Rand olhou em volta, de cenho franzido. Uma milha à frente havia um agrupado de montes altos e íngremes, todos bem juntinhos, ou talvez fosse um só monte imenso entrecortado por fissuras. À esquerda, a terra corria em retalhos de grama grossa e plantas sem folhas e com espinhos, arbustos espinhosos isolados e árvores baixas, formando colinas áridas e vales recortados, além das imensas colunas de pedra bruta e montanhas irregulares ao longe. À direita, a terra era igual, exceto pelo fato de que o solo de lama seca e amarelada era mais plano, e as montanhas, mais próximas. Poderia ser qualquer trecho do Deserto que tinham visto desde que saíram de Chaendaer.
— Onde? — perguntou.
Rhuarc olhou para Aviendha, que encarava Rand como se ele tivesse perdido o juízo.
— Venha. Deixe que seus próprios olhos lhe mostrem as Pedras Frias.
Baixando a shoufa até os ombros, o chefe de clã se virou e saiu a passos rápidos, a cabeça descoberta, em direção à parede de rocha fissurada adiante.
Os Shaido já tinham parado de avançar e moviam-se de um lado para o outro, começando a erguer as tendas. Heirn e os Jindo chegaram logo atrás de Rhuarc, trotando com as mulas de carga, descobrindo as cabeças e gritando palavras desconexas. As Donzelas que escoltavam os mascates gritavam para que os condutores apressassem os comboios e seguissem os Jindo. Uma das Sábias ergueu as saias até os joelhos e correu para junto de Rhuarc — Rand achou que fosse Amys, pelos cabelos brancos; Bair com certeza não conseguia se deslocar com tanta agilidade — porém o restante do grupo manteve o passo original. Por um instante, pareceu que Moiraine dispararia em direção a Rand, mas a mulher hesitou, discutindo com uma das outras Sábias, os cabelos ainda encobertos pelo xale. Por fim, a Aes Sedai puxou as rédeas da égua branca e foi para o lado da cinzenta de Egwene e do garanhão preto de Lan, logo à frente dos gai’shain de robes brancos que puxavam os animais de carga. No entanto, seguiam na mesma direção que Rhuarc e os outros.
Rand se inclinou e estendeu a mão para Aviendha. Quando a mulher balançou a cabeça, ele disse:
— Se continuarem fazendo essa barulheira toda, não vou conseguir ouvir você aí embaixo. E se eu cometer algum erro idiota por não conseguir ouvir o que você está dizendo?
Resmungando entre dentes, a mulher olhou para as Donzelas ao redor dos carroções dos mascates, soltou um suspiro e agarrou o braço dele. Rand a içou, ignorando o ganido furioso que veio dela, e, com um balanço, assentou-a na garupa da sela de Jeade’en. Toda vez que Aviendha tentava montar sozinha, acabava quase o derrubando da sela. Esperou um momento para que a jovem ajeitasse as saias pesadas, ainda que, na melhor das hipóteses, as pernas ficassem descobertas bem acima das botas macias, na altura dos joelhos, e cravou os calcanhares no garanhão sarapintado, que partiu em meio-galope. Era a primeira vez que Aviendha ia mais depressa que um caminhar suave. Ela agarrou a cintura de Rand e segurou firme.
— Ai de você se me deixar com cara de tonta diante de minhas irmãs, aguacento — rosnou ela, em advertência.
— Por que que você ficaria com cara de tonta? Já vi Bair, Amys e as outras cavalgando atrás de Moiraine ou Egwene, para conversar.
Depois de um instante, Aviendha respondeu:
— Você tem mais facilidade para aceitar as mudanças do que eu, Rand al’Thor.
O rapaz não soube bem o que pensar daquilo.
Quando conduziu Jeade’en até Rhuarc, Heirn e Amys, um pouco à frente dos Jindo, que ainda gritavam, ficou surpreso em ver Couladin correndo tranquilo pela lateral, os cabelos cor-de-fogo à mostra. Aviendha puxou a shoufa de Rand até os ombros.
— Para adentrar um forte é preciso estar com o rosto à mostra. Eu já lhe disse isso. E fazer barulho. Já fomos vistos há tempos, e vão saber quem somos, mas é um costume para demonstrar que não estamos tentando tomar o forte de surpresa.
Rand assentiu, mas segurou a língua. Nem Rhuarc, nem os três com ele abriram a boca, muito menos Aviendha. Além disso, os Jindo já faziam barulho suficiente para serem ouvidos a milhas de distância.
Couladin girou a cabeça na direção dele. Uma centelha de desprezo tomou a face curtida de sol, além de algo mais. Ódio e desdém Rand já esperava, mas diversão? O que Couladin estava achando divertido?
— Shaido imbecil — resmungou Aviendha, atrás dele. Talvez tivesse razão, talvez a diversão fosse por vê-la em cima de um cavalo. Rand, porém, achava que não.
Mat veio galopando com o chapéu abaixado, deixando um rastro de poeira amarelada, a lança comprida apoiada no ferro do estribo, na vertical, feito um arpão.
