14 Cervo e Leão

Lá dentro, a estalagem era tão movimentada quanto os sons que vinham dela tinham dado a entender, senão mais. O grupo de Campo de Emond seguiu Mestre Fitch pela porta dos fundos, e logo se viram ziguezagueando em meio a um fluxo constante de homens e mulheres de aventais compridos, carregando no alto pratos de comida e bandejas de bebida. Os carregadores murmuravam desculpas quando entravam no caminho de alguém, mas nunca reduziam a velocidade um passo sequer. Um dos homens recebeu ordens apressadas de Mestre Fitch e desapareceu numa carreira.

— Receio que a estalagem esteja quase lotada — disse o estalajadeiro a Moiraine. — Quase até as vigas do teto. Todas as estalagens da cidade estão na mesma situação. Com o inverno que acabamos de ter… bem, assim que ele abrandou o suficiente para eles descerem das montanhas, fomos inundados… isso mesmo, esta é a palavra certa: inundados de homens das minas e fundições, todos contando as histórias mais horríveis. Lobos e coisas piores. O tipo de história que os homens contam quando ficam confinados o inverno inteiro. Acho que não restou mais ninguém lá em cima de tanta gente que temos aqui. Mas não temam. O lugar está meio lotado, mas farei meu melhor pela senhora e por Mestre Andra. E por seus amigos também, é claro. — Olhou curiosamente uma ou duas vezes para Rand e os outros; exceto por Thom, as roupas deles os entregavam como gente do campo, e o manto de menestrel de Thom também o tornava um estranho companheiro de viagem para a “Senhora Alys” e “Mestre Andra”. — Farei o meu melhor, podem ficar descansados.

Rand ficou olhando o frenesi ao redor deles e tentou evitar que lhe pisassem os pés, embora não parecesse haver risco algum que os ajudantes fizessem isso. Pensou em como Mestre al’Vere e a esposa cuidavam da Estalagem Fonte de Vinho, às vezes com um pouco de ajuda das filhas.

Mat e Perrin esticaram o pescoço com interesse na direção do salão, do qual vinha uma onda de risos, cantoria e gritos joviais sempre que a porta grande no fim do corredor se abria. Resmungando algo sobre ficar sabendo das novidades, o Guardião desapareceu, taciturno, por aquela porta, engolido por uma onda de alegria.

Rand queria ir atrás dele, mas ansiava ainda mais por um banho. Teria gostado de ver pessoas e risos naquele instante, mas o salão apreciaria mais sua presença quando ele estivesse limpo. Mat e Perrin aparentemente se sentiam da mesma forma; Mat se coçava discretamente.

— Mestre Fitch — começou Moiraine —, fiquei sabendo que há Filhos da Luz em Baerlon. Alguma chance de haver problemas?

— Ah, não se preocupe com eles, Senhora Alys. Estão por aí com seus truques de costume. Afirmam que há uma Aes Sedai na cidade. — Moiraine ergueu uma sobrancelha, e o estalajadeiro abriu as mãos gorduchas. — Mas a senhora não se preocupe. Eles já tentaram isso antes. Não existem Aes Sedai em Baerlon, e o Governador sabe disso. Os Mantos-brancos pensam que, se mostrarem uma Aes Sedai, alguma mulher que eles afirmem ser uma Aes Sedai, as pessoas deixarão que todos venham para dentro das muralhas. Bem, suponho que alguns deixariam. Sim, alguns deixariam. Mas a maioria das pessoas sabe o que os Mantos-brancos realmente querem, e elas apoiam o Governador. Ninguém quer ver uma velhinha indefesa qualquer machucada só para que os Filhos possam ter uma desculpa para sair por aí criando confusão.

— Fico feliz em ouvir isso — disse Moiraine com secura. Ela pôs uma das mãos no braço do estalajadeiro. — Min ainda está por aqui? Se estiver, gostaria de falar com ela.

Rand perdeu a resposta de Mestre Fitch visto que chegavam os ajudantes para levá-los aos banhos. Moiraine e Egwene desapareceram por trás de uma mulher gorda com um sorriso pronto e um monte de toalhas nos braços. O menestrel, Rand e seus amigos acabaram indo atrás de um sujeito magro de cabelos escuros, chamado Ara.

Rand tentou perguntar a Ara sobre Baerlon, mas o homem mal encadeava duas palavras, a não ser para observar que ele tinha um sotaque engraçado, e então a primeira visão da sala de banhos afastou toda a vontade de conversar da cabeça de Rand. Uma dúzia de altas banheiras de cobre posicionava-se em círculo no chão de ladrilhos, que se inclinava suavemente até um ralo no centro da grande sala de paredes de pedra. Numa banqueta atrás de cada banheira viam-se uma toalha grossa, cuidadosamente dobrada, e um grande pedaço de sabão amarelo. Ao longo de uma parede, grandes caldeirões de ferro preto esquentavam água em fogareiros. Do lado oposto, troncos queimando numa lareira profunda aumentavam o calor do ambiente.

