27 Abrigo da Tempestade

Perrin se preocupava com os dias passados com os Tuatha’an, viajando para sul e leste sem pressa. O Povo Errante não via necessidade de se apressar; eles nunca viam. Os carroções coloridos não andavam de manhã até que o sol estivesse bem acima do horizonte, e paravam no meio da tarde se encontrassem um local agradável. Os cães trotavam tranquilamente ao lado dos veículos, e frequentemente as crianças também. Não tinham dificuldades para acompanhá-los. Qualquer sugestão de que fossem mais além, ou mais rápido, era recebida com risos, ou talvez um “Ah, mas você faria os coitados dos cavalos trabalharem tanto assim?”.

Ele ficou surpreso por Elyas não partilhar de sua opinião. Elyas não andava nos carroções; ele preferia caminhar, às vezes correndo na frente da coluna, mas nunca sugeria partir, nem avançar.

O estranho homem barbudo com suas estranhas roupas de pele era tão diferente dos gentis Tuatha’an que se destacava andando entre os carroções. Mesmo estando do outro lado do acampamento, não havia como confundir Elyas com alguém do Povo, e não só por causa das roupas. Elyas se movia com a graça preguiçosa de um lobo, enfatizada ainda mais por suas peles e o chapéu de pelo, irradiando perigo como o fogo irradia calor, e o contraste com o Povo Errante era nítido. Jovens e velhos, o Povo tinha alegria nos pés. Não havia perigo em sua graça, apenas deleite. As crianças corriam de um lado para o outro levadas pelo puro prazer de estar em movimento, é claro, mas entre os Tuatha’an, barbas grisalhas e avós, também, ainda andavam com leveza, seu caminhar uma dança imponente, não menos exuberante pela dignidade. O Povo todo parecia prestes a dançar, mesmo quando estava parado, mesmo durante os raros momentos em que não havia música no acampamento. Rabecas e flautas, dulcímeres e cítaras e tambores teciam harmonias e contrapontos ao redor dos carroções praticamente a qualquer hora, quando acampados ou em marcha. Canções de júbilo, canções de alegria, canções de humor, canções de tristeza; se houvesse alguém acordado no acampamento, normalmente havia música.

Elyas encontrava sorrisos e acenos de cabeça amigáveis em todos os carroções pelos quais passava, e uma palavra alegre em qualquer fogueira em que parava. Aquela devia ser a face que o Povo sempre mostrava à gente de fora — expressões abertas e sorridentes. Mas Perrin havia aprendido que sob a superfície estava escondida a desconfiança de uma corça semiadestrada. Algo mais profundo jazia por trás dos sorrisos direcionados aos jovens de Campo de Emond, algo que se perguntava se estavam em segurança, algo que só foi desaparecendo lentamente ao longo dos dias. Com Elyas, a desconfiança era forte, como as ondas de calor tremeluzindo no ar do verão, e ela não se dissipava. Quando ele não estava olhando, eles o observavam abertamente, como se não soubessem ao certo o que ele ia fazer. Quando ele atravessava o acampamento, pés prontos para dançar pareciam igualmente prontos para fugir.

Elyas certamente não se sentia mais confortável com o Caminho da Folha deles do que o Povo Errante se sentia com ele. Seus lábios estavam sempre estranhamente curvados quando perto dos Tuatha’an. Não era exatamente condescendência, e decerto não era desprezo, mas sua expressão parecia dizer que ele preferia estar em outro lugar, em praticamente qualquer outro lugar. Mas sempre que Perrin falava em ir embora Elyas fazia sons tranquilizadores e dizia para que descansassem apenas por alguns dias.

— Vocês passaram por dias difíceis antes de me encontrar — disse Elyas, na terceira ou quarta vez em que ele perguntou —, e terão dias mais difíceis ainda à frente, com Trollocs e Meios-homens atrás de vocês, e com Aes Sedai como amigas. — Ele sorriu com um bocado de torta de maçã desidratada de Ila na boca. Perrin ainda achava seus olhos amarelos desconcertantes, mesmo quando ele estava sorrindo. Talvez ainda mais quando estava sorrindo; sorrisos raramente tocavam aqueles olhos de caçador. Elyas descansava ao lado da fogueira de Raen, como sempre recusando-se a se sentar nos troncos colocados ali perto para esse propósito. — Não fique nessa pressa desgraçada de se colocar nas mãos das Aes Sedai.

