39 Tessitura da Teia

Rand olhou para a multidão pela janela alta de seu quarto na Bênção da Rainha. As pessoas corriam gritando ao longo da rua, todas seguindo na mesma direção, sacudindo flâmulas e bandeiras, o leão branco montando guarda em mil campos de vermelho. Tanto a gente de Caemlyn quanto os que vinham de fora, todos corriam juntos, e para variar ninguém parecia querer arrebentar a cabeça de ninguém. Nesse dia, talvez, houvesse apenas uma facção.

Deu as costas para a janela com um sorriso. Afora o dia em que Egwene e Perrin entrassem, vivos e rindo do que tinham visto, esse era o dia pelo qual ele mais havia esperado.

— Você vem? — voltou a perguntar.

Mat olhou fuzilando de onde estava, encolhido em uma bola em cima da cama.

— Leve aquele Trolloc de quem você é tão amigo.

— Sangue e cinzas, Mat, ele não é um Trolloc. Você está sendo burro de tão teimoso. Quantas vezes quer ter essa discussão? Luz, até parece que você nunca ouviu falar de Ogier antes.

— Nunca ouvi falar que eles pareciam Trollocs. — Mat enfiou a cara no travesseiro e se enroscou ainda mais.

— Burro de tão teimoso — resmungou Rand. — Quanto tempo você vai ficar se escondendo aqui? Eu não vou ficar subindo essas escadas todas para trazer as suas refeições aqui em cima para sempre. Além disso, um banho cairia bem. — Mat se revirou na cama como se estivesse tentando se enterrar ainda mais fundo nela. Rand suspirou, depois foi até a porta. — Última chance de irmos juntos, Mat. Estou saindo agora. — Ele fechou a porta devagar, esperando que Mat mudasse de ideia, mas o amigo não se mexeu. A porta se fechou.

No corredor, ele se recostou no batente da porta. Mestre Gill dissera que havia uma velha senhora a duas ruas dali, Mãe Grubb, que vendia ervas e emplastros, além de fazer partos, cuidar dos doentes e ler a sorte. Dito assim, parecia um pouco uma Sabedoria. Mat precisava mesmo era de Nynaeve, ou quem sabe de Moiraine, mas Mãe Grubb era tudo que ele tinha. Contudo, levá-la à Bênção da Rainha também poderia atrair o tipo errado de atenção. Tanto para ela quanto para Mat e ele.

Herbalistas e curandeiros estavam atuando com muita discrição em Caemlyn naquele momento; falava-se contra qualquer pessoa que fizesse algum tipo de cura ou adivinhação. Todas as noites a Presa do Dragão era rabiscada impunemente nas portas, às vezes mesmo à luz do dia, e as pessoas podiam esquecer de quem havia curado suas febres e aliviado suas dores de dente quando o grito de Amigo das Trevas soava. Tal era o clima na cidade.

Não que Mat estivesse de fato doente. Ele comia tudo que Rand trazia da cozinha, ainda que não aceitasse nada das mãos de qualquer outra pessoa, e nunca reclamava de dores nem de febre. Ele simplesmente se recusava a sair do quarto. Mas Rand estivera certo de que aquele dia o levaria a sair.

Ajeitou o manto sobre os ombros e girou o cinturão de modo que a espada, com o pano vermelho amarrado ao seu redor, ficasse mais coberta.

Ao pé das escadas, encontrou Mestre Gill justamente começando a subir.

— Tem alguém perguntando por vocês na cidade — disse o estalajadeiro com o cachimbo na boca. Rand sentiu uma pontada de esperança. — Perguntando por você e aqueles seus amigos, pelo nome. Pelo menos por vocês jovens. Parece querer principalmente vocês, os três rapazes.

A esperança foi substituída pela ansiedade.

— Quem? — perguntou Rand. Ele ainda não conseguia evitar olhar para os dois lados do corredor. À exceção deles dois, não havia ninguém ali, da saída para o beco até a porta do salão.

