A Estrada de Caemlyn não era muito diferente da Estrada do Norte nos Dois Rios. Era consideravelmente mais larga, é claro, e mostrava o desgaste de um uso muito maior, mas ainda era de terra batida, ladeada por árvores que não seriam estranhas nos Dois Rios, especialmente porque ali também só as árvores perenes tinham folhas.
A terra em si, porém, era diferente, pois por volta do meio-dia a estrada chegou a um terreno de colinas baixas. Por dois dias a estrada atravessou as colinas, às vezes cortando-as diretamente, se fossem grandes o bastante para desviar demais a estrada de seu rumo, mas não altas a ponto de tornar a escavação difícil demais. À medida que o ângulo do sol se deslocava a cada dia, ficava evidente que a estrada, por mais que parecesse reta aos olhos, fazia uma ligeira curva para o sul em seu rumo para o leste. Rand havia sonhado acordado com o velho mapa de Mestre al’Vere. Metade dos garotos de Campo de Emond o fazia. Segundo se lembrava, a estrada contornava um lugar chamado Colinas de Absher até chegar a Ponte Branca.
De tempos em tempos Lan fazia com que eles desmontassem no alto de uma das colinas, de onde ele podia ter uma boa visão da estrada tanto à frente quanto atrás, assim como da paisagem campestre que os cercava. O Guardião estudava a vista enquanto os demais esticavam as pernas ou se sentavam sob as árvores e comiam.
— Eu costumava gostar de queijo — disse Egwene no terceiro dia depois da partida de Baerlon. Ela sentou-se encostada no tronco de uma árvore, fazendo uma careta para um almoço que era mais uma vez idêntico ao desjejum e ao que seria a ceia. — Nem uma chance de tomar um chá. Um chá quente e delicioso. — Ela puxou seu manto para perto e se moveu em volta da árvore num esforço inútil para evitar o vento redemoinhante.
— Chá de raiz-de-fadiga e raiz de andilay — Nynaeve ia dizendo a Moiraine — são os melhores para a fadiga. Clareiam as ideias e reduzem a queimação nos músculos cansados.
— Tenho certeza de que sim — murmurou a Aes Sedai, dando a Nynaeve um olhar de esguelha.
O maxilar de Nynaeve se retesou, mas ela prosseguiu no mesmo tom.
— Agora, se você precisar ficar sem dormir…
— Nada de chá! — disse Lan, ríspido, a Egwene. — Nada de fogo! Não podemos vê-los ainda, mas eles estão aqui em algum lugar, um Desvanecido ou dois e seus Trollocs, e eles sabem que estamos pegando esta estrada. Não há necessidade de lhes dizer exatamente onde estamos.
— Eu não estava pedindo — resmungou Egwene para dentro do manto. — Só lamentando.
— Se eles sabem que estamos na estrada — perguntou Perrin —, por que não seguimos em linha reta até Ponte Branca?
— Nem mesmo Lan consegue seguir pelo campo tão rápido quanto pela estrada — disse Moiraine, interrompendo Nynaeve —, especialmente não pelas Colinas de Absher. — A Sabedoria soltou um suspiro exasperado. Rand se perguntou o que ela estaria tramando; depois de ignorar a Aes Sedai completamente no primeiro dia, Nynaeve havia passado os dois últimos tentando conversar com ela sobre ervas. Moiraine afastou-se da Sabedoria enquanto continuava a falar. — Por que vocês acham que a estrada faz uma curva para evitá-las? E mais tarde teríamos de voltar a esta estrada. Poderíamos acabar descobrindo que eles estão à nossa frente em vez de nos seguindo.
Rand parecia em dúvida, e Mat resmungou alguma coisa a respeito de “dar uma volta enorme”.
— Você viu alguma fazenda esta manhã? — perguntou Lan. — Ou mesmo a fumaça de uma chaminé? Não viu, porque é tudo desolado de Baerlon a Ponte Branca, e Ponte Branca é onde devemos cruzar o Arinelle. É a única ponte sobre o Arinelle ao sul de Maradon, em Saldaea.
Thom bufou e soprou os bigodes.
— O que os impede de já ter alguém, alguma coisa, em Ponte Branca?
Do oeste veio o lamento agudo de uma corneta. A cabeça de Lan se virou subitamente para olhar a estrada atrás deles. Rand sentiu um arrepio. Uma parte dele permanecia calma o bastante para pensar: dez milhas, não mais.
— Nada os impede, menestrel — disse o Guardião. — Nós confiamos na Luz e na sorte. Mas agora sabemos com certeza que há Trollocs atrás de nós.
Moiraine bateu as mãos, limpando-as.
— Está na hora de seguirmos. — A Aes Sedai montou em sua égua branca.