— E se os Desvanecidos nos encontrarem? O que irá impedi-los se ficarmos simplesmente sentados aqui esperando? Três lobos não podem mantê-los afastados, e o Povo Errante não será de nenhuma ajuda. Eles sequer se defenderão. Os Trollocs vão fazer picadinho deles, e a culpa vai ser nossa. De qualquer maneira, teremos de deixá-los mais cedo ou mais tarde. É melhor que seja mais cedo.

— Alguma coisa me diz para esperar. Só alguns dias.

— Alguma coisa?!

— Relaxe, garoto. Lide com a vida conforme ela vier. Fuja quando precisar, lute quando for necessário, descanse quando puder.

— Do que você está falando? O que é alguma coisa?

— Prove um pedaço dessa torta. Ila não gosta de mim, mas ela certamente me alimenta bem quando eu faço uma visita. Sempre tem comida boa nos acampamentos do Povo.

— Que “alguma coisa”? — insistiu Perrin. — Se você sabe de alguma coisa que não está contando para nós…

Elyas olhou para o pedaço de torta na mão com a testa franzida, então colocou-a de lado e limpou as mãos uma na outra.

— Alguma coisa — respondeu finalmente, dando de ombros como se ele próprio não entendesse por completo. — Alguma coisa me diz que é importante esperar. Mais alguns dias. Eu não tenho sensações como essa com frequência, mas, quando tenho, aprendi a confiar nelas. Já salvaram minha vida no passado. Desta vez é diferente, de alguma forma, mas é importante. Isso está claro. Se vocês querem ir embora agora, vão. Eu fico.

Isso era tudo que ele dizia, não importando quantas vezes Perrin perguntasse. Ficava ali descansando, conversando com Raen, comendo, cochilando com o chapéu cobrindo os olhos, e se recusava a falar sobre ir embora. Alguma coisa lhe dizia para esperar. Alguma coisa lhe dizia que era importante. Ele saberia quando chegasse a hora de ir. Coma um pedaço de torta, rapaz. Não se desgaste. Prove um pouco deste ensopado. Relaxe.

Perrin não conseguia relaxar. À noite ele vagava em meio ao arco-íris de carroções aflito, tanto porque ninguém mais parecia ver motivo para se preocupar quanto por qualquer outra razão. Os Tuatha’an cantavam e dançavam, cozinhavam e comiam ao redor de suas fogueiras — frutas e nozes, bagas e legumes; eles não comiam carne — e realizavam uma miríade de tarefas domésticas como se não tivessem uma só preocupação no mundo. As crianças corriam e brincavam por toda parte, de esconde-esconde por entre os carroções, subindo nas árvores ao redor do acampamento, rindo e rolando no chão com os cães. Nenhuma preocupação no mundo, para ninguém.

Observando-os, ele comichava para ir embora. Ir, antes de trazermos os caçadores aqui. Eles nos acolheram, e retribuímos a gentileza pondo-os em perigo. Pelo menos eles têm motivos para ser alegres. Não há ninguém a persegui-los. Mas o restante de nós…

Era difícil falar com Egwene. Ou ela estava falando com Ila, a cabeça das duas próximas de um jeito que dizia que homens não eram bem-vindos, ou estava dançando com Aram, girando sem parar ao som das flautas, rabecas e tambores, das músicas que os Tuatha’an haviam reunido de todas as partes do mundo, ou das canções trinadas e intensas do próprio Povo Errante, intensas independentemente de serem lentas ou rápidas. Eles conheciam muitas canções, algumas das quais ele reconhecia de casa, embora frequentemente sob nomes diferentes daqueles por que eram chamadas nos Dois Rios. “Três Garotas na Campina”, por exemplo, os Latoeiros chamavam de “Belas Donzelas Dançando”, e diziam que “O Vento que Vem do Norte” se chamava “Chuva Forte Caindo” em algumas terras e “A Retirada de Berin” em outras. Quando ele pediu, sem pensar, que tocassem a canção “O Latoeiro Ficou com Minhas Panelas”, eles quase morreram de rir. Eles a conheciam como “Jogue as Penas”.