— Quase tão bom quanto a Estalagem Fonte de Vinho — disse Perrin lealmente, ainda que sem grande compromisso com a verdade.

Thom deu uma gargalhada, e Mat zombou:

— Parece que trouxemos um Coplin conosco sem saber.

Rand tirou o manto e as roupas enquanto Ara enchia quatro das banheiras de cobre. Nenhum dos outros ficou muito atrás de Rand na hora de escolher uma banheira. Assim que as roupas estavam todas empilhadas nas banquetas, Ara trouxe para cada um deles um balde grande de água quente e uma concha. Isso feito, ele se sentou em uma banqueta ao lado da porta, recostando-se na parede com os braços cruzados, aparentemente perdido nos próprios pensamentos.

Pouco se conversou enquanto eles esfregavam e ensaboavam uma semana de sujeira com conchas de água bem quente. Depois, entraram nas banheiras para uma longa imersão. Ara havia deixado a água quente o bastante para que o ato de se acomodar nas banheiras fosse um lento processo de suspiros luxuriantes. O ar na sala passou de morno para enevoado e quente. Por muito tempo não se ouviu nenhum som a não ser a ocasional exalação lenta e relaxante enquanto músculos tensos se soltavam e um frio que eles já tinham começado a achar que seria permanente deixava seus ossos.

— Precisam de mais alguma coisa? — perguntou Ara subitamente. Ele não tinha muita autoridade para falar do sotaque dos outros; a impressão que se tinha ao ouvi-lo, assim como a Mestre Fitch, era que falavam com a boca cheia de algodão. — Mais toalhas? Mais água quente?

— Nada — disse Thom em sua voz reverberante. De olhos fechados, ele acenou, indolente, com a mão. — Pode ir aproveitar a noite. Mais tarde cuidarei para que você receba uma recompensa mais do que adequada pelos seus serviços. — Ele se acomodou mais baixo na banheira, até a água cobrir tudo menos seus olhos e seu nariz.

Os olhos de Ara seguiram até as banquetas atrás das banheiras, onde as roupas e os pertences deles estavam empilhados. Ele olhou de relance para o arco, mas se deteve por mais tempo na espada de Rand e no machado de Perrin.

— Há problemas lá para as bandas de baixo também? — perguntou ele bruscamente. — Nos Rios, ou seja lá como vocês chamam aquele lugar?

— Os Dois Rios — disse Mat, pronunciando cada palavra de modo distinto. — É Dois Rios. Quanto a problemas, por que…

— Como assim também? — perguntou Rand. — Há algum tipo de problema aqui?

Perrin, desfrutando de sua imersão, murmurou:

— Que bom! Que bom!

Thom se ergueu um pouco e abriu os olhos.

— Aqui? — Ara bufou. — Problemas? Mineiros trocando socos nas ruas altas horas da manhã não são problema. Nem… — Ele parou e os fitou por um momento. — Eu me referia ao tipo de problema de Ghealdan — disse ele finalmente. — Não, acho que não. Não há nada a não ser ovelhas lá para baixo, não é? Sem querer ofender. Só quis dizer que lá embaixo é tudo bem tranquilo. Mesmo assim, está sendo um inverno estranho. Coisas estranhas nas montanhas. Outro dia ouvi dizer que havia Trollocs em Saldaea. Mas lá são as Terras da Fronteira, não são? — Ele terminou com a boca ainda aberta, então a fechou bruscamente, parecendo surpreso por ter falado tanto.

Rand havia ficado tenso com a palavra Trollocs, e tentou esconder isso torcendo sua toalha por cima da cabeça. Enquanto o sujeito falava ele relaxou, mas nem todo mundo manteve a boca fechada.

— Trollocs? — Mat riu. Rand jogou água nele, mas Mat simplesmente a enxugou do rosto com um sorriso. — Deixe eu lhe contar sobre Trollocs.

Pela primeira vez desde que entrara na banheira, Thom falou:

— Por que não nos poupa? Estou um pouco cansado de ouvir minhas próprias histórias recontadas por você.

— Ele é um menestrel — explicou Perrin, e Ara lhe lançou um olhar de escárnio.

— Eu vi o manto. Você vai se apresentar?

— Só um minuto — protestou Mat. — Que história é essa de eu contar as histórias de Thom? Vocês estão todos…?

— Você só não conta tão bem quanto ele — interrompeu-o Rand rapidamente, e Perrin interveio:

— Você vive acrescentando coisas, tentando melhorar tudo, e nunca funciona.

