48 Uma oferta recusada

— É desse tipo de mulher que você gosta? — perguntou Aviendha, com desdém. Rand baixou a cabeça e encarou a mulher, que caminhava junto ao estribo de Jeade’en vestida nas saias pesadas, com o xale marrom enrolado na cabeça. Os olhos azul-esverdeados o encararam por baixo do turbante largo. Ela parecia desejar ainda ter em mãos a lança que usara durante o ataque dos Trollocs, que a fizera ouvir um sermão das Sábias.

Às vezes, Rand se sentia desconfortável por tê-la caminhando ao seu lado enquanto cavalgava. Até tentara caminhar ao lado dela, e seus pés ficaram muito gratos ao voltar para o cavalo. De vez em quando — muito de vez em quando — conseguia convencê-la a montar atrás dele, reclamando que estava com o pescoço doendo de tanto conversar olhando para baixo. Montar em um cavalo não era exatamente uma violação dos costumes, afinal de contas, mas o desprezo por aqueles que não usavam as próprias pernas fazia a jovem seguir a pé na maior parte do tempo. Uma risada de qualquer companheiro Aiel, sobretudo de uma Donzela, mesmo que a pessoa estivesse olhando para o outro lado, era suficiente para ela descer de Jeade’en em um piscar de olhos.

— Ela é mole, Rand al’Thor. Fraca.

Rand olhou outra vez por cima do ombro, examinando o carroção branco em formato de caixa que liderava o comboio dos mascates, uma cobra sinuosa avançando pela paisagem destruída e empoeirada, outra vez escoltada pelas Donzelas dos Jindo. Isendre seguia na frente, com Kadere e o condutor, sentada no colo do mascate atarracado, o queixo batendo no ombro do homem, que segurava um pequeno guarda-sol de seda azul para protegê-la — e a si mesmo — do sol forte. Mesmo de casaco branco, Kadere não parava de secar o suor do rosto com um lenço grande, mais afetado pelo sol do que a mulher de vestido lustroso e justo, que combinava com o guarda-sol. Rand não estava perto o suficiente para ter certeza, mas achou que os olhos escuros de Isendre o observavam por baixo do lenço enrolado cobrindo seu rosto e cabeça. Ela sempre parecia estar olhando para ele. Kadere não parecia se importar.

— Não acho que Isendre seja mole — respondeu, baixinho, ajeitando a shoufa. O tecido de fato protegia a cabeça do sol escaldante. Ele resistira a usar outros trajes da indumentária Aiel, ainda que fossem muito mais apropriados ao clima do que o casaco de lã vermelha. Não importava seu sangue e nem as marcas em seus antebraços, ele não era Aiel, nem fingiria ser. Fosse o que tivesse de fazer, poderia manter esse mínimo de decência. — Não, eu não diria isso.

No assento do condutor do segundo carroção, Keille, a mulher gorda, e Natael, o menestrel, discutiam mais uma vez. Natael segurava as rédeas, mas não conduzia tão bem quanto o homem que costumava assumir a função. Às vezes os dois também encaravam Rand com olhadelas rápidas, antes de retomar o debate. Bem, todo mundo encarava Rand. A longa fileira dos Jindo, do outro lado, as Sábias, mais adiante, com Moiraine, Egwene e Lan. Na fileira mais numerosa de Shaido, mais ao longe, ele achava que também via cabeças voltadas em sua direção. Aquilo não o surpreendia mais, já estava acostumado. Ele era Aquele Que Vem Com a Aurora. Todos queriam saber o que iria fazer. Em breve descobririam.

— Mole — grunhiu Aviendha. — Elayne não é mole. Você pertence a Elayne, não devia estar trocando olhares melosos com aquela meretriz branquela. — A jovem balançou a cabeça com vigor, resmungando, meio que para si mesma. — Nossos modos a deixam chocada. Ela não consegue aceitar. Por que eu deveria me importar com isso? Não quero ter nada a ver com isso! Não pode acontecer! Se eu pudesse, tomaria você como gai’shain e entregaria para Elayne!

— Por que Isendre deveria aceitar o jeito de ser dos Aiel?

Aviendha disparou um olhar tão arregalado e surpreso que ele quase soltou uma risada. Na mesma hora, a jovem fechou a cara, como se ele tivesse feito algo irritante. As mulheres Aiel sem dúvida não eram mais fáceis de entender do que as outras.

— Já você não é nada mole, Aviendha… — Ela deveria tomar aquilo como um elogio: às vezes, era dura feito uma pedra de amolar. — Me explique outra vez essa história de senhora do teto. Se Rhuarc é o chefe do clã dos Taardad e o chefe do Forte das Pedras Frias, por que o forte pertence à esposa, e não a ele?