Ele podia entender a vontade de dançar as canções do Povo. Em Campo de Emond ninguém o considerava mais do que um dançarino mediano, mas essas canções o faziam querer mexer os pés, e ele achava que nunca havia dançado tanto, nem com tanta vontade, nem tão bem na vida. Hipnóticas, elas faziam seu sangue rufar ao ritmo dos tambores.

Na segunda noite Perrin viu pela primeira vez as mulheres dançarem algumas das canções lentas. As fogueiras estavam quase apagadas, e a noite cercava os carroções bem de perto, e dedos batucavam um ritmo lento nos tambores. Primeiro um, depois outro, até todos os tambores do acampamento começarem a manter a mesma batida grave e insistente. Silêncio, a não ser pelos tambores. Uma garota de vestido vermelho entrou gingando lentamente na área iluminada, abrindo seu xale. Fios de contas pendiam de seus cabelos, e ela havia tirado os sapatos. Uma flauta começou a melodia, com um lamento suave, e a garota pôs-se a dançar. Braços estendidos seguravam o xale aberto atrás dela; os quadris ondulavam enquanto os pés descalços se moviam ao compasso dos tambores. Os olhos escuros da garota se fixaram em Perrin, e seu sorriso era tão lento quanto a dança. Ela girava em círculos pequenos, sorrindo para ele sobre o ombro.

Ele engoliu em seco. O calor em seu rosto não era do fogo. Uma segunda garota se juntou à primeira, a franja de seus xales balançando no mesmo compasso dos tambores e da rotação lenta de seus quadris. Elas sorriram para ele, que pigarreou, rouco. Teve medo de olhar ao redor. Seu rosto estava vermelho como uma beterraba, e qualquer um que não estivesse olhando para as dançarinas provavelmente estava rindo dele. Tinha certeza.

Da forma mais casual que lhe foi possível, ele escorregou do tronco, como se estivesse apenas tentando ficar mais confortável, mas acabou deliberadamente olhando para longe do fogo, para longe das dançarinas. Não havia nada parecido em Campo de Emond. Dançar com as garotas no Campo em dia de festival não chegava nem perto daquilo. Dessa vez, ele desejou que o vento ficasse mais forte para esfriar seu corpo.

As garotas entraram dançando no seu campo de visão mais uma vez, só que agora eram três. Uma lhe dirigiu uma piscadela marota. Os olhos dele vagaram freneticamente, perdidos. Luz, pensou. O que eu faço agora? O que Rand faria? Ele entende de garotas.

As dançarinas riam baixinho; as contas batiam umas nas outras quando elas jogavam os cabelos compridos sobre os ombros, e ele achou que seu rosto seria consumido pelo fogo. Então uma mulher ligeiramente mais velha se juntou às garotas, para lhes mostrar como se fazia. Com um gemido, ele desistiu e fechou os olhos. Até mesmo por trás das pálpebras a risada delas o tentava e provocava. Até mesmo por trás das pálpebras ele ainda podia vê-las. O suor porejava em sua testa, e ele ansiava pelo vento.

Segundo Raen, as garotas não dançavam aquilo com frequência, e as mulheres raramente o faziam, e segundo Elyas era graças aos rubores de Perrin que, a partir daí, elas passaram a dançar assim todas as noites.

— Eu preciso lhe agradecer — disse-lhe Elyas, o tom de voz sóbrio e solene. — É diferente para vocês jovens, mas na minha idade é preciso mais que uma fogueira para aquecer meus ossos. — Perrin fechou a cara. Quando Elyas lhe deu as costas, havia algo em seu andar que dava a entender que ele estava rindo por dentro.