Isso deflagrou uma correria até os cavalos, acelerada por um segundo toque da corneta. Dessa vez, outras responderam, os sons agudos do oeste como um cântico fúnebre. Rand se preparou para colocar Nuvem num galope imediatamente, e todos os outros seguraram as rédeas com a mesma urgência. Todos menos Lan e Moiraine. O Guardião e a Aes Sedai trocaram um olhar demorado.
— Mantenha-os em marcha, Moiraine Sedai — disse Lan finalmente. — Voltarei assim que puder. Você saberá se eu fracassar. — Colocando a mão na sela de Mandarb, ele pulou nas costas do garanhão negro e desceu galopando a colina. Para o oeste. As cornetas voltaram a soar.
— A Luz o acompanhe, último Senhor das Sete Torres — disse Moiraine quase baixo demais para que Rand ouvisse. Respirando bem fundo, ela girou Aldieb para leste. — Precisamos seguir em frente — disse e iniciou num trote lento e firme. Os outros a seguiram numa linha rígida.
Rand se virou na sela para olhar para Lan, mas o Guardião já havia se perdido de vista entre as colinas baixas e as árvores sem folhas. Último Senhor das Sete Torres, ela o chamara. Ele se perguntou o que isso significava. Não havia pensado que alguém além dele próprio tivesse ouvido, mas Thom estava mastigando as pontas dos bigodes, e seu rosto estava franzido de modo especulativo. O menestrel parecia saber muitas coisas.
As cornetas soaram e responderam mais uma vez atrás deles. Rand se mexeu na sela. Estavam mais perto dessa vez; ele tinha certeza disso. Oito milhas. Talvez sete. Mat e Egwene olharam sobre o ombro, e Perrin encolheu-se, como se esperasse que alguma coisa o acertasse pelas costas. Nynaeve cavalgou até Moiraine para falar com ela.
— Não podemos ir mais rápido? — perguntou. — Essas cornetas estão chegando mais perto.
A Aes Sedai balançou a cabeça.
— E por que eles nos fazem saber que estão lá? Talvez para que nos apressemos sem pensar no que pode estar nos esperando adiante.
Eles continuaram no mesmo ritmo constante. Em intervalos, as cornetas gritavam atrás deles, e a cada vez o som ficava mais próximo. Rand tentou parar de pensar na proximidade, mas o pensamento se libertava a cada alarido. Cinco milhas, ele pensava, ansioso, quando Lan subitamente irrompeu em volta da colina atrás deles num galope.
Ele alcançou Moiraine e puxou as rédeas do garanhão.
— Pelo menos três grupos de Trollocs, cada qual liderado por um Meio-homem. Talvez cinco.
— Se você chegou perto o bastante para vê-los — disse Egwene, preocupada —, eles podem ter visto você. Podem estar bem nos seus calcanhares.
— Ele não foi visto. — Nynaeve endireitou-se quando todos olharam para ela. — Eu segui a trilha dele, lembre-se.
— Psiu — ordenou Moiraine. — Lan está nos dizendo que há, talvez, quinhentos Trollocs atrás de nós.
Um silêncio aturdido se seguiu, e então Lan voltou a falar.
— E eles estão fechando o cerco. Chegarão até nós em pouco menos de uma hora.
Quase que para si mesma, a Aes Sedai disse:
— Se eles eram tantos assim antes, por que não foram usados em Campo de Emond? Se não eram, como chegaram aqui desde então?
— Eles estão espalhados para nos atrair para a frente deles — disse Lan —, com batedores avançando à frente dos grupos principais.
— Nos atraindo na direção de quê? — ponderou Moiraine. Como se em resposta, uma corneta soou ao longe, a oeste, um longo gemido que dessa vez foi respondido por outros, todos à frente deles. Moiraine deteve Aldieb; os outros a imitaram, Thom e todos de Campo de Emond olhando ao redor com medo. Cornetas soaram à frente deles, e atrás. Rand achou que elas continham uma nota de triunfo.
— O que fazemos agora? — Nynaeve quis saber, irritada. — Para onde vamos?
— Só nos restam norte e sul — disse Moiraine, mais pensando alto do que respondendo à Sabedoria. — Ao sul ficam as Colinas de Absher, desoladas e mortas, e o Taren, sem meio de atravessar e sem tráfego por barco. Ao norte, podemos chegar ao Arinelle antes do cair da noite, e haverá uma chance de acharmos o barco de algum comerciante se o gelo tiver quebrado em Maradon.
— Existe um lugar onde os Trollocs não irão — disse Lan, mas a cabeça de Moiraine girou bruscamente para o lado.
— Não! — Ela fez um gesto para o Guardião, que aproximou a cabeça da de Moiraine para que ninguém pudesse ouvir a conversa.
