— Elas já deviam ter voltado, a essa altura. — Egwene abanava com força o leque de seda pintada, feliz por as noites serem pelo menos um pouco mais frescas que os dias. As mulheres tairenas usavam leques o tempo inteiro, pelo menos as nobres e ricas, mas parecia que estes só faziam alguma diferença depois de o sol se pôr, e mesmo assim não era muita. Até os grandes lampiões dourados e espelhados que pendiam de suportes prateados nas paredes pareciam esquentar ainda mais o ambiente. — Por que ainda não chegaram? — Moiraine lhes prometera um encontro de uma hora, pela primeira vez em dias, mas saíra sem dar explicação depois de cinco míseros minutos. — Ela deixou escapar alguma coisa sobre o motivo de estar sendo chamada, Aviendha? Ou sobre quem a chamou, pelo menos?
Sentada de pernas cruzadas no chão perto da porta, com os olhos verdes destacando-se no rosto bronzeado, a Aiel deu de ombros. Ela usava casaco, calças, botas macias e a shoufa enrolada no pescoço, e parecia desarmada.
— Careen sussurrou a mensagem a Moiraine Sedai. Não teria sido apropriado tentar escutar. Lamento, Aes Sedai.
Cheia de culpa, Egwene tocou o anel da Grande Serpente na mão direita, a serpente dourada mordendo a própria cauda. Como Aceita, deveria usá-lo no terceiro dedo da mão esquerda, mas deixar os Grão-lordes acreditarem que havia quatro Aes Sedai plenas na Pedra garantia os bons modos com que as recebiam, ou o que quer que os nobres tairenos considerassem bons modos. Moiraine não mentia, naturalmente. Jamais dissera que as três eram algo mais do que Aceitas. Mas também não dissera que eram Aceitas, deixara todos pensarem o que quisessem, acreditarem no que pensavam ver. Moiraine não podia mentir, mas sabia fazer a verdade dançar uma bela jiga.
Não era a primeira vez que Egwene e as outras se passavam por irmãs plenas desde que haviam deixado a Torre, mas a jovem sentia-se cada vez mais desconfortável por enganar Aviendha. Gostava da Aiel, achava que as duas poderiam ser amigas, caso viessem a se conhecer melhor. Mas isso parecia quase impossível enquanto Aviendha pensasse que Egwene era Aes Sedai. A Aiel estava ali apenas por ordem de Moiraine, para servir a seus propósitos secretos. Egwene suspeitava de que fosse para lhes servir de guarda-costas Aiel, como se as três não tivessem aprendido a se defenderem sozinhas. Ainda assim, mesmo que ela e Aviendha se tornassem amigas, não poderia contar a verdade à mulher. A melhor forma de guardar segredo era não revelar nada a ninguém, a menos que fosse absolutamente necessário. Esse fora outro argumento de Moiraine. Algumas vezes, Egwene se pegava desejando que as Aes Sedai estivessem erradas, completamente erradas, pelo menos uma vez. De uma forma que não causasse nenhum desastre, é claro. Essa era a dificuldade.
— Tanchico — murmurou Nynaeve. A trança escura, da grossura de um punho, pendia até a cintura enquanto ela olhava por uma das janelas estreitas, os caixilhos virados para baixo na esperança de deixar entrar um pouco da brisa noturna. No largo Rio Erinin, abaixo, balançavam-se as lanternas dos poucos botes pesqueiros que não ousaram descê-lo, mas Egwene duvidava que pudessem vê-las. — Ao que parece, a única alternativa é irmos para Tanchico. — Nynaeve deu um puxão inconsciente no vestido verde que deixava os ombros descobertos. Fazia isso com frequência. Negaria estar usando o vestido para Lan, o Guardião de Moiraine, caso Egwene ousasse sugerir tal coisa, mas verde, azul e branco pareciam ser as cores preferidas de Lan, para as mulheres, e todos os vestidos que não eram verdes, azuis ou brancos tinham desaparecido do guarda-roupas de Nynaeve. — Não temos alternativa. — Ela não parecia contente.
Egwene percebeu que puxava o próprio vestido para cima. Esses vestidos que só se sustentavam por alças na lateral dos ombros eram estranhos. Por outro lado, ela não aguentaria cobrir mais o corpo. Por mais leve que fosse, o linho vermelho-claro parecia lã. Desejou ser capaz de usar aqueles vestidos transparentes que Berelain vestia. Não que fossem apropriados para usar à vista de todos, mas sem dúvida pareciam bem frescos.