— Não sei o nome dele. Só ouvi falar. Acabo sabendo da maior parte das coisas que acontecem em Caemlyn. Um mendigo. — O estalajadeiro grunhiu. — Meio maluco, pelo que ouvi dizer. Mesmo assim, poderia pegar as Graças da Rainha no Palácio, mesmo com as coisas tão ruins quanto estão. Nos Grandes Dias, a Rainha as confere com as próprias mãos, e nunca ninguém foi recusado por nenhum motivo. Em Caemlyn, ninguém precisa mendigar. Mesmo um homem procurado não pode ser preso enquanto estiver recebendo as Graças da Rainha.

— Um Amigo das Trevas? — Rand perguntou, relutante. Se os Amigos das Trevas sabem os nossos nomes…

— Você está mesmo com esse negócio de Amigo das Trevas na cabeça, meu jovem. Decerto há alguns deles por aí, mas só porque os Mantos-brancos estão deixando todo mundo com os nervos à flor da pele não é motivo para você pensar que a cidade esteja cheia deles. Sabe que boato aqueles idiotas começaram a espalhar agora? “Formas estranhas”. Dá para acreditar numa coisa dessas? Formas estranhas espreitando do lado de fora da cidade à noite. — O estalajadeiro riu até a barriga balançar.

Rand não tinha vontade de rir. Hyam Kinch havia falado de formas estranhas, e certamente houvera um Desvanecido na última vila.

— Que espécie de formas?

— Que espécie? Sei lá que espécie. Formas estranhas. Trollocs, provavelmente. O Homem das Sombras. Lews Therin Fratricida em pessoa, que voltou com quinze metros de altura. Que tipo de formas você acha que as pessoas imaginarão agora que a ideia está na cabeça delas? Mas não precisa se preocupar com isso. — Mestre Gill olhou para ele de esguelha por um momento. — Você está de saída, é? Bom, eu mesmo não posso dizer que ligo para isso, nem mesmo hoje, mas praticamente só quem sobrou aqui foi eu. Seu amigo não vai?

— Mat não está se sentindo muito bem. Talvez mais tarde.

— Bem, que seja. Cuide-se, certo? Mesmo no dia de hoje, os bons homens da Rainha estarão em menor número lá fora. Que a Luz queime o dia em que pensei que veria uma coisa dessas. É melhor você sair pelo beco. Há dois daqueles malditos traidores sentados do outro lado da rua, vigiando minha porta. Eles sabem de que lado eu estou, pela Luz!

Rand enfiou a cabeça pela porta e olhou para os dois lados antes de deslizar para o beco. Um homem corpulento que Mestre Gill havia contratado estava parado na entrada do beco, apoiado numa lança e observando as pessoas passarem correndo com aparente falta de interesse. Rand sabia que era só aparência. O sujeito, seu nome era Lamgwin, via tudo com aqueles olhos de pálpebras pesadas, e apesar de toda a sua corpulência ele podia se mover como um gato. Ele também achava que a Rainha Morgase era a Luz encarnada, ou quase isso. Como ele, havia uma dúzia espalhada ao redor da Bênção da Rainha.

Lamgwin ficou de orelha em pé quando Rand chegou à entrada do beco, mas não desviou sua desatenção da rua. Rand sabia que o homem tinha ouvido sua aproximação.

— Tome cuidado hoje, homem. — A voz de Lamgwin soava como cascalho numa frigideira. — Quando a confusão começar, vai ser bom ter alguém como você por aqui, não em outro lugar com uma faca nas costas.

Rand olhou de relance para o homem corpulento, mas sua surpresa foi muda. Ele sempre tentava manter a espada fora das vistas, mas não era a primeira vez que um dos homens de Mestre Gill supunha que ele saberia se virar em uma luta. Lamgwin não se virou para olhá-lo. O trabalho do homem era proteger a estalagem, e era o que ele fazia.

Empurrando a espada um pouco mais para trás, sob o manto, Rand se misturou ao fluxo de pessoas. Ele viu os dois homens que o estalajadeiro havia mencionado, em pé sobre barris virados para baixo na frente da estalagem para poderem ver por cima da multidão. Não achou que eles o haviam notado sair do beco. Eles não faziam segredo de sua lealdade. Não apenas suas espadas estavam envoltas em branco amarrado com vermelho como também usavam braçadeiras e rosetas brancas nos chapéus.