— E você confunde tudo também — acrescentou Rand. — É melhor deixar isso com Thom.

Todos estavam falando tão rápido que Ara ficou olhando para eles de queixo caído. Mat também ficou assim, como se todos os outros tivessem subitamente enlouquecido. Rand ficou pensando em como calar a boca de Mat sem precisar pular em cima dele.

De súbito a porta se abriu para deixar entrar Lan, o manto marrom pendurado em um ombro, juntamente com uma rajada de ar mais frio que por um momento afinou a neblina.

— Ora — disse o Guardião, esfregando as mãos —, era justamente isto que eu estava procurando. — Ara apanhou um balde, mas Lan o dispensou. — Não, eu mesmo me encarrego disso. — Deixando o manto cair em cima de uma das banquetas, ele colocou o criado para fora do aposento, apesar dos protestos do sujeito, e fechou a porta com firmeza. Ficou aguardando ali por um momento, a cabeça inclinada para ouvir, e, quando se voltou para o restante deles, sua voz era de pedra e seus olhos apunhalaram Mat. — Foi ótimo eu ter voltado agora, camponês. Você não ouve o que lhe dizem?

— Eu não fiz nada — protestou Mat. — Eu só ia falar para ele sobre os Trollocs, não sobre… — Ele parou e reclinou-se, fugindo dos olhos do Guardião, colando-se na parte de trás da banheira.

— Não fale de Trollocs — disse Lan, sombrio. — Nem sequer pense em Trollocs. — Bufando, furioso, ele começou a encher uma banheira para si mesmo. — Sangue e cinzas, é melhor você lembrar que o Tenebroso tem olhos e ouvidos onde você menos espera. E, se os Filhos da Luz ouvirem falar que havia Trollocs atrás de você, vão ficar loucos para pôr as mãos em você. Para eles, seria o mesmo que você ser um Amigo das Trevas. Isso pode ser uma coisa com a qual você não está acostumado, mas, até chegarmos aonde estamos indo, não confie em ninguém a menos que a Senhora Alys ou eu dissermos o contrário. — Com sua ênfase no nome que Moiraine estava usando, Mat se encolheu.

— Havia uma coisa que aquele sujeito não quis nos contar — disse Rand. — Uma coisa que ele considerava um problema, mas não quis dizer o que era.

— Provavelmente os Filhos — disse Lan, derramando mais água quente em sua banheira. — A maioria das pessoas os considera um problema. Mas outros não, e ele não conhecia vocês bem o bastante para se arriscar. Até onde ele sabia, vocês poderiam ter saído correndo para os Mantos-brancos.

Rand sacudiu a cabeça; aquele lugar já soava pior que Barca do Taren poderia ser.

— Ele disse que havia Trollocs em… em Saldaea, não é? — perguntou Perrin.

Lan atirou seu balde vazio ao chão com um estrondo.

— Vocês vão continuar falando nisso, não vão? Sempre há Trollocs nas Terras da Fronteira, ferreiro. Só bote na sua cabeça que não queremos chamar mais atenção do que ratos numa campina. Concentre-se nisso. Moiraine quer levar todos vocês a Tar Valon vivos, e eu farei isso se puder ser feito, mas se vocês causarem qualquer mal a ela…

O restante do banho transcorreu em silêncio, e o tempo que levaram para se vestir também.

Quando deixaram a sala de banhos, Moiraine estava parada no fim do corredor com uma garota esguia não muito mais alta do que ela. Ao menos Rand pensou que fosse uma garota, embora os cabelos escuros fossem cortados curtos e ela vestisse camisa e calças masculinas. Moiraine disse alguma coisa, e a garota olhou bruscamente para os homens, depois assentiu para Moiraine e saiu, apressada.

— Ora, ora — Moiraine falou quando eles se aproximaram. — Tenho certeza de que um banho abriu o apetite de todos vocês. Mestre Fitch nos reservou uma sala de jantar particular. — Ela falava de modo displicente, enquanto se virava e conduzia o grupo, sobre os quartos deles, sobre como a cidade estava lotada e como o estalajadeiro esperava que Thom lhe desse o prazer de se apresentar no salão com alguma música e uma ou duas histórias. Não fez nenhuma menção à garota, se é que era mesmo uma garota.

A sala de jantar particular tinha uma mesa de carvalho polida com uma dúzia de cadeiras ao redor e um tapete grosso no chão. Quando entraram, Egwene, cabelos reluzentes escovados em torno dos ombros, virou-se de onde estava aquecendo as mãos no fogo que crepitava na lareira. Rand tivera muito tempo para pensar durante o longo silêncio na sala de banhos. Os constantes avisos de Lan para não confiar em ninguém, e especialmente a desconfiança de Ara, haviam-no feito pensar em como eles realmente estavam sozinhos, afinal. Parecia que não podiam confiar em ninguém a não ser neles próprios, e ele ainda não tinha muita certeza de até que ponto podiam confiar em Moiraine, ou em Lan. Apenas em si mesmos. E Egwene ainda era Egwene. Moiraine dissera que aquilo teria acontecido com ela de qualquer maneira, aquele toque da Fonte Verdadeira. Ela não tinha controle sobre aquilo, o que significava que não tinha culpa. E ela ainda era Egwene.