Perrin logo aprendeu que era pior desviar o olhar das mulheres e garotas dançarinas, embora os sorrisos e piscadelas ainda o levassem a querer fazer isso. Uma talvez fosse bom, mas cinco ou seis, com todo mundo olhando… Ele não chegou a conseguir dominar completamente o rubor no rosto.

Então Egwene começou a aprender a dança. Duas das garotas que haviam dançado naquela primeira noite lhe ensinavam, marcando o ritmo com palmas enquanto ela repetia os passos arrastando os pés e balançando atrás de si um xale emprestado. Perrin começou a dizer alguma coisa, mas então decidiu que era mais sábio não abrir a boca. Quando as garotas acrescentaram os movimentos dos quadris, Egwene começou a rir, e as três garotas caíram rindo nos braços umas das outras. Mas Egwene perseverou, com os olhos brilhando e o rubor colorindo suas bochechas.

Aram a observava dançar com um olhar quente e faminto. O jovem e belo Tuatha’an lhe dera de presente um colar de contas azuis que ela usava o tempo todo. A testa franzida substituíra os sorrisos que Ila dera quando notara pela primeira vez o interesse do neto por Egwene. Perrin decidiu ficar de olho no jovem Mestre Aram.

Numa ocasião ele conseguiu ficar a sós com Egwene, ao lado de um carroção pintado de verde e amarelo.

— Está se divertindo, não está? — perguntou ele.

— E por que não deveria? — Ela tocou as contas azuis ao redor do pescoço, sorrindo para elas. — Nem todos temos de nos esforçar para viver angustiados, como você faz. Não merecemos uma chance, por menor que seja, de nos divertir?

Aram não estava muito longe — ele nunca se afastava de Egwene —, com os braços cruzados sobre o peito, um leve sorriso no rosto, meio presunçoso e meio desafiador. Perrin abaixou a voz.

— Achei que você queria chegar a Tar Valon. Não vai aprender a ser uma Aes Sedai aqui.

Egwene jogou a cabeça para trás.

— E eu achei que você não queria que eu me tornasse uma Aes Sedai — disse ela, com excesso de doçura na voz.

— Sangue e cinzas, você acredita que estamos seguros aqui? Estas pessoas estão a salvo com a gente aqui? Um Desvanecido poderia nos encontrar a qualquer momento.

A mão dela tremeu segurando as contas. Ela a abaixou e respirou fundo.

— O que tiver de acontecer vai acontecer, quer partamos agora ou na semana que vem. É nisso que eu acredito agora. Divirta-se, Perrin. Pode ser a última chance que temos.

Ela passou os dedos pelo rosto dele com tristeza. Então Aram estendeu a mão para ela, e Egwene correu para ele, já rindo novamente. Enquanto eles corriam para onde as rabecas cantavam, Aram se virou para trás e dirigiu um sorriso triunfante para Perrin, como se para dizer “ela não é sua, mas será minha”.

Eles estavam se deixando enfeitiçar demais pelo Povo, pensou Perrin. Elyas tem razão. Eles não precisam tentar converter você ao Caminho da Folha. Este se infiltra em você.

Ila o vira se encolhendo para se proteger do vento, então fora buscar um manto grosso de lã em seu carroção; um manto verde-escuro, ele ficou contente ao ver, depois de todos aqueles vermelhos e amarelos. Quando o colocou em torno dos ombros, pensando que era espantoso o manto ser grande o bastante para ele, Ila disse, séria:

— Podia caber melhor. — Ela olhou para o machado no cinto, e, quando ergueu os olhos para ele, a tristeza de seus olhos não combinava com o sorriso. — Podia caber muito melhor.

Todos os Latoeiros faziam isso. Eles nunca deixavam de sorrir, jamais havia qualquer hesitação em seus convites para se juntar a eles para uma bebida ou escutar música, mas seus olhares sempre tocavam o machado, e ele podia sentir o que eles pensavam. Um instrumento de violência. Não existe nenhuma desculpa para a violência contra outro ser humano. Nunca. O Caminho da Folha.

