Sob um céu plúmbeo, a carroça de rodas altas seguia aos trancos para o leste pela Estrada de Caemlyn. Rand se ergueu da palha na traseira para olhar pela lateral. Foi mais fácil do que havia sido uma hora antes. Tinha a sensação de que os braços iriam se estender em vez de erguê-lo, e por um minuto sua cabeça queria seguir em frente, ir embora dali flutuando, mas ainda assim foi mais fácil. Enganchou os cotovelos nas ripas inferiores da lateral e ficou vendo a paisagem passar. O sol, ainda escondido por nuvens opacas, permanecia alto, mas a carroça já entrava, barulhenta, em outra aldeia de casas de tijolos vermelhos cobertas de lianas. As cidadezinhas haviam ficado mais próximas umas das outras desde Quatro Reis.
Algumas das pessoas acenavam ou gritavam um cumprimento para Hyam Kinch, o fazendeiro dono da carroça. Mestre Kinch, de rosto curtido como couro e taciturno, gritava em resposta algumas palavras a cada vez, sem tirar o cachimbo preso entre os dentes. Estes, cerrados, tornavam o que ele dizia praticamente ininteligível, mas soava jovial e parecia satisfatório para as pessoas; elas voltavam ao que estavam fazendo sem outro olhar à carroça. Ninguém parecia prestar atenção aos dois passageiros do fazendeiro.
A estalagem da aldeia passou pelo campo de visão de Rand. Era caiada, com telhado de ardósia cinza. Pessoas entravam e saíam aos montes, acenando casualmente com a cabeça e as mãos uns para os outros. Algumas paravam para falar. Elas se conheciam. Aldeões, em sua maioria, a julgar pelas roupas, botas, calças e casacos não muito diferentes dos que ele próprio vestia, embora com uma preferência desmesurada por listras coloridas. As mulheres usavam boinas grandes que escondiam o rosto e aventais brancos com listras. Talvez fossem todos habitantes das cidades e fazendeiros da região. Isso faz alguma diferença?
Ele se deixou cair de novo sobre a palha, vendo a aldeia passar lentamente entre seus pés. Campos fechados e cercas-vivas bem-cuidadas ladeavam a estrada, e pequenas casas de fazenda com fumaça se erguendo de chaminés de tijolos vermelhos. As únicas matas perto da estrada eram pequenos arvoredos desbastados, cultivados para lenha, dóceis como um quintal. Mas os galhos se destacavam sem folhas contra o céu, desolados como as florestas selvagens a oeste.
Uma fileira de carroções que seguia na direção oposta veio barulhenta pelo meio da estrada, forçando a carroça para a beirada. Mestre Kinch mudou o cachimbo para o canto da boca e cuspiu entre os dentes. Com um dos olhos na roda lateral, para garantir que ela não se emaranhasse na cerca-viva, ele manteve a carroça em movimento. Sua boca se contraiu quando ele olhava o comboio dos mercadores.
Nenhum dos condutores dos carroções estalando seus longos chicotes no ar acima das quatro parelhas de cavalos, nenhum dos guardas de rosto endurecido curvados sobre as selas ao lado dos carroções olhou para a carroça. Rand os viu passar com um aperto no peito. Sua mão manteve-se embaixo do casaco, agarrando o cabo da espada, até que o último carroção passou.
Quando o último carroção afastou-se aos solavancos na direção da aldeia da qual eles haviam acabado de partir, Mat virou-se no banco ao lado do fazendeiro e se inclinou até olhar nos olhos de Rand. O lenço que o protegia da poeira quando necessário ensombreava-lhe os olhos, bem dobrado e amarrado em volta de sua testa. Mesmo assim ele forçou os olhos na luz cinzenta do dia.
— Está vendo alguma coisa lá atrás? — perguntou baixinho. — E os carroções?
Rand balançou a cabeça, e Mat assentiu. Ele também não havia visto nada.
Mestre Kinch olhou-os pelo canto do olho, depois mudou o cachimbo de lugar novamente e sacudiu as rédeas. Isso foi tudo, mas ele havia notado. O cavalo apressou um pouco o passo.
— Seus olhos ainda doem? — perguntou Rand.
Mat tocou o lenço ao redor da cabeça.
— Não. Não muito. A menos que eu olhe quase direto para o sol. E você? Está se sentindo melhor?
— Um pouco. — Realmente estava se sentindo melhor, percebeu. Era um espanto recuperar-se tão rápido. Mais do que isso, era um presente da Luz. Tem de ser a Luz. Tem de ser.
Subitamente um grupo de cavaleiros passava pela carroça, rumo ao oeste como os carroções dos mercadores. Colarinhos brancos compridos pendiam sobre suas armaduras e malhas, e seus mantos e casacos eram vermelhos, como os uniformes dos guardas dos portões em Ponte Branca, porém mais bem-feitos e de melhor ajuste. Seus capacetes cônicos brilhavam como prata. Eles montavam em seus cavalos com as costas bem retas. Finos estandartes vermelhos tremulavam sob as pontas de suas lanças, todas mantidas no mesmo ângulo.
Alguns deles olharam de relance para a carroça ao passarem em duas colunas. Barras de aço mascaravam cada rosto. Rand ficou feliz por seu manto cobrir a espada. Alguns poucos acenaram com a cabeça para Mestre Kinch, não como se o conhecessem, mas como uma saudação neutra. Mestre Kinch retribuiu o aceno da mesma maneira, mas apesar de sua expressão imutável havia um vestígio de aprovação no gesto.
Os cavalos deles caminhavam, mas, somada a velocidade da carroça, eles a ultrapassaram rapidamente. Com parte de sua mente Rand os contou. Dez… vinte… trinta… trinta e dois. Levantou a cabeça para observar as colunas descendo a Estrada de Caemlyn.
— Quem eram? — perguntou Mat, meio surpreso, meio desconfiado.
— Guardas da Rainha — respondeu Mestre Kinch com o cachimbo na boca. Ele mantinha os olhos na estrada à frente. — Não vão muito além de Córrego de Breen, a menos que sejam convocados. Não é como antigamente. — Ele tragou, depois acrescentou: — Suponho que hoje existam partes do Reino que não vejam os Guardas há um ano ou mais. Não é como antigamente.
— O que eles estão fazendo? — perguntou Rand.
O fazendeiro lhe deu uma boa olhada.
— Mantendo a paz da Rainha e garantindo a lei da Rainha. — Ele assentiu para si mesmo como se gostasse de ouvir aquilo e acrescentou: — Caçando malfeitores e os levando perante um magistrado. Hummf! — Ele soltou uma longa baforada. — Vocês dois devem ser de muito longe mesmo para não reconhecerem a Guarda da Rainha. De onde?
— De bem longe — respondeu Mat no mesmo instante que Rand disse: — Dos Dois Rios. — Desejou ter retirado o que disse assim que as palavras saíram. Ainda não estava pensando com clareza. Tentava se esconder, mas mencionava um nome que um Desvanecido ouviria como um sino.
Mestre Kinch olhou de relance para Mat pelo canto do olho e ficou fumando seu cachimbo em silêncio por um tempo.
— Isso é bem longe, com certeza — disse, por fim. — Quase na fronteira do Reino. Mas as coisas devem estar piores do que eu pensava se existem lugares no Reino onde as pessoas sequer reconhecem os Guardas da Rainha. Não é como antigamente mesmo.
Rand se perguntou o que Mestre al’Vere diria se alguém afirmasse diante dele que os Dois Rios faziam parte do reino de alguma Rainha. A Rainha de Andor, ele supôs. Talvez o Prefeito soubesse. Ele sabia um bocado de coisas que surpreendiam Rand. E talvez outros também soubessem, mas ele jamais ouvira ninguém mencionar isso. Os Dois Rios eram os Dois Rios. Cada aldeia cuidava de seus próprios problemas, e se alguma dificuldade envolvesse mais de uma aldeia, os Prefeitos, e talvez os Conselhos das Aldeias, resolviam a questão entre eles.
Mestre Kinch puxou as rédeas, fazendo a carroça parar.
— Só vou até aqui. — Um caminho estreito para carroças levava para o norte; diversas casas de fazenda eram visíveis naquela direção, do outro lado de campos abertos, arados, mas ainda sem nada para colher. — Em dois dias vocês chegam a Caemlyn. Ou chegariam, se seu amigo estivesse com as pernas no lugar.