Pare com essa choradeira por causa do desconforto, disse a si mesma. Concentre-se.
— Talvez — disse, em voz alta. — Mas eu não estou muito convencida.
Uma mesa comprida e estreita, polida até brilhar, ocupava o centro do salão. Havia uma cadeira alta no canto próximo a Egwene, com leves entalhes e douraduras aqui e ali, bastante simples para os padrões de Tear. Os espaldares das cadeiras laterais iam diminuindo à medida que se afastavam da mais decorada, e as do extremo oposto eram pouco maiores que banquinhos. Egwene não fazia ideia de qual era o propósito dos tairenos para aquele salão. Ela e as outras o usavam para interrogar as duas prisioneiras capturadas despois da queda da Pedra.
Não conseguira se obrigar a ir até os calabouços, embora Rand tivesse ordenado que todos os utensílios que decoravam o aposento da guarda fossem derretidos ou queimados. Nynaeve e Elayne também não tinham ficado ansiosas para retornar. Além do mais, este salão bem iluminado, com piso de azulejos brilhantes e painéis de parede com entalhes das Três Luas Crescentes de Tear, fazia enorme contraste com as pedras cinza e sombrias das celas pouco iluminadas, úmidas e imundas. Aquilo deveria exercer algum efeito calmante nas duas mulheres vestidas nas pesadas roupas de lã dos prisioneiros.
Bastava o grosso vestido de lã para revelar à maioria que Joiya Byir, parada em pé do outro lado de mesa, as costas curvadas, era uma prisioneira. Ela tinha sido da Ajah Cinza, e não perdera nem um pouco do frio autocontrole característico de sua Ajah ao deslocar sua lealdade para a Negra. Cada traço de sua expressão parecia indicar que ela encarava a janela oposta por escolha própria, não por qualquer outra razão. Apenas uma mulher capaz de canalizar poderia ver os robustos fluxos de Ar que prendiam os braços de Joiya ao lado do corpo e uniam seus tornozelos. Uma jaula tecida com Ar obrigava seus olhos a mirarem bem à frente. Até as orelhas estavam vedadas, para que ela não pudesse ouvir o que as outras dissessem até que lhe fosse permitido.
Mais uma vez, Egwene conferiu o escudo de Espírito que impedia Joiya de tocar a Fonte Verdadeira. Estava firme como deveria. Ela própria urdira todos os fluxos ao redor de Joiya, atando-os de modo que se sustentassem sozinhos, mas não conseguia ficar tranquila no mesmo ambiente que uma Amiga das Trevas com a capacidade de canalizar, mesmo que blindada. Pior do que uma mera Amiga das Trevas. Da Ajah Negra. Assassinato era o mais brando dos crimes de Joiya. As costas curvadas deveriam ser consequência do peso dos juramentos quebrados, vidas arruinadas e almas definhadas.
A companheira de cárcere de Joiya, sua irmã da Ajah Negra, não possuía a mesma força. Parada na extremidade oposta da mesa, de ombros caídos e cabeça baixa, Amico Nagoyin parecia afundar em si mesma sob o olhar de Egwene. Não havia razão para blindá-la. Amico fora estancada durante a captura. Ainda podia sentir a Fonte Verdadeira, mas jamais a tocaria, nunca mais poderia canalizar. O desejo e a vontade permaneceriam, tão prementes quanto a necessidade de ar, e a sensação de perda estaria presente enquanto ela vivesse, com saidar eternamente fora de alcance. Egwene desejou sentir uma pontada de pena que fosse. Mas não se esforçou muito.
Amico murmurou algo por cima a mesa.
— O quê? — inquiriu Nynaeve. — Fale alto.
Com uma expressão humilde, Amico ergueu o rosto sobre o pescoço delgado. Ainda era uma bela mulher, com olhos grandes e negros, mas havia algo de diferente nela, algo que Egwene não era muito capaz de identificar. Não era o medo que a fazia agarrar o vestido grosso de prisioneira com as duas mãos. Era algo mais.
Amico engoliu em seco e disse:
— Você deveria ir para Tanchico.