Às vezes queria gritar com eles. Havia Trollocs no mundo, e Desvanecidos. Havia aqueles que cortariam cada folha. O Tenebroso estava lá fora, e o Caminho da Folha arderia nos olhos de Ba’alzamon. Teimoso, ele continuou a carregar o machado. Passou a usar o manto jogado para trás, mesmo quando ventava muito, de modo que a lâmina em meia-lua nunca ficasse oculta. De vez em quando Elyas olhava intrigado para a arma pendurada pesadamente ao seu lado e sorria para ele, aqueles olhos amarelos parecendo ler sua mente. Isso quase o fazia esconder o machado. Quase.

Se o acampamento Tuatha’an era fonte de constante irritação, pelo menos seus sonhos eram normais ali. Às vezes ele acordava suando de um sonho com Trollocs e Desvanecidos invadindo o acampamento, os carroções nas cores do arco-íris se transformando em fogueiras sob tochas, pessoas caindo em poças de sangue, homens, mulheres e crianças que corriam, gritavam e morriam mas não faziam nenhum esforço para se defender de espadas em forma de foice. Noite após noite ele acordava sobressaltado na escuridão, ofegante e estendendo a mão para pegar o machado até perceber que os carroções não estavam em chamas, que nenhum focinho ensanguentado resfolegava sobre corpos dilacerados e retorcidos amontoados no chão. Mas aqueles eram pesadelos comuns, e estranhamente reconfortantes à sua maneira. Se havia um lugar para o Tenebroso aparecer, era nesses sonhos, mas ele não estava lá. Nada de Ba’alzamon. Apenas pesadelos comuns.

Mas Perrin estava ciente dos lobos quando estava acordado. Eles mantinham-se longe dos acampamentos e da caravana em movimento, mas ele sempre sabia onde estavam. Podia sentir o desprezo deles pelos cães que protegiam os Tuatha’an. Feras barulhentas que haviam esquecido para que serviam suas mandíbulas, haviam esquecido o gosto do sangue quente; podiam assustar humanos, mas sairiam se arrastando com medo se a matilha se aproximasse. A cada dia sua percepção ficava mais aguçada, mais clara.

Pintada ficava mais impaciente a cada pôr do sol. O fato de Elyas querer levar os humanos para o sul fazia isso valer a pena, mas, se devia ser feito, então que fosse feito. Que parassem com aquela viagem lenta. Os lobos haviam sido feitos para correr livres, e ela não gostava de ficar longe da matilha por tanto tempo. A impaciência também incomodava Vento. A caça ali era mais do que pobre, e ele desprezava viver de ratos do campo, coisa para filhotes espreitarem enquanto aprendiam a caçar, comida adequada para os velhos, que não eram mais capazes de derrubar um cervo ou um touro selvagem. Às vezes Vento achava que Queimado tinha razão; que se deixassem os problemas humanos para os humanos. Mas ele não dava vazão a esses pensamentos quando Pintada estava por perto, e muito menos ao lado de Saltador. Saltador era um lutador grisalho e cheio de cicatrizes, impassível com o conhecimento de anos, com a astúcia que mais do que compensava qualquer coisa que a idade pudesse ter lhe roubado. Ele não tinha a menor consideração pelos humanos, mas Pintada queria acabar logo com aquilo, e Saltador esperaria quando ela esperasse e correria quando ela corresse. Lobo ou homem, touro ou urso, o que quer que desafiasse Pintada encontraria as mandíbulas de Saltador à espera para despachá-lo para o longo sono. Essa era a vida para Saltador, e isso fazia Vento se manter cauteloso, e Pintada parecia ignorar os pensamentos de ambos.

Tudo isso estava claro na mente de Perrin. Ele desejou fervorosamente chegar a Caemlyn, ir ao encontro de Moiraine e Tar Valon. Mesmo que não houvesse respostas, aquilo tudo poderia acabar. Elyas olhava para ele, e ele tinha certeza de que o homem de olhos amarelos sabia. Por favor, que isso tudo acabe

O sonho começou de modo mais agradável do que a maioria dos que ele vinha tendo ultimamente. Estava à mesa de Alsbet Luhhan, afiando seu machado com uma pedra. A Senhora Luhhan nunca permitia que o trabalho da forja, ou qualquer coisa que cheirasse a isso, fosse levado para dentro de casa. Mestre Luhhan tinha até de levar as facas dela para fora na hora de afiá-las. Mas, naquele momento, ela cozinhava e não disse uma palavra sequer sobre o machado. Nem quando um lobo veio do fundo da casa e se enroscou entre Perrin e a porta que dava para o quintal. Perrin continuou a amolar o machado; em breve seria hora de usá-lo.

