Apenas três velas e dois lampiões iluminavam o salão da estalagem Fonte de Vinho, já que o estoque de velas e de óleo estava baixo. As lanças e outras armas tinham sumido das paredes, e o barril que continha espadas antigas estava vazio. Os lampiões estavam dispostos em duas das mesas empurradas juntas para a frente da comprida lareira de pedra, onde Marin al’Vere, Daise Congar e outras integrantes do Círculo das Mulheres repassavam listas da pouca comida que restava em Campo de Emond. Perrin tentava não ouvir.
Em outra mesa, a pedra de amolar de Faile produzia um som baixinho de vush-vush enquanto a mulher afiava uma de suas facas. Diante dela havia um arco, e uma aljava de cerdas pendia do cinto. Ela acabara revelando ter uma mira bastante boa, mas Perrin esperava que Faile jamais descobrisse que o arco era infantil. Ela não seria capaz de empunhar um arco longo masculino de Dois Rios, por mais que se recusasse a admitir.
Mudando o machado de posição para não machucar a lateral do corpo, Perrin voltou a atenção ao que estava debatendo com os homens ao redor da mesa. Não que todos estivessem mantendo a atenção onde deveriam.
— Elas têm lampiões — resmungou Cenn — e a gente tem que se virar com cera derretida. — O velho resmungão cravou os olhos no par de velas em candelabros de latão.
— Deixe para lá, Cenn — respondeu Tam, em um tom cansado, puxando o cachimbo e a bolsa de tabaco de trás do cinturão. — Deixe para lá uma vez na vida.
— Se tivéssemos que ler ou escrever — completou Abell, com a voz menos paciente do que as palavras — teríamos lampiões. — Uma atadura estava enrolada em suas têmporas.
Como se para lembrar ao telhador de que ele era o Prefeito, Bran ajustou o medalhão de prata com duas graduações pendurado no peitoral largo.
— Atenha-se ao assunto em pauta, Cenn. Não vou dar corda para você gastar o tempo de Perrin.
— Eu só acho que a gente deveria ter lampiões — reclamou Cenn. — Perrin me diria se eu estivesse gastando o tempo dele.
Perrin suspirou. A noite tentava fechar suas pálpebras. Desejou que fosse a vez de outra pessoa representar o Conselho da Aldeia, Haral Luhhan, Jon Thane, Samel Crawe ou qualquer um que não Cenn, com aquelas reclamações sem importância. Por outro lado, às vezes desejava que um daqueles homens virasse para ele e dissesse: “Isso é assunto para o Prefeito e o Conselho, rapazinho. Você faça o favor de voltar para a forja. Depois lhe diremos o que fazer.” Em vez disso, os homens estavam preocupados com fazê-lo perder tempo, falavam cheios de dedos. Tempo. Quantos ataques aconteceram nos sete dias que se passaram desde aquele primeiro? Já não tinha certeza.
A atadura na cabeça de Abell deixava Perrin irritado. As Aes Sedai estavam Curando apenas os ferimentos mais graves. Caso o sujeito conseguisse sobreviver sem Cura, deixavam como estava. Não que ainda houvesse muita gente gravemente ferida, mas, como observara Verin, com amargura, até a força das Aes Sedai tinha limite. Ao que parecia, o truque com as pedras das catapultas exigira tanto quanto a Cura. Para variar, ele não queria ser lembrado dos limites da força das Aes Sedai. Não havia muitos com ferimentos feios. Ainda.
— Como estamos com as flechas? — perguntou. Era nisso que deveria estar pensando.
— Bastante bem — respondeu Tam, acendendo o cachimbo com uma das velas. — Ainda recuperamos a maior parte das que disparamos, pelo menos à luz do dia. À noite, eles arrastam muitos mortos para longe. Imagino que sirvam de forragem para as panelas… Com isso, acabamos perdendo as flechas.
Os outros homens também puxavam cachimbos e tabaco das bolsas e bolsos dos casacos, e Cenn murmurava que achava que tinha esquecido a bolsa. Resmungando, Bran passou a dele adiante, a cabeça careca reluzindo à luz das velas.
Perrin coçou a testa. O que pretendia perguntar em seguida? As estacas. Agora havia luta nas estacas na maioria dos ataques, sobretudo à noite. Quantas vezes os Trollocs quase invadiram? Três? Quatro?
— Alguém ainda tem lança ou algum tipo de arma de haste? O que sobrou para fabricar mais? — A resposta foi silêncio, e ele baixou a mão. Os outros homens o encaravam.
— Você perguntou isso ontem — respondeu Abell, com delicadeza. — E Haral explicou que não tem mais nenhuma foice ou ancinho na aldeia que não tenha sido transformado em arma. Na verdade, temos mais armas do que mãos.
— Sim. É claro. Só me fugiu da cabeça.
Um pedacinho da conversa do Círculo das Mulheres chamou sua atenção.
— … não é para deixar os homens ficarem sabendo — dizia Marin, baixinho, como se repetisse um aviso proferido antes.
— Claro que não — Daise resfolegou, porém não muito mais alto. — Se os bobos descobrirem que as mulheres estão sobrevivendo com meias-porções, vão insistir em comer o mesmo, e não podemos…
Perrin fechou os olhos e tentou ignorar o que ouvia. Claro. Os homens lutavam. Precisavam manter a força. Simples. Pelo menos por enquanto, nenhuma das mulheres tivera que lutar. Exceto as duas Aiel, naturalmente, e Faile, mas ela era esperta o bastante para manter distância quando se tratava de empurrar lanças por entre as estacas. Fora por esse motivo que Perrin dera o arco a ela. Faile tinha o coração de um leopardo e mais coragem do que dois homens juntos.
— Acho que está na hora de você se deitar, Perrin — sugeriu Bran. — Não pode continuar desse jeito, dormindo uma hora aqui, outra ali.
Perrin esfregou a barba com força, tentando parecer alerta.
— Mais tarde eu durmo. — Quando tudo acabasse. — Os homens estão dormindo o suficiente? Vi alguns sentados enquanto deveriam estar…
A porta da frente se abriu com um baque e Dannil Lewin adentrou pela noite, de arco na mão, todo agitado. Usava uma das espadas do barril na cintura. Tam dava algumas aulas, quando havia tempo, e às vezes algum dos Guardiões fazia o mesmo.
Antes que Dannil pudesse abrir a boca, Daise falou, irritada:
— Você foi criado em um celeiro, Dannil Lewin?
— Sei que tem condições de tratar minha porta com um pouco mais de gentileza. — Marin dividiu o olhar expressivo entre o homem magricela e Daise, em uma lembrança de que a porta era dela.