Em pouco tempo em Caemlyn ele aprendera que lenços vermelhos amarrados em uma espada, ou uma braçadeira ou roseta vermelhos, significavam apoio à Rainha Morgase. Branco dizia que a Rainha e seu envolvimento com as Aes Sedai e Tar Valon eram responsáveis por tudo que havia acontecido de errado. Pelo tempo ruim, e as colheitas fracassadas. Talvez até mesmo pelo falso Dragão.

Ele não queria se envolver na política de Caemlyn. Só que agora era tarde demais. Não apenas porque ele já tivesse escolhido — por acidente, mas acontecera. A situação na cidade já havia passado do ponto em que alguém pudesse permanecer neutro. Até mesmo forasteiros usavam rosetas e braçadeiras, ou amarravam as espadas, e os que usavam branco eram mais numerosos que os que usavam vermelho. Talvez alguns não pensassem daquela maneira, mas estavam longe de casa e aquele era o lado para o qual pendia o sentimento geral em Caemlyn. Homens que apoiavam a Rainha andavam em grupos para sua própria proteção, isso quando saíam às ruas.

Mas aquele dia era diferente. Pelo menos aparentemente. Naquele dia Caemlyn comemorava uma vitória da Luz sobre a Sombra. Naquele dia o falso Dragão estava sendo trazido à cidade para ser exibido perante a Rainha antes de ser levado para Tar Valon, ao norte.

Ninguém falava dessa parte. Ninguém, a não ser as Aes Sedai, podia lidar com um homem realmente capaz de usar o Poder Único, é claro, mas ninguém queria falar disso. A Luz havia derrotado a Sombra, e soldados de Andor haviam estado na vanguarda da batalha. Por ora, isso era tudo o que importava. Por ora, tudo o mais podia ser esquecido.

Será mesmo?, Rand se perguntava. A multidão corria, cantando e sacudindo bandeiras, rindo, mas os homens que ostentavam o vermelho mantinham-se juntos em grupos de dez ou vinte, e não havia mulheres nem crianças com eles. Ele achou que pelo menos dez homens exibiam branco para cada um proclamando lealdade à Rainha. Não pela primeira vez, ele pensou que gostaria que o pano branco tivesse sido o mais barato. Mas será que Mestre Gill teria ajudado se você estivesse mostrando o branco?

A multidão era tão densa que abrir caminho a cotoveladas era inevitável. Nem mesmo os Mantos-brancos gozavam de seus pequenos espaços abertos na massa. Enquanto Rand deixava a multidão carregá-lo na direção da Cidade Interna, percebeu que nem todas as animosidades estavam sendo contidas. Viu um dos Filhos da Luz, de um grupo de três, levar um esbarrão com tanta força que quase caiu. O Manto-branco se segurou por pouco, e quando disparava uma saraivada de impropérios irritados contra o homem que havia esbarrado nele, outro homem cambaleou em sua direção com um ombro deliberadamente mirado nele. Antes que a coisa esquentasse mais, os companheiros do Manto-branco o puxaram para a lateral da rua, onde eles puderam se abrigar sob o umbral de uma porta. Os três pareciam divididos entre seus costumeiros olhares mal-humorados e a incredulidade. A multidão passava como se ninguém tivesse notado, e talvez ninguém tivesse mesmo.

Ninguém teria ousado uma coisa daquelas dois dias antes. Mais do que isso, percebeu Rand, os homens que haviam esbarrado usavam rosetas brancas nos chapéus. Acreditava-se amplamente que os Mantos-brancos apoiavam os que se opunham à Rainha e sua conselheira Aes Sedai, mas isso não fez diferença. Os homens estavam fazendo coisas que nunca pensaram em fazer antes. Empurrar Mantos-brancos hoje. Amanhã, talvez, derrubar uma Rainha… Subitamente desejou que houvesse mais alguns homens perto dele exibindo o vermelho; empurrado por fitas e braçadeiras brancas, ele subitamente se sentiu muito sozinho.

Os Mantos-brancos notaram que ele os olhava e o encararam de volta como se aceitassem um desafio. Ele deixou que um grupo que cantava na multidão o carregasse para longe de suas vistas, cantando junto com eles.

“Avante o Leão,

Avante o Leão,

O Leão Branco vai a campo.