Subitamente o lobo se levantou, um rosnado no fundo da garganta, os pelos grossos do pescoço se eriçando. Ba’alzamon entrou na cozinha pela porta do quintal. A Senhora Luhhan continuou cozinhando.

Perrin levantou-se, apressado, erguendo o machado, mas Ba’alzamon ignorou a arma, concentrando-se no lobo. Chamas dançavam no lugar onde seus olhos deveriam estar.

— É isso o que você tem para protegê-lo? Ora, eu já enfrentei isso antes. Muitas vezes.

Ele curvou um dedo, e o lobo soltou um uivo no instante em que chamas lhe saíram pelos olhos, ouvidos, boca, pele. O fedor de carne e pelo queimados tomou a cozinha. Alsbet Luhhan ergueu a tampa de uma panela e começou a mexer com uma colher de pau.

Perrin largou o machado e pulou para a frente, tentando apagar as chamas com as mãos. O lobo desfez-se em cinzas negras entre suas mãos. Olhando a pilha disforme de carvão no chão limpo da Senhora Luhhan, ele recuou. Queria poder limpar a fuligem gordurosa de suas mãos, mas a ideia de esfregá-las na roupa embrulhou seu estômago. Pegou o machado, agarrando o cabo até os nós dos dedos estalarem.

— Deixe-me em paz! — gritou ele.

A Senhora Luhhan bateu a colher na borda da panela e recolocou a tampa, cantarolando para si mesma.

— Você não pode fugir de mim — disse Ba’alzamon. — Não pode se esconder de mim. Se é o escolhido, você é meu.

O calor do fogo em seu rosto forçou Perrin a recuar cozinha adentro até bater com as costas na parede. A Senhora Luhhan abriu o forno para verificar o pão.

— O Olho do Mundo consumirá você — continuou Ba’alzamon. — Eu o marco como meu! — Ele estendeu a mão com o punho cerrado como se fosse atirar alguma coisa; quando seus dedos se abriram, um corvo atacou o rosto de Perrin.

Perrin gritou quando o bico negro perfurou seu olho esquerdo…

…e sentou-se, as mãos no rosto, cercado pelos carroções adormecidos do Povo Errante. Lentamente ele abaixou as mãos. Não havia dor nem sangue. Mas ele se lembrava da agonia da bicada.

Ele estremeceu, e subitamente Elyas estava agachado ao seu lado na claridade que precedia a aurora, uma das mãos estendida como se para sacudi-lo e acordá-lo. Além das árvores onde estavam os carroções, os lobos uivaram, um grito agudo saindo de três gargantas. Ele compartilhou as sensações deles. Fogo. Dor. Fogo. Ódio. Ódio! Matar!

— Sim — disse Elyas suavemente. — Chegou a hora. Levante-se, garoto. É hora de irmos.

Perrin saiu apressado de sob as cobertas. Enquanto ainda estava enrolando o cobertor, Raen deixou o carroção, esfregando os olhos para afastar o sono. O Buscador olhou para o céu e se deteve no meio dos degraus, as mãos ainda no rosto. Apenas seus olhos se moviam enquanto ele estudava o céu com atenção, embora Perrin não conseguisse entender o que ele estava olhando. Algumas nuvens pairavam a leste, raiadas de rosa do sol que ainda estava por nascer, mas não havia mais nada para se ver. Raen pareceu escutar, também, e cheirar o ar, mas não se ouvia som nenhum a não ser o vento nas árvores e nenhum cheiro a não ser dos restos levemente enfumaçados das fogueiras da noite anterior.

Elyas retornou com seus pertences também escassos, e Raen desceu os últimos degraus.