Dannil baixou a cabeça e pigarreou.
— Me desculpe, Senhora al’Vere — pediu, mais do que depressa. — Me desculpe, Sabedoria. Me desculpem por entrar desse jeito, mas tenho um recado para Perrin. — Ele correu até a mesa de homens, como se estivesse com medo de que as mulheres fossem impedi-lo outra vez. — Os Mantos-brancos trouxeram um sujeito que quer falar com você, Perrin. Não aceita falar com mais ninguém. Está muito ferido. E só o trouxeram até o limite da aldeia. Acho que ele não tem condições de vir até a estalagem.
Perrin se levantou com esforço.
— Estou indo. — Nenhum outro ataque, ao menos. Eram piores à noite.
Faile agarrou o arco e juntou-se a Perrin antes que ele chegasse à porta. Aram permaneceu de pé, hesitante, em meio às sombras, no pé das escadas. Às vezes, Perrin se esquecia de que o homem estava lá, de tão quieto que ele ficava. Parecia estranho com aquela espada presa às costas por sobre o casaco encardido de latoeiro, listrado de amarelo, com olhos muito vivazes, quase sem piscar, e o rosto inexpressivo. Nem Raen nem Ila haviam falado com o neto desde o dia em que ele apanhara a espada. Nem com Perrin.
— Se for para vir, venha — disse, de modo grosseiro, e Aram disparou atrás dele.
O homem o seguia feito um sabujo toda vez que não estava atazanando Tam, Ihvon ou Tomas para ensiná-lo a usar a espada. Era como se tivesse substituído seu povo e sua família por Perrin. O rapaz dispensaria essa responsabilidade se pudesse, mas lá estava o latoeiro.
O luar brilhava nos telhados de palha. Poucas casas tinham mais de uma janela iluminada. A quietude dominava a aldeia. Cerca de trinta Companheiros montavam guarda do lado de fora da estalagem, de arcos nas mãos, e o mesmo número portava as espadas que puderam encontrar. Todos haviam adotado o nome, e, para seu próprio desgosto, Perrin também se surpreendia usando-o. A razão para os guardas na estalagem, ou onde Perrin estivesse, estava no campo comunitário, já não tão apinhado de ovelhas e vacas. Algumas fogueiras subiam pelas margens do Fonte de Vinho, para além de onde aquele estandarte idiota com a cabeça do lobo jazia pendurado, imóvel. Círculos de luz no meio da escuridão, nos quais mantos claros reluziam ao luar.
Ninguém queria Mantos-brancos em suas casas, já abarrotadas, e, de todo modo, Bornhald não queria dividir seus soldados. O homem parecia pensar que a aldeia se voltaria contra ele e os Filhos a qualquer momento. Se o povo estava com Perrin, decerto eram Amigos das Trevas. Nem os olhos de Perrin conseguiram distinguir os rostos em torno das fogueiras, mas ele achou que sentia o olhar fixo de Bornhald, cheio de ódio e expectativa.
Dannil aprontou dez Companheiros para escoltar Perrin, jovens rapazes que deveriam estar rindo e bebendo com ele, todos com arcos prontos para defendê-lo. Aram não se juntou ao grupo liderado por Dannil no caminho pela rua escura de terra batida. O rapaz estava com Perrin, mais ninguém. Faile permanecia rígida ao lado do namorado, os olhos escuros cintilando ao luar, esquadrinhando os arredores como se ela fosse sua única proteção.
No ponto onde a Estrada Velha adentrava Campo de Emond, os carroções que formavam o bloqueio haviam sido afastados para permitir a entrada da patrulha dos Filhos da Luz, vinte homens vestidos em mantos brancos feito neve, portando lanças, sentados sobre os cavalos em armaduras reluzentes, não menos impacientes do que as montarias, que batiam os cascos no chão. Eles se destacavam no meio da noite, e a maioria dos Trollocs enxergava tão bem no escuro quanto Perrin, mas os Mantos-brancos insistiam nas patrulhas. Às vezes, os batedores traziam avisos, e talvez seu assédio deixasse os Trollocs um pouco atordoados. Ainda assim, seria bom ficar sabendo o que os Filhos estavam fazendo antes que fosse tarde demais.
Um grupo de aldeões e fazendeiros vestindo partes de armaduras antigas e capacetes enferrujados estava aglomerado ao redor de um homem estirado na estrada, com casaco de fazendeiro. Eles abriram caminho para Faile e Perrin, que foi se ajoelhar ao lado do homem.
O cheiro de sangue era forte. O suor brilhava no rosto do homem sob o vago reflexo da lua. A flecha de um Trolloc, da espessura de um polegar e parecida com uma pequena lança, jazia cravada em seu peito.
— Perrin… Olhos-Dourados — murmurou o homem, rouco, com dificuldade de respirar. — Preciso… falar… com Perrin… Olhos-Dourados.
— Alguém já foi chamar uma Aes Sedai? — inquiriu Perrin, erguendo o homem com a maior delicadeza possível, sustentando sua cabeça. Não escutou resposta. Não achava que o sujeito aguentaria até a chegada de uma Aes Sedai. — Eu sou Perrin.
— Olhos-Dourados? Eu… não estou… enxergando… muito bem.
Os olhos do homem, frenéticos e arregalados, estavam fixos no rosto de Perrin. Se pudesse enxergar qualquer coisa que fosse, o sujeito veria seus olhos dourados reluzindo na escuridão.
— Eu sou Perrin Olhos-Dourados — respondeu o rapaz, relutante.
O homem agarrou a gola de sua camisa e puxou o rosto para mais perto com uma força surpreendente.
— Nós estamos… vindo. Vim… avisar você. Estamos vin…
A cabeça do homem desabou para trás, os olhos fixos encarando o nada.
— Que a Luz acompanhe sua alma — murmurou Faile, guardando o arco nas costas.
Depois de um instante Perrin soltou com dificuldade os dedos do homem.
— Alguém o conhece? — Os homens de Dois Rios se entreolharam e fizeram que não com a cabeça. Perrin olhou para cima, para os Mantos-brancos montando em seus cavalos. — Ele disse mais alguma coisa enquanto vocês o traziam? Onde o encontraram?
Jaret Byar olhou para baixo e encarou Perrin. Tinha o rosto encovado e olhos fundos, a imagem da morte. Os outros Mantos-brancos desviavam o olhar, mas Byar sempre encarava seus olhos amarelos de frente, sobretudo à noite, quando eles reluziam. Byar grunhiu entre dentes — Perrin ouviu “Criatura da Sombra!” — e cravou as botas nos flancos do cavalo. A patrulha galopou para dentro da aldeia, tão ávida em se afastar de Perrin quanto dos Trollocs. Aram encarou o bando, inexpressivo, com uma das mãos sobre o ombro, tocando o punho da espada.