— Que lugar é esse, Rand? — perguntou em voz alta, para ser ouvido por cima da gritaria. — Essas mulheres só sabem dizer “mais rápido, mais rápido”.
Rand explicou ao amigo, franzindo o cenho em direção às rochas que se avultavam pela lateral da colina.
— Acho que daria para sustentar esse lugar durante anos com provisões, mas isso aqui não é um retalho na Pedra, nem o Tora Harad.
— Tora o quê? — perguntou Rand.
Mat deu de ombros antes de responder.
— Só uma coisa que escutei certa vez. — Ele se ergueu no estribo para espiar o comboio dos mascates por sobre as cabeças dos Jindo. — Pelo menos eles ainda estão com a gente. Fico aqui pensando quanto tempo temos até eles terminarem os negócios e irem embora.
— Não vão antes de Alcair Dal. Rhuarc disse que acontece uma espécie de feira quando os chefes dos clãs se reúnem, mesmo que sejam dois ou três. Com todos os vinte juntos, imagino que Kadere e Keille não vão querer perder.
Mat não pareceu contente com a notícia.
Rhuarc liderou o caminho até a maior fissura do paredão íngreme de pedra, dez ou doze passadas de largura na parte maior, imersa nas sombras formadas pelas laterais escarpadas, avançando cada mais vez mais fundo, o caminho cada vez mais escuro e frio por baixo de uma nesga de céu. Era estranho estar sob uma sombra tão grande. Os gritos indistintos dos Aiel se avolumaram, amplificados pelas muralhas marrons acinzentadas. Quando eles enfim se calaram, o silêncio, rompido apenas pelo som dos cascos das mulas e pelo rangido das rodas dos carroções bem atrás, parecia alto demais.
Dobraram outra curva, e a fissura abriu-se de repente em um cânion largo, comprido e quase plano. De todos os lados, gritos estridentes e ululantes saíram das bocas de centenas de mulheres. Uma multidão formou uma fila indicando o caminho, as mulheres de saias pesadas e xales enrolados na cabeça, os homens com casacos e calças marrom-acinzentados, assim como o cadin’sor e Donzelas da Lança, todos acenando as boas-vindas, batendo em panelas ou no que fizesse barulho.
Rand ficou boquiaberto, e não só por causa do pandemônio. Os paredões do cânion eram verdes, com a metade inferior coberta de plataformas. Logo, o rapaz percebeu que em todas eram de fato plataformas: algumas eram telhados planos de casas pequenas de pedra cinza ou barro amarelo que pareciam praticamente empilhadas umas nas outras, todas emboladas, separadas por pequenas trilhas sinuosas. Em cada telhado havia uma horta de feijões, abóboras, pimentas, melões e plantas que ele não conhecia. Galinhas corriam à solta, mais vermelhas do que as que ele via em casa, junto com algum outro tipo de ave, maior e rajada de cinza. Crianças, a maioria vestida como os adultos, e gai’shain de robes brancos circulavam entre as fileiras com imensos jarros de barro. Pareciam estar regando plantas muito inusitadas. Sempre ouvira dizer que os Aiel não tinham cidades, mas aquilo era no mínimo uma cidade de tamanho considerável, ainda que mais estranha do que todas que ele já tinha visto. O alarido era grande demais para que ele fizesse qualquer uma das perguntas que lhe vinham à cabeça. O que eram aquelas frutas redondas, vermelhas e brilhantes demais para serem maçãs, crescendo em arbustos baixos e claros? E aqueles caules retos de folhas largas com brotos compridos, enfileirados, de borlas amarelas? Rand fora fazendeiro por muito tempo para não querer saber.
Rhuarc e Heirn, assim como Couladin, reduziram o passo a um caminhar ligeiro, enfiando as lanças nos arreios das costas, que serviam de estojo para os arcos. Amys corria na frente, rindo feito uma menina, enquanto os homens continuavam a avançar a um passo firme pelo chão do cânion. Uma multidão se alinhava, os gritos das mulheres do forte vibrando no ar e quase abafando o batuque das panelas. Rand os seguiu, como Aviendha o mandara fazer. Mat parecia estar querendo dar meia-volta e retornar por onde viera.
Na outra extremidade do cânion, o paredão se inclinava para dentro, formando um bolsão fundo e sombrio. O sol nunca iluminava aquele lado, pelo que Aviendha dissera, e as pedras ali, sempre frias, eram o que dava nome ao forte. Amys parou diante de outra mulher sobre um largo rochedo cinza com o topo aplainado, feito uma plataforma.
A outra mulher, esbelta debaixo das saias pesadas, com os cabelos louros que caíam abaixo da cintura e de têmporas brancas envoltas em um lenço, parecia ser mais velha do que Amys, embora sem dúvida fosse mais que vistosa, com algumas rugas finas nos cantos dos olhos cinzentos. Estava vestida como Amys, com um xale marrom e liso por sobre os ombros. Os colares e braceletes de ouro e marfim entalhado não eram mais refinados, mas a mulher era Lian, a senhora do teto do Forte das Pedras Frias.