As cornetas soaram, e o cavalo de Rand pateou, nervoso.
— Estão tentando nos assustar — grunhiu Thom, tentando firmar sua montaria. Ele soava ao mesmo tempo zangado e como se os Trollocs estivessem conseguindo. — Estão tentando nos apavorar até entrarmos em pânico e fugirmos. Aí, sim, é que eles nos pegam.
A cabeça de Egwene girava violentamente a cada toque da corneta, olhando primeiro à frente deles, como se procurando os primeiros Trollocs. Rand queria fazer a mesma coisa, mas tentou esconder. Conduziu Nuvem para mais perto dela.
— Vamos para o norte — anunciou Moiraine.
As cornetas soavam agudas quando eles deixaram a estrada e trotaram para as colinas adjacentes.
As colinas eram baixas, mas o caminho era todo em subida e descida, sem um trecho plano sequer, sob árvores de galhos nus e entre arbustos rasteiros mortos. Os cavalos escalavam laboriosamente uma encosta somente para descer a outra. Lan estabeleceu um ritmo difícil, mais rápido do que haviam adotado na estrada.
Galhos chicoteavam Rand no rosto e no peito. Velhas trepadeiras se prendiam em seus braços, e às vezes agarravam seus pés, tirando-o do estribo. As cornetas se aproximavam cada vez mais, e cada vez com mais frequência.
Apesar do ritmo em que Lan os conduzia, eles não avançavam muito rápido. Viajavam dois passos para cima ou para baixo para cada um que avançavam, e cada passo era um esforço. E as cornetas iam se aproximando. Duas milhas, pensou. Talvez menos.
Depois de um tempo Lan começou a espiar primeiro para um lado e depois para o outro, suas duras feições assumindo o mais próximo de um ar de preocupação que Rand já tinha visto. Numa ocasião o Guardião se levantou nos estribos para olhar pelo caminho por onde haviam vindo. Tudo o que Rand podia ver eram árvores. Lan se acomodou de volta na sela e inconscientemente empurrou o manto para trás a fim de liberar sua espada enquanto voltava a vasculhar a floresta.
Rand dirigiu a Mat um olhar questionador, mas Mat se limitou a fazer uma careta para as costas do Guardião e dar de ombros, impotente.
Lan então falou, olhando para trás:
— Há Trollocs por perto. — Eles alcançaram o topo de uma colina e começaram a descer pelo outro lado. — Alguns dos batedores, enviados à frente do resto, provavelmente. Se depararmos com eles, fiquem comigo a todo custo, e façam o que eu fizer. Precisamos continuar no caminho que estamos seguindo.
— Sangue e cinzas! — murmurou Thom. Nynaeve fez um gesto para que Egwene ficasse perto dela.
Grupos dispersos de árvores perenes forneciam a única cobertura, mas Rand tentou espiar em todas as direções ao mesmo tempo, sua imaginação transformando troncos de árvore cinzentos vistos de canto de olho em Trollocs. As cornetas também estavam mais próximas. E logo atrás deles. Disso Rand tinha certeza. Atrás e cada vez mais perto.
Chegaram ao topo de outra colina.
Abaixo deles, começando a subir a encosta, marchavam Trollocs carregando varas encimadas por grandes laços de corda ou ganchos compridos. Muitos Trollocs. A linha se estendia para os dois lados, as extremidades fora do campo de visão, mas no centro, diretamente à frente de Lan, cavalgava um Desvanecido.
O Myrddraal pareceu hesitar quando os humanos surgiram no topo da colina, mas no instante seguinte ele sacou uma espada com a lâmina negra da qual Rand se lembrava de modo tão nauseante, e a brandiu sobre a cabeça. A fileira de Trollocs avançou.
Antes mesmo que o Myrddraal se movesse, a espada de Lan já estava na mão.
— Fiquem comigo! — gritou, e Mandarb mergulhou colina abaixo na direção dos Trollocs. — Pelas Sete Torres! — bradou.
Rand engoliu em seco e incitou o tordilho adiante, o grupo inteiro descendo numa corrente atrás do Guardião. Ele ficou surpreso ao encontrar a espada de Tam em sua mão. Contagiado pelo grito de Lan, descobriu o seu próprio.
— Manetheren! Manetheren!
Perrin adotou o grito:
— Manetheren! Manetheren!
Mat, porém, gritou:
— Carai an Caldazar! Carai an Ellisande! Al Ellisande!
A cabeça do Desvanecido se virou dos Trollocs para os cavaleiros que vinham em sua direção. A espada negra ficou parada sobre sua cabeça, e a abertura de seu capuz girou, procurando algo em meio aos cavaleiros que se aproximavam.