— Eles disseram que o encontraram três ou quatro milhas ao sul. — Dannil hesitou, então acrescentou: — Estão dizendo que os Trollocs estão dispersos em pequenos bandos, Perrin. Talvez finalmente estejam desistindo.
Perrin deitou o estranho de volta no chão. Estamos vindo.
— Fiquem de olho. Talvez alguma família ainda agarrada à fazenda esteja chegando. — Não acreditava que alguém pudesse ter sobrevivido lá fora por tanto tempo, mas talvez fosse isso. — Não atirem contra ninguém por engano. — Ele se levantou, cambaleante, e Faile pousou a mão em seu ombro.
— Você já devia estar na cama, Perrin. Alguma hora você tem que dormir.
O rapaz apenas a encarou. Devia tê-la obrigado a ficar em Tear. Devia ter dado um jeito. Se tivesse pensado direito, teria conseguido.
Um dos mensageiros, um garoto de cabelos enrolados, na altura do peito, passou deslizando pelos homens de Dois Rios e foi puxar a manga da camisa de Perrin. Ele não o conhecia. Muitas famílias tinham vindo do interior.
— Tem algo se mexendo na Floresta do Oeste, Lorde Perrin. Eles me mandaram para avisar o senhor.
— Não me chame assim — retrucou Perrin, com rispidez. Se não refreasse as crianças, logo os Companheiros também começariam a usar o termo. — Vá dizer a eles que estou indo. — O garoto saiu em disparada.
— O seu lugar é na cama — informou Faile, com a voz firme. — Tomas consegue muito bem dar conta de qualquer ataque.
— Não é um ataque, senão o garoto teria falado, e alguém estaria soando o clarim de Cenn.
Ela se pendurou no braço dele, tentando puxá-lo em direção à estalagem, por isso foi arrastada junto quando ele saiu andando para o lado oposto. Depois de alguns minutos de tentativa inútil, Faile desistiu e fingiu que estivera o tempo todo apenas segurando o braço do rapaz. Mas resmungava sozinha. Ao que parecia, ainda achava que ele não ouviria se ela falasse bem baixinho. Começou com “idiota”, “cabeça de mula” e “descerebrado”, então as ofensas foram aumentando. Era quase uma pequena procissão: Faile resmungando, Aram em sua cola, e os dez Companheiros a rodeá-lo feito uma guarda de honra. Se não estivesse tão cansado, Perrin estaria se sentindo um verdadeiro idiota.
Havia guardas espalhados em pequenos grupos por toda a extensão da cerca de estacas pontudas, perscrutando a noite, cada um fazendo um garoto de mensageiro. Na extremidade a oeste da aldeia, os homens em guarda estavam reunidos do lado de dentro da extensa barreira, tocando os arcos e lanças enquanto espiavam a Floresta do Oeste. Mesmo sob o luar, as árvores eram um negrume total a seus olhos.
A capa de Tomas parecia fazer certas partes de seu corpo desaparecerem em meio à noite. Bain e Chiad estavam com ele. Por alguma razão, as duas Donzelas passaram todas as noites naquela extremidade de Campo de Emond desde a partida de Loial e Gaul.
— Eu não teria mandado incomodar você — começou o Guardião, dirigindo-se a Perrin — mas parece que só tem uma criatura aí fora, e achei que você talvez pudesse…
Perrin assentiu. Todos sabiam sobre sua visão, que era ainda melhor à noite. O povo de Dois Rios parecia pensar que era algo muito especial, algo que o identificava como um herói idiota. E ele não fazia ideia do que os Guardiões pensavam, ou as Aes Sedai. Estava cansado demais, aquela noite, para se importar. Sete dias, e quantos ataques?
A fronteira da Floresta do Oeste ficava a quinhentas passadas de distância. Mesmo aos olhos dele, as árvores pareciam muito juntas em meio às sombras. Algo se movia. Algo grande o bastante para ser um Trolloc. Uma imensa forma carregando… A carga ergueu um braço. Um ser humano. Uma imensa sombra carregando um ser humano.
— Não vamos atirar! — gritou. Queria gargalhar. Na verdade, percebeu que estava gargalhando. — Venha! Venha, Loial!
A silhueta indistinta moveu-se para frente mais rápido do que um homem era capaz de correr, transformando-se no Ogier, disparando em direção à aldeia com Gaul nos braços.
Homens de Dois Rios gritavam palavras de encorajamento, como se fosse uma corrida.
— Corra, Ogier! Corra! Corra!
Talvez fosse uma corrida: mais de um ataque viera daquela mata.
Próximo às estacas, Loial reduziu o passo e deu uma guinada. Virou-se de lado. Mal havia espaço para que suas pernas grossas ultrapassassem a barreira. Uma vez dentro do perímetro da aldeia, soltou o Aiel e desabou no chão, recostando-se na cerca, sem fôlego, as orelhas peludas caídas de cansaço. Gaul foi mancando até conseguir se sentar, com Bain e Chiad examinando sua coxa esquerda, onde a calça estava rasgada e preta por causa do sangue seco. Ele tinha apenas duas lanças, e a aljava aberta estava vazia. O machado de Loial também sumira.
— Seu Ogier tolo — disse Perrin, com uma risada afetuosa. — Saindo daquele jeito. Vou deixar Daise Congar dar umas varadas em você, seu fugitivo. Pelo menos está vivo. Pelo menos está de volta. — Com isso, ele se calou.
Vivo. E de volta em Campo de Emond.
— Nós conseguimos, Perrin — disse Loial, ofegante, soando como o ribombar de um tambor cansado. — Há quatro dias. Fechamos o Portal dos Caminhos. Agora só os Anciões ou uma Aes Sedai conseguiriam abri-lo outra vez.
— Ele me carregou por quase todo o caminho desde as montanhas — comentou Gaul. — Um Mensageiro da Noite e talvez uns cinquenta Trollocs nos perseguiram pelos primeiros três dias, mas Loial conseguiu deixar todos para trás.
O Aiel tentava afastar as Donzelas, sem sucesso.
— Fique quieto, Shaarad — vociferou Chiad — ou vou falar que encostei em você armada e deixar você decidir como fica a sua honra.
Faile soltou uma gargalhada. Perrin não entendeu, mas a observação reduziu o Aiel imperturbável a um homem tartamudo. Ele deixou as Donzelas cuidarem de sua perna.
— Está tudo bem, Loial? — perguntou Perrin. — Você está ferido?