Os gritos agudos e hesitante cessaram de vez quando Rhuarc parou diante do rochedo, uma passada mais à frente do que Heirn e Couladin.
— Peço permissão para adentrar seu forte, senhora do teto — anunciou, bem alto.
— Você tem minha permissão, chefe de clã — respondeu a mulher de cabelos loiros, com formalidade, no mesmo tom alto. Sorrindo, acrescentou, mais suave: — Sombra do meu coração, você sempre terá minha permissão.
— Eu agradeço, senhora do teto do meu coração. — O tom dele também não pareceu particularmente formal.
Heirn deu um passo à frente.
— Senhora do teto, peço permissão para me abrigar sob o seu teto.
— Tem minha permissão, Heirn — respondeu Lian ao homem parrudo. — Sob o meu teto há água e sombra para vocês. O ramo Jindo sempre será bem-vindo aqui.
— Eu agradeço, senhora do teto. — Heirn deu um tapinha no ombro de Rhuarc e foi se reunir com seu povo. Ao que parecia, a cerimônia Aiel era curta e bastante direta.
Com um andar afetado, Couladin foi se juntar a Rhuarc.
— Peço permissão para adentrar o seu forte, senhora do teto.
Lian piscou, franzindo o cenho para ele. Um burburinho se ergueu atrás de Rand, um murmúrio de espanto saído de centenas de goelas. Uma súbita sensação de perigo pairou no ar. Mat sem dúvida também percebeu, pois dedilhou a lança e virou o corpo meio de lado, para ver o que a massa de Aiel estava fazendo.
— Qual é o problema? — perguntou Rand, baixinho, por cima do ombro. — Por que ela não respondeu?
— Ele fez a pergunta como se fosse um chefe de clã — sussurrou Aviendha, incrédula. — Esse homem é mesmo um idiota. Só pode estar louco! Se ela recusar, vai dar problema com os Shaido. E ela pode muito bem fazer isso, por causa de um insulto desses. Não é uma rixa de sangue, pois, por mais que se ache o tal, Couladin não é o chefe do clã. Mas pode dar problema. — Entre uma e outra respiração, a voz dela assumiu um tom mais penetrante. — Você não estava escutando, não é? Não estava! Ela poderia ter recusado até mesmo a entrada de Rhuarc, e ele teria que sair. Isso desuniria o clã, mas é poder dela. Ela pode recusar até Aquele Que Vem Com a Aurora, Rand al’Thor. Nossas mulheres não têm nada de impotentes, ao contrário das suas aguacentas, que precisam ser rainhas, nobres ou dançar para um homem, caso queiram ter o que comer!
Rand balançou a cabeça devagar. Sempre que estava a ponto de dar uma bronca em si mesmo pelo pouco que aprendera sobre os Aiel, Aviendha se pronunciava, lembrando-o de quão pouco ela mesma sabia sobre qualquer um que não fosse Aiel.
— Um dia vou apresentar você ao Círculo das Mulheres de Campo de Emond. Vai ser… interessante… ouvir você dizer a elas como são impotentes. — Ele sentiu Aviendha se remexer atrás dele, tentando encará-lo e teve o cuidado de manter a expressão serena. — Talvez elas também lhe expliquem algumas coisinhas.
— Você tem a minha permissão — começou Lian, e Couladin sorriu e se aprumou — para se abrigar sob o meu teto. Arrumaremos água e sombra para você.
Os arquejos baixos de centenas de bocas formaram um som bem expressivo.
O homem de cabelos de fogo estremeceu como se acabasse de levar um golpe, o rosto vermelho de fúria. Parecia não saber o que fazer. Deu um passo à frente, desafiador, encarando Lian e Amys, agarrando os próprios antebraços, como se para manter as mãos longe das lanças. Então deu as costas e caminhou de volta para o grupo, pisando firme, cravando os olhos aqui e ali, desafiando qualquer um a abrir a boca. Por fim, parou perto de onde saíra e encarou Rand. Os olhos azuis pareciam mais incandescentes do que carvão.
— Como alguém sozinho e sem amigos — sussurrou Aviendha. — Ela o acolheu como um pedinte. É o maior insulto para ele, mas não para os Shaido. — De repente, ela deu um soco nas costelas de Rand com tanta força que ele soltou um grunhido. — Mexa-se, aguacento. Você carrega a honra que pus em suas mãos. Todo mundo vai saber que fui eu quem o ensinei. Mexa-se!
Rand balançou uma perna, desceu do lombo de Jeade’en e avançou para o lado de Rhuarc. Eu não sou Aiel, pensou. Não os compreendo, nem posso me permitir gostar demais deles. Não posso.
Ao contrário dos outros homens, ele fez uma mesura para Lian. Era assim que fora criado.
— Senhora do teto, peço permissão para me abrigar sob o seu teto.
Ele ouviu Aviendha prender a respiração. Deveria ter dito a outra coisa, o que Rhuarc dissera. O chefe de clã estreitou os olhos, preocupado, encarando a esposa, e o rosto vermelho de Couladin se contorceu em um sorriso de escárnio. Os murmúrios baixos da multidão pareciam intrigados.