— Precisamos mudar a direção de nossa viagem, meu velho amigo. — O Buscador tornou a olhar, inseguro, para o céu. — Seguiremos outro caminho hoje. Você vem conosco? — Elyas balançou a cabeça em negativa, e Raen assentiu, como se soubesse o tempo todo. — Bem, cuide-se, meu velho amigo. Há alguma coisa no dia de hoje… — Ele começou a olhar para cima mais uma vez, mas abaixou a cabeça antes que os olhos ultrapassassem o topo dos carroções. — Acho que os carroções irão para o leste. Talvez até a Espinha do Mundo. Talvez encontremos um pouso e fiquemos lá por um tempo.

— Problemas nunca adentram os pousos — concordou Elyas —, mas os Ogier não são lá muito abertos a estranhos.

— Todos são abertos ao Povo Errante — disse Raen e sorriu. — Além disso, até mesmo os Ogier têm panelas e coisas para consertar. Venha, vamos tomar o café da manhã e falaremos sobre isso.

— Não há tempo — disse Elyas. — Também vamos embora hoje. O mais rápido possível. É um dia para não se ficar parado, ao que parece.

Raen tentou convencê-lo a pelo menos ficar tempo suficiente para comer, e, quando surgiu de dentro do carroção com Egwene, Ila acrescentou seus próprios argumentos, embora não com o mesmo vigor de seu marido. Ela disse todas as palavras certas, mas sua cordialidade era rígida, e estava patente que ela ficaria feliz de ver Elyas pelas costas, se não Egwene.

Egwene não reparou nos olhares tristes que Ila lhe dava de soslaio. Perguntou o que estava havendo, e Perrin se preparou para que ela dissesse que queria ficar com os Tuatha’an, mas, quando Elyas explicou, ela se limitou a assentir, pensativa, e tornou a entrar depressa no carroção a fim de apanhar suas coisas.

Finalmente Raen desistiu de argumentar.

— Está certo. Não lembro de ter algum dia deixado um visitante partir deste acampamento sem um banquete de despedida, mas… — Vacilante, ele levantou a cabeça e olhou para o céu mais uma vez. — Bem, nós mesmos precisamos sair cedo, eu acho. Talvez façamos a refeição durante a jornada. Mas pelo menos deixe que todo mundo se despeça.

Elyas começou a protestar, mas Raen já estava correndo de um carroção ao outro, batendo com força nas portas onde não havia gente acordada. Quando um dos Latoeiros apareceu trazendo Bela, todo o acampamento já havia acorrido, todos vestidos com suas roupas melhores e mais brilhantes, uma massa de cores que fazia o carroção vermelho e amarelo de Raen e Ila parecer quase discreto. Os grandes cães do acampamento passeavam pela multidão com as línguas de fora, procurando alguém que lhes fizesse carinho nas orelhas, enquanto Perrin e os outros dois resistiam a um aperto de mão atrás do outro e abraço em cima de abraço. As garotas que haviam dançado todas as noites não se contentaram com apertos de mão, e seus abraços fizeram Perrin subitamente desejar não ir embora — até se lembrar de quantas outras pessoas estavam olhando, quando seu rosto ficou quase da cor do carroção do Buscador.

Aram puxou Egwene de lado um pouco. Perrin não conseguiu ouvir o que ele tinha para dizer a ela tamanho era o barulho das despedidas, mas ela não parava de balançar a cabeça em negativa, no começo devagar, mas depois com mais firmeza à medida que ele começava a gesticular como se implorando. O rosto dele mudou: passou de implorar a discutir, mas Egwene continuou a balançar a cabeça teimosamente em negativa até Ila resgatá-la com algumas palavras duras para o neto. De cara feia, Aram abriu caminho em meio à multidão, abandonando o resto da despedida. Ila o viu sair, hesitando quando ia chamá-lo de volta. Ela também está aliviada, pensou Perrin. Aliviada por ele não querer ir conosco — com Egwene.

Quando ele já tinha apertado todas as mãos do acampamento pelo menos uma vez e abraçado cada garota pelo menos duas, a multidão recuou, abrindo um pequeno espaço ao redor de Raen, Ila e dos três visitantes.