O Ogier se levantou com esforço visível e, por um instante, bamboleou feito uma árvore prestes a desabar. As orelhas ainda pendiam, flácidas.
— Não, Perrin, não estou ferido. Só cansado. Não se preocupe comigo. Passei tempo demais longe do pouso. Visitar não é o suficiente. — Ele balançou a cabeça como se seus pensamentos tivessem começado a vagar. A mão imensa engolfou o ombro de Perrin. — Vou ficar bem depois de dormir um pouquinho. — Ele baixou a voz. Isso é, para um Ogier, já que ainda parecia o zunido de uma abelha imensa. — Está muito ruim por lá, Perrin. Seguimos os últimos bandos na volta, na maior parte do tempo. Trancamos o portal, mas acho que já deve haver centenas de Trollocs em Dois Rios, e talvez uns cinquenta Myrddraal.
— Nem tanto — anunciou Luc, em voz alta. Ele subira a galope, beirando as casas, vindo da direção da Estrada do Norte. Puxou as rédeas do garanhão preto, fazendo-o empinar de repente e parar, batendo os cascos dianteiros no chão. — Sem dúvida o senhor tem muito talento para cantar para as árvores, Ogier, mas combater Trollocs é bem diferente. Estimo que agora sejam menos de mil. Uma força formidável, sem sobra de dúvida, mas nada que essas defesas robustas e os homens valentes não sejam capazes de manter encurralados. Mais um troféu para o senhor, Lorde Perrin Olhos-Dourados. — Com uma risada, ele atirou um saco de tecido saliente para Perrin. A parte de baixo refletia um brilho molhado ao luar.
Perrin agarrou o saco em pleno ar e atirou-o bem para longe das estacas, apesar do peso. Quatro ou cinco cabeças de Trolloc, não restava dúvida, e talvez a de um Myrddraal. O homem trazia troféus todas as noites, decerto na esperança de que fossem exibidos para o povo contemplar. Um bando dos Coplins e Congars ofereceram uma festa na noite em que Luc chegou com as cabeças de um par de Desvanecidos.
— E eu, também não entendo nada de luta? — inquiriu Gaul, levantando-se com dificuldade. — Eu estou dizendo que há muitos milhares.
Luc exibiu os dentes brancos em um sorriso.
— Quantos dias você passou na Praga, Aiel? Eu já passei muitos. — Talvez fosse mais um rosnado do que um sorriso. — Muitos. Acredite no que quiser, Olhos-Dourados. Os dias sem fim trarão o que for, como sempre foi.
Ele fez o garanhão empinar outra vez, então deu um giro e saiu galopando por entre as casas e árvores que um dia haviam sido a margem da Floresta do Oeste. Os homens de Dois Rios se remexiam, inquietos, encarando o homem ou a noite.
— Ele está errado — disse Loial. — Gaul e eu sabemos o que vimos.
O Ogier vergou o rosto cansado, a boca enorme caída, as compridas sobrancelhas desabando por cima das bochechas. Não era de se admirar, posto que Loial carregara Gaul por três ou quatro dias.
— Você já fez muito, Loial — disse Perrin — tanto você quanto Gaul. Muito. Receio que o seu quarto esteja abarrotado com meia dúzia de latoeiros, mas a Senhora al’Vere vai preparar um catre para você. Está na hora de dormir um pouco, como você estava querendo.
— E você também, Perrin Aybara. — As nuvens ligeiras faziam as sombras brincarem no nariz acentuado e nas maçãs do rosto proeminentes de Faile. Ela era tão bonita. Mas sua voz estava dura feito a cama de um carroção. — Se não for agora, vou pôr Loial para carregar você. Você mal se aguenta em pé.
Gaul estava com dificuldade de caminhar com a perna ferida. Bain o apoiava de um dos lados. Ele tentou impedir que Chiad o sustentasse do outro, mas a mulher murmurou algo que soou feito “gai’shain”, em um tom intimidador. Bain soltou uma risada, e o Aiel permitiu que as duas o ajudassem, grunhindo baixinho, cheio de raiva. Fosse lá o que as Donzelas estivessem falando, Gaul fora obrigado a engolir.
Tomas bateu no ombro de Perrin.
— Vá, homem. Todo mundo precisa dormir.
O próprio Tomas parecia estar acordado havia bem mais que três dias.
Perrin assentiu.
Deixou que Faile o conduzisse de volta à estalagem Fonte de Vinho, com Loial e os Aiel atrás, além de Aram, Dannil e os dez Companheiros a rodeá-lo. Não soube ao certo em que momento os outros o deixaram, mas Faile e ele acabaram sozinhos em seu quarto, no segundo andar da estalagem.
— Tem famílias inteiras se ajeitando em espaços menores que esse — murmurou. Uma vela queimava sobre a cornija de pedra da pequena lareira. Os outros se viravam sem vela, mas Marin acendia uma ali assim que a noite caía, para que ele não se incomodasse em pedir. — Eu posso dormir lá fora com Dannil, Ban e os outros.
— Não seja idiota — retrucou Faile, com um tom afetuoso. — Se Alanna e Verin têm quartos próprios, você também tem que ter o seu.
Percebeu que a namorada tirara seu casaco e estava desamarrando os laços da camisa.
— Eu não estou tão cansado a ponto de não conseguir tirar a roupa.
Gentilmente, Perrin a empurrou para fora.
— É para tirar tudo — ordenou Faile. — Tudo, está me ouvindo? Não tem como dormir direito todo vestido, do jeito que você acha que dá para fazer.
— Vou tirar — prometeu Perrin.
Quando fechou a porta, ele ao menos arrancou as botas antes de apagar a vela e se deitar. Marin não gostaria de botas sujas em cima da coberta.
Milhares, tinham dito Gaul e Loial. Ainda assim, o quanto eles dois teriam sido capazes de enxergar, percorrendo as montanhas escondidos e correndo no caminho de volta? Talvez no máximo mil, alegava Luc, mas Perrin não conseguia confiar nele, apesar de todos os troféus que o homem trazia. Espalhados, segundo os Mantos-brancos. O quanto teriam se aproximado, com as capas e armaduras reluzindo feito lanternas na escuridão?
Talvez houvesse um meio de saber por si mesmo. Evitara o sonho de lobo desde a última visita. O desejo de caçar o tal Matador reaparecia toda vez que ele pensava em retornar, e suas responsabilidades estavam ali, em Campo de Emond. Mas agora, quem sabe… o sonho o envolveu enquanto ele ainda considerava a ideia.