A senhora do teto encarou Rand com um olhar ainda mais avaliativo do que o que dispensara a Couladin, analisando-o da cabeça aos pés. Olhou a shoufa sobre um casaco vermelho que com certeza jamais seria usado por um Aiel. Lançou um olhar interrogativo para Amys, que assentiu.
— Tamanha modéstia — comentou Lian — cai muito bem em um homem. É raro os homens saberem onde encontrá-la. — Ela puxou as saias escuras e fez uma mesura meio desajeitada em retribuição à dele. Não era comum entre as Aiel, mas ainda assim era uma mesura. — O Car’a’carn tem permissão para adentrar meu forte. Para o chefe dos chefes, sempre há água e sombra nas Pedras Frias.
Outra série de gritos ululantes elevou-se da multidão de mulheres, mas Rand não soube dizer se era para ele ou para a cerimônia. Couladin parou para encará-lo com um ódio implacável, depois foi embora a passos firmes, dando um esbarrão em Aviendha enquanto ela descia desajeitada do garanhão sarapintado. Ele logo se mesclou à multidão que se dispersava.
Mat desmontou mais devagar, encarando o homem.
— Cuidado com esse aí, Rand — sussurrou. — Estou falando sério.
— Todo mundo me diz isso — respondeu Rand. Os mascates já estavam se assentando para as negociações no centro do cânion, e, na entrada, Moiraine e o restante do grupo das Sábias chegavam com alguns poucos gritos e umas panelas batendo, mas nada como o berreiro com que Rhuarc fora recebido. — Não é com ele que eu tenho que me preocupar.
O perigo não estava entre os Aiel. Moiraine de um lado e Lanfear de outro. O que pode ser mais perigoso do que isso? Foi quase o bastante para ele soltar uma risada.
Amys e Lian tinham descido do palanque, e, para surpresa de Rand, Rhuarc passou um braço ao redor dos ombros de cada uma. Ambas eram altas, como a maioria das mulheres Aiel, porém não mais altas do que o ombro do chefe de clã.
— Você conheceu minha esposa Amys — disse a Rand. — Agora precisa conhecer minha esposa Lian.
Rand percebeu que estava de queixo caído e fechou a boca depressa. Depois que Aviendha dissera que a senhora do teto das Pedras Frias era esposa de Rhuarc e se chamava Lian, teve certeza de que entendera errado todo aquele diálogo, em Chaendaer, de “sombra do meu coração” para lá e para cá, entre ele e Amys. De todo modo, estava com outras coisas na cabeça. Mas isso…
— As duas? — deixou escapar Mat. — Luz! Duas! Ah, que me queime! Ou esse é o homem mais sortudo do mundo, ou o maior idiota desde a criação!
— Eu achava — comentou Rhuarc, de cenho franzido — que Aviendha estava ensinando nossos costumes a você. Parece que ela está deixando muita coisa de fora.
Inclinando-se para olhar por trás do marido — do marido das duas — Lian ergueu uma sobrancelha para Amys, que respondeu, em um tom seco:
— Aviendha parecia ideal para explicar o que ele precisa saber. Além disso, era uma forma de evitar que ela tentasse fugir de volta para as Donzelas quando não estivéssemos de olho. Agora parece que vou precisar ter uma longa conversa com ela, em algum lugar tranquilo. Ela sem dúvida anda ensinando baboseiras sobre as Donzelas ou como ordenhar um gara.
Ligeiramente enrubescida, Aviendha balançou a cabeça para trás com irritação. Os cabelos vermelho-escuros tinham crescido por cima das orelhas e já balançavam em uma franja sob o lenço da cabeça.
— Tivemos assuntos mais importantes para tratar do que casamentos. Além do mais, esse homem não me escuta.
— Ela está sendo uma boa professora — acrescentou Rand, mais do que depressa. — Aprendi bastante coisa sobre os seus costumes e a Terra da Trindade. — Baboseiras? — Qualquer erro que eu cometa é culpa minha, não dela. — Como se ordenhava um lagarto venenoso de dois pés de comprimento? E por quê? — Ela está sendo uma boa professora, e gostaria de mantê-la, se possível.
Pela Luz, Por que, foi que eu disse isso?, perguntou-se. Aviendha até era agradável às vezes, ao menos quando se soltava. No restante do tempo era um carrapicho debaixo de seu casaco. No entanto, pelo menos com ela ali, sabia quem as Sábias tinham mandado para vigiá-lo.
Amys o analisou, os olhos azuis penetrantes como os de uma Aes Sedai. Claro, ela sabia canalizar. O rosto não tinha aquele aspecto etéreo, apenas parecia mais jovem do que era, mas talvez a mulher fosse tão Aes Sedai quanto uma Aes Sedai.
— Para mim parece uma boa combinação — disse.
Aviendha abriu a boca, encrespada de indignação, e fechou-a outra vez, carrancuda, quando a Sábia se virou para encará-la. Talvez a moça tivesse dado o tempo dela com ele por acabado, agora que haviam chegado às Pedras Frias.