— Você já disse isso vinte vezes — retrucou Nynaeve, com rudeza. — Cinquenta vezes. Agora conte alguma novidade. Revele nomes que a gente ainda não saiba. Quem da Ajah Negra ainda está na Torre?
— Eu não sei. Vocês precisam acreditar em mim. — Amico soava cansava, completamente derrotada. O que era bem diferente de quando as outras mulheres eram as prisioneiras, e ela, a carcereira. — Antes de deixarmos a Torre, eu só sabia de Liandrin, Chesmal e Rianna. Ninguém sabia de mais de outras duas ou três, eu acho. Exceto Liandrin. Eu já contei tudo o que sabia.
— Então você é bem ignorante para uma mulher que esperava dominar parte do mundo depois que o Tenebroso se libertasse — retrucou Egwene, ríspida, fechando o leque com força para enfatizar o tom.
Ainda se espantava consigo mesma por conseguir proferir aquele nome com tanta facilidade. O estômago ainda se revirava, e um arrepio gélido ainda percorria sua espinha, mas ela já não sentia vontade de gritar ou de fugir chorando. Era possível se acostumar a qualquer coisa.
— Escutei Liandrin uma vez falando com Temaile — disse Amico, em um tom cansado, recomeçando uma história que já contara diversas vezes. Nos primeiros dias de cativeiro, tentara aumentar a história, mas, quanto mais elaborava, mais se enrolava nas próprias mentiras. Agora quase sempre contava da mesma forma, palavra por palavra. — Se vocês vissem a cara de Liandrin quando percebeu que eu estava lá… Ela teria me matado ali mesmo, se achasse que eu tinha ouvido alguma coisa. E Temaile gosta de machucar os outros. Ela sente prazer. Só ouvi um pouquinho antes que as duas me vissem. Liandrin disse que havia alguma coisa em Tanchico, algo perigoso para… para ele. — Falava de Rand. Não conseguia dizer o nome do rapaz, e a mera menção do Dragão Renascido era o bastante para levá-la às lágrimas. — Liandrin disse que também era perigoso para quem usasse. Quase tão perigoso quanto para… ele. É por isso que ela ainda não foi atrás. E ela disse que a capacidade de canalizar não poderá protegê-lo. Disse que “quando o encontrarmos, a habilidade asquerosa que ele tem vai refrear o Dragão para nós”.
Suor escorria por sua face, mas a mulher parecia incapaz de controlar os tremores.
Nenhuma palavra mudara.
Egwene abriu a boca, mas Nynaeve falou primeiro:
— Já ouvi essa história vezes demais. Vamos ver se a outra tem algo novo a dizer.
Egwene cravou os olhos nela, e Nynaeve a encarou de volta com a mesma força. Nenhuma das duas piscava. Às vezes ela acha que ainda é a Sabedoria, pensou Egwene, emburrada, e que eu ainda sou a garotinha da aldeia a quem ela ensina sobre ervas. Seria melhor se ela percebesse que agora as coisas são diferentes. Nynaeve era forte com o Poder, mais forte do que Egwene, mas só quando conseguia canalizar. Se não estivesse irritada, Nynaeve não podia fazer nada.
Elayne costumava acalmar os ânimos quando as coisas chegavam a esse ponto, o que acontecia com mais frequência do que deveria. Quando Egwene começava a pensar em acalmar os ânimos, já estava quase borbulhando de raiva, com os pés fincados no chão, e tentar ser cordata só significaria recuar. Era assim que Nynaeve enxergava, sem dúvida. Não conseguia se lembrar de uma única vez em que a antiga Sabedoria fizera qualquer movimento de retirada, então por que deveria fazer isso? Dessa vez Elayne não estava lá. Com uma palavra e um gesto, Moiraine mandara a Filha-herdeira acompanhar a Donzela que viera chamar a Aes Sedai. Sem ela, a tensão só aumentava. Cada Aceita esperava que a outra piscasse primeiro. Aviendha mal respirava, parecia se esforçar para manter-se afastada do confronto. Decerto considerava uma questão de bom senso não se meter.
Por mais estranho que fosse, foi Amico quem desfez o impasse daquela vez, embora provavelmente só desejasse demonstrar cooperação. A mulher se virou e encarou a parede oposta, esperando para ser amarrada com muita paciência.