Estava no campo comunitário, banhado pelo sol da tarde já baixo no céu, com algumas nuvens brancas suspensas. Não havia gado ou ovelha ao redor da estaca comprida onde uma brisa fazia tremular o estandarte vermelho com a cabeça de lobo, mas uma mosca-azul passou zunindo diante de seu rosto. Não havia vivalma entre as casas de sapê. Pequenas pilhas de madeira seca por cima de cinzas marcavam as fogueiras dos Mantos-brancos. Quase nunca via qualquer coisa queimando no sonho de lobo, apenas o que estava prestes a queimar ou já enegrecido. Nenhum corvo no céu.
Enquanto procurava os pássaros, um pedaço do céu escureceu, tornando-se uma janela para algo mais. Egwene estava parada entre um grupo de mulheres, os olhos cheios de medo. Bem devagar, as mulheres se ajoelharam à volta dela. Nynaeve estava entre elas, e Perrin achou que tinha visto os cabelos louro-avermelhados de Elayne. A janela sumiu e foi substituída. Mat apareceu, nu e amarrado, rosnando. Uma estranha lança de cabo preto estava presa às suas costas, e um medalhão de prata com a cabeça de uma raposa jazia pendurado em seu peito. O amigo desapareceu, e surgiu Rand. Perrin achou que era Rand. Vestia trapos e um manto tosco, e uma atadura cobria seus olhos. A terceira janela sumiu. O céu era apenas o céu, vazio, exceto pelas nuvens.
Perrin estremeceu. As visões dos sonhos de lobo nunca pareciam ter relação com nada que ele soubesse que estava acontecendo. Talvez ali, onde tudo podia mudar com tanta facilidade, sua preocupação com os amigos se transformasse em algo que ele podia ser. Fosse o que fosse, estava perdendo tempo em se afligir com aquilo.
Não ficou surpreso em descobrir que usava um colete comprido de ferreiro, de couro, sem camisa por baixo. Mas, ao levar a mão ao cinto, encontrou o martelo, não o machado. Franzindo o cenho, concentrou-se na lâmina comprida em meia-lua e na ponteira grossa. Era do que precisava. O que ele era. O martelo foi mudando aos poucos, mas, quando o machado enfim surgiu, pendendo no passante grosso do cinto, emanava um brilho perigoso. Por que tanta luta? Perrin sabia o que queria. Uma aljava cheia apareceu do outro lado da cintura, um arco longo na mão, um braçal de couro no antebraço esquerdo.
Três passos bem ligeiros, fazendo a terra passar feito um borrão, o levaram aonde supostamente ficavam os campos de Trollocs mais próximos, a três milhas da aldeia. O último passo o deixou no meio de quase uma dúzia de pilhas altas de madeira, que jaziam sobre cinzas antigas de cevada pisoteada, os troncos misturados a cadeiras quebradas, pernas de mesa e até a porta de uma casa de fazenda. Imensos caldeirões de ferro negro pareciam prontos para ser pendurados sobre as fogueiras. Caldeirões vazios, naturalmente, embora ele soubesse o que seria picado dentro deles, o que seria cravado nos robustos espetos de ferro e estirado por sobre uma das fogueiras. A quantos Trollocs aquelas fogueiras serviriam? Não havia tendas, e os cobertores espalhados pelos cantos, imundos e fedendo a suor velho e acre de Trolloc, não fornecia pistas. Muitos dormiam feito animais, no chão, e às vezes até cavavam buracos na terra para se deitar.
Em passos menores, que cobriam menos de cem passadas, fazendo a terra parecer apenas um pouco nebulosa, Perrin circundou Campo de Emond de fazenda em fazenda. Passou por pastos, campos de cevada e fileiras de tabaco. Percorreu bosques de árvores isoladas atrás de rastros de carroções e pegadas, encontrando cada vez mais grupos de fogueiras de Trollocs à espreita enquanto se movia em espiral para fora da aldeia. Muitas fogueiras. Centenas. Aquilo só podia significar muitos milhares de Trollocs. Cinco mil, ou dez, ou o dobro… Não faria muita diferença para Campo de Emond, se todos chegassem ao mesmo tempo.
Mais adiante, ao sul, os sinais de Trollocs desapareceram. Ao menos, os sinais de sua presença imediata. Poucas casas de fazenda e celeiros não haviam sido incendiados. Campos isolados de restolho chamuscado se estendiam onde a cevada ou o tabaco haviam sido queimados, enquanto em outros, grandes faixas de colheita tinham sido pisoteadas. Não havia razão para aquilo além do prazer de destruir. O povo já não estava por ali havia muito, quando tudo aquilo fora feito. Em dado momento, Perrin aterrissou entre enormes trechos de terra coberta de cinzas, as rodas de algum carroção ainda exibindo toques de cores vivas aqui e ali. O local da destruição da caravana dos Tuatha’an lhe trouxe ainda mais pesar do que as casas de fazenda. Deveria ter havido uma chance para o Caminho da Folha. Mas não ali. Sem se permitir olhar, saltou uma milha ou mais em direção ao sul.
Por fim, chegou a Trilha de Deven, com fileiras de casas de telhado de palha rodeando um campo e um laguinho abastecido por uma nascente cercada de pedras, o excedente esguichando de aberturas muito gastas, maiores do que quando tinham sido criadas. A estalagem na beira do campo, Ganso e Gaita, também tinha telhado de palha, mas era um pouco maior do que a Fonte de Vinho, embora Trilha de Deven sem dúvida recebesse menos visitantes que Campo de Emond. A aldeia decerto não era maior. Carros e carroções perto de todas as casas indicavam que os fazendeiros haviam fugido para lá com suas famílias. Outros carroções bloqueavam as ruas e os espaços entre as casas por todo o caminho ao longo das divisas da aldeia. As precauções não teriam sido o bastante para impedir sequer um dos ataques feitos a Campo de Emond nos últimos sete dias.
Dando três voltas ao redor da aldeia, Perrin encontrou apenas meia dúzia de acampamentos de Trollocs. O bastante para manter o povo dentro das casas. Encurralá-los até acabarem com Campo de Emond. Então os Trollocs poderiam lançar-se sobre Trilha de Deven ao bel prazer dos Desvanecidos. Talvez pudesse arranjar uma forma de avisar os aldeões. Se eles fugissem para o sul, talvez encontrassem caminho pelo Rio Branco. Quem sabe tentar cruzar a Floresta das Sombras abaixo do rio, onde não havia como deixar rastro, fosse melhor do que esperar a morte.
O sol dourado não se movera uma polegada sequer. O tempo ali passava diferente.