A jovem aprendiz de Sábia o encarou furiosa por mais um instante, mexendo os lábios enquanto resmungava entre dentes, antes de responder.

— Porque ela é a senhora do teto, seu aguacento ignorante. Um homem não pode ser dono de um teto, assim como não pode ser dono de terras! Vocês, aguacentos, às vezes parecem uns selvagens.

— Mas se Lian é a senhora do teto das Pedras Frias porque é esposa de Rhuarc…

— Isso é diferente! Será que você nunca vai entender? Até uma criança entende!

Aviendha respirou fundo e arrumou o xale ao redor do rosto. Era uma bela mulher, mas quase sempre o encarava como se ele tivesse cometido algum crime contra ela. Que crime poderia ser esse, Rand não sabia. Bair, de cabelos brancos e rosto curtido, sempre tão relutante em falar sobre Rhuidean, enfim revelara, de má vontade, que Aviendha não visitara as colunas de vidro, nem visitaria até estar pronta para se tornar Sábia. Então por que a jovem o odiava? Era um mistério para o qual Rand gostaria de ter uma resposta.

— Vou abordar sua dúvida por outro ângulo — resmungou ela. — Quando uma mulher está para se casar, se ela ainda não for dona de um teto, a família constrói um para ela. No dia do casamento, o marido a leva nos ombros para longe da família enquanto seus irmãos seguram as irmãs da noiva. Mas, quando chega na porta, coloca ela no chão e pede permissão para entrar. O teto é dela. Ela pode…

As aulas sobre os Aiel estavam sendo a parte mais prazerosa da interação dos dois durante os onze dias e onze noites desde o ataque dos Trollocs. Não que Aviendha quisesse falar: a princípio, só fazia longos discursos criticando o suposto descaso dele em relação a Elayne, seguido de mais um sermão embaraçoso para convencê-lo de que a Filha-herdeira era a mulher perfeita. Até que Rand comentou por alto com Egwene que, já que Aviendha nem se dignava a falar com ele, seria melhor que parasse de encará-lo. Uma hora depois, uma gai’shain de veste branca veio chamar a jovem Aiel.

Fosse lá o que as Sábias tivessem dito a ela, Aviendha retornara trêmula de raiva, exigindo — exigindo! — que ele permitisse que ela ensinasse a ele os hábitos e costumes Aiel. Sem dúvida na esperança de que ele revelasse algo acerca dos próprios planos com as perguntas que fizesse. Depois das traições sutis de Tear, a franqueza da espionagem das Sábias era revigorante. Por outro lado, sem dúvida era sensato aprender o que pudesse. E conversar com Aviendha era agradável, sobretudo nas ocasiões em que a mulher parecia esquecer o desprezo que sentia por ele, fosse lá por que motivo. Mas, naturalmente, toda vez que Aviendha percebia que os dois tinham começado a conversar feito duas pessoas normais, em vez de caça e caçador, não tardava em ter um acesso de fúria, como se ele a tivesse atraído para uma armadilha.

Mesmo assim as conversas eram agradáveis, ainda mais quando comparadas ao restante da viagem. Rand estava até começando a achar os chiliques dela divertidos, embora tivesse o bom senso de não deixar que a mulher percebesse. Aviendha o odiava, mas pelo menos estava muito concentrada em odiá-lo para ver que ele era Aquele Que Vem Com a Aurora ou o Dragão Renascido. Notava apenas Rand al’Thor. Fosse como fosse, a mulher sabia o que sentia por ele. Não era como Elayne, com uma carta que o deixara corado até as orelhas e outra, no mesmo dia, que o fizera conferir se não tinha se transformado em um Trolloc com presas e chifres.

Min era praticamente a única mulher que conhecera que não confundira completamente seu juízo. No entanto, ela estava na Torre — a salvo, pelo menos — um lugar que ele pretendia evitar. Às vezes, Rand pensava que a vida seria mais simples se conseguisse esquecer de vez as mulheres. Agora Aviendha começara a invadir seus sonhos, como se sonhar com Min e Elayne já não estivesse de bom tamanho. As mulheres embaralhavam suas emoções, e ele agora precisava ficar lúcido. Lúcido e frio.

Rand percebeu que encarava Isendre outra vez. A mulher apontou os dedos magros e serpenteantes para ele, por detrás da orelha de Kadere. Rand teve certeza de ver aqueles lábios carnudos se contorcendo em um sorriso. Ah, sim. Perigosa. Tenho que ser frio e duro feito aço. Aço cortante.