Ruge em desafio para a Sombra.

Avante o Leão,

Avante, Andor triunfante.”

A rota que levaria o falso Dragão para Caemlyn era bem conhecida. Essas ruas estavam sendo mantidas abertas por fileiras sólidas de Guardas da Rainha e lanceiros com mantos vermelhos, mas as pessoas se aglomeravam nas proximidades delas ombro a ombro, até mesmo nas janelas e nos telhados. Rand abriu caminho até a Cidade Interna, tentando chegar mais perto do Palácio. Pensava em realmente ver Logain exibido perante a Rainha. Ver o falso Dragão e uma Rainha também… isso era algo com que ele jamais havia sonhado.

A Cidade Interna fora erigida sobre colinas, e muito do que os Ogier haviam construído ainda permanecia. Enquanto as ruas da Cidade Nova corriam em sua maioria em uma colcha de retalhos maluca, ali elas seguiam as curvas das colinas como se fossem parte natural da terra. Elevações e quedas apresentavam vistas novas e surpreendentes a cada curva. Parques vistos de ângulos diferentes, mesmo do alto, onde seus passeios e monumentos criavam padrões agradáveis ao olhar, ainda que mal tocados pelo verde. Torres subitamente reveladas, paredes ladrilhadas reluzindo à luz do sol com uma centena de cores mutantes. Elevações súbitas onde o olhar podia abranger a cidade inteira, até as planícies ondulantes e florestas além. No todo, teria sido algo maravilhoso de ver se não fosse pela multidão que o apressava antes que ele tivesse chance de realmente assimilar tudo. E todas aquelas ruas curvas tornavam impossível ver muito além.

Subitamente ele foi levado de roldão por uma curva, e lá estava o Palácio. As ruas, mesmo seguindo os contornos naturais da terra, haviam sido dispostas em espiral em torno dele — aquela história viva de menestréis, de espirais brancas, cúpulas douradas e intricados arabescos de cantaria, com o estandarte de Andor tremulando em cada proeminência, uma peça central para a qual todas as outras vistas haviam sido projetadas. Parecia mais algo esculpido por um artista do que simplesmente construído como os edifícios comuns.

Esse vislumbre o fez perceber que não chegaria mais perto. Ninguém tinha permissão de se aproximar do Palácio. Os Guardas da Rainha formavam pelotões de dez fileiras escarlates flanqueando os portões do Palácio. Ao longo do topo das muralhas brancas, em balcões elevados e torres, mais Guardas postavam-se, rígidos, arcos inclinados com precisão sobre peitos com placas metálicas. Eles também pareciam saídos de uma história de menestrel, uma guarda de honra, mas Rand não acreditava que era por isso que eles estavam ali. A multidão clamorosa que se enfileirava pelas ruas era quase um bloco sólido com espadas atadas com lenços brancos, braçadeiras brancas e rosetas brancas. Apenas aqui e ali a muralha alva era interrompida por algumas manchas vermelhas. Os guardas de uniforme vermelho pareciam uma barreira fina contra todo aquele branco.

Desistindo de se aproximar mais do Palácio, ele procurou um lugar onde pudesse usar sua altura como vantagem. Ele não precisava estar na primeira fileira para ver tudo. A multidão se deslocava constantemente, gente empurrando para chegar mais perto da frente, gente se apressando para o que achava ser um ponto com uma vista melhor. Num desses deslocamentos ele se viu a apenas três pessoas da rua, e todos à sua frente eram mais baixos que ele, incluindo os lanceiros. Quase todo mundo era. As pessoas se aglomeravam contra ele de ambos os lados, suando pela pressão de tantos corpos. Os que estavam atrás dele resmungavam por não serem capazes de ver, e tentavam se esgueirar para passar. Ele fincou pé onde estava, criando uma muralha intransponível com os que estavam de ambos os lados. Ele estava satisfeito. Quando o falso Dragão passasse, estaria perto o bastante para ver com clareza o rosto do homem.