Ele abriu a boca para pedir desculpas, mas Egwene se enrijeceu e virou as costas antes que ele pudesse dizer uma palavra sequer. Olhando mal-humorado para as costas dela, Rand engoliu em seco o que ia dizer. Muito bem, então. Se ela quer que seja assim, não há nada que eu possa fazer.

Mestre Fitch entrou apressadamente então, acompanhado por quatro mulheres vestindo aventais brancos tão compridos quanto o dele, com uma bandeja contendo três frangos assados e outras trazendo prataria, pratos de cerâmica e tigelas cobertas. As mulheres começaram a servir imediatamente enquanto o estalajadeiro se curvava diante de Moiraine.

— Minhas desculpas, Senhora Alys, por fazê-la esperar assim, mas com tanta gente na estalagem é de se espantar que alguém ainda consiga ser servido. Receio que tampouco a comida seja o que deveria ser. Apenas os frangos, e uns nabos e ervilhas, com um pouco de queijo para depois. Não, simplesmente não é o que deveria ser. Eu peço desculpas, sinceramente.

— Um banquete. — Moiraine sorriu. — Para estes tempos conturbados, é um banquete de fato, Mestre Fitch.

O estalajadeiro tornou a se curvar. Os cabelos esfiapados, projetados para todas as direções, como se ele passasse constantemente as mãos por eles, tornavam a mesura cômica, mas seu sorriso era tão agradável que qualquer um que risse estaria rindo com ele, e não dele.

— Meus agradecimentos, Senhora Alys. Meus agradecimentos. — Quando se endireitou, ele franziu a testa e limpou uma partícula imaginária de poeira da mesa com uma ponta do avental. — Não é o que eu teria lhe servido um ano atrás, é claro. Nem de longe. O inverno. É. O inverno. Minhas despensas estão ficando vazias, e o mercado está praticamente sem nada. E quem pode culpar os fazendeiros? Quem? Certamente não é possível dizer quando eles terão outra colheita. Não há como dizer. E ainda tem os lobos que pegam as ovelhas e as vacas que deveriam ir para as mesas das pessoas, e…

Subitamente ele pareceu perceber que aquilo não era conversa que permitisse a seus convidados desfrutar uma refeição confortável.

— Mas eu não paro mesmo de falar. Sou mesmo um cabeça de vento. Mari, Cinda, deixem essa boa gente comer em paz. — Ele enxotou as mulheres com gestos e, quando elas deixaram correndo a sala, voltou a fazer uma mesura para Moiraine. — Espero que gostem da refeição, Senhora Alys. Se precisar de mais alguma coisa, é só falar, e eu trago. Só falar. É um prazer servir à senhora e ao Mestre Andra. Um prazer. — Fez mais uma mesura profunda e saiu, fechando a porta devagarinho atrás de si.

Lan havia se recostado à parede durante toda aquela cena como se estivesse meio adormecido. Então, deu um salto e chegou à porta em duas longas passadas. Encostou a orelha em um painel da porta e ficou ouvindo atento pelo tempo de uma lenta contagem até trinta, depois escancarou a porta e enfiou a cabeça no corredor.

— Eles se foram — disse ele finalmente, fechando a porta. — Podemos falar em segurança.

— Sei que vocês dizem para não confiar em ninguém — disse Egwene —, mas, se desconfiam do estalajadeiro, por que ficar aqui?

— Desconfio dele tanto quanto de qualquer outra pessoa — respondeu Lan. — Mas, até alcançarmos Tar Valon, desconfio de todos. Lá, só vou desconfiar de metade.

Rand começou a sorrir, pensando que o Guardião estivesse fazendo uma brincadeira. Então percebeu que não havia o menor traço de humor do rosto de Lan. Ele realmente desconfiaria de gente em Tar Valon. Será que algum lugar era seguro?

— Ele exagera — disse-lhes Moiraine em tom tranquilizador. — Mestre Fitch é um bom homem, honesto e de confiança. Mas gosta de falar, e, mesmo com a maior boa-fé do mundo, ele poderia deixar alguma coisa escapar ao ouvido errado. E eu jamais parei em uma estalagem onde metade das criadas não parasse para escutar atrás das portas e passasse mais tempo fofocando do que fazendo camas. Venham, vamos nos sentar antes que nossa comida esfrie.