Mat desceu com um pulo e pegou seu arco e outras coisas, depois ajudou Rand a descer da parte de trás da carroça. As bolsas de Rand lhe pesavam, e suas pernas tremeram, mas ele recusou a mão do amigo e tentou dar alguns passos por conta própria. Ainda não estava firme, mas as pernas aguentaram. Elas até pareciam ficar mais fortes a cada passo.
O fazendeiro não pôs o cavalo para andar na mesma hora. Ficou estudando os dois por um minuto, pitando o cachimbo.
— Vocês podem descansar um ou dois dias na minha casa se quiserem. Não vão perder nada nesse tempo, suponho. Seja qual for a doença da qual você está se recuperando, meu jovem… bem, minha velha e eu já tivemos praticamente toda doença que você puder imaginar antes de você ter nascido, e cuidamos dos nossos filhos com elas também. De qualquer maneira, acredito que você já passou da fase de contágio.
Mat estreitou os olhos, e Rand se pegou franzindo a testa. Nem todo mundo é parte disso. Não pode ser todo mundo.
— Obrigado — disse. — Mas estou bem. De verdade. Quanto tempo até a próxima aldeia?
— Carysford? Vocês conseguem chegar lá, andando, antes de escurecer. — Mestre Kinch tirou o cachimbo da boca e franziu os lábios pensativo antes de continuar. — Primeiro, achei que vocês fossem aprendizes fujões, mas agora acredito que estejam fugindo de algo mais sério. Não sei o que é. Não me interessa. Sou um juiz suficientemente bom de caráter para dizer que vocês não são Amigos das Trevas, e provavelmente não vão roubar nem machucar ninguém. Não é como alguns na estrada hoje em dia. Eu mesmo já me meti em confusão uma ou duas vezes quando tinha a idade de vocês. Se precisam de um lugar para ficar longe das vistas por uns dias, minha fazenda fica a cinco milhas naquela direção — ele indicou com a cabeça a trilha de carroças —, e ninguém nunca passa por lá. O que estiver atrás de vocês provavelmente não os encontrará lá. — Ele limpou a garganta com um pigarro como se envergonhado por falar tanto de uma só vez.
— Como é que o senhor saberia como são os Amigos das Trevas? — Mat perguntou. Ele recuou da carroça, e sua mão se enfiou embaixo do casaco. — O que o senhor sabe a respeito dos Amigos das Trevas?
O rosto de Mestre Kinch ficou rígido.
— Como quiserem — disse e atiçou seu cavalo. A carroça saiu rolando pela trilha estreita, e ele não olhou para trás nem uma única vez.
Mat virou-se para Rand, e sua carranca se desfez.
— Desculpe, Rand. Você precisa de um lugar para descansar. Talvez se a gente for atrás dele… — Ele deu de ombros. — Eu simplesmente não consigo me livrar da sensação de que todo mundo está atrás de nós. Luz, eu queria saber por quê. Queria que isso acabasse. Queria… — Frustrado, deixou as palavras morrerem.
— Ainda existem algumas pessoas boas — afirmou Rand. Mat começou a andar na direção da carroça com o maxilar travado, como se fosse a última coisa que quisesse fazer, mas Rand o deteve. — Não podemos nos dar ao luxo de parar para descansar, Mat. Além do mais, não acho que exista algum lugar para nos escondermos.
Mat assentiu, seu alívio evidente. Ele tentou assumir alguns dos fardos de Rand, os alforjes e o manto de Thom enrolado ao redor da caixa da harpa, mas Rand o impediu. Estava mesmo sentindo as pernas mais fortes. O que quer que esteja atrás de nós?, pensou quando partiam pela estrada. Atrás, não. À nossa espera.
A chuva havia continuado durante toda a noite em que haviam fugido cambaleantes da Carroceiro Dançante, martelando-os com a força de um trovão em um céu negro rasgado pelo relâmpago. Suas roupas ficaram encharcadas em minutos; em uma hora a pele de Rand também parecia encharcada, mas haviam deixado Quatro Reis para trás. Mat estava praticamente cego na escuridão, semicerrando dolorosamente os olhos aos relâmpagos que destacavam por instantes as silhuetas das árvores. Rand o levava pela mão, mas Mat ainda hesitava antes de cada passo, inseguro. A preocupação marcava a testa de Rand. Se Mat não recuperasse a visão, eles mal poderiam andar. Jamais conseguiriam escapar.
Mat pareceu sentir seu pensamento. Apesar do capuz de seu manto, a chuva havia colado os cabelos dele no rosto.
— Rand, você não vai me deixar, vai? Se eu não conseguir continuar? — Sua voz estremeceu.
— Eu não vou deixar você. — Rand apertou a mão do amigo com mais força. — Não vou deixar você não importa o que aconteça. — Que a Luz nos ajude! Um trovão soou lá no alto, e Mat tropeçou, quase caindo, quase jogando-o ao chão também. — Precisamos parar, Mat. Se continuarmos, você vai quebrar uma perna.
— Gode. — Um raio partiu a escuridão bem acima deles quando Mat falou, e o som do trovão abafou todos os demais ruídos, mas no clarão Rand conseguiu ler o nome nos lábios de Mat.
— Ele está morto. — Tem de estar. Luz, que ele esteja morto…
Rand levou Mat até alguns arbustos que o clarão do relâmpago lhe havia revelado. Os arbustos tinham folhas suficientes para fornecer um abrigo razoável da chuva. Não como uma boa árvore, mas ele não queria arriscar outro raio. Poderiam não ter tanta sorte da próxima vez.
Amontoados sob os arbustos, eles tentaram arrumar seus mantos de modo a criar uma pequena tenda sobre os galhos. Era tarde demais para pensar em ficar seco, mas só interromper o açoite incessante das gotas de chuva já seria alguma coisa. Eles se agacharam um contra o outro para dividir o pouco calor corporal que ainda tinham. Pingando como estavam, e com mais pingos que atravessavam os mantos, adormeceram tremendo.
Rand soube de saída que era um sonho. Ele voltara a Quatro Reis, mas a cidade estava vazia a não ser por ele. Os carroções estavam lá, mas sem pessoas, sem cavalos, sem cachorros. Nada vivo. Mas sabia que alguém o esperava.
Enquanto seguia a rua marcada pelos sulcos, os prédios pareciam ficar borrados ao ficarem para trás. Quando ele virava a cabeça, ainda estavam lá, sólidos, mas a sensação de imprecisão permanecia no limiar de sua visão. Era como se só o que ele via realmente existisse, e mesmo assim só enquanto estava vendo. Tinha certeza de que, se virasse rápido o bastante, veria… Não sabia ao certo o quê, mas pensar nisso o inquietava.
A Carroceiro Dançante apareceu à sua frente. De algum modo as cores vivas de sua pintura pareciam cinza e sem vida. Entrou. Gode estava lá, sentado a uma mesa.
Ele só reconheceu o homem pelas roupas, sua seda e veludos escuros. A pele de Gode estava vermelha, queimada, rachada e minando pus. Seu rosto era quase uma caveira, os lábios repuxados de modo a mostrar os dentes e as gengivas. Quando Gode virou a cabeça, um chumaço de seu cabelo se soltou, transformando-se em fuligem ao bater no ombro. Seus olhos sem pálpebras encaravam Rand fixamente.
— Então você está morto — disse Rand. Ficou surpreso por não estar com medo. Talvez por saber que era um sonho.
— Sim — disse a voz de Ba’alzamon —, mas ele achou você para mim. Isso merece uma recompensa, não acha?
Rand se virou e descobriu que podia sentir medo, mesmo sabendo que era um sonho. As roupas de Ba’alzamon eram da cor de sangue seco, e fúria, ódio e triunfo batalhavam em seu rosto.
— Sabe, meu jovem, você não pode se esconder de mim para sempre. De um jeito ou de outro eu o encontrarei. O que o protege também o torna vulnerável. Num momento você se esconde, no seguinte acende um sinal de fogo. Venha para mim, meu jovem. — Ele estendeu a mão para Rand. — Se meus sabujos tiverem de pegar você, poderão não ser tão gentis. Eles têm inveja do que você será, assim que tiver se ajoelhado aos meus pés. É o seu destino. Você me pertence. — A língua queimada de Gode emitiu um som raivoso, ansioso, gorgolejante.
Rand tentou molhar os lábios, mas não tinha saliva na boca.
— Não — conseguiu dizer, e então as palavras vieram mais facilmente. — Eu pertenço a mim mesmo. Não a você. Nunca. A mim mesmo. Se seus Amigos das Trevas me matarem, você jamais me terá.