Do outro lado da rua, descendo na direção dos portões que davam na Cidade Nova, uma ondulação percorreu a multidão compacta; fazendo a curva, uma maré de pessoas estava se afastando para deixar alguma coisa passar. Não era como o espaço vazio que acompanhava os Mantos-brancos em qualquer dia a não ser aquele. Aquelas pessoas recuavam assustadas, com olhares de medo que se tornavam caretas de nojo. Apertando-se para sair do caminho, elas viravam o rosto para o que quer que estivesse ali, mas olhavam pelos cantos dos olhos até que passasse.

Outros olhos ao seu redor também perceberam a perturbação. Preparados para a chegada do Dragão, mas sem nada a fazer naquele momento além de esperar, a multidão achava que tudo era digno de comentários. Ele ouviu especulações que iam de uma Aes Sedai até o próprio Logain, e algumas sugestões mais desprezíveis que arrancaram gargalhadas dos homens e muxoxos de desdém das mulheres.

A ondulação serpenteava pela multidão, aproximando-se mais da margem da rua à medida que avançava. Ninguém parecia hesitar em deixá-la ir aonde quisesse, mesmo que isso significasse perder um bom lugar para ver enquanto a multidão voltava a se fechar atrás da passagem. Por fim, bem à frente de Rand, a multidão invadiu a rua, empurrando os lanceiros de mantos vermelhos que lutavam para fazê-las voltar, e rompeu o isolamento. A figura corcunda que se arrastava hesitante no espaço que se abria mais parecia uma pilha de farrapos imundos que um homem. Rand ouviu murmúrios de nojo ao seu redor.

O homem em farrapos parou do outro lado da rua. Seu capuz, rasgado e endurecido de tanta sujeira, balançava para a frente e para trás como se procurasse alguma coisa, ou estivesse tentando ouvir algo. Subitamente ele soltou um grito mudo e estendeu uma das mãos, que mais parecia uma garra suja, apontando diretamente para Rand. Imediatamente ele começou a correr agachado pela rua como um inseto.

O mendigo. Fosse qual fosse o azar que tivesse levado o homem a encontrá-lo assim, Rand subitamente teve certeza de que, Amigo das Trevas ou não, ele não queria encontrá-lo cara a cara. Conseguia sentir os olhos do mendigo como água gordurosa sobre sua pele. Particularmente, não queria o homem perto dele ali, cercado por pessoas à beira da violência. As mesmas vozes que antes tinham rido agora o amaldiçoavam enquanto ele empurrava as pessoas para voltar e se afastar da rua.

Ele se apressou, sabendo que a massa densa pela qual tinha de passar empurrando e se esgueirando cederia perante o homem imundo. Lutando para forçar passagem no meio da multidão, ele cambaleou e quase caiu quando subitamente se viu livre. Agitando os braços para manter o equilíbrio, Rand disparou numa corrida. As pessoas apontavam para ele, o único que não estava empurrando na direção oposta, e ainda por cima estava correndo. Gritos o seguiram. O manto drapejava às suas costas, expondo a espada coberta de vermelho. Ao perceber isso, correu ainda mais rápido. Um partidário solitário da Rainha, correndo, bem poderia deflagrar uma perseguição de uma turba de rosetas brancas, mesmo naquele dia. Ele correu, deixando suas pernas compridas dispararem pelas pedras do calçamento. Só quando os gritos ficaram bem para trás ele se permitiu cair de encontro a uma parede, ofegante.

Não sabia onde estava, a não ser que ainda era na Cidade Interna. Não conseguia se lembrar de quantas esquinas havia virado ao longo daquelas ruas curvas. Preparado para voltar a correr, olhou para trás, para o caminho por onde tinha vindo. Apenas uma pessoa andava na rua, uma mulher caminhando placidamente com sua cesta de compras. Quase todos na cidade estavam reunidos para ver um pouco que fosse do falso Dragão. Ele não pode ter me seguido. Eu devo tê-lo deixado para trás.

O mendigo não iria desistir; disso ele tinha certeza, embora não soubesse dizer por quê. Aquela figura em farrapos estaria abrindo caminho à força no meio da multidão naquele exato instante, procurando, e, se Rand voltasse para ver Logain, corria o risco de dar de cara com ele. Por um momento pensou em voltar à Bênção da Rainha, mas tinha certeza de que nunca mais teria outra chance de ver uma Rainha, e esperava jamais ter outra chance de ver um falso Dragão. Parecia haver algo de covarde em deixar um mendigo todo corcunda, mesmo que fosse um Amigo das Trevas, caçá-lo e forçá-lo a se esconder.