Onze dias e noites, indo para o décimo-segundo, e nada mais se alterara. Dias e noites de estranhas formações rochosas, pináculos de pedra com topos achatados e montes que se erguiam de uma terra débil e falha, entrecortada por montanhas que pareciam ter sido cravadas ao acaso. Dias de sol escaldante e ventos impiedosos, noites de um frio de gelar os ossos. Tudo o que crescia tinha pontas, espinhos ou irritava a pele. Aviendha dizia que algumas plantas eram venenosas, e a lista era maior que a das comestíveis. Só havia água em nascentes e tanques escondidos, mas a jovem Aiel apontara algumas plantas como indício de que um buraco fundo cavado ali se preencheria de gotinhas, bem lentamente, o suficiente para a sobrevivência de um ou dois homens, além de outras plantas que, quando mascadas, soltavam uma polpa aguada e azeda.

Certa noite, dois cavalos de carga dos Shaido foram mortos por leões, que logo foram afastados das presas e botados para correr rugindo pela escuridão da terra entrecortada. Na quarta noite, o condutor de um carroção atiçou uma pequena cobra marrom enquanto o grupo montava acampamento. Era uma dois-passos, como Aviendha explicou depois, alcunha que foi devidamente comprovada. O sujeito gritou e tentou correr até os carroções, mesmo vendo Moiraine avançando em sua direção. No segundo passo, o homem caiu de cara no chão, morto, antes mesmo que a Aes Sedai conseguisse descer da égua branca. Aviendha listava cobras, aranhas e lagartos venenosos. Lagartos venenosos! Certa vez, encontrou um e mostrou a ele. O bicho tinha dois pés de comprimento e era robusto, com listras amarelas correndo pelas escamas marrons. Ela prendeu o animal com displicência sob uma das botas macias, cravou a faca na cabeça larga do lagarto e o levantou, para que Rand visse o fluido transparente e oleoso que jorrava dos dentes afiados em sua boca protuberante. A mordida de um gara, explicou a mulher, era capaz de perfurar uma bota e matar um boi. Havia bichos piores, sem dúvida. O gara era lento, e não tão perigoso assim, se a pessoa não fosse idiota o bastante para pisar nele.

Quando ela sacudiu o imenso lagarto para fora da lâmina, o animal amarelo e marrom sumiu no chão de lama rachada. Ah, sim. Era só não ser idiota o bastante para pisar em um.

Moiraine dividia o tempo entre as Sábias e Rand, em geral tentando intimidá-lo, do jeito costumeiro das Aes Sedai, para que revelasse seus planos.

— Há de ser o que a Roda tecer — dissera a Azul, ainda naquela manhã, com a voz fria e calma, o rosto etéreo e sereno, mas os olhos escuros estavam incandescentes ao encará-lo por sobre a cabeça de Aviendha — mas um bobo pode estrangular a si mesmo no Padrão. Cuidado para não tecer uma corda no próprio pescoço.

A Aes Sedai adquirira um manto claro, quase branco como os dos gai’shain. O tecido reluzia sob o sol, e, por baixo do largo capuz, Moiraine usava um lenço úmido, branco feito neve, amarrado na testa.

— Não vou enrolar nada no pescoço. — Ele deu uma risada, e a mulher virou Aldieb tão depressa que a égua quase derrubou Aviendha, depois seguiu de volta para o grupo das Sábias, o manto drapejando atrás de si.

— É muita burrice irritar uma Aes Sedai — resmungou a Aiel, esfregando o próprio ombro. — Eu não sabia que você era burro.

— Vamos esperar para ver se eu sou burro ou não — respondeu Rand, já sem vontade de rir. Burro? Era necessário correr certos riscos. — Vamos esperar para ver.

Era raro Egwene sair de perto das Sábias. A jovem caminhava com elas com a mesma frequência com que cavalgava Bruma, às vezes levando uma das mulheres na garupa, por um tempo. Rand enfim descobrira que ela estava se passando por Aes Sedai completa outra vez. Amys, Bair, Seana e Melaine pareciam aceitar sem contestar, assim como os tairenos, mas de um jeito totalmente diferente. Às vezes, uma das Sábias discutia com ela em um tom de voz tão alto que Rand quase compreendia o conteúdo da gritaria que se passava a mais de cem passadas de distância. Eram quase os mesmos modos que usavam com Aviendha, embora com a Aiel fosse mais um processo de intimidação do que uma discussão de fato. Por outro lado, volta e meia dava para ouvir debates bem acalorados entre as Sábias e Moiraine. Especialmente envolvendo a loura, Melaine.