Perrin correu para o norte o mais rápido que podia, e passou feito um borrão por Campo de Emond. Em Colina da Vigília, uma vila redonda e proeminente, carroções e carros também margeavam as casas, tal e qual em Trilha de Deven. Um estandarte tremulava preguiçosamente ao sabor da brisa, em um mastro comprido diante da estalagem Javali Branco, no topo da colina. Uma águia vermelha voando por um campo azul. A Águia Vermelha fora o símbolo de Manetheren. Talvez Alanna ou Verin tivessem contado histórias antigas quando estiveram lá.
Ali, também, encontrou alguns acampamentos de Trollocs. O suficiente para acuar os aldeões. De lá havia uma saída mais fácil do que tentar cruzar o Rio Branco, com sua infindável estirada de corredeiras.
Correu rumo ao norte, para a Barca do Taren, na ribanceira do Tarendrelle, que ele crescera chamando de Rio Taren. As casas eram altas e estreitas, construí das sobre fundações de pedra para escapar da cheia anual do Taren, quando a neve derretia nas Montanhas da Névoa. Quase metade dessas fundações sustentava apenas pilhas de cinzas e vigas chamuscadas sob aquela luz permanente da tarde. Não havia carroções ali, nem qualquer sinal de defesa. Nem acampamentos de Trollocs que ele pudesse ver. Talvez não tivesse sobrado ninguém na vila.
Na beirada da água havia um deque robusto de madeira, com uma corda pesada caída no rio ligeiro. A corda corria pelos aros de ferro de uma barcaça de soalho plano acomodada no deque. A barca ainda estava ali, ainda utilizável.
Um salto o levou para o outro lado do rio, onde sulcos de rodas marcavam a margem e objetos domésticos jaziam pelo chão. Cadeiras e espelhos, baús, até algumas mesas e um guarda-roupas polido com entalhes de pássaros nas portas, todas as coisas que o povo desesperado tentara salvar, depois abandonara para poder avançar mais depressa. Todos deviam estar espalhando a notícia do que acontecera ali, do que estava acontecendo em Dois Rios. Àquela altura, alguns já deviam ter chegado a Baerlon, umas cem milhas ou mais ao norte, e sem dúvida às fazendas e aldeias entre Baerlon e o rio. As notícias corriam. Em mais um mês talvez chegassem a Caemlyn e à Rainha Morgase, com sua Guarda da Rainha e seu poder para reunir exércitos. Um mês, com sorte. E outro mês para retornar, se Morgase acreditasse. Tarde demais para Campo de Emond. Talvez tarde demais para toda Dois Rios.
Ainda assim, quase não fazia sentido que os Trollocs deixassem alguém escapar. Ou os Myrddraal, na verdade. Os Trollocs não pareciam pensar muito para além do momento presente. Imaginava que destruir a barca teria sido a primeira tarefa dos Desvanecidos. Como poderiam ter certeza de que não havia soldados suficientes em Baerlon para derrotá-los?
Ele se abaixou para pegar uma boneca de madeira com o rosto pintado, e uma flecha zuniu por onde estivera seu peito.
Perrin se levantou com um salto e disparou margem acima, um borrão se formando pela floresta. Parou cem passadas à frente para se acocorar sob uma imensa folha-de-couro. Arbustos e árvores tombadas para dentro d’água e cobertas de trepadeiras revestiam o chão da floresta à sua volta.
Matador. Perrin encaixou uma flecha no arco, sem saber se a puxara de dentro da aljava ou simplesmente imaginara que estava ali. Matador.
Quando estava prestes a saltar novamente, parou. Matador saberia mais ou menos onde ele estava. Perrin já seguira o borrão formado pelo homem com bastante facilidade. A faixa alongada era bem nítida quando a pessoa estava parada olhando. Por duas vezes, entrara no jogo do outro e quase levara a pior. Matador que jogasse, dessa vez. Ele aguardou.
Corvos mergulhavam por sobre os topos das árvores, vasculhando e gritando. Nenhum movimento o entregava; nem sequer um leve tremor. Apenas seus olhos se moviam, perscrutando a floresta ao redor. Uma lufada de ar errante trouxe um cheiro frio, ao mesmo tempo humano e inumano, e Perrin sorriu. Nenhum som ainda, exceto o dos corvos. Esse Matador era um ótimo espreitador. Mas não estava acostumado a ser caçado. O que mais o sujeito esquecera, além dos cheiros? Sem dúvida não esperava que Perrin permanecesse onde aterrissara. Os animais fugiam do caçador. Até mesmo os lobos.
Um indício de movimento, e, por um instante, um rosto surgiu por cima de um pinheiro caído a uns cinquenta passos de distância. A luz oblíqua iluminava com clareza. Cabelos escuros e olhos azuis, um rosto todo rígido e anguloso, tão parecido com o de Lan. Só que, naquele breve instante, o Matador umedeceu os lábios duas vezes, franziu a testa, e arregalou os olhos, à procura. Lan não deixaria transparecer a inquietação nem que estivesse sozinho diante de mil Trollocs. Apenas um instante, e o rosto sumiu outra vez. Os corvos saltaram e revoaram pelo céu, como se compartilhassem a ansiedade de Matador, com medo de descer além das copas das árvores.
Perrin aguardava e observava, imóvel. Silêncio. Apenas o cheiro frio informava que não estava sozinho com os corvos acima de sua cabeça.
O rosto de Matador surgiu outra vez, espiando por detrás de um carvalho de tronco robusto à esquerda. Os carvalhos matavam quase tudo o que crescia à volta, apenas uns cogumelos e ervas daninhas brotavam no húmus folhoso sob seus galhos. O homem surgiu bem devagar, e as botas não emitiam som.
Em um só movimento, Perrin apontou e disparou. Os corvos emitiram gritos de aviso, e o Matador girou para receber a flecha no peito, mas não no coração. O homem soltou um uivo e agarrou a flecha com as duas mãos. Penas negras caíram no chão quando os corvos bateram as asas em frenesi. O Matador esvaneceu com um grito, tornando-se nebuloso, transparente, desaparecendo. Os guinchos dos corvos pararam de repente, como se tivessem sido cortados com uma faca. A flecha que perfurara o homem caiu no chão. Os corvos também desapareceram.
Com uma segunda flecha meio erguida, Perrin exalou lentamente, relaxando a tensão da corda do arco. A morte era assim, por ali? A pessoa simplesmente desaparecia, sumia para sempre?
— Pelo menos acabei com ele — murmurou Perrin.
E se desviara do objetivo. O Matador não estava entre os motivos pelo qual viera ao sonho de lobo. Pelo menos agora os lobos estavam seguros. Os lobos… e talvez alguns outros.
Ele saiu do sonho…
… e acordou encarando o teto, a camisa toda suada e grudada no corpo. O luar iluminava um pouco pelas janelas. Em algum ponto da aldeia havia rabecas tocando uma alegre melodia dos latoeiros. Eles não lutavam, mas tinham encontrado uma forma de ajudar, animando o povo.