Eles tomaram seus lugares em torno da mesa, com Moiraine à cabeceira e Lan na outra extremidade, e por um tempo todos ficaram ocupados demais enchendo os pratos para falar. Podia não ser um banquete, mas depois de quase uma semana de pão e carne-seca, era o que parecia.

Depois de algum tempo, Moiraine perguntou:

— O que você ficou sabendo no salão? — Facas e garfos pararam, suspensos no ar, e todos os olhares se voltaram para o Guardião.

— Pouco que preste — respondeu Lan. — Avin tinha razão, pelo menos segundo os boatos. Houve uma batalha em Ghealdan, e Logain foi o vencedor. Uma dezena de histórias diferentes estão circulando por aí, mas nisso todas concordam.

Logain? Esse devia ser o falso Dragão. Era a primeira vez que Rand ouvia um nome atribuído ao homem. Lan falava quase como se o conhecesse.

— As Aes Sedai? — perguntou Moiraine baixinho, e Lan balançou a cabeça.

— Não sei. Uns dizem que foram todas mortas, outros dizem que nenhuma foi. — Ele bufou. — Uns dizem até que elas passaram para o lado de Logain. Não há nada de confiável, e eu não quis demonstrar interesse demais.

— Sim — disse Moiraine. — Pouco que preste. — Respirando fundo, ela dirigiu a atenção de volta à mesa. — E quanto à nossa situação?

— Aí as notícias são melhores. Nenhum acontecimento bizarro, nenhum estranho por aí que pudesse ser um Myrddraal, certamente nenhum Trolloc. E os Mantos-brancos estão ocupados tentando criar problemas para o Governador Adan porque ele não quer cooperar com eles. Não vão nem mesmo reparar em nós, a menos que anunciemos nossa presença.

— Ótimo — disse Moiraine. — Isso se ajusta ao que a criada na sala de banho falou. A fofoca até que tem sua utilidade. Agora — ela se dirigiu a todo o grupo — ainda temos uma longa jornada à nossa frente, mas a última semana não foi fácil também. Então, proponho permanecermos aqui esta noite e a próxima, partindo bem cedo depois de amanhã. — Todos os jovens sorriram; uma cidade pela primeira vez. Moiraine sorriu, mas ainda assim disse: — O que Mestre Andra tem a dizer sobre isso?

Lan dirigiu um olhar sem expressão aos rostos sorridentes.

— Tudo bem se, para variar, eles se lembrarem do que eu lhes disse.

Thom bufou através do bigode.

— Esse povo do campo à solta numa… numa cidade. — Ele voltou a bufar e balançou a cabeça.

Com a estalagem lotada, só havia três quartos disponíveis: um para Moiraine e Egwene e dois para os homens. Rand acabou dividindo um quarto com Lan e Thom, nos fundos do quarto andar, perto dos beirais, com uma única e pequena janela que dava para o pátio do estábulo. A noite havia caído completamente, e a luz da estalagem criava uma poça do lado de fora. Era um quarto pequeno, e a cama extra colocada para Thom o tornava ainda menor, embora todas as três fossem estreitas. E duras, descobriu Rand ao se jogar na sua. Definitivamente não era o melhor quarto.

Thom ficou ali apenas tempo suficiente para tirar a flauta e a harpa da caixa, depois saiu já praticando poses grandiosas. Lan o acompanhou.

Era estranho, pensou Rand ao se mexer desconfortavelmente na cama. Uma semana antes ele teria descido como uma pedra rolando a ribanceira só pela chance de ver um menestrel se apresentar, só pelos rumores a respeito. Mas ele havia ouvido Thom contar suas histórias toda noite durante uma semana, e Thom estaria ali na noite seguinte, e na outra, e o banho quente havia afrouxado nos músculos nós que ele havia pensado que ficariam ali para sempre, e sua primeira refeição quente em uma semana o deixara letárgico. Sonolento, ele se perguntou se Lan realmente conhecia o falso Dragão, Logain. Um grito abafado veio lá de baixo, o salão saudando a chegada de Thom, mas Rand já estava dormindo.


O corredor de pedra era mal iluminado e cheio de sombras, e vazio a não ser por Rand. Ele não sabia dizer de onde vinha a luz, o pouco que dela havia; as paredes cinzentas eram despidas de velas ou lampiões, e nada justificava o brilho fraco que parecia simplesmente estar ali. O ar era parado e úmido, e em algum lugar distante ele ouvia água pingando com um plonc constante e oco. Onde quer que ele estivesse, não era a estalagem. Franzindo a testa, ele a esfregou. Estalagem? Sua cabeça doía, e era difícil segurar os pensamentos. Havia alguma coisa sobre… uma estalagem? Fosse o que fosse, havia desaparecido.