— Você deve estar cansado da viagem — disse Lian, olhando para Rand com uma expressão maternal nos olhos cinzentos — e faminto. Venha. — O sorriso se estendeu a Mat, que estava um pouco atrás e já começava a encarar os carroções dos mascates. — Venham se abrigar sob o meu teto.
Rand agarrou os alforjes e deixou Jeade’en aos cuidados de uma gai’shain, que também apanhou Pips. Mat deu uma última olhada para os carroções antes de jogar os alforjes sobre os ombros e seguir em frente.
O teto de Lian, sua casa, ficava no nível mais alto do lado oeste, com o paredão íngreme do cânion se erguendo umas cem passadas acima. Lar do chefe do clã e da senhora do teto ou não, do lado de fora parecia um retângulo modesto de enormes tijolos de barro amarelado com janelas estreitas, sem vidro, cobertas por cortinas brancas simples, com uma hortinha no teto plano e outra na frente de uma pequena sacada, separada da casa por um caminho estreito, pavimentado com pedras cinza lisas. Grande o bastante para dois quartos, talvez. A não ser pelo gongo quadrado de bronze, pendurado ao lado da porta, parecia muito com as outras construções que Rand via. Daquele ponto, podia enxergar toda a extensão do vale abaixo. Uma casa pequena, simples. Do lado de dentro, era outra coisa.
Por trás da parede de tijolos havia um cômodo amplo com piso de azulejos marrom-avermelhados, mas para dentro da pedra havia mais cômodos, com teto alto e surpreendentemente frescos, com batentes de entrada altos, em forma de arco, e lampiões de prata que exalavam um aroma campestre. Rand viu apenas uma cadeira. Era de espaldar alto, laqueada de vermelho e dourado e com aspecto de que não era muito usada. A cadeira do chefe, como Aviendha chamara. Não havia muitos outros itens de madeira além de umas poucas caixas e baús polidos ou laqueados, e livros abertos repousavam em prateleiras baixas para leitura, dispostas de um jeito que o leitor teria de se deitar no chão. Carpetes com tramas intrincadas cobriam o chão, além de tapetes vistosos, dispostos uns sobre os outros. Rand reconheceu algumas padronagens de Tear, Cairhien e Andor, até de Illian e Tarabon, mas outros desenhos não eram familiares: listras largas recortadas e sem cores repetidas, ou quadrados vazados em tons de cinza, marrom e preto. Em forte contraste com a mesmice de fora do vale, as cores eram todas muito vívidas. As tapeçarias de parede ele tinha certeza de serem do outro lado da Espinha do Mundo — talvez obtidas da mesma forma que as tapeçarias da Pedra de Tear — e as almofadas eram de todos os tamanhos e tons, em geral com borlas, franjas ou ambas, em seda vermelha ou dourada. Aqui e ali, em nichos presos às paredes, via-se um fino vaso de porcelana, uma tigela de prata ou uma escultura de marfim, em geral de algum animal exótico ou coisa do tipo. Então essas eram as “tocas” de que os tairenos falavam. Poderia ter sido uma visão berrante e espalhafatosa como Tear — ou os latoeiros — mas era nobre, ao mesmo tempo formal e informal.
Com um sorrisinho para mostrar a Aviendha que sim, escutava o que ela dizia, Rand puxou um presente para Lian de dentro de seus alforjes: um leão de ouro finamente trabalhado. Fora saqueado de Tear e comprado de um Buscador das Águas Jindo, mas, se ele era o governante de Tear, talvez fosse como ter roubado de si mesmo. Depois de um instante de hesitação, Mat também exibiu um presente: um colar taireno com flores de prata, sem dúvida vindo da mesma fonte, e sem dúvida algo que planejara dar de presente a Isendre.
— Primoroso. — Lian abriu um sorriso, erguendo o leão. — Sempre apreciei o artesanato taireno. Rhuarc me trouxe duas peças, muitos anos atrás. — Em um tom de voz adequado a uma dona de casa que recordava de frutinhas vermelhas especialmente deliciosas, ela disse ao marido: — Você pegou da tenda de um Grão-lorde, pouco antes da decapitação de Laman, não foi? Uma pena que não tenha chegado a Andor. Eu sempre quis uma peça de prata andoriana. Este colar também é muito bonito, Mat Cauthon.
Ouvindo a mulher louvar de uma só vez os dois presentes, Rand escondeu o choque. Apesar das saias e do olhar maternal, ela era tão Aiel quanto qualquer Donzela da Lança.
Quando Lian terminou, Moiraine e as outras Sábias chegaram com Lan e Egwene. A espada do Guardião gerou uma olhadela desaprovadora, mas a senhora do teto o recebeu calorosamente depois que Bair o chamou de Aan’allein. Ainda assim, não foi nada se comparado à saudação a Egwene e Moiraine.
— As senhoras honram meu teto, Aes Sedai. — O tom da senhora do teto fez parecer que o que dizia era óbvio. Ela se curvou em uma mesura para as outras. — Dizem que servimos às Aes Sedai antes da Ruptura do Mundo e que falhamos com elas, e, por conta dessa falha, fomos enviados para cá, para a Terra da Trindade. Sua presença é prova de que talvez nosso pecado não seja imperdoável.