A tolice da situação deixou Egwene subitamente impressionada. Ela era a única mulher no recinto capaz de canalizar — a não ser que Nynaeve ficasse irritada, ou que o escudo de Joiya falhasse, e, sem perceber, testou mais uma vez a trama de Espírito para garantir que aquilo não aconteceria — e mesmo assim se envolvia em uma disputa de olhares enquanto Amico aguardava para ser presa. Em outro momento, talvez tivesse rido de si mesma bem alto. Em vez disso, abriu-se a saidar, aquele brilho caloroso jamais visto mas sempre sentido, que parecia sempre prestes a ver de canto de olho. O Poder Único a preencheu, tornando a vida duas vezes mais maravilhosa, e ela urdiu os fluxos ao redor de Amico.
Nynaeve apenas grunhiu. Era pouco provável que estivesse irritada o suficiente para sentir o que Egwene estava fazendo — não conseguia fazer isso sem estar de cabeça quente — mas pôde ver Amico se enrijecer quando os fluxos de Ar a tocaram, depois deixou os ombros desabarem, parcialmente sustentados pelo fluxo, como se para mostrar que oferecia pouca resistência.
Aviendha estremeceu, como se habituara a fazer quando sabia que o Poder estava sendo canalizado perto dela.
Egwene urdiu barreiras para os ouvidos de Amico — interrogá-las uma de cada vez não ajudava em nada se fossem capazes de ouvir as histórias uma da outra — e virou-se para Joiya. Trocou o leque de mão, para conseguir esfregar as duas no vestido, e parou, com uma careta de desgosto. As palmas suadas nada tinham a ver com a temperatura.
— O rosto dela — comentou Aviendha, de repente. O que foi uma surpresa, pois ela quase nunca falava, a não ser que fosse abordada por Moiraine ou uma das outras. — O rosto de Amico. Ela não tem a mesma aparência de antes, como se os anos não a tivessem tocado. Não era assim. Isso acontece porque ela foi… Porque ela foi estancada?
Ela parou de repente, sem fôlego. Por estar tão próxima às outras, adquirira alguns hábitos. Nenhuma mulher da Torre conseguia falar sobre estancamento sem estremecer.
Egwene contornou a mesa até onde pudesse ver o perfil de Amico, mas ainda fora do campo de visão de Joiya. O olhar da antiga Cinza sempre fazia seu estômago virar um bloco de gelo.
Aviendha tinha razão, era a mesma diferença que ela própria percebera, sem entender. Amico parecia jovem, até mais jovem do que de fato era, mas não tinha mais o semblante sem idade das Aes Sedai que haviam operado o Poder Único durante anos.
— Você tem olhos aguçados, Aviendha, mas não sei se isso tem alguma coisa a ver com o estancamento. Suponho que sim. Não sei o que mais poderia ter causado.
Percebeu que não soara muito como as Aes Sedai, que costumavam falar como se soubessem tudo. Quando uma Aes Sedai afirmava não saber algo, em geral dava um jeito de fazer parecer que sua ignorância encobria muito conhecimento. Enquanto quebrava a cabeça em busca de algo mais pomposo, Nynaeve veio em seu resgate.
— Relativamente poucas Aes Sedai já foram exauridas, Aviendha, e menos ainda foram estancadas.
“Exaurir” era quando a coisa acontecia por acidente. Oficialmente, o estancamento era resultado de um julgamento e uma sentença. Egwene não via motivo para essa diferenciação, na verdade. Era como ter duas palavras para dizer “rolar escada abaixo”, e o uso dependia se a pessoa tivesse tropeçado ou sido empurrada. A maioria das Aes Sedai parecia encarar tudo de uma só forma, aliás, exceto ao ensinar as noviças ou Aceitas. Eram três palavras, na verdade. Os homens eram “amansados”, tinham de ser amansados antes que enlouquecessem. Só que agora havia Rand, e a Torre não se atrevia a amansá-lo.
Nynaeve assumira um tom professoral, sem dúvida tentando soar como uma Aes Sedai. Egwene percebeu que a amiga imitava as aulas de Sheriam, as mãos firmes na cintura e um leve sorriso a expressar que tudo era muito simples, bastava prestar atenção.