O fogo no rosto de Ba’alzamon aqueceu o aposento até que o ar começou a ondular.
— Vivo ou morto, jovem, você é meu. A tumba me pertence. Morto é mais fácil, mas vivo é melhor. Melhor para você, jovem. Os vivos têm mais poder na maioria das coisas. — Gode tornou a soltar um gorgolejo incoerente. — Sim, meu bom sabujo. Eis aqui a sua recompensa.
Rand olhou para Gode bem a tempo de ver o corpo do homem se desfazer em pó. Por um instante o rosto queimado exibiu um ar de sublime alegria, que no último instante se transformou em horror, como se tivesse visto algo inesperado à sua espera. As roupas de veludo vazias de Gode caíram na cadeira e no chão entre as cinzas.
Quando Rand se voltou novamente para ele, a mão estendida de Ba’alzamon havia se tornado um punho.
— Você é meu, jovem, vivo ou morto. O Olho do Mundo jamais servirá a você. Eu marco você como meu. — Seu punho se abriu, e ele atirou uma bola de fogo, que atingiu Rand no rosto, explodindo, calcinando.
Rand acordou no escuro com um sobressalto, com a água pingando por entre os mantos em seu rosto. Sua mão tremia quando ele tocou as bochechas. A pele parecia mais sensível, como se queimada de sol.
Subitamente ele percebeu que Mat estava se revirando e gemendo no sono. Ele o sacudiu, e Mat acordou com um gemido.
— Meus olhos! Oh, Luz, meus olhos! Ele tirou meus olhos!
Rand o abraçou, aninhando-o no peito como se fosse um bebê.
— Você vai ficar bem, Mat. Você vai ficar bem. Ele não pode nos ferir. Não vamos deixar. — Ele podia sentir Mat tremendo, soluçando em seu casaco. — Ele não pode nos machucar — sussurrou e quis poder acreditar nisso. O que o protege o torna vulnerável. Eu estou mesmo enlouquecendo.
Logo antes de amanhecer, a chuvarada diminuiu, a última garoa terminando ao alvorecer. As nuvens permaneceram, ameaçadoras, até a metade da manhã. Então o vento chegou, levando-as para o sul, expondo um sol sem calor e atravessando suas roupas molhadas. Não haviam dormido quase nada, e, ainda grogues, vestiram seus mantos e partiram para leste, com Rand levando Mat pela mão. Depois de algum tempo, Mat até se sentiu bem o bastante para reclamar do que a chuva fizera à corda de seu arco. Rand, porém, não o deixava parar para trocá-la por outra, seca, que havia em seu bolso; não ainda.
Chegaram a outra aldeia pouco depois do meio-dia. Rand estremeceu mais intensamente ante a visão de casas de tijolos confortáveis com fumaça saindo das chaminés, mas não se aproximou, conduzindo Mat pelas matas e campos ao sul. Um fazendeiro solitário trabalhando com um forcado num campo lamacento foi a única pessoa que ele viu, mas cuidou para que o homem não os visse, agachando-se entre as árvores. A atenção do fazendeiro estava toda voltada para o trabalho, mas Rand ficou de olho nele até perdê-lo de vista. Se algum dos homens de Gode estivesse vivo, talvez acreditasse que ele e Mat haviam tomado a estrada para o sul, saindo de Quatro Reis, quando não conseguissem encontrar quem os tivesse visto naquela aldeia. Voltaram para a estrada longe das vistas da cidade e andaram até suas roupas ficarem, se não secas, pelo menos úmidas.
Uma hora além da cidade, um fazendeiro lhes deu uma carona em sua carroça de feno meio vazia. Rand havia sido apanhado de surpresa, perdido em sua preocupação com Mat. Este cobria os olhos com as mãos, mesmo com o sol da tarde fraco como estava, tentando enxergar entre pálpebras quase fechadas, e não parava de resmungar sobre a claridade intensa. Quando Rand ouviu o barulho da carroça de feno, já era tarde demais. A estrada encharcada de lama abafava os sons, e a carroça com seus dois cavalos estava meras cinquenta jardas atrás deles. O condutor já os observava.
Para surpresa de Rand, ele parou e lhes ofereceu carona. Rand hesitou, mas era tarde demais para tentar se esconder, e recusar uma carona poderia gravá-los na mente do homem. Ele ajudou Mat a subir até o banco ao lado do fazendeiro, fazendo o mesmo em seguida.
Alpert Mull era um homem atarracado, com mãos e rosto quadrados, ambos marcados e endurecidos pela preocupação e pelo trabalho duro, e estava à procura de alguém com quem conversar. Suas vacas haviam secado, as galinhas haviam parado de pôr ovos, e não havia nada digno de se chamar de pasto. Pela primeira vez na sua memória ele tivera de comprar feno, e metade da carroça fora tudo o que o “velho Bain” o deixara levar. Estava se perguntando se haveria alguma chance de conseguir feno em sua própria terra esse ano, ou qualquer colheita que fosse.
— A Rainha devia fazer alguma coisa, que a Luz a ilumine — resmungou, batendo com os dedos na testa num distraído sinal de respeito.
Mal olhou para Rand ou Mat, mas, quando os deixou à beira da trilha estreita e alinhada que levava à sua fazenda, hesitou, depois disse, quase como que para si mesmo:
— Não sei do que vocês estão fugindo, e não quero saber. Tenho esposa e filhos. Vocês entenderam? Minha família. São tempos difíceis para ajudar estranhos.
Mat tentou enfiar a mão embaixo do casaco, mas Rand segurou seu pulso e o deteve. Ele ficou parado em pé na estrada, olhando para o homem, sem falar.
— Se eu fosse um homem bom — disse Mull —, ofereceria a dois rapazes encharcados até os ossos um lugar para se secarem e se esquentarem na frente da lareira. Mas estes são tempos difíceis, e estranhos… Não sei do que vocês estão fugindo, e não quero saber. Vocês entenderam? Minha família. — Subitamente ele puxou dois longos cachecóis, escuros e grossos, do bolso de seu casaco. — Não é muita coisa, mas tomem. Pertencem aos meus garotos. Eles têm outros. Vocês não me conhecem, entenderam? São tempos difíceis.
— Nós nunca vimos o senhor — disse Rand ao aceitar os cachecóis. — O senhor é um homem bom. O melhor que encontramos em dias.
O fazendeiro mostrou-se surpreso, depois satisfeito. Pegando as rédeas, ele virou os cavalos e desceu a alameda estreita. Antes que ele completasse a curva, Rand já guiava Mat pela Estrada de Caemlyn.
O vento foi ficando mais forte com o cair da noite, Mat começou a perguntar, em tom de queixa, quando iriam parar, mas Rand continuou andando, puxando Mat atrás de si, procurando por um abrigo melhor do que embaixo de uma cerca-viva. Com suas roupas ainda molhadas e o vento ficando mais frio a cada minuto, ele não sabia se conseguiriam sobreviver mais uma noite a céu aberto. A noite caiu sem que ele conseguisse avistar qualquer abrigo. O vento ficou gélido, açoitando seu manto. Então, na escuridão à frente, ele viu luzes. Uma aldeia.
Sua mão deslizou para o bolso, sentindo as moedas ali dentro. Mais que o suficiente para uma refeição e um quarto para os dois. Um quarto abrigado do frio da noite. Se permanecessem a céu aberto, no vento e no frio com roupas úmidas, quem os procurasse não encontraria mais que dois cadáveres. Bastava não atrair atenção, se pudessem evitar. Nada de flauta, e, com os olhos daquele jeito, Mat certamente não teria como fazer malabarismos. Ele agarrou a mão de Rand mais uma vez e partiu na direção das luzes convidativas.
— Quando vamos parar? — perguntou Mat novamente. Do jeito que ele olhava adiante, com a cabeça inclinada para a frente, Rand não tinha certeza se Mat podia vê-lo, quanto mais as luzes da aldeia.
— Quando estivermos em algum lugar quente — ele respondeu.
Poças de luz das janelas das casas iluminavam as ruas da cidade, e as pessoas caminhavam por elas sem se preocupar com o que poderia estar lá fora no escuro. A única estalagem era um prédio grande, de um andar só, com o aspecto de que tivera cômodos acrescentados aos lotes ao longo dos anos sem qualquer planejamento. A porta da frente se abriu para deixar alguém sair, e uma onda de gargalhadas o acompanhou.