Na décima manhã, Egwene enfim desmanchou as duas tranças dos cabelos. Foi uma cena muito esquisita. As Sábias conversaram com ela por um tempo enorme, sozinhas, enquanto os gai’shain dobravam as tendas e Rand selava Jeade’en. Se não conhecesse bem a amiga, teria pensado que aquela postura de cabeça baixa era uma tentativa de submissão, mas essa palavra só valia para Egwene se relacionada a Nynaeve. E talvez Moiraine. De súbito, a amiga bateu palmas, rindo e abraçando cada uma das Sábias antes de correr para desfazer as tranças.

Quando Rand perguntou a Aviendha o que estava acontecendo — a jovem estava sentada do lado de fora da tenda quando ele acordou — a Aiel resmungou, em um tom azedo:

— Elas decidiram que Egwene cresceu. — Ela parou de falar de repente, disparou um olhar firme para Rand, cruzou os braços e prosseguiu: — É assunto de Sábias, Rand al’Thor. Pergunte a elas, se quiser saber, mas prepare-se para ouvir que não é da sua conta.

Egwene crescera o quê? Os cabelos? Não fazia sentido. Aviendha não disse mais uma palavra sobre o assunto. Em vez disso, raspou um pedaço de líquen cinza de uma pedra e começou a explicar como usá-lo para cataplasma. Ela estava pegando o jeito das Sábias muito depressa para o gosto de Rand. As próprias Sábias davam pouca atenção a ele. Claro que não era preciso muita dedicação, com Aviendha praticamente empoleirada no ombro dele.

O restante dos Aiel, pelo menos os Jindo, tornavam-se um pouco menos reservados a cada dia, talvez um pouco menos incomodados com o que Aquele Que Vem Com a Aurora representava, mas Aviendha era a única que de fato falava com ele. Todas as noites, Lan vinha praticar a espada, e Rhuarc, ensinar a lança e o estranho jeito Aiel de lutar com as duas mãos e os dois pés. O Guardião sabia um pouco da luta, então juntava-se às sessões de treinamento. A maioria dos outros evitava Rand, sobretudo os condutores dos carroções, que tinham descoberto que ele era o Dragão Renascido, um homem capaz de canalizar. Quando Rand pegava um daqueles homens de feições duras com os olhos cravados nele, parecia que o sujeito estava encarando o próprio Tenebroso. Mas Kadere não fazia isso, e nem o menestrel.

Quase todas as manhãs, quando saíam, o mascate se aproximava montado em uma das mulas dos carroções incendiados pelos Trollocs, o rosto parecendo ainda mais escuro por causa do lenço branco comprido amarrado na cabeça, caindo pelo pescoço. Com Rand, o homem era muito educado, mas seus olhos frios e impassíveis conferiam ao nariz adunco o aspecto de um verdadeiro bico de águia.

— Lorde Dragão — começara ele, na manhã seguinte ao ataque. Então limpara o suor do rosto com o sempre presente lencinho e se remexera, incomodado, sobre a sela surrada que encontrara em algum lugar e pusera na mula. — Posso chamar o senhor assim?

Os destroços chamuscados dos três carroções já despareciam à distância, ao sul. Com eles, iam sumindo as sepulturas de dois homens de Kadere e um bom número de Aiel. Os Trollocs haviam sido arrastados para fora dos acampamentos e largados para os carniceiros, criaturas orelhudas e esganiçadas que Rand não sabia se eram raposas grandes ou cães pequenos — pareciam um pouco de cada — e os abutres com asas com pontas vermelhas. Alguns ainda circundavam o céu, parecendo receosos de aterrissar no meio da confusão.

— Me chame do que quiser — respondera Rand.

— Lorde Dragão. Andei pensando no que o senhor disse ontem. — Kadere olhara em volta como se temesse ser ouvido, ainda que Aviendha estivesse com as Sábias, e os pares de orelha mais próximos fossem do comboio de carroções, a cinquenta passadas ou mais de distância. Mesmo assim, o homem baixara o tom de voz quase a um sussurro, limpando o rosto com nervosismo. Seus olhos, no entanto, não se alteraram. — O que o senhor disse sobre o conhecimento ser valioso e pavimentar a estrada para o sucesso. É verdade.

Rand encarara o homem por um longo instante, sem piscar, mantendo o rosto inexpressivo.

— Foi você quem disse isso, não eu — respondera, por fim.