Ele passou a língua pelos lábios e desejou ter algo para beber. Estava com uma sede terrível, a garganta seca como pó. Foi o gotejar que o fez se decidir. Sem nada a guiá-lo a não ser sua sede, ele partiu na direção daquele constante plonc-plonc-plonc.

O corredor se estendia, sem nenhum outro corredor transversal e sem a menor mudança na aparência. Os únicos traços distinguíveis eram as portas rústicas dispostas em pares a intervalos regulares, uma de cada lado do corredor, a madeira lascada e seca apesar da umidade do ar. As sombras à sua frente recuavam, inalteradas, e o gotejar nunca se aproximava. Depois de um longo tempo ele decidiu tentar uma daquelas portas. Ela se abriu facilmente, e ele entrou em uma câmara sombria com paredes de pedra.

Uma das paredes se abria em uma série de arcos para uma varanda de pedra cinza, além da qual havia um céu como ele nunca tinha visto. Nuvens rajadas de preto e cinza, vermelho e laranja, passavam céleres, como se empurradas por ventos de tempestade, tecendo e entretecendo infinitamente. Ninguém poderia jamais ter visto um céu assim; ele não podia existir.

Afastou os olhos da varanda, mas o restante do aposento não era melhor. Curvas estranhas e ângulos peculiares, como se a câmara tivesse sido fundida quase caoticamente na pedra, e colunas que pareciam brotar do piso cinzento. Chamas rugiam na lareira como o fogo de uma forja com os foles soprando, mas não forneciam calor. Estranhas pedras ovais compunham a lareira; elas pareciam simples pedras, molhadas e escorregadias apesar do fogo, quando ele olhou diretamente para elas, mas, quando as vislumbrou pelo canto do olho, pareciam rostos, os rostos de homens e mulheres se contorcendo de angústia, gritando silenciosamente. As cadeiras de espaldar alto e a mesa polida no meio do aposento eram perfeitamente comuns, mas isso só servia para destacar o restante. Um único espelho estava pendurado na parede, mas este não era nem um pouco comum. Quando olhou para o espelho, viu apenas um borrão onde seu reflexo deveria estar. Tudo o mais no aposento era mostrado de forma nítida, mas não ele.

Um homem estava parado diante da lareira. Ele não o havia notado quando entrou. Se não soubesse que era impossível, Rand teria dito que ninguém estava ali até o momento em que olhou para o homem. Vestindo roupas escuras de fino corte, ele parecia no auge da maturidade, e Rand supôs que as mulheres o teriam achado bonito.

— Uma vez mais nos encontramos face a face — disse o homem, e, por um único instante, sua boca e seus olhos se tornaram aberturas para cavernas infinitas de chamas.

Com um grito, Rand recuou, lançando-se para fora da sala tão rápido e com tanta força que tropeçou e bateu na porta do outro lado do corredor, abrindo-a. Ele se contorceu e agarrou a maçaneta para evitar cair no chão… e se viu encarando com os olhos arregalados uma sala de pedra, com um céu impossível através de arcos que davam para uma varanda, e uma lareira…

— Você não pode fugir de mim assim tão fácil — disse o homem.

Rand se contorceu, saindo cambaleando do aposento, tentando voltar a ficar de pé sem diminuir a velocidade. Dessa vez não havia corredor. Ele imobilizou-se, quase agachado, não muito longe da mesa polida, e olhou para o homem perto da lareira. Era melhor do que olhar para as pedras da lareira, ou para o céu.

— Isto é um sonho — afirmou ao se endireitar. Atrás dele, ouviu o clique da porta se fechando. — É algum tipo de pesadelo. — Fechou os olhos, pensando em acordar. Quando era criança, a Sabedoria dissera que, se você pudesse fazer isso num pesadelo, ele desapareceria. A… Sabedoria? O quê? Se ao menos seus pensamentos parassem de lhe escapar… Se sua cabeça parasse de doer, então ele poderia pensar direito.

Tornou a abrir os olhos. O aposento ainda estava como antes. A varanda, o céu. O homem perto da lareira.

— Isto é mesmo um sonho? — disse o homem. — E isso importa? — Mais uma vez, por um instante, sua boca e seus olhos se tornaram buracos para uma fornalha que parecia se estender infinitamente. Sua voz não mudou; ele não parecia notar que aquilo estava acontecendo.

Rand deu um pulo menor dessa vez, mas conseguiu evitar gritar. Isto é um sonho. Tem de ser. Mesmo assim, recuou até a porta, sem nunca tirar os olhos do sujeito à beira do fogo, e experimentou a maçaneta. Ela não se moveu; a porta estava trancada.

— Você parece ter sede — disse o homem perto do fogo. — Beba.