— Vocês vieram em paz — entoou Raen, fazendo uma mesura formal, levando as mãos ao peito. — Partam agora em paz. Nossas fogueiras sempre os receberão, em paz. O Caminho da Folha é a paz.

— Que a paz esteja sempre com vocês — replicou Elyas — e com todo o Povo. — Ele hesitou e então acrescentou: — Eu encontrarei a canção, ou outro a encontrará, mas a canção será cantada, este ano ou em um ano por vir. Assim como foi um dia, assim haverá de ser novamente, neste mundo sem fim.

Raen ficou ali, piscando, surpreso, e Ila parecia completamente pasma, mas todos os outros Tuatha’an murmuraram em resposta:

— Mundo sem fim. Mundo e tempo sem fim. — Raen e a esposa disseram o mesmo apressadamente depois de todos os outros.

Então realmente chegou a hora de partir. Algumas últimas despedidas, algumas últimas recomendações para que tomassem cuidado, alguns últimos sorrisos e piscadelas, e eles deixaram o acampamento. Raen os acompanhou até a margem das árvores, um par de cães correndo e pulando ao seu lado.

— Sério, meu velho amigo, você precisa tomar muito cuidado. O dia de hoje… A maldade está à solta no mundo, receio, e, o que quer que você pretenda, você não é tão perverso que ela não o engula.

— A paz esteja convosco — disse Elyas.

— E convosco — respondeu Raen, com tristeza.

Quando Raen foi embora, Elyas fez uma cara feia ao perceber os outros dois olhando para ele.

— Não, eu não acredito na canção idiota deles — grunhiu. — Não há necessidade de fazer com que eles se sintam mal estragando a cerimônia deles, há? Eu disse a vocês que eles às vezes são muito formais com cerimônias.

— É claro — concordou Egwene gentilmente. — Não há nenhuma necessidade. — Elyas lhe deu as costas resmungando para si mesmo.

Pintada, Vento e Saltador vieram saudar Elyas, não brincando como os cães faziam, mas um encontro digno de iguais. Perrin captou o que se passou entre eles. Olhos de fogo. Dor. Presa do coração. Morte. Presa do coração. Perrin sabia o que eles queriam dizer. O Tenebroso. Eles estavam contando sobre o sonho dele. O sonho deles.

Ele estremeceu quando os lobos partiram à frente, para investigar o caminho. Era a vez de Egwene montar Bela, e ele caminhou ao lado dela. Elyas liderou, como de costume, com passo firme, devorando o chão.

Perrin não queria pensar em seu sonho. Ele tinha acreditado que os lobos os deixavam seguros. Não completamente. Aceite. Coração pleno. Mente plena. Você ainda luta. Só se completa quando você aceita.

Ele expulsou os lobos de sua cabeça e piscou, surpreso. Não sabia que podia fazer isso. Agora estava determinado a não deixá-los voltar. Nem em sonhos? Não sabia ao certo se o pensamento era seu ou deles.

Egwene ainda usava o colar de contas azuis que Aram lhe dera, e um raminho de alguma coisa com folhas vermelhas brilhantes e minúsculas nos cabelos, outro presente do jovem Tuatha’an. De que Aram havia tentado convencê-la a ficar com o Povo Errante, Perrin tinha certeza. Estava feliz por ela não ter aceitado, mas queria que ela não ficasse mexendo nas contas com tanto carinho.

Finalmente ele disse:

— O que você passou tanto tempo conversando com Ila? Quando não estava dançando com aquele sujeito de pernas compridas, estava falando com ela como se tivesse algum tipo de segredo.

— Ila estava me dando conselhos sobre como ser uma mulher — respondeu Egwene, distraída.

Ele começou a rir, e ela lhe dirigiu um olhar mortiço e perigoso que ele não conseguiu ver.

— Conselhos! Ninguém nos diz como ser homens. Nós apenas somos.

— Esse — disse Egwene — provavelmente é o motivo pelo qual vocês se saem tão mal.

Lá na frente, Elyas deu uma sonora gargalhada.

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