Rand ficou paralisado no meio da rua, as risadas bêbadas da Carroceiro Dançante ecoando em sua cabeça. Ele viu o homem descer a rua com um passo nada firme, então respirou fundo e abriu a porta. Tomou cuidado para que o manto cobrisse a espada. As risadas o envolveram.
Lampiões pendurados no teto alto iluminavam a sala, e de cara ele pôde ver e sentir a diferença da estalagem de Saml Hake. Ali não havia bebedeira, para começar. Os homens da cidade, se não estavam inteiramente sóbrios, não estavam muito longe disso. As risadas eram verdadeiras, ainda que um pouco forçadas. Pessoas rindo para esquecer os problemas, mas com uma alegria genuína também. O salão propriamente dito era limpo e arrumado, e quente por conta do fogo que rugia numa grande lareira na outra extremidade. Os sorrisos das atendentes eram tão calorosos quanto o fogo, e quando elas riam Rand podia ver que era porque queriam.
O estalajadeiro era tão limpo quanto sua estalagem, com um avental de um branco reluzente em torno do corpanzil. Rand ficou contente ao ver que ele era um homem corpulento; duvidava que algum dia voltasse a confiar num estalajadeiro magricela. Seu nome era Rulan Allwine, um bom presságio, pensou Rand, com muito da sonoridade de Campo de Emond nele, e ele os olhou de cima a baixo, depois mencionou educadamente o pagamento adiantado.
— Não estou sugerindo que vocês sejam desse tipo, compreendam, mas tem havido alguns na estrada estes dias que não fazem muita questão de pagar no dia seguinte. Parece que há muitos jovens se dirigindo para Caemlyn.
Rand não se ofendeu, molhado e esgotado como estava. Quando Mestre Allwine mencionou o preço, entretanto, seus olhos se arregalaram, e Mat emitiu um som como se tivesse engasgado com alguma coisa.
A papada do estalajadeiro sacudiu quando ele balançou a cabeça lamentando, mas ele parecia estar acostumado a isso.
— São tempos difíceis — disse o estalajadeiro numa voz resignada. — Não há muita coisa, e o pouco que há custa cinco vezes o que estávamos acostumados. E vai estar mais caro no mês que vem, posso lhe assegurar.
Rand pegou seu dinheiro e olhou para Mat. A boca de Mat se apertou, teimosa.
— Quer dormir embaixo de uma cerca? — perguntou Rand. Mat suspirou e esvaziou o bolso com relutância. Quando a quantia foi paga, Rand fez uma careta ao ver o pouco que restava para dividir com Mat.
Dez minutos depois, porém, eles estavam comendo ensopado em uma mesa num canto perto da lareira, empurrando-o para suas colheres com pedaços grandes de pão. As porções não eram tão grandes quanto Rand poderia ter desejado, mas eram quentes e enchiam o estômago. O calor da lareira foi penetrando em seu corpo lentamente. Ele fingia manter os olhos no prato, mas observava a porta com atenção. Aqueles que entravam ou saíam pareciam fazendeiros, mas isso não era o bastante para aplacar seu medo.
Mat comia devagar, saboreando cada pedaço, embora ficasse resmungando por causa da luz dos lampiões. Depois de um tempo, ele pegou o cachecol que Alpert Mull lhe dera e o enrolou ao redor da cabeça, puxando-o para baixo pela testa até que seus olhos ficassem quase escondidos. Isso lhes valeu alguns olhares que Rand gostaria que pudessem ter evitado. Ele limpou o prato com pressa, pedindo a Mat que fizesse o mesmo, depois perguntou a Mestre Allwine sobre o quarto.
O estalajadeiro pareceu surpreso por eles estarem indo se deitar tão cedo, mas não fez qualquer comentário. Pegou uma vela e os conduziu por um labirinto de corredores até um quartinho com duas camas estreitas, num canto da estalagem. Quando foi embora, Rand largou seus pertences ao lado da cama, jogou o manto em cima de uma cadeira e deixou-se cair sobre o edredom inteiramente vestido. Suas roupas ainda estavam úmidas e desconfortáveis, mas, se precisassem sair correndo, queria estar pronto. Manteve o cinturão da espada, e dormiu com a mão no cabo.
O canto de um galo o despertou com um susto pela manhã. Ele ficou ali deitado, vendo a aurora iluminar a janela, e se perguntou se ousaria dormir um pouco mais. Dormir durante o dia, quando poderiam estar andando. Um bocejo fez seus maxilares estalarem.
— Ei — exclamou Mat. — Eu consigo enxergar! — Ele se sentou na cama, olhando à sua volta com os olhos apertados. — Um pouco, pelo menos. Seu rosto ainda está meio borrado, mas dá para dizer quem é você. Eu sabia que eu ia melhorar. À noite vou enxergar melhor que você. De novo.
Rand pulou da cama, coçando-se ao vestir o manto. Suas roupas estavam amarrotadas por terem secado nele enquanto dormia, e elas pinicavam.
— Estamos desperdiçando a luz do dia — disse. Mat pulou da cama tão rápido quanto ele; também estava se coçando.
Rand se sentia bem. Estavam a um dia de distância de Quatro Reis, e nenhum dos homens de Gode havia aparecido. Um dia mais perto de Caemlyn, onde Moiraine estaria esperando por eles. Sim, ela estaria. Nada mais de se preocupar com Amigos das Trevas assim que estivessem novamente com a Aes Sedai e o Guardião. Era estranho querer tanto estar com uma Aes Sedai. Luz, quando eu encontrar Moiraine novamente, vou dar um beijo nela! Riu ao pensar nisso. Sentia-se bem o bastante para investir parte de seu estoque cada vez menor de moedas no desjejum, um grande pedaço de pão e um jarro de leite frio.
Eles estavam comendo nos fundos do salão quando um jovem entrou, da própria aldeia pela aparência, com um passo arrogante e girando no dedo um chapéu de pano enfeitado com uma pluma. A única outra pessoa na sala era um velho que varria o chão e que nem sequer levantou a cabeça. O olhar do jovem correu a sala, mas, quando pousou em Rand e Mat, o chapéu lhe caiu do dedo. Ele ficou encarando os dois por um minuto inteiro antes de pegar o chapéu do chão, depois tornou a olhar mais um pouco, passando os dedos pelos cachos grandes e escuros. Finalmente, aproximou-se da mesa deles, hesitante.
Era mais velho que Rand, mas parou e ficou olhando para eles com timidez.
— Importam-se se eu me sentar? — perguntou ele e imediatamente engoliu em seco como se pudesse ter dito algo errado.
Rand achou que ele poderia estar esperando conseguir um pouco do desjejum deles, embora parecesse capaz de comprar o próprio. A camisa de listras azuis tinha o colarinho bordado, e seu manto azul-escuro era bordado nas bordas. Suas botas de couro não haviam jamais sequer passado perto de qualquer trabalho que as arranhasse, isso Rand podia ver. Então indicou uma cadeira com um gesto de cabeça.
Mat ficou encarando o sujeito enquanto ele puxava a cadeira até a mesa. Rand não soube dizer se ele estava fuzilando o rapaz com os olhos ou apenas tentando ver claramente. De qualquer maneira, a testa franzida de Mat teve seu efeito. O jovem ficou paralisado a meio caminho de se sentar, e não o fez totalmente até que Rand voltasse a sinalizar com a cabeça.
— Qual é o seu nome? — perguntou Rand.
— Meu nome? Meu nome. Ah… chamam-me de Paitr. — Seus olhos iam nervosos de um lado para o outro. — Ah… isso não foi ideia minha, entendam. Eu preciso fazer isso. Eu não queria, mas eles me obrigaram. Vocês têm de entender. Eu não…
Rand estava começando a ficar tenso quando Mat grunhiu:
— Amigo das Trevas.
Paitr levou um susto e fez menção de se levantar da cadeira, olhando ferozmente ao redor, como se cinquenta pessoas estivessem ali e pudessem ouvir. A cabeça do velho ainda estava curvada sobre a vassoura, sua atenção voltada para o chão. Paitr tornou a se sentar e olhou de Rand para Mat e de Mat para Rand com insegurança. O suor começou a porejar sobre seu lábio superior. Era uma acusação suficientemente grave para fazer qualquer um suar, mas ele não disse uma palavra sequer em protesto.