— Bom, talvez tenha sido. Mas é verdade, não é mesmo, Lorde Dragão? — Rand assentira, e o mascate continuara, ainda sussurrando, os olhos atentos aos bisbilhoteiros. — Mas pode haver perigo no conhecimento. Em dar mais do que receber. Um homem que vende conhecimento não precisa apenas ter seu preço, mas também alguma salvaguarda. Garantias e seguranças contra… repercussões. O senhor não concorda?

— Tem algum conhecimento que queira… vender, Kadere?

O homem atarracado franzira o cenho para o próprio comboio. Keille descera para caminhar um pouco, apesar do calor crescente. O corpanzil estava coberto de branco, e um xale de renda branca fora preso nos cabelos grossos e escuros por pentes de marfim. Ela volta e meia dava uma olhadela para os dois homens cavalgando juntos, a expressão indecifrável àquela distância. Ainda era estranho ver uma pessoa tão corpulenta com movimentos tão ágeis. Isendre subira no banco do condutor do primeiro carroção e observava os dois de forma menos discreta, esticando o corpo para se segurar no canto do carroção branco, que balançava e sacolejava.

— Essa mulher ainda vai acabar me matando — resmungara Kadere. — Talvez possamos conversar de novo mais tarde, Lorde Dragão, se o senhor estiver disposto. — Ele cravou os calcanhares das botas com força na mula, seguiu trotando até o primeiro carroção e subiu no assento do condutor com agilidade surpreendente, amarrando as rédeas da mula a um aro de ferro na lateral do grande caixote que era o carroção. Ele e Isendre desapareceram no interior do veículo e não saíram até a parada da noite.

Ele retornou no dia seguinte, e em outros dias em que viu Rand sozinho, sempre deixando entrever o tal conhecimento que poderia vender a um preço apropriado, se tivesse as salvaguardas apropriadas. Uma das vezes, chegou ao ponto de dizer que qualquer coisa — assassinato, traição, qualquer coisa mesmo — poderia ser perdoada em troca de conhecimento, e pareceu bastante nervoso quando Rand discordou da afirmação. Fosse lá o que o homem desejasse vender, ele parecia querer que Rand o protegesse das consequências de quaisquer crimes que já tivesse cometido na vida.

— Eu não sei se quero comprar conhecimento — respondera Rand, mais de uma vez. — Sempre tem a questão do preço, não é? Tem alguns preços que eu talvez não esteja disposto a pagar.

Natael chamou Rand para um canto naquela primeira noite, depois que as fogueiras foram acesas e o aroma de comida começou a pairar por sobre as tendas baixas. O menestrel parecia quase tão nervoso quando Kadere.

— Pensei bastante a seu respeito — disse ele, olhando para Rand de esguelha, a cabeça inclinada para o lado. — Sua história deveria ser contada em uma grande epopeia. O Dragão Renascido. Aquele Que Vem Com a Aurora. Um homem de sabe-se lá quantas profecias, nesta Era e em outras. — O menestrel envolveu o corpo com o manto, os retalhos coloridos esvoaçando com a brisa. O crepúsculo era breve, no Deserto. A noite e o dia surgiam ligeiros e bem próximos. — Como se sente em relação ao seu destino profetizado? Eu preciso saber, se vier a compor esta epopeia.

— Como eu me sinto? — Rand olhou o acampamento em volta, os Jindo circulando entre as tendas. Quantos deles estariam mortos antes do fim? — Cansado. Eu me sinto cansado.

— Não é uma emoção muito heroica — murmurou Natael. — Mas esperada, dado o seu destino. Levando o mundo nos ombros, com a maioria disposta a matá-lo, se tivesse chance, e o restante dos idiotas pensando que pode usá-lo como trampolim para o poder e a glória.

— E qual desses é você, Natael?

— Eu? Eu sou um simples menestrel. — O homem erguera uma ponta do manto coberto de retalhos, como se para comprovar. — Não tomaria o seu lugar nem que me oferecessem o mundo inteiro, não com o destino que vem junto. Morte, loucura ou ambos. “Seu sangue nas pedras de Shayol Ghul…” é isso que diz o Ciclo de Karaethon, as Profecias do Dragão, não é? Que você vai morrer para salvar uns idiotas que vão suspirar aliviados depois da sua morte. Não, eu não aceitaria isso nem por todo o poder do mundo, ou por mais.

— Rand — disse Egwene, emergindo da escuridão profunda, a capa clara enrolada no corpo e o capuz erguido sobre a cabeça — viemos ver como você está se sentindo, depois da Cura, com o calor que está fazendo hoje. — Moiraine viera com ela, o rosto encoberto pelo imenso capuz da capa branca, assim como Bair, Amys, Melaine e Seana, as cabeças embrulhadas em xales escuros, todas as observá-lo, calmas e frias feito a noite. Até Egwene. A jovem ainda não tinha o ar etéreo de uma Aes Sedai, mas os olhos, sim.