Mas claro. Ela não estivera em Rhuidean. Aparentemente, a proibição de comentar sobre o que acontecia em Rhuidean com quem não estivera lá valia até entre marido e mulher. E entre esposas-irmãs, ou qualquer que fosse o relacionamento entre Amys e Lian.
Moiraine também tentou dar um presente a Lian: pequeninos frascos de cristal e prata com perfume de Arad Doman. Mas a mulher ergueu as mãos.
— A sua presença já é um presente de valor inestimável, Aes Sedai. Aceitar mais do que isso seria uma desonra para mim e para o meu teto. Eu não poderia tolerar a vergonha. — Ela soava absolutamente séria, além de preocupada com a possibilidade de Moiraine insistir em presenteá-la com o perfume.
Era um indicativo da diferença de importância entre um Car’a’carn e uma Aes Sedai.
— Como queira — respondeu Moiraine, devolvendo os frascos à bolsa do cinto. Estava fria feito gelo, serena, vestida em seda azul, o manto claro jogado para trás. — Vocês, povo da Terra da Trindade, com certeza verão mais Aes Sedai. Antes, não tínhamos motivos para vir.
Amys não parecia nada satisfeita com tudo aquilo, e a ruiva Melaine encarava Moiraine feito um gato de olhos verdes ponderando se poderia fazer algo a respeito do cachorrão que invadira seu celeiro. Bair e Seana trocaram olhares preocupados, mas nada como as duas que eram capazes de canalizar.
Uma bando de gai’shain — homens e mulheres graciosos em robes brancos com capuzes, os olhos estranhamente submissos para rostos de Aiel — pegou os mantos de Moiraine e Egwene, depois trouxe toalhas úmidas para suas mãos e faces, pequeninas xícaras de prata com água para ser bebida formalmente, e, por fim, uma refeição em tigelas de prata e bandejas dignas de um palácio, mas que foi comida em louças de barro com uma faixa esmaltada em azul. Todos comiam deitados no chão, onde azulejos brancos tinham sido presos a uma pedra, para formar uma mesa. Todos de cabeças juntas, almofadas embaixo do peito, formando em círculo, feito uma roda raiada, enquanto os gai’shain deslizavam no meio de todos para servir os pratos.
Mat se remexia para lá e para cá sobre as almofadas, desconfortável, mas Lan estava muito à vontade, como se sempre comesse deitado daquele jeito, e Moiraine e Egwene pareciam quase tão confortáveis quanto ele. Sem dúvida haviam praticado nas tendas das Sábias. Rand achava estranho, mas a comida em si era peculiar o bastante para tomar quase toda sua atenção.
O cozido de cabra, escuro e apimentado, era pouco familiar, porém nada esquisito, e ervilhas eram ervilhas em qualquer lugar, assim como abóbora. O mesmo não podia ser dito do pão amarelo, duro e farelento, nem dos feijões vermelhos e brilhantes misturados com os verdes, ou da tigela de caroços amarelos e pedaços de uma polpa vermelha que Aviendha chamou de zemai e t’mat. Muito menos do fruto doce e bulboso, de casca verde e dura, oriundo das plantas espinhosas e sem folhas chamadas de kardon. Ainda assim, era tudo gostoso.
Poderia ter aproveitado mais a refeição se Aviendha não tivesse ficado explicando tudo. Não sobre esposas-irmãs. Aquilo ficara a cargo de Amys e Lian, uma deitada de cada lado de Rhuarc, sorrindo tanto uma para a outra quanto para o marido. Ainda que as duas tivessem se casado com ele para não desfazer a amizade, estava claro que ambas o amavam. Rand não conseguia ver Elayne e Min chegando a tal acordo. Ele se perguntou por que sequer pensara naquilo. O sol devia ter fritado seu cérebro.
Porém, mesmo que Aviendha tivesse deixado essa explicação às outras duas mulheres, explicou todo o restante nos mínimos detalhes. Talvez o considerasse um imbecil por não saber sobre as esposas-irmãs. Virada para a direita, para encará-lo, ela sorria quase com a mesma doçura de quando explicara que a colher podia ser usada para comer o cozido ou o zemai e o t’mat, mas seus olhos cintilavam com um brilho que informava que apenas a presença das Sábias ali a impedia de atirar uma das tigelas na cabeça dele.
— Eu não sei o que fiz a você — sussurrou Rand. Estava bastante ciente de Melaine, do outro lado, aparentemente absorta na conversa sussurrada com Seana. Bair dizia alguma coisa de vez em quando, mas Rand achava que ela também estava tentando entreouvi-lo. — Mas, se você odeia tanto ser minha professora, não é obrigada. Eu só falei. Tenho certeza de que Rhuarc ou as Sábias encontrarão outra pessoa.
As Sábias sem dúvida encontrariam, se ele se livrasse de sua espiã.