Então Lan chegou ao Myrddraal, enquanto os humanos caíam sobre a fileira de Trollocs. A lâmina do Guardião encontrou a lâmina negra das forjas de Thakan’dar com um clangor semelhante ao de um imenso sino ecoando na grota, um relâmpago de luz azul enchendo o ar como raios acima das nuvens.
Quase-homens com focinho de fera cercaram como um enxame cada um dos humanos, com suas varas e ganchos balançando. Evitaram somente Lan e o Myrddraal; esses dois lutavam em um círculo aberto, cavalos negros enfrentando-se passo a passo, espadas enfrentando-se golpe a golpe. O ar faiscava e repicava.
Nuvem revirou os olhos e relinchou alto, empinando e atacando com os cascos as caras de dentes afiados que o cercavam rosnando. Corpos pesados se apinhavam ombro a ombro ao seu redor. Metendo os calcanhares sem piedade, Rand forçou o tordilho com tudo, brandindo sua espada com pouco da habilidade que Lan havia tentado lhe transmitir, golpeando como se cortasse madeira. Egwene! Desesperado, ele procurou por ela enquanto forçava o cavalo a seguir em frente, abrindo caminho por entre os corpos peludos como se estivesse cortando arbustos rasteiros.
A égua branca disparava e se desviava ao menor toque da mão da Aes Sedai nas rédeas. A expressão de Moiraine era tão dura quanto a de Lan enquanto seu cajado atacava. As chamas envolveram os Trollocs, depois explodiram com um rugido que deixou figuras disformes e imóveis caídas ao chão. Nynaeve e Egwene cavalgavam próximas à Aes Sedai com urgência frenética, mostrando os dentes de maneira tão feroz quanto os Trollocs, as facas na mão. Aquelas lâminas curtas não seriam de nenhuma utilidade se um Trolloc chegasse realmente perto. Rand tentou guiar Nuvem na direção delas, mas o tordilho havia assumido o controle. Relinchando e escoiceando, Nuvem avançava, por mais forte que Rand puxasse as rédeas.
Ao redor das três mulheres um espaço se abria à medida que Trollocs tentavam fugir do cajado de Moiraine, mas, enquanto eles tentavam evitá-la, ela os buscava. Chamas rugiram, e os Trollocs uivaram de ódio e fúria. Acima do rugido e dos uivos era possível ouvir o choque da espada do Guardião contra a do Myrddraal; ao redor deles, o ar reluzia com um clarão azul, seguido por outro. E mais outro.
Um laço na extremidade de uma vara passou sobre a cabeça de Rand. Com um golpe desajeitado, ele cortou o cambão em dois, depois atingiu o Trolloc com cara de bode que o empunhava. Um gancho agarrou seu ombro por trás e se prendeu em seu manto, puxando-o para trás. Freneticamente, quase perdendo a espada, ele agarrou o cepilho da sela para não cair. Nuvem contorceu-se, relinchando. Rand se segurava desesperadamente na sela e nas rédeas; sentia que estava escorregando, pouco a pouco, puxado pelo gancho. Nuvem fez meia-volta; por um instante, Rand viu Perrin, meio fora da sela, pelejando para arrancar o machado das mãos de três Trollocs. Eles o tinham prendido por um braço e ambas as pernas. Nuvem deu um salto, e a visão de Rand encheu-se de Trollocs.
Um Trolloc correu e agarrou a perna de Rand, arrancando seu pé do estribo. Ofegando, Rand se soltou da sela para golpeá-lo. No mesmo instante o gancho o puxou da sela para a traseira de Nuvem; somente o fato de ter se agarrado desesperadamente às rédeas o impediu de ir ao chão. Nuvem empinou e relinchou. E nesse exato momento Rand deixou de sentir os puxões. O Trolloc que estava agarrando sua perna ergueu os braços e gritou, um uivo igual ao de todos os cães do mundo ensandecidos.
Ao redor dos humanos, Trollocs caíam ao chão se contorcendo, puxando os cabelos, arranhando o próprio rosto. Todos os Trollocs. Mordendo o chão, atacando o nada, uivando, uivando, uivando.
Então Rand viu o Myrddraal. Ainda ereto na sela de seu cavalo, que dançava feito louco, ainda brandindo a espada negra, mas sem cabeça.
— Ele não vai morrer até o cair da noite. — Thom teve de gritar, entre uma respiração pesada e outra, acima dos gritos incessantes. — Não completamente. Pelo menos foi o que ouvi.
— Galopem! — gritou Lan com raiva. O Guardião já havia reunido Moiraine e as duas outras mulheres e subido com elas metade da colina seguinte. — Estes não são todos eles! — De fato, as cornetas voltaram a soar com seu toque fúnebre, fazendo-se ouvir acima dos gritos dos Trollocs no chão, a leste, oeste e sul.