— O estancamento não é algo que alguém decide estudar, compreende? — prosseguiu Nynaeve. — Em geral é algo aceito como irreversível. O que torna uma mulher capaz de canalizar, uma vez removido, não pode ser substituído, assim como uma única mão perdida não pode voltar a existir por meio de Cura. — Pelo menos ninguém nunca conseguira Curar um estancamento. Houve tentativas. O que Nynaeve disse era a maior parte verdade, mas algumas irmãs da Ajah Marrom estudavam quase tudo o que tinham chance, e algumas irmãs Amarelas, as melhores Curandeiras, tentavam aprender formas de Curar tudo. Porém, nunca houvera sequer uma pontinha de sucesso nas tentativas de Curar uma mulher estancada. — Além desse terrível fato, pouco se sabe. É raro mulheres estancadas viverem mais do que alguns anos. Parecem querer deixar de viver, desistem. Como eu disse, é um assunto bastante desagradável.
Aviendha mudou de posição, incomodada.
— Só pensei que pudesse ser isso — disse, com a voz baixa.
Egwene também pensava que poderia ser. Decidiu perguntar a Moiraine. Se a encontrasse sem Aviendha. Parecia que a farsa atrapalhava quase tanto quanto ajudava.
— Vamos ver se Joiya ainda conta a mesma história — sugeriu.
Mesmo assim, precisou se controlar antes de desfazer os fluxos de Ar urdidos em volta da Amiga das Trevas.
Joiya decerto estava dolorida por ter ficado imóvel por tanto tempo, mas virou-se para encará-las com muita suavidade. O suor que gotejava na testa não era capaz de rebaixar sua presença e dignidade, não mais do que o vestido bruto de lã grossa reduzia a sensação de que ela estava ali por escolha própria. Era uma mulher vistosa, com um ar maternal e meio reconfortante, apesar da suavidade etérea. No entanto, os olhos escuros fincados naquele rosto faziam até um gavião parecer bondoso. Ela sorriu para as duas, um sorriso que jamais chegava aos olhos.
— Que a Luz as ilumine. Que a mão do Criador as proteja.
— Não vou ouvir isso de você. — A voz de Nynaeve era quieta e calma, mas ela jogou a trança por cima do ombro e cerrou o punho em torno da ponta, como fazia quando estava nervosa ou incomodada. Egwene não achou que ela estivesse incomodada, Joiya não parecia fazer a pele de Nynaeve se arrepiar como fazia a de Egwene.
— Estou arrependida dos meus pecados — disse Joiya, muito calma. — O Dragão Renasceu e empunha Callandor. As Profecias foram cumpridas. O Tenebroso deve cair. Posso ver isso agora. Meu arrependimento é real. Ninguém pode andar tanto tempo pela Sombra que não seja capaz de retornar à Luz.
A cada palavra, o rosto de Nynaeve ficava mais sombrio. Egwene tinha certeza de que ela estava furiosa a ponto de canalizar, mas, se o fizesse, provavelmente seria para estrangular a Aes Sedai. Egwene não acreditava mais do que Nynaeve no arrependimento de Joiya, sem dúvida, mas as informações da mulher talvez fossem verdadeiras. Joiya era bastante capaz de tomar a fria decisão de se voltar para o lado que julgava vencedor. Ou poderia apenas estar ganhando tempo, mentindo, na esperança de ser resgatada.
Uma Aes Sedai não deveria ser capaz de mentir, mesmo uma que tivesse perdido todo o direito a esse nome. Pelo menos, não mentiras deslavadas. O primeiro dos Três Juramentos, feito com o Bastão dos Juramentos nas mãos, garantia isso. Porém, quaisquer que fossem os votos proferidos ao Tenebroso pela Ajah Negra, eles pareciam romper todos os Três Juramentos.
Não importava. A Amyrlin as enviara à caça da Ajah Negra, à caça de Liandrin e das outras doze que haviam cometido crimes e fugido da Torre. E tudo o que elas tinham agora para prosseguir era o que aquelas duas pudessem, ou quisessem, revelar.
— Conte sua versão de novo — ordenou Egwene. — Use palavras diferentes desta vez. Estou cansada de ouvir histórias decoradas. — Caso a mulher estivesse mentido, haveria uma chance maior de tropeçar nas palavras se as relatasse de outra forma. — Vamos ouvir o que você tem a dizer.
Isso fora para acalmar Nynaeve, que deu uma fungada alta, depois um breve aceno de cabeça.
Joiya deu de ombros.
