio também desapareceu.

Então ele virou a mão, atordoado, e esfregou a fina mancha de sangue até sair. A ferida havia sumido. Lentamente ele ergueu a cabeça para olhar nos olhos da Aes Sedai.

— Depressa — disse ela baixinho. — O tempo está se esgotando.

Ele sabia que ela não estava mais falando da hora de partirem.

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