Por mais incrível que parecesse, Mat era o único que havia sido derrubado de seu cavalo. Rand trotou em sua direção, mas Mat, estremecendo, jogou um laço com nó corrediço para longe, pegou seu arco e montou sem ajuda, embora esfregasse sem parar a garganta.
As cornetas soavam como cães de caça farejando um cervo. Cães de caça se aproximando. Se Lan já havia definido um ritmo difícil antes, naquele momento ele dobrou a velocidade, até os cavalos começarem a subir a colina mais rápido do que haviam descido a anterior, e quase se lançarem do outro lado. Mesmo assim, as cornetas pareciam cada vez mais próximas, até que os gritos guturais de perseguição já podiam ser ouvidos toda vez que as cornetas faziam uma pausa. Por fim, os humanos alcançaram o topo de uma colina no instante em que os Trollocs surgiam na colina logo atrás deles. O topo da colina ficou negro com tantos Trollocs, seus rostos distorcidos, com focinhos, uivando, e três Myrddraal dominavam a todos. Apenas umas cem braças separavam os dois grupos.
O coração de Rand murchou como uma uva-passa. Três!
As espadas negras dos Myrddraal se ergueram como se fossem uma; Trollocs desceram a encosta aos montes, como uma substância borbulhante e espessa, gritos de triunfo se elevando aos céus, varas balançando acima deles.
Moiraine desmontou de Aldieb. Calmamente, ela retirou algo de sua bolsa e o desembrulhou. Rand vislumbrou um pedaço de marfim escurecido. O angreal. Com o angreal numa das mãos e o cajado na outra, a Aes Sedai fincou bem os pés no chão, de frente para a onda de Trollocs e as espadas negras dos Desvanecidos, ergueu o cajado bem alto e cravou sua ponta com força na terra.
O chão retiniu como uma chaleira de ferro atingida por um martelo. O clangor oco foi diminuindo devagar, até desaparecer. Por um instante, então, houve silêncio. Tudo ficou em silêncio. O vento morreu. Os gritos dos Trollocs cessaram; até mesmo o avanço deles diminuiu e parou. Por um segundo, tudo ficou à espera. Lentamente, o retinido foi voltando, transformando-se em um ronco suave, crescendo até a terra começar a gemer.
O chão tremia sob os cascos de Nuvem. Aquilo era obra da Aes Sedai, como as histórias contavam; Rand desejou estar a cem milhas dali. O tremor transformou-se em um sacolejar que fez as árvores ao redor deles começarem a estremecer. O tordilho tropeçou e quase caiu. Até mesmo Mandarb e Aldieb, sem sua dona, cambalearam como se embriagados, e aqueles que cavalgavam tiveram de se segurar com força às rédeas e crinas, a qualquer coisa, para não cair da sela.
A Aes Sedai ainda estava parada no mesmo lugar, segurando o angreal e seu cajado ereto cravado no topo da colina, e nem ela nem o cajado se moviam um só centímetro, apesar de todos os tremores no chão ao seu redor. O terreno ondulava a partir de seu cajado na direção dos Trollocs, como ondulações em um lago, ondulações que cresciam à medida que corriam, destruindo arbustos velhos, lançando folhas mortas no ar, crescendo, tornando-se ondas de terra, rolando na direção dos Trollocs. As árvores no pequeno vale chicoteavam como relhos nas mãos de garotinhos. Na outra encosta, Trollocs caíam aos montes, tombando uns nos outros, derrubados pela terra enfurecida.
No entanto, como se o chão não estivesse se erguendo ao redor deles, os Myrddraal avançaram numa fileira, seus cavalos negros como a morte não dando um só passo em falso, os cascos em uníssono. Trollocs rolavam no chão ao redor dos corcéis negros, uivando e se agarrando às encostas da colina que corcoveava sob eles, mas os Myrddraal continuaram lentamente a avançar.
Moiraine levantou seu cajado, e a terra parou; ela, porém, ainda não havia acabado. Apontou para o pequeno vale entre as colinas, e chamas brotaram do chão, uma fonte de vinte pés de altura. Ela abriu bem os braços, e o fogo correu para a esquerda e para a direita até onde os olhos podiam ver, propagando-se em uma muralha que separava humanos e Trollocs. O calor fez Rand cobrir o rosto com as mãos, mesmo no topo da colina. As montarias negras dos Myrddraal, fossem quais fossem os estranhos poderes que possuíam, gritaram diante do fogo, empinaram e lutaram contra seus cavaleiros enquanto os Myrddraal as fustigavam, tentando forçá-las a atravessar as chamas.
— Sangue e cinzas — disse Mat debilmente. Rand assentiu, entorpecido.