Ele não reparara em Aviendha, que vinha sorrateira atrás das outras. Por um instante, pensou ter visto compaixão no rosto dela, mas, se era real, desaparecera assim que a Aiel o vira a encarando. Imaginação. Ele estava cansado.

— Outra hora — dissera Natael, falando com Rand, mas olhando para as mulheres daquele jeito peculiar, de esguelha. — Conversaremos outra hora. — Ele dera um meneio de cabeça bastante sutil e fora embora pisando duro.

— O futuro o incomoda, Rand? — perguntou Moiraine, baixinho, depois de o menestrel se retirar. — As profecias têm uma linguagem floreada, obscura. Nem sempre querem dizer o que parecem.

— Há de ser o que a Roda tecer — respondeu. — Farei o que for preciso. Lembre-se disso, Moiraine. Farei o que for preciso. — A mulher pareceu satisfeita, mas era difícil dizer, com as Aes Sedai. Ainda assim, não ficaria nem um pouco satisfeita quando descobrisse tudo.

Natael retornou na noite seguinte, e na seguinte, e na seguinte, sempre falando sobre a epopeia que comporia, porém com certa morbidez, querendo saber como Rand pretendia enfrentar a loucura e a morte. Ao que parecia, a história seria uma tragédia. Rand decerto não queira revelar seus medos aos quatro cantos. O que havia em sua cabeça e em seu coração poderia permanecer enterrado por lá. Por fim, o menestrel pareceu se cansar de ouvi-lo dizer que faria o que fosse preciso, e parou de ir vê-lo. Aparentemente, o homem não queria compor uma epopeia que não fosse cheia de dor e sofrimento. Parecia frustrado quando lhe deu as costas pela última vez, caminhando a passos firmes, o manto drapejando furiosamente atrás de si.

O sujeito era estranho, mas, a julgar por Thom Merrilin, todos os menestréis eram assim. Natael sem dúvida exibia outras características de menestrel. Por exemplo, ficava bem óbvio que tinha a si mesmo em muito boa conta. Rand não se importava em ser ou não chamado por títulos, mas Natael tratava Rhuarc e Moiraine — nas poucas vezes em que se encontrava com a Azul — como iguais. Isso era típico de Thom, sem tirar nem pôr. O homem acabou desistindo de se apresentar para os Jindo e começou a passar quase todas as noites no acampamento dos Shaido. Os Shaido estavam em maior número, explicara a Rhuarc, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. Audiência maior. Nenhum dos Jindo gostou de saber daquilo, mas nem mesmo Rhuarc podia fazer algo a respeito. Na Terra da Trindade, um menestrel podia fazer qualquer coisa que não cometer assassinato sem precisar responder por seus atos.

Aviendha passava as noites com as Sábias, e às vezes cerca de uma hora do dia caminhando com todas reunidas ao seu redor, até Moiraine e Egwene. A princípio, Rand achou que elas estivessem aconselhando a moça a respeito de como lidar com ele, como arrancar as informações que desejavam. Então, um dia, com o sol escaldante a pino, uma bola de fogo do tamanho de um cavalo irrompeu de repente por entre o grupo das Sábias e saiu girando e rolando, deixando um sulco no solo ressequido, até que definhou e se apagou.

Alguns dos condutores frearam os comboios de supetão, assustados, e pararam para assistir, chamando uns aos outros com um misto de medo, confusão e xingamentos rudes. Murmúrios reverberaram por entre os Jindo, que, assim como os Shaido, encaravam as mulheres, mas as duas colunas de Aiel continuaram se deslocando quase sem parar. Era entre as Sábias que a verdadeira empolgação estava evidente. As quatro se agruparam ao redor de Aviendha, todas parecendo falar ao mesmo tempo e gesticulando bastante. Moiraine e Egwene, conduzindo os cavalos, tentavam se intrometer. Mesmo sem ouvir, Rand sabia que Amys respondera de forma bem direta, sacudindo um dedo furioso de censura, para que ficassem fora daquilo.