Rand balançou a cabeça devagar. Depois de Gode, ele sabia que Amigos das Trevas não tinham necessariamente a Presa do Dragão na testa, mas, exceto pelas roupas, Paitr poderia ter se encaixado perfeitamente em Campo de Emond. Nada nele sugeria qualquer pista sobre assassinatos ou coisas piores. Ninguém teria olhado duas vezes para ele. Pelo menos Gode havia sido… diferente.
— Deixe-nos em paz — disse Rand. — E diga aos seus amigos que nos deixem em paz. Não queremos nada com eles, e eles não vão conseguir nada conosco.
— Se você não fizer isso — acrescentou Mat, feroz —, vou chamá-lo pelo que é. Vamos ver o que os seus amigos da aldeia pensam disso.
Rand torceu para que não fosse essa a verdadeira intenção de Mat. Isso poderia causar tantos problemas para os dois quanto para Paitr.
Paitr pareceu levar a ameaça a sério. Seu rosto foi ficando cada vez mais pálido.
— Eu… eu ouvi o que aconteceu em Quatro Reis. Pelo menos uma parte. As notícias correm. Temos maneiras de saber das coisas. Mas aqui não há ninguém para aprisionar vocês. Eu estou sozinho, e… e só quero conversar.
— Sobre o quê? — perguntou Mat ao mesmo tempo que Rand dizia:
— Não estamos interessados.
Eles olharam um para o outro, e Mat deu de ombros.
— Não estamos interessados.
Rand engoliu o resto do leite e enfiou o bico da sua metade do pão no bolso. Com o dinheiro quase no fim, aquela poderia ser sua próxima refeição.
Como deixar a estalagem? Se Paitr descobrisse que Mat estava quase cego, contaria a outros… outros Amigos das Trevas. Uma vez Rand vira um lobo separar uma ovelha aleijada do rebanho; havia outros lobos por perto, e ele não podia nem deixar o rebanho nem conseguir um tiro certeiro com seu arco. Assim que a ovelha ficou sozinha, balindo de terror, saltando freneticamente, o lobo que a perseguia se transformou em dez como que por mágica. A lembrança da cena revirou seu estômago. Tampouco eles podiam ficar ali. Mesmo que Paitr estivesse falando a verdade e estivesse mesmo sozinho, quanto tempo permaneceria assim?
— Hora de ir embora, Mat — disse Rand e respirou fundo.
Quando Mat começou a se levantar, atraiu os olhos de Paitr para si inclinando-se para frente e dizendo:
— Deixe-nos em paz, Amigo das Trevas. Não vou repetir. Deixe-nos. Em. Paz.
Paitr engoliu em seco e recuou até dar com as costas na cadeira; era como se seu rosto não tivesse mais sangue. Rand pensou num Myrddraal.
Quando olhou novamente para Mat, este já estava de pé e não parecia debilitado. Rand pendurou apressadamente seus próprios alforjes e outros pacotes ao seu redor, tentando manter a espada sob o manto o tempo todo. Talvez Paitr já soubesse sobre ela; talvez Gode tivesse contado a Ba’alzamon, e este tivesse contado a Paitr; mas achava que não. Achava que Paitr tinha apenas uma vaga ideia do que havia acontecido em Quatro Reis. Por isso ele estava tão apavorado.
O contorno comparativamente brilhante da porta ajudou Mat a ir em linha reta naquela direção, se não rapidamente, pelo menos não tão devagar a ponto de não parecer natural. Rand o seguiu de perto, rezando para que ele não tropeçasse. Felizmente o caminho diante de Mat era limpo e reto, sem mesas nem cadeiras.
Atrás dele, Paitr subitamente se levantou de um pulo.
— Espere — pediu em desespero. — Vocês precisam esperar.
— Deixe-nos em paz — disse Rand sem olhar para trás. Eles estavam quase na porta, e Mat ainda não dera um passo errado.
— Só me escutem — insistiu Paitr e pôs a mão no ombro de Rand para fazê-lo parar.
Imagens rodopiaram na cabeça de Rand. O Trolloc Narg pulando em cima dele em sua casa. O Myrddraal que o ameaçara na Cervo e Leão, em Baerlon. Meios-homens por toda parte, Desvanecidos caçando-os até Shadar Logoth, atacando-os em Ponte Branca. Amigos das Trevas por toda parte. Ele girou, fechando a mão.
— Eu já disse para nos deixar em paz! — Seu soco acertou Paitr em cheio no nariz.
O Amigo das Trevas caiu sentado e ficou ali no chão encarando Rand, com sangue escorrendo do nariz.
— Vocês não vão escapar — ele cuspiu, com raiva. — Não importa quão fortes sejam, o Grande Senhor das Trevas é mais forte. A Sombra engolirá vocês.
Ouviu-se um arquejo do outro lado do salão, e o barulho de um cabo de vassoura caindo no chão. O velho da vassoura finalmente tinha ouvido. Ele ficou ali parado, os olhos arregalados voltados para Paitr. O sangue sumiu de seu rosto enrugado e sua boca se abriu, mas nenhum som saiu. Paitr olhou-o por um instante, depois praguejou e se levantou de um salto, deixando correndo a estalagem e descendo a rua como se lobos famintos estivessem em seus calcanhares. O velho desviou sua atenção para Rand e Mat, nem um pouco menos apavorado.
Rand empurrou Mat para fora da estalagem e da aldeia o mais rápido que pôde, o tempo todo à espera de um grito de alerta que jamais foi dado, mas que nem por isso soava menos alto em seus ouvidos.
— Sangue e cinzas — grunhiu Mat —, eles estão sempre por perto, sempre bem nos nossos calcanhares. Nunca vamos escapar.
— Não, não estão — disse Rand. — Se Ba’alzamon soubesse que estávamos aqui, você acha que ele teria deixado isso para aquele sujeito? Teria havido outro Gode, e vinte ou trinta capangas. Eles ainda estão à caça, mas não saberão até Paitr lhes dizer, e talvez ele realmente esteja sozinho. Ele teria de ir até Quatro Reis, até onde sabemos.
— Mas ele falou…
— Não me interessa. — Ele não sabia ao certo de que “ele” Mat falava, mas isso não mudava nada. — Não vamos nos deitar e deixar que eles nos levem.
Eles pegaram seis caronas, curtas, ao longo do dia. Um fazendeiro lhes disse que um velho maluco na estalagem em Mercado de Sheran estava afirmando que havia Amigos das Trevas na aldeia. O fazendeiro mal conseguia falar; não parava de limpar lágrimas do rosto. Amigos das Trevas em Mercado de Sheran! Era a melhor história que ele havia ouvido desde que Ackley Farren, bêbado, tinha passado a noite no telhado da estalagem.
Outro homem, um mecânico de carroças de rosto redondo com ferramentas penduradas nas laterais da carroça e duas rodas de carroção na parte de trás, contou uma história diferente. Vinte Amigos das Trevas haviam realizado um encontro em Mercado de Sheran. Homens com corpos deformados, e as mulheres piores ainda, todos sujos e vestidos com farrapos. Eles podiam fazer seus joelhos fraquejarem e o estômago revirar só de olhar para você, e, quando eles riam, as risadas nojentas soavam em seus ouvidos por horas e sua cabeça parecia que ia rachar ao meio. Ele mesmo os havia visto, a distância, longe o bastante para se sentir seguro. Se a Rainha não fizesse nada, então alguém devia pedir ajuda aos Filhos da Luz. Alguém devia fazer alguma coisa.
Foi um alívio quando o mecânico os deixou.
Com o sol baixo atrás deles, entraram em uma aldeota bem parecida com Mercado de Sheran. A Estrada de Caemlyn dividia a cidade rigorosamente em duas, mas de ambos os lados da ampla estrada se destacavam fileiras de casinhas de tijolos com telhados de palha. Teias de trepadeiras cobriam os tijolos, embora apenas algumas folhas pendessem delas. A aldeia tinha uma estalagem, um lugar pequeno, que não era maior que a Estalagem Fonte de Vinho, com uma placa em um suporte do lado de fora, rangendo para frente e para trás ao vento. O Homem da Rainha.
Estranho, pensar na Estalagem Fonte de Vinho como pequena. Rand podia se lembrar de quando achava que ela era o máximo que um prédio podia ser. Qualquer coisa maior seria um palácio. Mas ele agora já tinha visto muitas coisas, e subitamente percebeu que nada seria igual para ele quando voltasse para casa. Se algum dia voltasse.