Olhou ao redor, pensando. A configuração da Cidade Interna era tal que os prédios eram mantidos numa altura baixa, isso quando havia prédios, de modo que alguém em pé em certo ponto não tivesse nada que lhe bloqueasse a vista planejada. Tinha de haver lugares de onde ele pudesse ver a procissão passar com o falso Dragão. Ainda que ele não pudesse ver a Rainha, poderia ver Logain. Subitamente determinado, ele seguiu em frente.

Na hora seguinte ele encontrou diversos lugares do gênero, cada um já abarrotado de pessoas coladas umas nas outras, evitando o aperto ao longo da rota da procissão. Formavam uma parede sólida de rosetas e braçadeiras brancas. Nada de vermelho. Pensando no que a visão de sua espada poderia fazer numa multidão assim, ele saiu de fininho, cuidadosa e rapidamente.

De repente vieram gritos da Cidade Nova, o clamor e o soar de trombetas, a batida marcial de tambores. Logain e sua escolta já estavam em Caemlyn, a caminho do Palácio.

Desanimado, Rand vagou pelas ruas quase vazias, ainda com uma vaga esperança de encontrar um jeito de ver Logain. Deu com os olhos na encosta, sem edifício nenhum, erguendo-se da rua onde ele estava passando. Numa primavera comum, a encosta estaria coberta de flores e grama, mas naquele momento estava marrom até o muro alto ao longo de sua crista, um muro acima do qual era possível ver copas de árvores.

Aquela parte da rua não havia sido feita para ter nenhuma grande vista, mas logo adiante, acima dos telhados, ele podia ver parte das torres do Palácio, encimadas por estandartes do Leão Branco drapejando ao vento. Ele não sabia exatamente para onde a curva da rua seguia depois de contornar a colina, além de sua visão, mas subitamente teve uma ideia em relação àquele muro no alto da colina.

Os tambores e trombetas estavam se aproximando, os gritos ficando mais altos. Ansioso, ele subiu com dificuldade a encosta. Ela não havia sido feita para ser escalada, mas ele enfiou as botas no gramado morto e conseguiu subir usando arbustos sem folhas como apoio para as mãos. Ofegando tanto pela ânsia de conseguir quanto pelo esforço, ele subiu os últimos metros até o muro. Este erguia-se acima dele, tendo facilmente mais que o dobro de sua altura. O ar trovejava com o rufar dos tambores, ressoava com as trombetas.

O muro havia sido deixado praticamente no estado natural da pedra, os blocos imensos encaixados um no outro tão bem que as juntas eram quase invisíveis; a superfície áspera fazia com que parecesse quase um paredão natural. Rand abriu um sorriso. Os paredões além das Colinas de Areia eram mais altos, e até mesmo Perrin já os havia escalado. Suas mãos procuraram afloramentos de rocha, suas botas encontraram reentrâncias. Os tambores desafiavam-no enquanto escalava. Recusava-se a deixá-los vencer. Chegaria ao topo antes que eles chegassem ao Palácio. Na pressa, as pedras feriam suas mãos e lanhavam seus joelhos sob as calças, mas ele jogou os braços sobre o topo e se ergueu com uma sensação de vitória.

Rápido, ele virou-se para sentar no topo achatado e estreito do muro. Os galhos cheios de folhas de uma árvore enorme despontavam sobre sua cabeça, mas ele nem lhes deu atenção. Olhou por cima dos telhados, mas dali sua linha de visão estava clara. Ele se inclinou para diante, só um pouquinho, e conseguiu ver o portão do Palácio, e os Guardas da Rainha reunidos ali, e a multidão em expectativa. Em expectativa. Seus gritos eram abafados pelo trovejar de tambores e trombetas, mas ainda assim ela aguardava. Ele sorriu. Eu ganhei.