Sobre a mesa havia um cálice, de ouro reluzente e ornamentado com rubis e ametistas. Não estava ali antes. Rand desejou poder parar de se sobressaltar. Era somente um sonho. Sua boca parecia cheia de areia.

— Estou, um pouco — disse ele, apanhando o cálice. O homem inclinou-se para a frente com interesse, uma das mãos no espaldar de uma cadeira, observando-o. O cheiro de vinho com especiarias fez Rand perceber como estava com sede, como se não bebesse nada havia dias. Será?

Com o cálice a meio caminho da boca, ele se deteve. Chiados de fumaça se elevavam do espaldar da cadeira entre os dedos do homem. E aqueles olhos o vigiavam atentamente, bruxuleando rapidamente com as chamas que iam e vinham.

Rand umedeceu os lábios e colocou o vinho de volta à mesa, intocado.

— Não estou com tanta sede quanto pensava. — O homem se endireitou bruscamente, o rosto sem expressão. Sua decepção não poderia ter sido mais evidente se ele tivesse praguejado. Rand se perguntou o que havia no vinho. Mas era uma pergunta idiota, naturalmente. Aquilo tudo era um sonho. Então por que ele não acaba? — O que você quer? — exigiu saber. — Quem é você?

As chamas cresceram nos olhos e na boca do homem; Rand achou que podia ouvi-las rugir.

— Alguns me chamam de Ba’alzamon.

Rand se viu de frente para a porta, puxando freneticamente a maçaneta. Todas os pensamentos a respeito de sonhos haviam desaparecido. O Tenebroso. A maçaneta não cedia, mas ele continuou tentando girá-la.

— É você a pessoa certa? — perguntou Ba’alzamon subitamente. — Você não pode esconder isso de mim para sempre. Não consegue nem mesmo se esconder de mim, nem na mais alta montanha ou na caverna mais profunda. Eu o conheço até o último fio de cabelo.

Rand virou-se de frente para o homem… de frente para Ba’alzamon. Engoliu em seco. Um pesadelo. Estendeu a mão novamente para dar um último puxão na maçaneta da porta, depois voltou a se empertigar.

— Está esperando a glória? — perguntou Ba’alzamon. — Poder? Eles lhe disseram que o Olho do Mundo serviria a você? Que glória ou poder existem para uma marionete? Os fios que movem você levaram séculos para serem tecidos. Seu pai foi escolhido pela Torre Branca, como um garanhão laçado e levado para cruzar. Sua mãe não foi nada além de uma égua de cria nos planos deles. E esses planos levam à sua morte.

As mãos de Rand se fecharam em punhos.

— Meu pai é um homem bom, e minha mãe foi uma boa mulher. Não ouse falar deles!

As chamas riram.

— Então há algum espírito em você afinal. Talvez você seja mesmo o homem certo. De pouco isso lhe servirá. O Trono de Amyrlin o usará até que você seja consumido, assim como Davian foi usado, e Yurian Arco-de-pedra, e Guaire Amalasan, e Raolin Algoz-das-trevas. Assim como Logain está sendo usado. Usado até não restar mais nada de você.

— Eu não sei… — Rand balançava a cabeça de um lado para o outro. Aquele momento único de pensamento claro, nascido da raiva, havia desaparecido. Mesmo tentando alcançá-lo novamente, não conseguia se lembrar de como havia chegado lá da primeira vez. Seus pensamentos giravam e giravam. Ele se agarrou a um deles como uma jangada num redemoinho. Forçou as palavras a saírem, sua voz ganhando força quanto mais ele falava. — Você… está preso… em Shayol Ghul. Você e todos os Abandonados… presos pelo Criador até o fim dos tempos.

— O fim dos tempos? — zombou Ba’alzamon. — Você vive como um besouro debaixo de uma pedra, e pensa que seu limo é o universo. A morte do tempo me trará um poder que você jamais sonhou, verme.

— Você está preso…

— Idiota, eu nunca estive preso! — Os fogos de seu rosto rugiram tão quentes que Rand deu um passo para trás, abrigando-se atrás das mãos. O suor nas palmas secou com o calor. — Eu estava ao lado de Lews Therin, o Fratricida, quando ele realizou o feito que o nomeou. Fui eu quem lhe mandou matar a esposa, e os filhos, e todos os de seu sangue, e todas as pessoas que o amavam ou a quem ele amava. Fui eu quem lhe propiciou o momento de sanidade para saber o que havia feito. Você já ouviu um homem gritar até perder a alma, verme? Ele poderia ter me atacado naquele momento. Não teria vencido, mas poderia ter tentado. Em vez disso, invocou sobre si mesmo seu precioso Poder Único, com tanta força que a terra se abriu e criou a Montanha do Dragão para marcar o local de seu túmulo.