Ele hesitou na entrada da estalagem, mas, mesmo que os preços na O Homem da Rainha não fossem tão altos quanto em Mercado de Sheran, eles não teriam condições de pagar por uma refeição ou um quarto.
Mat viu para onde ele estava olhando e deu umas palmadinhas no bolso onde guardava as bolas coloridas de Thom.
— Consigo ver bem o bastante, desde que não tente nada muito mirabolante. — Seus olhos haviam melhorado, embora ele ainda usasse o lenço na testa e tivesse forçado a vista sempre que olhava para o céu durante o dia. Como Rand não falou nada, Mat continuou: — Não pode haver Amigos das Trevas em cada estalagem daqui a Caemlyn. Além disso, eu não quero dormir embaixo de um arbusto se puder dormir numa cama. — Mas não fez nenhum movimento na direção da estalagem. Limitou-se a ficar ali parado esperando por Rand.
Depois de um instante, Rand assentiu. Nunca se sentira tão cansado desde que saíra de casa. Só pensar em mais uma noite a céu aberto fazia seus ossos doerem. Todo esse desgaste está vindo à tona. A fuga, todo o tempo olhando para trás em busca de seus perseguidores.
— Eles não podem estar em toda parte — concordou.
Ao dar o primeiro passo no salão, perguntou-se se não teria cometido um erro. Era um lugar limpo, mas estava lotado. Todas as mesas estavam cheias, e alguns homens se encostavam nas paredes porque não tinham onde sentar. Pelo jeito como as empregadas corriam entre as mesas com olhares preocupados, e o senhorio também, era uma multidão maior do que estavam acostumados. Gente demais para a pequena aldeia. Era fácil identificar quem não era dali. Não se vestiam de modo diferente do resto, mas mantinham os olhos na comida e na bebida. Os nativos da região observavam os estranhos.
O burburinho das conversas enchia o ar, tão alto que o estalajadeiro os levou para a cozinha quando Rand lhe deu a entender que precisavam conversar com ele. O barulho era quase tão ruim ali quanto no salão, com a cozinheira e seus ajudantes batendo panelas e correndo de um lado para outro.
O estalajadeiro enxugou o rosto com um lenço grande.
— Suponho que vocês estejam a caminho de Caemlyn para ver o falso Dragão, assim como todos os outros tolos do Reino. Bem, são seis em cada quarto e dois ou três por cama, e, se isso não servir, não tenho nada para vocês.
Rand fez seu discurso com uma sensação de mal-estar. Com tanta gente na estrada, quase todos podiam ser Amigos das Trevas, e não havia como identificá-los. Mat demonstrou seu malabarismo: restringiu-se a três bolas, e mesmo assim com cuidado. E Rand pegou a flauta de Thom. Depois de uma dúzia de notas de “O Velho Urso Preto”, o estalajadeiro assentiu com impaciência.
— Vocês servem. Preciso de alguma coisa para tirar a cabeça daqueles idiotas desse tal de Logain. Já aconteceram três brigas sobre ele ser ou não o Dragão de verdade. Guardem suas coisas no canto, e eu vou arrumar um espaço para vocês. Se houver. Idiotas. O mundo está cheio de idiotas que não têm o bom senso de ficar no seu próprio lugar. É isso que está causando todo o problema. Gente que não fica no seu lugar. — Enxugando o rosto, ele saiu apressadamente da cozinha, resmungando baixinho.
A cozinheira e seus ajudantes ignoraram Rand e Mat. Mat não parava de ajustar o cachecol ao redor da cabeça, empurrando-o para cima, depois piscando por causa da luz e puxando-o para baixo novamente. Rand ficou se perguntando se ele conseguiria enxergar bem o bastante para fazer qualquer coisa mais complicada do que malabarismos com três bolas. Quanto a ele próprio…
O incômodo em seu estômago aumentava. Caiu sentado numa banqueta baixa, levando as mãos à cabeça. A cozinha estava fria. Ele estremeceu. O ar estava cheio de vapor; fogões e fornos estalavam com o calor. Os tremores ficaram mais fortes, seus dentes começaram a bater. Ele abraçou o próprio corpo, mas de nada adiantou. Era como se seus ossos estivessem congelando.
Estava vagamente consciente de que Mat lhe perguntava alguma coisa, sacudindo seu ombro, e alguém praguejando e saindo correndo do aposento. Então o estalajadeiro apareceu, com a cozinheira franzindo a testa ao seu lado, e Mat discutindo em voz alta com ambos. Rand não conseguia entender nada do que eles diziam; as palavras eram um zumbido em seus ouvidos, e ele não conseguia pensar.
Subitamente Mat pegou seu braço, levantando-o com um puxão. Todas as suas coisas, alforjes, cobertores enrolados, as caixas dos instrumentos e o manto embrulhado de Thom, pendiam dos ombros de Mat junto com o arco. O estalajadeiro os observava, enxugando o rosto, ansioso. Trançando as pernas, apoiado em Mat, Rand deixou que o amigo o guiasse até a porta dos fundos.
— D-d-desculpe, M-m-mat — ele conseguiu dizer. Não podia impedir que os dentes batessem. — D-d-deve t-t-ter… sido a… chuva. M-mais uma… n-noite fora… n-não vai fazer mal… eu acho. — O crepúsculo escurecia o céu pontilhado por um punhado de estrelas.
— Nem pensar — disse Mat. Ele estava tentando soar animado, mas Rand podia perceber a preocupação oculta. — O estalajadeiro está apavorado com a possibilidade de que as outras pessoas descubram que há alguém doente na estalagem. Eu disse a ele que, se nos chutasse para fora, eu levaria você para o salão. Isso esvaziaria metade dos quartos dele em dez minutos. Apesar de falar muito dos idiotas, ele não quer isso.
— Então o-onde?
— Aqui — disse Mat, abrindo a porta do estábulo com um rangido alto de dobradiças.
Estava mais escuro do lado de dentro do que fora, e o ar tinha cheiro de feno, grãos e cavalo, com um forte odor subjacente de estrume. Quando Mat o baixou até o chão coberto de palha, ele se dobrou com os joelhos no peito, ainda se abraçando e tremendo da cabeça aos pés. Toda a sua força parecia ir para os tremores. Ouviu Mat tropeçar, praguejar e tropeçar mais uma vez, depois um sacolejar de metal. Subitamente a luz aflorou. Mat levantou um lampião velho e amassado.
Se a estalagem estava cheia, o mesmo acontecia com o estábulo. Todas as baias tinham um cavalo, alguns levantando a cabeça e piscando para a luz. Mat olhou de esguelha para a escada no jirau de feno, depois olhou para Rand, agachado no chão, e balançou a cabeça.
— Nunca vou conseguir botar você ali em cima — resmungou Mat. Pendurando o lampião num prego, ele subiu correndo a escada e começou a jogar braçadas de feno para baixo. Descendo apressadamente, fez um leito nos fundos do estábulo e acomodou Rand ali. Cobriu-o com ambos os mantos, mas Rand os empurrou para o lado quase imediatamente.
— Quente — murmurou Rand. Tinha uma vaga consciência de que havia sentido frio apenas um instante antes, mas naquele momento tinha a sensação de que estava dentro de um forno. Puxou seu colarinho, jogando a cabeça para trás. — Quente. — Sentiu a mão de Mat em sua testa.
— Já volto — disse Mat e desapareceu.
Rand ficou se contorcendo no feno, sem saber por quanto tempo, até Mat voltar com uma bandeja cheia numa das mãos, um jarro na outra e duas xícaras penduradas nos dedos pelas alças.
— Aqui não existe nenhuma Sabedoria — disse Mat, caindo de joelhos ao lado de Rand. Ele encheu uma das xícaras e a levou à boca de Rand, que engoliu a água como se não tivesse bebido nada em dias; era como ele se sentia. — Eles nem sequer sabem o que é uma Sabedoria. O que eles têm é alguém chamada Mãe Brune, mas ela está fora fazendo um parto, e ninguém sabe quando volta. Peguei um pouco de pão, queijo e salsicha. O bom Mestre Inlow nos dará qualquer coisa contanto que fiquemos longe das vistas dos seus hóspedes. Aqui, prove um pouco.
Rand virou a cabeça para longe da comida. Só de vê-la, só de pensar em comer, seu estômago se revirava. Depois de um minuto, Mat deu um suspiro e se acomodou para comer. Rand manteve os olhos em outras coisas e tentou não escutar.