— Você não me fez nada… — Aviendha arreganhou os dentes para ele. Se pretendia ter aberto um sorriso, não fora muito bem-sucedida. — Nem nunca vai fazer. Pode se deitar para comer como achar mais confortável e conversar com todo mundo à sua volta. Exceto com os que precisam instruir em vez de compartilhar a comida, é claro. É considerado de bom tom conversar com as pessoas dos dois lados. — Por detrás dela, Mat olhou para Rand e revirou os olhos, claramente aliviado por estar sendo poupado daquilo. — A não ser que você seja forçado a ficar olhando para uma pessoa em particular para instruí-la, por exemplo. Pegue a comida com a mão direita, a não ser que precise se inclinar no cotovelo direito, e…
Era uma tortura, e ela parecia gostar. Os Aiel pareciam dar muita importância a presentes. Talvez, se Rand desse um presente a ela…
— … todos conversam por um tempo, depois de terminada a refeição, a não ser que um de nós precise ensinar alguma coisa, e…
Suborno. Não parecia justo ter de subornar alguém que o estava espionando, mas, se ela quisesse continuar daquele jeito, falando pelos cotovelos, valeria a pena fazer isso em troca de um pouco de paz.
Quando a refeição foi recolhida pelos gai’shain, que trouxeram canecas prateadas de vinho escuro, Bair abriu um sorriso para Aviendha por cima dos azulejos brancos, e a moça baixou a cabeça, amuada. Egwene se ajoelhou para se esticar por cima de Mat e lhe dar alguns tapinhas encorajadores, o que não pareceu ajudar. Pelo menos a mulher estava quieta. Egwene lançou um olhar duro a Rand. Ou sabia o que ele estava pensando, ou o julgava culpado pela cara feia de Aviendha.
Rhuarc apanhou o cachimbo de haste curta e a bolsa de tabaco, encheu o fornilho, pressionando-o com o polegar, depois passou a bolsa de couro para Mat, que pegou o próprio cachimbo de prata.
— Teve gente profundamente tocada pela notícia a seu respeito, Rand al’Thor, e depressa, ao que parece. Lian disse ter recebido informações de que Jheran, chefe do clã dos Aiel Shaarad, e Bael, dos Goshien, já estão em Alcair Dal. Erim, dos Chareen, está a caminho.
Ele permitiu que uma gai’shain esbelta acendesse seu cachimbo com um graveto em brasa. Pelos movimentos da moça, com uma graciosidade distinta da das outras pessoas de robes brancos, Rand suspeitou que ela tivesse sido Donzela da Lança não muito tempo antes. Ficou se perguntando quanto tempo faltaria para o fim do serviço de um ano e um dia daquela moça, toda humilde e submissa.
Mat abriu um sorriso para a mulher, quando ela se ajoelhou para acender o cachimbo dele. Das profundezas do capuz, a moça lhe devolveu um olhar que nada tinha de submisso, e ele logo fechou o sorriso. Irritado, virou-se de barriga para baixo, um filete de fumaça azul subia pelo cachimbo. Pena que não chegou a ver a satisfação no rosto da mulher, que logo fechou a cara, enrubescida, diante da carranca de Amys. A jovem de olhos verdes saiu apressada, absolutamente constrangida. E Aviendha, que também odiava ter aberto mão da lança e ainda se considerava irmã-de-lança das Donzelas de todos os clãs… Franziu o rosto para a gai’shain que saía de cena, exatamente como a Senhora al’Vere faria para alguém que visse cuspindo no chão. Povo estranho. Egwene foi a única que Rand viu olhar a mulher com um pouco de compaixão.
— Os Goshien e os Shaarad — murmurou Rand, para seu vinho. Rhuarc explicara que cada chefe de clã traria uns poucos guerreiros para o Vale Dourado, pela honra, assim como cada chefe de ramo. Todos juntos talvez somassem mil de cada clã. Doze clãs. Doze mil homens e Donzelas, no fim das contas, todos presos à sua estranha honra e prontos para dançar as lanças ao mero espirro de um gatinho. Talvez mais, por conta da feira. Ele olhou para cima. — Eles têm uma rixa, não têm? — Rhuarc e Lan assentiram. — Rhuarc, eu sei que você disse que em Alcair Dal vigora algo similar à Paz de Rhuidean, mas eu vi até onde essa paz chegou com os Couladin e os Shaido. Talvez seja melhor eu ir para lá agora mesmo. Se os Goshien e os Shaarad começarem a brigar… uma coisa desse tipo pode se espalhar. Eu quero todos os Aiel comigo, Rhuarc.
— Os Goshien não são os Shaido — respondeu Melaine, em um tom ríspido, balançando a cabeleira acobreada feito uma leoa.
— E nem os Shaarad. — A voz aguda de Bair era mais fina do que a da mulher mais jovem, porém não menos peremptória. — Jheran e Bael podem tentar matar um ao outro antes de retornarem a seus fortes, mas não em Alcair Dal.