Perrin sentou-se devagar, calçando as botas no breu parcamente iluminado. Como fazer o que era preciso? Seria difícil. Teria que ser astuto. No entanto, não sabia se algum dia na vida tinha sido astuto. Levantou-se e pisou firme para ajeitar as botas.
Gritos súbitos do lado de fora e o som indistinto de cascos o fizeram correr até a janela mais próxima e erguer o caixilho. Os Companheiros estavam em polvorosa lá embaixo.
— O que está havendo?
Trinta rostos se viraram para ele, e Ban al’Seen gritou:
— Foi o Lorde Luc, Lorde Perrin. Quase atropelou Wil e Tell. Acho que nem viu os dois. Estava todo corcunda em cima da sela, parecia ferido. Esporeava aquele cavalo com toda a força.
Perrin coçou a barba. Luc sem dúvida não estava ferido mais cedo. Luc… o Matador? Era impossível. O Matador, com seus cabelos escuros, parecia primo ou irmão de Lan. Se Luc, com aquele cabelo louro-avermelhado, parecia alguém, talvez fosse Rand. Ao menos um pouco. Os dois não podiam ser mais diferentes um do outro. E, ainda assim… aquele cheiro frio. Eles não tinham o mesmo cheiro, mas ambos exalavam um aroma gélido, quase inumano. Seus ouvidos captaram o som de carroções sendo puxados para abrir caminho na Estrada Velha, além de gritos de pressa. Mesmo que Ban e os Companheiros corressem, já não conseguiriam alcançar o homem. Cascos galoparam com força para o sul.
— Ban — gritou — se Luc aparecer outra vez, o mantenham sob vigilância. — Ele fez uma pausa meio longa e acrescentou: — E não me chame assim!
Em seguida, baixou o caixilho de volta, com um estrondo.
Luc e o Matador; o Matador e Luc. Como poderiam ser a mesma pessoa? Era realmente impossível. Por outro lado, menos de dois anos antes ele sequer acreditava em Trollocs ou Desvanecidos. Havia tempo suficiente para se preocupar, caso pusesse outra vez as mãos no sujeito. Agora havia Colina da Vigília, Trilha de Deven e… Alguns poderiam ser salvos. Nem todos em Dois Rios precisavam morrer.
A caminho do salão, ele fez uma pausa no topo da escada. Aram estava parado no último degrau, observando-o, aguardando para seguir suas ordens. Gaul jazia estirado em um catre próximo à lareira, com uma atadura grossa na coxa esquerda, aparentemente dormindo. Faile e as duas Donzelas estavam sentadas no chão perto dele, de pernas cruzadas, conversando baixinho. Havia um catre bem maior do outro lado do salão, mas Loial estava sentado em um banco, as pernas esticadas para caber debaixo de uma das mesas, quase todo envergado para poder rascunhar com uma pena à luz de uma vela. Sem dúvida estava registrando o que acontecera na viagem para fechar o Portal dos Caminhos. E, se Perrin conhecia Loial, o relato do Ogier atribuiria todos os feitos a Gaul, não importava se era verdade ou não. Loial parecia acreditar que nada do que fazia era de fato corajoso ou digno de nota. Exceto por eles, o salão estava vazio. Ainda dava para ouvir as rabecas. Pensou reconhecer a melodia. Já não era uma canção latoeira. “Meu amor é uma rosa selvagem”.
Assim que Perrin desceu o primeiro degrau, Faile ergueu os olhos e subiu graciosamente para encontrá-lo. Aram sentou-se outra vez ao ver que Perrin não fizera qualquer movimento em direção à porta.
— Sua camisa está molhada — comentou Faile, em tom acusatório. — Você dormiu com ela, não foi? E de botas, não duvido. Não faz nem uma hora que deixei você no quarto. Volte já para cima, antes que acabe caindo no chão.
— Você viu Luc sair? — perguntou.
A mulher apertou os lábios, mas às vezes a única saída era ignorá-la. Quando discutiam, Faile ganhava com muito mais frequência.
— Passou correndo faz alguns minutos e saiu disparado pela cozinha — respondeu ela, por fim. As palavras foram essas, e o tom informava que o assunto “ele e a cama” ainda não havia terminado.
— Ele parecia… ferido?
— Parecia — respondeu ela, receosa. — Estava cambaleante, agarrando alguma coisa no peito, por baixo do casaco. Uma atadura, talvez. A Senhora Congar está lá na cozinha, mas, pelo que eu ouvi, ele praticamente a atropelou. Como você sabe disso?
— Eu sonhei. — Os olhos oblíquos de Faile assumiram um brilho perigoso. Ela não deveria estar pensando direito. Sabia sobre o sonho de lobo. Será que esperava que ele explicasse bem ali, na frente de Bain e Chiad, de Aram e Loial? Bem, talvez não de Loial. O Ogier estava tão absorto nas anotações que não teria percebido nem se um rebanho de ovelhas irrompesse pelo salão. — E Gaul?
— A Senhora Congar deu alguma coisa para ele dormir, além de um cataplasma para a perna. Quando as Aes Sedai acordarem, amanhã de manhã, uma delas vai Curá-lo, se considerarem sério a esse ponto.
— Venha se sentar, Faile. Quero que você faça uma coisa para mim.
A jovem o encarou, desconfiada, mas se deixou ser conduzida até uma cadeira. Quando os dois se sentaram, Perrin se inclinou por cima da mesa, tentando soar sério, mas não desesperado. Nem um pouco desesperado.
— Quero que entregue uma mensagem a Caemlyn para mim. No caminho, pode dar notícias a Colina da Vigília de como estão as coisas por aqui. Na verdade, talvez seja melhor se o povo de lá cruzar o Taren até isso tudo terminar. — Ele passou o tom de preocupação apropriado. Apenas um pouco mais, por conta do calor do momento. — Quero que peça à Rainha Morgase para enviar alguns Guardas da Rainha. Sei que estou pedindo uma coisa perigosa, mas Bain e Chiad podem levar você em segurança até Barca do Taren, e a barca ainda está lá. — Chiad se levantou, encarando-o com ansiedade. Por que estava assim?
— Você não vai precisar se separar dele — disse Faile para a Donzela. Depois de um instante, a Aiel assentiu e sentou-se de volta ao lado de Gaul. Chiad e Gaul? Eram inimigos de sangue. Nada estava fazendo sentido, aquela noite. — Caemlyn fica muito longe daqui — prosseguiu a jovem, baixinho. Seus olhos estavam concentrados nos dele, mas o rosto poderia ser de madeira, de tão inexpressivo. — Levaria semanas para cavalgar até lá, mais sabe-se lá quanto tempo até encontrar Morgase e convencê-la. E mais umas semanas para retornar com a Guarda da Rainha.