Subitamente Moiraine oscilou e teria caído se Lan não tivesse pulado do cavalo para agarrá-la.
— Vão — disse ele aos outros. A rispidez da voz contrastava com a gentileza com a qual conduziu a Aes Sedai até sua sela. — Aquele fogo não vai queimar para sempre. Depressa! Cada minuto é valioso!
A muralha de chamas rugia como se de fato fosse queimar para sempre, mas Rand não discutiu. Galoparam rumo ao norte o mais rápido a que puderam forçar os cavalos. As cornetas ao longe soavam desapontadas, como se já soubessem o que havia acontecido, e então se calaram.
Lan e Moiraine logo alcançaram os outros, embora Lan conduzisse Aldieb pelas rédeas enquanto a Aes Sedai oscilava e segurava o cepilho da sela com as duas mãos.
— Logo vou estar bem — disse ela diante dos olhares preocupados de todos. Sua voz parecia cansada mas confiante, e seu olhar era penetrante como sempre. — Terra e Fogo não são o meu forte. Mas não é nada de mais.
Os dois voltaram a assumir a dianteira a um trote veloz. Rand não achou que Moiraine conseguiria se manter na sela a um passo mais rápido. Nynaeve cavalgava à frente, ao lado da Aes Sedai, firmando-a com uma das mãos. Durante algum tempo, enquanto o grupo seguia pelas colinas, as duas mulheres sussurraram, então a Sabedoria enfiou a mão em seu manto e entregou um pacotinho a Moiraine, que o desembrulhou e engoliu seu conteúdo. Nynaeve disse mais uma coisa e depois recuou para ficar com os demais, ignorando os olhares questionadores deles. Apesar das circunstâncias, Rand achou que ela exibia um leve ar de satisfação.
Na verdade, não se importava com o que a Sabedoria estava tramando. Esfregava sem parar o cabo da espada, e sempre que se dava conta do que estava fazendo olhava para ela perplexo. Então é isso que é uma batalha. Ele não conseguia se lembrar de muita coisa, de nenhuma parte específica. Tudo acontecia ao mesmo tempo em sua cabeça, uma massa fundida de rostos peludos e medo. Medo e calor. Tudo parecera ter acontecido debaixo de um sol quente como o meio-dia de verão. Não conseguia entender. O vento gelado tentava congelar as gotas de transpiração por todo seu rosto e corpo.
Olhou para seus dois amigos. Mat estava enxugando o suor do rosto com a ponta do manto. Perrin, olhando para alguma coisa ao longe e não gostando do que via, parecia não se dar conta das gotas que reluziam em sua testa.
As colinas foram ficando menores, e a terra começou a se aplainar, mas, em vez de forçar o avanço, Lan parou. Nynaeve se moveu como se fosse voltar a ficar ao lado de Moiraine, mas o olhar do Guardião fez com que ela mantivesse distância. Ele e a Aes Sedai cavalgaram à frente e aproximaram as cabeças, e pelos gestos de Moiraine ficou claro que estavam discutindo. Nynaeve e Thom olhavam fixamente para eles, a Sabedoria franzindo a testa, preocupada, o menestrel resmungando baixinho e fazendo uma pausa para olhar para o lugar de onde tinham vindo, mas os demais evitavam completamente fazê-lo. Quem sabia o que poderia sair de uma discussão entre uma Aes Sedai e um Guardião?
Depois de alguns minutos, Egwene falou baixinho para Rand, lançando um olhar inquieto para a dupla que ainda discutia.
— Aquelas coisas que você estava gritando para os Trollocs. — Ela parou como se não soubesse direito como prosseguir.
— O que têm elas? — perguntou Rand. Ele se sentia um pouco constrangido; gritos de guerra eram coisa de Guardiões; gente dos Dois Rios não fazia coisas assim, não importava o que Moiraine dissesse… Mas se ela zombasse dele por conta disso… — Mat deve ter repetido essa história umas dez vezes.
— E mal — interrompeu Thom. Mat grunhiu em protesto.
— Independentemente de como ele tenha contado — disse Rand —, nós todos ouvimos um monte de vezes. Além do mais, tínhamos de gritar alguma coisa. Quero dizer, é isso o que você faz numa hora dessas. Você ouviu Lan.
— E nós temos o direito — acrescentou Perrin, pensativo. — Moiraine diz que nós todos descendemos daquele povo de Manetheren. Eles combateram o Tenebroso, e nós estamos combatendo o Tenebroso. Isso nos dá o direito.
Egwene bufou como se para mostrar o que achava disso.
— Não era disso que eu estava falando. O que… o que foi que você estava gritando, Mat?
Mat deu de ombros, desconfortável.