— Nada disso responde a pergunta de Rand al’Thor — disse Rhuarc. — Se você for para Alcair Dal antes de todos os chefes chegarem, os que ainda não estiverem lá cairão em desonra. Não é uma boa forma de anunciar que você é o Car’a’carn, desonrando homens que pede que o sigam. Os Nakai estão vindo de mais longe. Mais um mês, e todos estaremos em Alcair Dal.
— Menos — disse Seana, sacudindo a cabeça com vigor. — Já entrei duas vezes nos sonhos de Alsera, e ela disse que Bruan pretende percorrer o caminho todo correndo, desde o Forte Shiagi. Menos de um mês.
— Um mês até sairmos, para termos certeza — disse Rhuarc. — Depois mais três dias até Alcair Dal. Talvez quatro. Então todos estaremos lá.
Um mês. Ele esfregou o queixo. Tempo demais. Tempo demais, e opções de menos. Nas histórias, tudo sempre acontecia conforme os planos do herói, aparentemente na hora que ele queria. Na vida real quase nunca era assim, mesmo que ele fosse ta’veren e supostamente com a profecia agindo a seu favor. Na vida real, era preciso esforço e esperança, além da sorte de às vezes encontrar metade do que se precisava. Ainda assim, uma parte do plano era seguir o caminho que pretendia. A parte mais perigosa.
Moiraine, estirada entre Lan e Amys, bebericava o vinho preguiçosamente, os olhos meio caídos, parecendo sonolenta. Rand não acreditou. Ela via tudo, ouvia tudo. Mas no momento ele não tinha nada a dizer que ela não pudesse ouvir.
— Quantos resistirão, Rhuarc? Ou se oporão a mim? Você arriscou um palpite, mas nunca disse com certeza.
— Não dá para ter certeza — respondeu o chefe de clã, com o cachimbo na boca. — Quando você mostrar os Dragões, eles o reconhecerão. Não há como imitar os Dragões de Rhuidean. — Os olhos de Moiraine teriam se movido? — É de você que as profecias falam. Vou apoiá-lo, e Bruan sem dúvida também, assim como Dhearic, dos Aiel Reyn. Os outros…? Sevanna, esposa de Suladric, levará os Shaido, já que o clã não tem chefe. Ela é jovem para ser a senhora do teto de um forte, e sem dúvida não está nada satisfeita em passar a ter apenas um teto, e não um forte inteiro, quando no substituto de Suladric for escolhido. E Sevanna é astuta e indigna de confiança, como qualquer Shaido que já nasceu. Mas, mesmo que ela não cause problemas, você sabe que Couladin vai causar. Ele age como chefe de clã, e pode ser que alguns Shaido acabem seguindo o tolo, mesmo que ele não adentre Rhuidean. Os Shaido são idiotas o bastante para uma coisa dessas. Han, dos Tomanelle, pode ir para qualquer direção. Ele é o tipo de homem de pavio curto, difícil de conhecer e de lidar, e…
Rhuarc parou de falar quando Lian murmurou, baixinho:
— Tem algum outro tipo?
Rand imaginou que não fosse para o chefe de clã escutar. Amys escondeu um sorriso por trás da mão, e a esposa-irmã enterrou o rosto inocentemente na caneca de vinho.
— Como eu estava dizendo — continuou Rhuarc, olhando resignado para as esposas — não dá para ter certeza. A maioria vai seguir você. Talvez todo mundo. Talvez até os Shaido. Esperamos três mil anos pelo homem que tem a marca de dois Dragões. Quando você mostrar os braços, ninguém vai duvidar de que foi enviado para nos unir. — E para destruí-los. Mas o Aiel não mencionou essa parte. — A questão é como eles vão decidir reagir. — Ele bateu com o fornilho do cachimbo nos dentes, pensativo. — Você não vai mudar de ideia e vestir o cadin’sor?
— E mostrar o que a eles, Rhuarc? Um falso Aiel? É melhor vestir Mat de Aiel. — Mat engasgou com o próprio cachimbo. — Não vou fingir. Eu sou o que sou, e eles vão ter que me aceitar como eu sou. — Rand ergueu os punhos, e as mangas do casaco caíram e revelaram as cabeças de crinas douradas logo acima das costas das mãos. — Isso aqui prova quem eu sou. Se não for suficiente, nada mais será.
— Onde você pretende “guiar as lanças outra vez para a guerra”? — perguntou Moiraine, de repente.
Mat engasgou de novo, agarrando o cachimbo e encarando a mulher. Os olhos escuros da Aes Sedai já não estavam mais semicerrados.
Rand cerrou os punhos até estalar as juntas. Tentar ser esperto com ela era perigoso, já devia ter aprendido isso havia muito tempo. A mulher recordava cada palavra que ouvia, arquivava, recuperava e examinava até entender exatamente o significado.
Ele se levantou devagar. Todos o observavam. Egwene parecia ainda mais preocupada do que Mat, mas os Aiel apenas assistiam. Falar de guerra não os incomodava. Rhuarc parecia… pronto. E o rosto de Moiraine guardava uma calma fria.
— Se vocês me dão licença — disse — eu vou caminhar um pouco.
Aviendha ficou de joelhos, e Egwene se levantou, mas nenhuma das duas foi atrás dele.