— A gente consegue aguentar esse tempo — respondeu Perrin. Que me queime por não conseguir mentir tão bem quanto Mat! — Luc tinha razão. Não pode haver mais do que mil Trollocs por aí. O sonho? — Faile assentiu. Enfim entendia. — A gente consegue aguentar por muito tempo, mas, enquanto isso, eles vão incendiar colheitas e fazer sabe a Luz mais o quê. Para nos livrarmos completamente deles, precisaremos da Guarda da Rainha. Você é a opção mais lógica para ir até lá. Vai saber conversar com uma rainha, por ser prima de uma, e tudo o mais. Faile, eu sei que o que estou pedindo é perigoso… — Não tanto quanto ficar. — Mas é só você chegar até a barca e já vai estar no caminho.
Perrin não ouviu Loial se aproximando até que o Ogier deitou o caderno de notas diante de Faile.
— Eu não pude evitar ouvir, Faile. Se você for a Caemlyn, pode levar isso aqui? Para protegê-lo até eu conseguir buscar. — Encarando o livrinho quase com ternura, Loial acrescentou: — Lá em Caemlyn fabricam livros muito bons. Me desculpe a interrupção, Perrin. — No entanto, o Ogier tinha os olhos compridos fixos na jovem, não nele. — Faile combina com você. Você tem que voar livre, feito um falcão. — Com um tapinha no ombro de Perrin, Loial murmurou, em um ressoar profundo: — Ela tem que voar livre. — Então retornou ao catre e se deitou, virado para a parede.
— Ele está muito cansado — disse Perrin, tentando fazer a frase parecer apenas um comentário. O Ogier idiota poderia pôr tudo a perder! — Se você partir hoje à noite, conseguirá chegar a Colina da Vigília quando o dia nascer. Tem que seguir pelo leste. Lá, os Trollocs estão em menor número. Isso é muito importante para mim… Quer dizer, para Campo de Emond. Você vai?
Faile o encarou em silêncio durante tanto tempo que ele se perguntou se a namorada tinha intenção de responder. Os olhos dela pareciam reluzir. Então a jovem se levantou, sentou-se no colo dele e afagou sua barba.
— Está precisando aparar. Eu gosto de você assim, mas não quero que chegue até o peito.
O queixo de Perrin praticamente desabou. Ela sempre mudava de assunto, mas em geral era quando estava perdendo a discussão.
— Faile, por favor. Preciso que você leve essa mensagem até Caemlyn.
A jovem apertou a mão na barba dele e meneou a cabeça, como se estivesse discutindo consigo mesma em pensamento.
— Eu vou — disse, por fim — mas vou cobrar por isso. Você sempre me obriga a fazer as coisas do jeito mais difícil. Em Saldaea, não seria eu a fazer o pedido. Meu preço é… um casamento. Eu quero me casar com você — concluiu ela, apressada.
— E eu com você. — Perrin sorriu. — Podemos fazer os votos de noivado diante do Círculo das Mulheres ainda hoje à noite, mas receio que o casamento tenha que esperar um ano. Quando você voltar de Caemlyn…
Faile quase arrancou um punhado de barba do queixo dele.
— Você vai virar meu marido esta noite — declarou, em um tom baixo e firme — ou eu não saio daqui até isso acontecer!
— Se houvesse como, eu faria — protestou Perrin. — Daise Congar acabaria comigo, se eu tentasse quebrar a tradição. Pelo amor da Luz, Faile, só leve a mensagem. Eu me caso com você no primeiro dia que puder.
E se casaria. Se esse dia viesse a chegar.
De súbito, a mulher se concentrou na barba dele, alisando-a, sem olhá-lo nos olhos. Começou a falar devagar, mas logo ganhou velocidade, feito um cavalo em fuga.
— Por acaso… eu mencionei… assim, por alto… só mencionei à Senhora al’Vere o tanto de tempo que estávamos viajando juntos. Não sei como isso aconteceu. E aí ela disse, e a Senhora Congar concordou… Mas eu não falei com todo mundo, não! Ela disse que é provável que nós, quase com certeza, fôssemos considerados casados de acordo com o costume de vocês. Esse ano é só para garantir que o casal se entenda bem, e a gente se entende, como todo mundo pode ver. Então aqui estou eu, atirada como uma dessas domanesas, como uma garota tairena. E se você pensar em Berelain… Ah, Luz, estou falando um monte de abobrinhas, e você nem…
Perrin a interrompeu com um beijo intenso, como sabia muito bem fazer.
— Quer se casar comigo? — perguntou, sem fôlego, ao terminar. — Hoje à noite?
O beijo decerto fora muito melhor do que Perrin imaginava. Teve de repetir a frase seis vezes, com Faile rindo contra o pescoço dele e exigindo que ele repetisse, antes que enfim compreendesse.
E foi assim que Perrin se viu, menos de meia hora depois, ajoelhado diante dela no salão, na frente de Daise Congar, Marin al’Vere, Alsbet Luhhan, Neysa Ayellin e todo o Círculo das Mulheres. Loial se levantara para ficar ao lado dele com Aram, e Bain e Chiad ficaram ao lado de Faile. Não havia flores para os cabelos dela nem os dele, mas Bain, a mando de Marin, passou uma longa faixa nupcial vermelha por seu pescoço. E Loial trançou outra nos cabelos escuros de Faile, com os dedos grossos surpreendentemente hábeis e delicados. As mãos de Perrin tremiam quando ele segurou as dela.
— Eu, Perrin Aybara, prometo meu amor a você, Faile Bashere, enquanto eu viver. — Enquanto eu viver, e mais. — Tudo o que possuo neste mundo, dou a você. — Um cavalo, um machado, um arco. Um martelo. Não é muito para uma noiva. Eu lhe dou a minha vida, o meu amor. É tudo o que tenho. — Eu a segurarei em meus braços e cuidarei de você, socorrerei e zelarei por você, eu a protegerei e abrigarei por todos os dias de minha vida. — Não posso segurá-la em meus braços. A única forma de proteger você é mandá-la embora. — Eu sou seu, para sempre e eternamente.
Quando terminou, suas mãos estavam visivelmente trêmulas.
Faile moveu as mãos para cobrir as dele.
— Eu, Zarine Bashere — foi uma surpresa, Faile odiava esse nome — prometo meu amor a você, Perrin Aybara… — As mãos dela não tremiam nem um pouco.