Encarando o sulco negro que se estendia em linha reta por meia milha, Rand sentou-se de volta na sela. Ensinando Aviendha a canalizar. Claro. Era isso o que estavam fazendo. Ele esfregou o suor da testa com o dorso da mão — e não tinha nada a ver com o sol. Quando aquela bola de fogo se materializou, ele instintivamente se agarrou à Fonte Verdadeira. Fora como tentar coar água com uma peneira rasgada. Ele agarrara saidin, mas poderia muito bem ter agarrado o ar. Um dia aquilo poderia acontecer quando precisasse desesperadamente do Poder. Também estava aprendendo, mas sem professor. Aprendendo a usar e usando para aprender. Começou a rir tão alto que alguns dos Jindo o encararam, preocupados.

Rand teria apreciado a companhia de Mat em qualquer momento durante aqueles onze dias e onze noites, mas o amigo não se aproximara por mais de um minuto ou dois. Mantinha a aba larga do chapéu de topo reto puxada para baixo, para esconder os olhos, e a lança de cabo preto com a estranha marca do corvo apoiada no cepilho da sela de Pips. A lâmina forjada pelo Poder parecia uma espada curta e curva.

— Se o seu rosto ficar um pouquinho mais curtido de sol, você vai virar um Aiel de verdade — dizia ele às vezes, rindo. Ou então falava algo como: — Está pretendendo passar o resto da vida aqui? Tem um mundo inteiro do outro lado da Muralha do Dragão. Vinho? Mulheres? Você se lembra dessas coisas?

Mat, no entanto, parecia bastante desconfortável, além de ainda mais relutante do que as Sábias em falar sobre Rhuidean ou sobre o que acontecera lá. Ele apertava a mão no cabo preto da lança à menor menção da cidade de domos enevoados, alegando não se lembrar de nada da viagem pelo ter’angreal. Então prosseguia, dizendo:

— Fique longe dele, Rand. Não é como o da Pedra, nem um pouco. Eles são trapaceiros. Que me queime, eu queria nunca ter visto aquilo!

Na única vez em que Rand mencionou a Língua Antiga, Mat vociferou:

— Que o queime, eu não sei nada sobre a droga da Língua Antiga! — E saiu galopando de volta para os carroções dos mascates.

Era lá que Mat passava a maior parte do tempo, jogando dados com os condutores — até eles perceberem que o rapaz ganhava muito mais do que perdia, não importava de quem fossem os dados — aproveitando cada oportunidade de engatar conversas com Kadere ou Natael, perseguindo Isendre. Estava muito claro o que Mat tinha em mente desde a primeira vez que sorrira para a mulher, ajeitando o chapéu, na manhã seguinte ao ataque dos Trollocs. Desde então, falava com ela todas as noites pelo máximo de tempo que conseguia. E arrumara tantos furos nos dedos arrancando flores brancas de um arbusto espinhento que passara quase dois dias sem conseguir manejar as rédeas direito, mas recusava-se a deixar que Moiraine o Curasse. Isendre não chegava a encorajar o rapaz, mas seu sorriso lânguido e provocante também não era calculado para afastá-lo. Kadere via e não dizia uma palavra, embora às vezes seus olhos seguissem os de Mat feito um abutre. Os outros comentavam.

Ao fim de certa tarde, enquanto o grupo soltava as rédeas das mulas e erguia as tendas, Rand tirava a sela de Jeade’en quando viu Mat parado perto de Isendre, na sombra esparsa de um dos carroções com cobertura de lona. O amigo estava bem próximo dela. Rand balançou a cabeça, observando enquanto escovava o garanhão sarapintado. O sol ardia baixo no horizonte, e os pináculos altos formavam sombras compridas pelo acampamento.

Isendre mexia no lenço diáfano no pescoço com displicência, como se cogitasse removê-lo, sorrindo, os lábios carnudos meio unidos em um biquinho, prontos para um beijo. Encorajado, Mat abriu um sorriso, confiante, e aproximou-se ainda mais. A mulher deixou cair a mão e balançou a cabeça devagar, mas o sorrisinho convidativo não saía de seus lábios. Nenhum dos dois ouviu Keille se aproximando, os pés muito leves, apesar do peso.

— É isso o que deseja, bom senhor? Ela? — Os dois se afastaram depressa ao ouvir aquela voz melíflua, e a mulher riu no mesmo tom musical, igualmente inapropriado a seu rosto. — Uma barganha para o senhor, Matrim Cauthon. Um marco de Tar Valon, e ela é sua. Uma sirigaita dessas não pode valer mais de dois, então é uma boa pechincha.

Mat fez careta, como se desejasse estar em qualquer lugar que não ali.

Isendre, no entanto, virou-se devagar para encarar Keille, um gato-da-montanha encarando um urso.