— Não lembro. — Ele os encarou na defensiva. — Não lembro, ora. Está tudo nebuloso. Não sei o que foi, nem de onde veio, nem o que queria dizer. — Ele deu uma risada autodepreciativa. — Não creio que queira dizer alguma coisa.
— Eu… eu acho que sim — disse Egwene devagar. — Quando você gritou, eu achei… só por um minuto… achei ter entendido. Mas agora não sei mais. — Ela suspirou e balançou a cabeça. — Talvez você tenha razão. Estranho o que você consegue imaginar em momentos como esse, não é?
— Carai an Caldazar — repetiu Moiraine. Todos se viraram para fitá-la. — Carai an Ellisande. Al Ellisande. Pela honra da Águia Vermelha. Pela honra da Rosa do Sol. A Rosa do Sol. O antigo grito de guerra de Manetheren, e o grito de guerra de seu último rei. Eldrene era chamada de Rosa do Sol. — O sorriso de Moiraine abarcou tanto Egwene quanto Mat, embora seu olhar possa ter se detido por um instante a mais nele. — O sangue da linhagem de Arad ainda é forte nos Dois Rios. O sangue antigo ainda canta.
Mat e Egwene se entreolharam enquanto todos os outros os fitavam. Os olhos de Egwene estavam arregalados, e sua boca ficava se retorcendo num sorriso que ela procurava reprimir toda vez que nascia, como se não tivesse certeza de como encarar essa história de sangue antigo. Mat tinha certeza, a julgar por sua testa franzida e sua cara feia.
Rand achou que sabia o que Mat estava pensando. A mesma coisa que ele. Se Mat era descendente dos antigos reis de Manetheren, talvez os Trollocs estivessem realmente atrás dele e não atrás de todos os três. Esse pensamento o deixou envergonhado. Suas bochechas ficaram vermelhas, e quando ele vislumbrou um sorriso culpado no rosto de Perrin, percebeu que Perrin também havia pensado a mesma coisa.
— Não posso dizer que já tenha ouvido nada parecido — disse Thom depois de um minuto. Ele se sacudiu e falou com brusquidão: — Em outra ocasião eu poderia até criar uma história baseada nisso, mas agora… Você pretende ficar aqui pelo resto do dia, Aes Sedai?
— Não — respondeu Moiraine, pegando suas rédeas.
O som agudo de uma corneta dos Trollocs soou vindo do sul, como se para enfatizar sua palavra. Mais cornetas responderam, a leste e a oeste. Os cavalos começaram a relinchar e andar de lado, nervosos.
— Eles passaram pelo fogo — afirmou Lan com calma. Então virou-se para Moiraine. — Você não tem forças suficientes para o que pretende, não ainda, não sem descansar. E nem Myrddraal nem Trollocs entrarão naquele lugar.
Moiraine ergueu uma das mãos, como se para interrompê-lo, depois suspirou e a deixou cair.
— Muito bem — disse ela, irritada. — Suponho que você esteja certo, mas eu preferia ter outra opção. — Ela puxou o cajado de sob a cilha de sua sela. — Aproximem-se, todos vocês. Cheguem o mais perto de mim que puderem. Mais perto.
Rand levou Nuvem para perto da égua da Aes Sedai. Por insistência de Moiraine, eles continuaram aglomerando-se em um círculo ao redor dela até que cada cavalo tinha a cabeça esticada sobre o traseiro ou a cernelha de outro. Somente aí a Aes Sedai se deu por satisfeita. Então, sem falar, ela se levantou nos estribos e girou o cajado sobre as cabeças deles, esticando-se para ter certeza de cobrir a todos.
Rand se encolheu todas as vezes que o cajado passou por cima dele. A cada passagem ele sentiu um formigamento. Podia ter acompanhado o cajado sem vê-lo, só acompanhando os tremores enquanto ele se movia por cima das pessoas. Não o surpreendia o fato de que Lan fosse o único a não ser afetado.
Subitamente Moiraine apontou o cajado para oeste. Folhas mortas rodopiaram no ar e galhos chicotearam, como se um pequeno redemoinho corresse na direção para a qual ela apontava. Quando o redemoinho invisível desapareceu de vista, ela tornou a se acomodar em sua sela com um suspiro.
— Para os Trollocs — disse ela —, nossos cheiros e nossos rastros vão parecer seguir naquela direção. Com o tempo, os Myrddraal conseguirão entender, mas até lá…
— Até lá — disse Lan — nosso rastro terá se perdido.
— Seu cajado é muito poderoso — disse Egwene, recebendo um bufo de Nynaeve.
Moiraine estalou a língua.