“Mil anos depois eu mandei os Trollocs vorazes para o sul, e por três séculos eles devastaram o mundo. Aquelas tolas cegas em Tar Valon disseram que fui derrotado no fim, mas o Segundo Pacto, o Pacto das Dez Nações, foi estilhaçado além de qualquer reconstrução, e quem restou para se opor a mim então? Eu sussurrei no ouvido de Artur Asa-de-gavião, e por toda a terra as Aes Sedai morreram. Voltei a sussurrar, e o Grão-rei enviou seus exércitos pelo Oceano de Aryth, através do Mar do Mundo, e selou dois destinos. O destino de seu sonho de uma só terra e um só povo, e um destino que ainda está por vir. No seu leito de morte, eu estava lá quando seus conselheiros lhe disseram que somente as Aes Sedai poderiam salvar sua vida. Eu falei, e ele ordenou que seus conselheiros fossem para a fogueira. Eu falei, e as últimas palavras do Grão-rei foram um grito: que Tar Valon fosse destruída.

“Se homens assim não puderam resistir a mim, que chance tem você, um sapo agachando ao lado de uma poça na floresta? Você irá me servir, ou dançará pelos cordéis das Aes Sedai até morrer. E então você será meu. Os mortos me pertencem!”

— Não — murmurou Rand. — Isto é um sonho. É um sonho!

— Você pensa que está a salvo de mim em seus sonhos? Olhe! — Ba’alzamon ordenou, apontando, e a cabeça de Rand se virou para seguir seu gesto, embora ele não a tivesse virado; ele não queria virá-la.

O cálice havia desaparecido da mesa. Em seu lugar, encontrava-se uma ratazana enorme, piscando com a luz, farejando o ar, desconfiada. Ba’alzamon curvou o dedo, e com um guincho a ratazana arqueou as costas, as patas dianteiras se erguendo no ar enquanto ela se equilibrava desajeitada nas patas traseiras. O dedo curvou-se um pouco mais, e a ratazana tombou, lutando freneticamente, as patas agarrando o nada, guinchando, as costas curvando, curvando, curvando. Com um estalo seco como o de um graveto se quebrando, a ratazana estremeceu violentamente e então ficou imóvel, quase dobrada ao meio.

Rand engoliu em seco.

— Qualquer coisa pode acontecer em um sonho — murmurou ele. Sem olhar, bateu o punho contra a porta mais uma vez. Sua mão doeu, mas mesmo assim ele não acordou.

— Então vá até a Aes Sedai. Vá à Torre Branca e conte a elas. Fale para o Trono de Amyrlin sobre este… sonho. — O homem riu, e Rand sentiu o calor das chamas em seu rosto. — Esta é uma forma de escapar delas. Assim, elas não o usarão então. Não, não quando souberem o que eu sei. Mas será que deixarão você viver, para espalhar a história do que fazem? Será que você é tolo o bastante para acreditar que sim? As cinzas de muitos como você estão espalhadas nas encostas do Monte do Dragão.

— Isto é um sonho — disse Rand, ofegante. — É um sonho, e eu vou acordar.

— Vai? — Pelo canto do olho ele viu o dedo do homem se mover e apontar para ele. — Vai mesmo? — O dedo entortou, e Rand gritou quando seu corpo se arqueou, cada músculo em seu corpo forçando-o para trás. — Será que você acordará novamente algum dia?


Rand despertou com convulsões na escuridão, as mãos agarrando o tecido. Um cobertor. Um luar fraco entrando pela única janela. As formas ensombrecidas das duas outras camas. Um ronco vindo de uma delas, como lona rasgando: Thom Merrilin. Alguns carvões brilhavam em meio às cinzas na lareira.

Então tinha sido um sonho, como o pesadelo na Estalagem Fonte de Vinho no dia do Bel Tine, tudo que ele havia ouvido e feito misturado a velhas histórias e besteiras vindas de lugar nenhum. Puxou o cobertor até o pescoço, mas não era o frio que o fazia tremer. Sua cabeça doía também. Talvez Moiraine pudesse fazer alguma coisa para acabar com esses sonhos. Ela disse que podia ajudar com pesadelos.

Bufando, ele voltou a se deitar. Tais sonhos eram mesmo ruins o bastante para que ele pedisse a ajuda de uma Aes Sedai? Por outro lado, será que qualquer coisa que ele fizesse agora poderia prejudicá-lo ainda mais? Havia deixado os Dois Rios, ido embora com uma Aes Sedai. Mas não tivera escolha, claro. Então teria alguma escolha além de confiar nela? Numa Aes Sedai? Pensando bem, isso era tão ruim quanto os sonhos. Ele se encolheu sob as cobertas, tentando encontrar a calma do vazio como Tam lhe havia ensinado, mas o sono demorou muito para voltar.

Загрузка...