— Como quiser. Deixe-me ver. Palavras diferentes. O falso Dragão, Mazrim Taim, que foi capturado em Saldaea, é capaz de canalizar com uma força incrível. Talvez tanto quanto Rand al’Thor, ou quase, se os relatos forem verdadeiros. Antes que possa ser levado a Tar Valon e amansado, Liandrin pretende libertá-lo. Ele será proclamado o Dragão Renascido, seu nome será revelado como Rand al’Thor, e ele vai operar uma destruição em uma escala que o mundo não vê desde a Guerra dos Cem Anos.
— Isso é impossível — interrompeu Nynaeve. — O Padrão não vai aceitar um falso Dragão, não agora que Rand se proclamou.
Egwene suspirou. As duas já haviam debatido isso, mas Nynaeve sempre refutava esse ponto. Ela não sabia ao certo se a amiga de fato acreditava que Rand era o Dragão Renascido, não importava o que ele dissesse, não importava as Profecias, Callandor ou a queda da Pedra. Nynaeve tinha idade suficiente para ter cuidado de Rand quando ele era criança, assim como cuidara de Egwene. Ele era de Campo de Emond, e a antiga Sabedoria ainda achava que seu maior dever era proteger o povo de lá.
— Foi isso que Moiraine lhes disse? — perguntou Joiya, com um toque de desprezo. — Moiraine passou pouco tempo na Torre desde que foi elevada, e não muito mais com suas irmãs, em outros locais. Suponho que ela saiba sobre o funcionamento da vida em uma aldeia, talvez até algo da política entre nações, mas alega certeza em relação a assuntos que aprendeu apenas em estudos e debates com os que de fato os conhecem. Ainda assim, talvez esteja certa. Pode muito bem ser impossível que Mazrim Taim proclame a si mesmo. Mas será que existe alguma diferença se outros o fizerem por ele?
Egwene desejou que Moiraine retornasse. A mulher não falaria com tanta confiança se Moiraine estivesse ali. Joiya sabia muito bem que ela e Nynaeve eram apenas Aceitas. Isso fazia diferença.
— Prossiga — disse Egwene, quase tão severa quanto Nynaeve. — E lembre-se, palavras diferentes.
— É claro — respondeu Joiya, como se aceitasse um agradável convite, mas os olhos cintilavam feito cacos de vidro negro. — Vocês podem ver o resultado óbvio. Rand al’Thor será considerado culpado pela destruição de… Rand al’Thor. Até a prova de que os dois não são o mesmo homem poderá muito bem ser desconsiderada. Afinal de contas, quem é que pode dizer de que truques o Dragão Renascido é capaz? Talvez até possa estar em dois lugares ao mesmo tempo. Até os idiotas que vivem apoiando falsos Dragões vão hesitar diante do massacre indiscriminado e das coisas piores que vão acontecer em nome dele. Os que não recuarem diante de tal carnificina buscarão o Rand al’Thor que parece deleitar-se com sangue. As nações vão se unir, como fizeram na Guerra dos Aiel — ela lançou um sorriso culpado a Aviendha, o que não condizia com seus olhos impiedosos — mas sem dúvida muito mais depressa. Nem o Dragão Renascido é capaz de lutar contra isso, não para sempre. Ele será esmagado antes mesmo de a Última Batalha começar, e pelos mesmos homens que deveria salvar. O Tenebroso vai se libertar, o dia de Tarmon Gai’don chegará, e a Sombra cobrirá a terra e reorganizará o Padrão por todos os tempos. Este é o plano de Liandrin. — Não havia nenhum traço de satisfação em sua voz, mas também não havia horror.
Era uma história plausível, mais plausível que o conto de Amico sobre algumas poucas frases entreouvidas, mas Egwene acreditava em Amico, não em Joiya. Talvez porque quisesse isso. Era mais fácil enfrentar alguma vaga ameaça em Tanchico do que um plano completo para jogar tudo contra Rand. Não, pensou. Joiya está mentindo. Tenho certeza. Ainda assim não podiam ignorar qualquer uma das histórias. Mas não tinham como ir atrás das duas, não se quisessem ter alguma chance de sucesso.
A porta se abriu de supetão, e Moiraine entrou pisando firme, com Elayne atrás. A Filha-herdeira encarava o chão diante dos próprios pés com uma careta, perdida em pensamentos obscuros. Moiraine, no entanto… Pela primeira vez, a serenidade da Aes Sedai desaparecera, e seu rosto estava coberto de fúria.