— Você passa dos limites, velha — respondeu, baixinho, os olhos firmes por cima do lenço. — Não vou mais aturar essa sua língua. Tome cuidado. Ou talvez esteja querendo ficar aqui pelo Deserto.

Keille abriu um sorriso largo, exibindo uma alegria que destoava dos olhos de obsidiana cintilando por trás das gordas bochechas.

— E você, está querendo?

Com um meneio de cabeça decidido, Isendre respondeu:

— Um marco de Tar Valon. — Sua voz era dura como ferro. — Vou mandar lhe entregarem um marco de Tar Valon quando a deixarmos aqui. Só queria poder vê-la tentando tirar água dele. — A mulher deu as costas, foi pisando firme até o primeiro carroção, sem o rebolado sedutor, e desapareceu dentro dele.

Keille a encarou até a porta se fechar, o rosto redondo indecifrável, então de súbito virou-se para Mat, que estava a ponto de sair de fininho.

— Poucos homens já recusaram uma oferta minha uma vez, muito menos duas. Reze para que eu não decida fazer alguma coisa a respeito. — Gargalhando, a mulher se levantou e beliscou a bochecha de Mat com os dedos gordos com tanta força que o rapaz quase se encolheu, então virou-se para Rand. — Diga a ele, Lorde Dragão. Tenho a sensação de que você sabe algo a respeito dos perigos de desprezar uma mulher. Aquela garota Aiel que o segue para cima e para baixo e não tira os olhos do senhor. Ouvi dizer que o senhor pertence a outra. Talvez ela se sinta desprezada.

— Eu duvido, minha senhora — respondeu Rand, ríspido. — Aviendha cravaria uma faca em minhas costelas se achasse que penso nela dessa forma.

A mulher imensa soltou uma risada estrondosa. Mat se encolheu quando ela estendeu o braço outra vez para tocá-lo, mas Keille apenas deu um tapinha na bochecha que antes beliscara.

— Está vendo, bom senhor? Despreze a oferta de uma mulher, e talvez ela não pense nada a respeito, mas talvez… — ela fez um giro com a mão — … use a faca. Uma lição que qualquer homem pode aprender. Não é mesmo, Lorde Dragão?

Com uma risada resfolegante, Keille saiu apressada para conferir os homens que cuidavam das mulas.

— São todas loucas — resmungou Mat, esfregando o rosto.

Em seguida, retirou-se também. No entanto, não abandonou a caça a Isendre.

E assim foi, por onze dias, rumo ao décimo-segundo, cruzando uma terra árida e dura. Viram outras duas plataformas, construções de pedra bruta muito similares a Parada de Imre, posicionadas para facilitar a defesa contra o lado íngreme do pináculo ou monte. Em uma delas havia trezentas ovelhas ou mais, além de homens que se mostraram tão surpresos em saber sobre Rand quanto sobre os Trollocs na Terra da Trindade. A outra estava vazia. Não fora invadida, só estava desocupada. Diversas vezes, Rand avistou a distância cabras, ovelhas, ou gado de chifres longos. Aviendha dizia que os rebanhos pertenciam a fortes próximos de ramos Aiel, mas ele não via gente, muito menos qualquer estrutura que merecesse ser chamada de forte.

O décimo-segundo dia chegou, com as robustas fileiras de Jindo e Shaido flanqueando o grupo das Sábias, os carroções dos mascates sacolejando enquanto Keille e Natael discutiam, e Isendre encarando Rand, sentada no colo de Kadere.

— … e é assim que é — disse Aviendha, assentindo para si mesma. — Garanto que agora você já entende tudo sobre as senhoras do teto.

— Não exatamente — admitiu Rand. Percebeu que já fazia algum tempo que apenas escutava a voz dela, sem prestar atenção nas palavras. — Mas tenho certeza de que tudo funciona direitinho.

A jovem grunhiu para ele.

— Quando você se casar — disse, em um tom ríspido — com esses Dragões nos seus braços para confirmar seu sangue, vai seguir o sangue, ou vai exigir ser dono de tudo, exceto o vestido da esposa, feito um aguacento selvagem?

— Não é nem de longe assim que funciona — protestou o rapaz. — E qualquer mulher de onde venho arrancaria a cabeça de um homem que pensasse assim. De todo modo, você não acha que isso tem de ser acordado entre mim e a mulher com quem eu decidir me casar?

Aviendha apenas fez uma careta de desgosto ainda maior do que a anterior.

Para alívio de Rand, Rhuarc veio trotando à frente deles, vindo do grupo dos Jindo.

— Chegamos — anunciou o Aiel, com um sorriso — ao Forte das Pedras Frias.

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