— Eu já lhe disse, criança, coisas não têm poder. O Poder Único vem da Fonte Verdadeira, e apenas uma mente viva pode contê-lo. Este não é sequer um angreal, somente um auxílio para a concentração. — Cansada, ela deslizou o cajado de volta para baixo da cilha do arreio. — Lan?
— Sigam-me — disse o Guardião — e fiquem quietos. Vão estragar tudo se os Trollocs nos ouvirem.
Ele tornou a assumir a liderança no caminho para o norte, não no ritmo avassalador de antes, mas no trote rápido no qual haviam percorrido a Estrada de Caemlyn. A terra continuou a se aplainar, embora a floresta permanecesse tão espessa quanto antes.
O caminho deles não era mais reto como fora, pois Lan escolhera uma rota que ziguezagueava em meio a um terreno difícil e a afloramentos rochosos, e não os deixava mais abrir caminho à força entre arbustos emaranhados; em vez disso, levavam mais tempo dando a volta. De quando em quando ele se deixava ficar na retaguarda, estudando atentamente a trilha que deixavam. Uma simples tosse de alguém atraía um grunhido feroz da parte dele.
Nynaeve cavalgava ao lado da Aes Sedai, a preocupação lutando contra a antipatia em seu rosto. E havia um vestígio de algo a mais, pensou Rand, quase como se a Sabedoria tivesse alguma meta em vista. Os ombros de Moiraine estavam caídos, e ela segurava as rédeas e a sela com ambas as mãos, oscilando a cada passo que Aldieb dava. Estava claro que lançar a trilha falsa, por menor que pudesse ter parecido se comparado a produzir um terremoto e uma muralha de chamas, havia consumido grande parte de suas forças, forças essas que ela não tinha mais a perder.
Rand quase desejou que as cornetas recomeçassem. Pelo menos eram uma maneira de saber a que distância estavam os Trollocs. E os Desvanecidos.
Ele continuava olhando para trás, e por isso não foi o primeiro a ver o que se estendia à frente. Quando viu, ficou olhando fixamente, perplexo. Uma massa grande e irregular se estendia a perder de vista para os dois lados, em quase toda a extensão tão alta quanto as árvores que iam até ela, com pontas ainda mais altas aqui e acolá. Videiras e trepadeiras sem folhas cobriam tudo em camadas grossas. Um desfiladeiro? As lianas vão facilitar a subida, mas jamais conseguiremos levar os cavalos.
Subitamente, quando se aproximaram um pouco mais, ele viu uma torre. Era claramente uma torre, não uma espécie de formação rochosa, com uma estranha cúpula pontuda no topo.
— Uma cidade! — exclamou ele. Era a muralha de uma cidade, e os espigões eram torres de vigilância na muralha. Seu queixo caiu. Devia ser dez vezes maior que Baerlon. Cinquenta vezes maior.
Mat assentiu.
— Uma cidade — concordou ele. — Mas o que uma cidade está fazendo no meio de uma floresta como esta?
— E sem gente alguma — disse Perrin. Quando olharam para ele, Perrin apontou para a muralha. — As pessoas deixariam videiras crescer sobre tudo desse jeito? Vocês sabem como as trepadeiras podem derrubar uma parede. Olhem como ela está caída.
O que Rand via se reajustou em sua mente. Era como Perrin apontara. Debaixo de quase todos os pontos mais baixos na muralha havia um monte de destroços; entulho da muralha desabada acima. Não havia duas torres de vigilância da mesma altura.
— Eu me pergunto que cidade era essa — refletiu Egwene. — O que terá acontecido com ela? Não lembro de nada assim no mapa de papai.
— Ela se chamava Aridhol — informou Moiraine. — Nos tempos das Guerras dos Trollocs, era aliada de Manetheren. — Olhando para a muralha maciça, ela parecia quase não se dar conta da presença dos outros, mesmo de Nynaeve, que a apoiava na sela com uma das mãos em seu braço. — Mais tarde Aridhol desapareceu, e este lugar passou a ser chamado por outro nome.
— Que nome? — perguntou Mat.
— Aqui — disse Lan. Ele deteve Mandarb diante do que antes havia sido um portão grande o bastante para cinquenta homens marcharem lado a lado. Somente as torres de vigilância quebradas e incrustadas com trepadeiras permaneciam; dos portões não havia nem sinal. — Vamos entrar por aqui. — Cornetas de Trollocs soaram agudas ao longe. Lan olhou na direção do som e depois olhou para o sol, a meio caminho das copas das árvores a oeste. — Eles descobriram que a trilha era falsa. Vamos. Precisamos encontrar abrigo antes de escurecer.
— Que nome? — Mat tornou a perguntar.
Moiraine respondeu quando entravam na cidade.
— Shadar Logoth — disse ela. — Este lugar se chama Shadar Logoth.