No momento em que se acomodava, a primeira parte da procissão fazia a curva final diante do Palácio. Vinte fileiras de trombeteiros apareceram primeiro, rasgando o ar com repiques e mais repiques triunfantes, uma fanfarra de vitória. Atrás deles, o mesmo número de tamboreiros trovejava. Depois vieram os estandartes de Caemlyn, leões brancos sobre vermelho, portados por homens a cavalo, seguidos pelos soldados de Caemlyn, fileiras e fileiras de soldados da cavalaria, armaduras reluzentes, lanças erguidas com orgulho, flâmulas vermelhas drapejando. Fileiras triplas de lanceiros e arqueiros os ladeavam, e ainda passavam quando os cavaleiros já atravessavam os portões do Palácio entre os Guardas.

O último dos soldados da infantaria fez a curva, e atrás deles havia um carroção gigantesco. Dezesseis cavalos o puxavam em parelhas de quatro. No centro de sua carroceria achatada havia uma grande gaiola de barras de ferro, e em cada canto do carroção sentavam-se duas mulheres, vigiando a jaula como se a procissão e a multidão não existissem. Aes Sedai, ele tinha certeza. Entre o carroção e os soldados de infantaria, e de ambos os lados, cavalgava uma dúzia de Guardiões, seus mantos se agitando e confundindo as vistas. Se as Aes Sedai ignoravam a multidão, os Guardiões a vasculhavam como se não existissem outros guardas além deles.

Com tudo isso, era o homem na jaula que atraía os olhos de Rand. Ele não estava perto o suficiente para ver o rosto de Logain, como havia desejado, mas subitamente ocorreu-lhe que não queria estar mais perto. O falso Dragão era um homem alto, com cabelos compridos e escuros caindo em cachos sobre os ombros largos. Ele se mantinha de pé, apesar do balanço do carroção, com uma das mãos nas barras acima da cabeça. Suas roupas pareciam comuns, um manto, um casaco e calças que não teriam causado comentários em nenhum vilarejo campestre. Mas a maneira como ele as usava. A maneira como se portava. Logain era um rei até o último fio de cabelo. Era como se a jaula nem estivesse ali. Ele se mantinha ereto, de cabeça erguida, e olhava por sobre a multidão como se eles tivessem ido ali para lhe prestar honras. E para onde quer que seu olhar se dirigisse, as pessoas ficavam em silêncio, olhando para ele, assombradas. Quando os olhos de Logain as deixavam, elas gritavam com fúria redobrada, como se para compensar seu silêncio, mas não fazia diferença na postura do homem nem no silêncio que passava com ele. Quando o carroção entrou pelos portões do Palácio, ele se virou para olhar para a massa reunida atrás de si. Elas uivaram para ele, algo além das palavras, uma onda de puro ódio animal e medo, e Logain jogou a cabeça para trás e gargalhou enquanto o Palácio o engolia.

Outros contingentes seguiam atrás do carroção, com bandeiras representando outros que haviam lutado e derrotado o falso Dragão. As Abelhas Douradas de Illian, os três Crescentes Brancos de Tear, o Sol Nascente de Cairhien, outras, muitas outras, de nações e de cidades, e de grandes homens com suas próprias trombetas, seus próprios tambores para estrondejar sua grandeza. Mas eram um anticlímax após Logain.

Rand se inclinou um pouco mais para a frente para tentar captar uma última visão do homem na jaula. Ele foi derrotado, não foi? Luz, ele não estaria numa maldita jaula se não tivesse sido derrotado.

Desequilibrando-se, ele escorregou e agarrou o topo do muro, e se colocou de volta em um ponto mais seguro. Depois de Logain sumir, deu-se conta das mãos que queimavam onde a pedra havia arranhado a palma e os dedos. Mas não conseguia esquecer as imagens. A jaula e as Aes Sedai. Logain, invicto. Não importava a jaula; aquele não era um homem derrotado. Estremeceu e esfregou as mãos doloridas nas coxas.

— Por que as Aes Sedai o estavam vigiando? — perguntou-se em voz alta.

— Elas o estão impedindo de tocar a Fonte Verdadeira, seu bobo.

Ele se virou e olhou para cima, na direção da voz de garota, e subitamente lá se foi seu assento precário. Só teve tempo de perceber que estava caindo para trás quando alguma coisa bateu em sua cabeça e um Logain às gargalhadas o perseguiu na escuridão que o tragou.

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