Os calafrios vieram mais uma vez, e depois a febre, para ser substituída pelos calafrios, e a febre mais uma vez. Mat o cobria quando ele tremia e lhe dava água quando ele reclamava de sede. A noite foi avançando, e o estábulo parecia se mover na luz tremeluzente. Sombras assumiam formas e se moviam sozinhas. Então ele viu Ba’alzamon vindo pelo estábulo, os olhos ardendo, ladeado por dois Myrddraal, os rostos ocultos nas profundezas dos capuzes negros.
Com os dedos buscando o cabo da espada, ele tentou se levantar, gritando:
— Mat! Mat, eles estão aqui! Luz, eles estão aqui!
Mat acordou de repente, sentado de pernas cruzadas contra a parede.
— O quê? Amigos das Trevas? Onde?
Com os joelhos trêmulos, Rand apontava freneticamente para o outro lado do estábulo… e ficou boquiaberto. As sombras se mexeram, e um cavalo bateu as patas com força enquanto dormia. Mais nada. Rand desabou de volta na palha.
— Não há ninguém a não ser nós — disse Mat. — Aqui, deixe-me pegar isso. — Estendeu a mão para pegar o cinturão da espada de Rand, que segurou o cabo com mais força.
— Não. Não. Eu preciso guardá-la. Ele é meu pai. Entendeu? Ele é m-meu p-pai! — Os tremores tomaram conta dele mais uma vez, mas ele se agarrou à espada como se a uma tábua de salvação. — M-meu p-pai! — Mat desistiu de tentar pegá-la e pôs os mantos de volta sobre ele.
Houve outras visitações durante a noite, enquanto Mat cochilava. Rand nunca tinha certeza se estavam realmente lá ou não. Às vezes ele olhava para Mat, com a cabeça no peito, e se perguntava se ele as veria também caso acordasse.
Egwene saiu das sombras, seus cabelos em uma longa trança escura como em Campo de Emond, o rosto cheio de dor e tristeza.
— Por que você nos deixou? — ela perguntou. — Estamos mortos porque você nos deixou.
Deitado no feno, Rand balançou a cabeça com fraqueza.
— Não, Egwene. Eu não queria deixar vocês. Por favor.
— Estamos todos mortos — disse ela tristemente —, e a morte é o reino do Tenebroso. O Tenebroso nos possui, porque você nos abandonou.
— Não. Eu não tive escolha, Egwene. Por favor. Egwene, não vá. Volte, Egwene!
Mas ela se virou e entrou nas sombras, e se fez sombra.
A expressão de Moiraine era serena, mas seu rosto estava pálido, sem sangue. O manto poderia muito bem ser uma mortalha, e sua voz era um açoite.
— Isso mesmo, Rand al’Thor. Você não tem escolha. Você precisa ir a Tar Valon, ou o Tenebroso o tomará para si. A eternidade acorrentado na Sombra. Somente as Aes Sedai podem salvar você agora. Somente as Aes Sedai.
Thom sorriu sardonicamente para ele. As roupas do menestrel pendiam em farrapos queimados que o fizeram ver os clarões de luz enquanto Thom lutava com o Desvanecido para lhes dar tempo de fugir. A carne sob os trapos estava queimada e enegrecida.
— Confie nas Aes Sedai, garoto, e vai desejar estar morto. Lembre-se, o preço da ajuda das Aes Sedai é sempre menor do que você pode acreditar, e sempre maior do que você pode imaginar. E que Ajah vai encontrar você primeiro, hein? Vermelha? Talvez Negra. Melhor fugir, garoto. Fuja.
O olhar de Lan era duro como granito, e seu rosto estava coberto de sangue.
— Estranho ver uma lâmina com a marca da garça nas mãos de um pastor. Você é digno dela? É melhor que seja. Você está sozinho agora. Não há nada para apoiá-lo, nem às costas nem à frente, e qualquer um pode ser um Amigo das Trevas. — Ele exibiu um sorriso de lobo, e sua boca se encheu de sangue. — Qualquer um.
Perrin surgiu, acusando, implorando por ajuda. A Senhora al’Vere, chorando pela filha, e Bayle Domon, amaldiçoando-o por trazer Desvanecidos a bordo de seu barco, e Mestre Fitch, desesperado diante das cinzas de sua estalagem, e Min, gritando nas garras de um Trolloc, gente que ele conhecia, gente que só encontrara no caminho. Mas o pior foi Tam, que ficou diante dele, a testa franzida, balançando a cabeça, sem dizer uma só palavra.
— Você precisa me contar — implorou-lhe Rand. — Quem sou eu? Diga, por favor. Quem sou eu? Quem sou eu? — gritou.
— Calma, Rand.
Por um momento ele achou que era Tam respondendo, mas então viu que Tam havia desaparecido. Mat encontrava-se debruçado sobre ele, segurando uma xícara de água junto a seus lábios.
— Fique calmo e descanse. Você é Rand al’Thor. É quem você é, com a cara mais feia e a cabeça mais dura dos Dois Rios. Ei, você está suando! A febre cedeu.
— Rand al’Thor? — sussurrou Rand. Mat assentiu, e havia algo de tão reconfortante nisso que Rand adormeceu sem sequer tocar na água.
Foi um sono sem a perturbação dos sonhos, pelo menos nenhum de que ele se lembrasse, mas leve o bastante para que seus olhos se abrissem rapidamente sempre que Mat verificava como ele estava. Uma vez se perguntou se Mat estava conseguindo dormir afinal, mas ele próprio adormeceu antes que esse pensamento fosse muito longe.
O rangido das dobradiças da porta o acordou inteiramente, mas por um momento ele só ficou ali deitado no feno, desejando ainda estar dormindo. Dormindo, ele não tomaria consciência de seu corpo. Seus músculos doíam como farrapos torcidos, e tinham praticamente a mesma força. Fraco, ele tentou levantar a cabeça; conseguiu na segunda tentativa.
Mat estava sentado no lugar de costume, apoiado na parede, ao alcance do braço de Rand. Seu queixo repousava no peito, que subia e descia no ritmo tranquilo do sono profundo. O cachecol havia descido sobre seus olhos.
Rand olhou na direção da porta. Havia uma mulher, segurando-a aberta com uma das mãos. Por um momento ela era apenas uma forma escura em um vestido, contornada pela luz fraca do começo da manhã; e então ela entrou, deixando a porta se fechar sozinha. Na luz do lampião ele pôde vê-la com mais clareza. Tinha mais ou menos a mesma idade de Nynaeve, achou, mas não era nenhuma mulher da aldeia. A seda verde-clara de seu vestido reluzia quando ela caminhava. Seu manto era de um rico e suave cinza, e uma rede de renda prendia seus cabelos. Ela corria os dedos por um pesado colar de ouro enquanto olhava pensativa para Mat e para ele.
— Mat — disse Rand, e depois mais alto: — Mat!
Mat resfolegou e quase caiu ao acordar. Esfregando os olhos para afastar o sono, ele encarou a mulher.
— Vim olhar meu cavalo — disse ela, fazendo um gesto vago na direção das baias. Mas não tirava os olhos deles dois. — Você está doente?
— Ele está bem — respondeu Mat, sério. — Ele só pegou uma friagem na chuva, só isso.
— Talvez eu deva dar uma olhada nele — disse ela. — Tenho certo conhecimento…
Rand se perguntou se ela seria uma Aes Sedai. Mais ainda que suas roupas, sua postura muito segura de si e a maneira como sua cabeça estava altiva, como se prestes a dar uma ordem, não se encaixavam ali. E se ela é uma Aes Sedai, de que Ajah será?
— Já estou bem — disse ele. — Sério. Não precisa.
Ela percorreu o estábulo, levantando um pouco a saia e colocando os sapatinhos cinzentos em pontos específicos do chão. Fazendo uma careta por causa da palha, ela se ajoelhou ao lado dele e sentiu sua testa.
— Sem febre — disse, estudando-o com a testa franzida. Era bonita, tinha as feições angulares, mas não havia calor em seu rosto. Também não era fria; só parecia não ter qualquer tipo de sentimento. — Mas você esteve doente. Sim. Sim. E ainda está fraco como um gatinho recém-nascido. Eu acho… — Ela enfiou a mão sob seu manto, e subitamente as coisas aconteceram rápido demais para Rand fazer algo mais que dar um grito estrangulado.
A mão dela saiu de dentro do casaco como um lampejo; alguma coisa reluziu quando ela pulou por cima de Rand na direção de Mat, que caiu de lado em um movimento desesperado, e ouviu-se um tchunc sólido de metal se cravando em madeira. Foi apenas um instante, e depois tudo ficou em silêncio.
Mat estava deitado de costas, uma das mãos agarrando o pulso dela logo acima da adaga que ela cravara na parede onde seu peito havia estado. A outra mão dele segurava a lâmina de Shadar Logoth contra a garganta dela.
Sem mover nada além dos olhos, ela tentou ver a adaga que Mat segurava. Arregalando os olhos, ela respirou com dificuldade e tentou recuar, mas ele manteve a lâmina encostada em sua pele. Depois disso, ela ficou rígida como uma pedra.
Passando a língua pelos lábios, Rand ficou olhando o quadro vivo acima dele. Mesmo que não estivesse tão fraco, não achava que pudesse ter se movido. Então seu olhar recaiu sobre a adaga dela, e sua boca ficou seca. A madeira ao redor da lâmina estava enegrecendo; finos tentáculos de fumaça subiam da madeira queimada.
— Mat! Mat, a adaga dela!
Mat olhou de relance para a adaga, depois novamente para a mulher, que continuava imóvel, ela também umedecendo os lábios, nervosa. Com dificuldade, Mat arrancou a mão dela do cabo e lhe deu um empurrão; ela caiu para trás, afastando-se deles e se apoiando com as mãos atrás do corpo, com os olhos ainda fixos na lâmina na mão de Mat.
— Não se mexa — disse ele. — Vou usar isso se você se mexer. Acredite, eu vou. — Ela assentiu lentamente; seu olhar não se desviava da adaga de Mat. — Fique de olho nela, Rand.
Rand não sabia ao certo o que deveria fazer se ela tentasse alguma coisa. Gritar, talvez; ele certamente não conseguiria correr atrás dela se tentasse fugir. Mas a mulher ficou sentada ali sem mexer um músculo enquanto Mat arrancava a adaga da parede. O ponto preto parou de crescer, embora uma leve pluma de fumaça ainda saísse do local.
Mat olhou ao redor à procura de um lugar para colocar a adaga, então a jogou para Rand. Ele a pegou, desajeitado, como se fosse uma víbora viva. Parecia comum, ainda que ornamentada, com um cabo de marfim claro e uma lâmina estreita reluzente que não era maior do que a palma de sua mão. Apenas uma adaga. Só que ele havia visto o que ela podia fazer. O cabo não estava sequer morno, mas sua mão começou a suar. Torceu para não deixá-la cair no feno.
A mulher não se moveu de sua posição enquanto observava Mat lentamente se virar em sua direção. Ela o encarava como se ponderando o que ele iria fazer a seguir, mas Rand viu os olhos de Mat se estreitarem subitamente, sua mão segurar a adaga com mais força.
— Mat, não!
— Ela tentou me matar, Rand. Ela teria matado você também. Ela é uma Amiga das Trevas. — Mat cuspiu a palavra.
— Mas nós não somos — disse Rand. A mulher soltou o ar como se tivesse acabado de perceber a intenção de Mat. — Nós não somos, Mat.
Por um momento Mat permaneceu paralisado, a lâmina em sua mão captando a luz do lampião. Então ele assentiu.
— Vá para lá — disse à mulher, gesticulando com a adaga na direção da porta do quartinho das selas.
Ela se levantou devagar, fazendo uma pausa para limpar a palha do vestido. Mesmo quando começou a andar na direção que Mat indicou, ela se movia como se não houvesse razão para ter pressa. Mas Rand reparou que ela mantinha o olhar cauteloso na adaga com cabo de rubi na mão de Mat.
— Vocês realmente deveriam parar de lutar — disse ela. — No fim, seria melhor assim. Vocês verão.
— Melhor? — disse Mat, seco, esfregando o peito onde a lâmina dela teria entrado caso ele não tivesse se movido. — Vá para lá.
Ela deu de ombros casualmente ao obedecer.
— Um erro. Tem havido uma… confusão considerável desde o que aconteceu com aquele tolo egoísta do Gode. Isso para não mencionar quem quer que tenha sido o idiota que deu início ao pânico em Mercado de Sheran. Ninguém sabe ao certo o que aconteceu lá, nem como. Vocês não veem que isso torna as coisas mais perigosas para vocês? Terão lugar de honra se vierem para o Grande Senhor por vontade própria, mas enquanto fugirem haverá perseguição, e quem sabe o que pode acontecer?
Rand sentiu um arrepio. Meus sabujos são ciumentos, e podem não ser gentis.
— Então vocês estão tendo problemas com dois garotos fazendeiros. — A gargalhada de Mat foi sinistra. — Talvez vocês Amigos das Trevas não sejam tão perigosos quanto eu sempre ouvi dizer. — Ele escancarou a porta do quartinho das selas e recuou.
Ela fez uma pausa à porta, olhando para ele sobre o ombro. Seu olhar era gélido, e a voz mais fria ainda.
— Você vai descobrir o quanto somos perigosos. Quando o Myrddraal chegar aqui…
O resto do que ela poderia ter a dizer foi cortado quando Mat bateu a porta e desceu a barra em seus encaixes. Quando ele se virou, seu olhar era de preocupação.
— Desvanecido — disse, com a garganta apertada, voltando a guardar a adaga debaixo do casaco. — Ela diz que está vindo para cá. Como estão as pernas?
— Não dá para dançar — resmungou Rand —, mas, se você me ajudar a levantar, eu consigo andar. — Ele olhou para a lâmina em sua mão e estremeceu. — Sangue e cinzas, posso até correr.
Depois de recolher apressadamente seus pertences, Mat puxou Rand para se levantar. As pernas de Rand tremiam, e ele precisou se apoiar no amigo para permanecer de pé, mas tentou não retardar o passo de Mat. Segurava a adaga da mulher bem longe de si. Do lado de fora da porta havia um balde de água. Ele jogou a adaga dentro dele ao passarem. A lâmina entrou na água com um chiado, vapor subindo da superfície. Com uma careta, ele tentou apressar o passo.
Quando a luz do dia chegou, havia muitas outras pessoas nas ruas, mesmo cedo. Mas cada uma cuidava da própria vida, e ninguém deu atenção a dois jovens saindo da aldeia, não com tantos estranhos por ali. Por via das dúvidas, Rand enrijeceu os músculos, tentando permanecer ereto. A cada passo ele se perguntava se algumas das pessoas que passavam apressadas seriam Amigos das Trevas. Será que algum deles está esperando pela mulher da adaga? Pelo Desvanecido?
A uma milha de distância da aldeia, sua força cedeu. Num minuto ele estava ofegante, pendurado em Mat; no seguinte, estavam ambos no chão. Mat o arrastou para o lado da estrada.
— Precisamos continuar — disse Mat. Ele esfregou o cabelo com a mão, depois puxou o cachecol sobre os olhos. — Mais cedo ou mais tarde alguém vai soltá-la, e eles estarão novamente atrás de nós.
— Eu sei. — Rand ofegou. — Eu sei. Me ajude aqui.
Mat voltou a puxá-lo, mas Rand titubeou, sabendo que não adiantaria. Da primeira vez em que tentasse dar um passo, cairia de cara novamente.
Segurando-o ereto, Mat esperou impacientemente que uma carroça, vindo da aldeia, passasse por eles. Mat soltou um grunhido de surpresa quando a carroça reduziu a velocidade e parou ao lado deles. Um homem com o aspecto de quem trabalha ao sol olhou do banco do condutor.
— Algo errado com ele? — perguntou, com um cachimbo na boca.
— Ele está só cansado — respondeu Mat.
Rand podia ver que isso não seria suficiente, não se inclinando sobre Mat do jeito como estava. Soltou Mat, e deu um passo para longe dele. Suas pernas estremeceram, mas Rand se forçou a ficar ereto.
— Não durmo há dois dias — disse. — Comi alguma coisa que me fez mal. Estou melhor agora, mas não dormi.
O homem soltou um fio de fumaça do canto da boca.
— Estão indo para Caemlyn? Se eu tivesse a idade de vocês, acho que eu também estaria indo para lá ver esse falso Dragão.
— Sim — assentiu Mat. — É isso mesmo. Estamos indo ver o falso Dragão.
— Ora, então subam. Seu amigo vai atrás. Se ele passar mal de novo, melhor que seja na palha, e não aqui em cima. Meu nome é Hyam Kinch.