58 As armadilhas de Rhuidean

A escuridão o envolveu assim que a porta desapareceu, um negrume que se estendia para todos os lados, mas ele ainda conseguia enxergar. Não havia sensação de frio nem calor, mesmo que ele estivesse encharcado; não sentia nada. Apenas existência. Degraus de pedra lisa e cinza se ergueram diante dele, todos suspensos, sem base, formando um arco que esvanecia até desaparecer. Ele já havia visto aqueles degraus antes, ou outros parecidos; de algum modo, ele sabia que o levariam aonde era preciso. Subiu correndo as escadas impossíveis, e cada degrau que as pegadas úmidas de suas botas deixavam para trás desaparecia, se esvaía. Apenas os degraus à frente o aguardavam, apenas aqueles que o levariam aonde ele tinha de ir. Isso também era igual a antes.

Será que eu fiz isso com o Poder, ou esses degraus existem de alguma outra forma?

Com o pensamento, a pedra cinza sob seu pé começou a se apagar, e todas as outras à frente tremeluziram. Desesperado, ele se concentrou nelas, pedras cinza e reais. Reais! O bruxuleio cessou. As pedras agora não eram tão planas, mas polidas, e tinham nas bordas um entalhe refinado, que ele pensou ser parecido com algo que já vira.

Sem se importar para onde — sem saber ao certo se ousaria pensar a respeito por muito tempo — ele correu o mais depressa que pôde, subindo três degraus de cada vez pela escuridão sem-fim. A escada o conduziria aonde ele quisesse, mas quanto tempo levaria? Quanta vantagem Asmodean tinha? Os Abandonados conheciam um meio mais rápido de viajar? Aquele era o problema. Os Abandonados detinham todo o conhecimento; para Rand, só restava o desespero.

Ao olhar adiante, ele estremeceu. Os degraus haviam se ajustado aos seu passados compridas, e agora havia entre eles amplos vãos que tornavam necessários aqueles saltos, por sobre um negrume profundo como… como o quê? Uma queda ali talvez não tivesse fim. Ele se forçou a ignorar os vãos, a continuar correndo. A antiga ferida meio cicatrizada na lateral do corpo começou a latejar, trazendo uma vaga consciência. Porém, se ele estava envolto em saidin e meramente a percebia, a ferida deveria estar prestes a se abrir. Ignore. O pensamento flutuou pelo Vazio dentro dele. Não se permitiria perder aquela corrida, nem que acabasse morto. Os degraus não acabariam nunca? Quanto já havia avançado?

De repente, ele viu uma figura a distância, um pouco para a esquerda. Parecia um homem de casaco e botas vermelhas, parado de pé em uma plataforma prateada e reluzente que deslizava pela escuridão. Rand não precisou olhar muito de perto para ter certeza de que era Asmodean. O Abandonado não estava correndo feito um fazendeirinho cansado; estava cavalgando, fosse lá o quê.

Rand parou onde estava, em um dos degraus de pedra. Não tinha ideia do que era aquela plataforma, reluzente feito metal polido, mas… os degraus à sua frente desapareceram. O pedaço de pedra sob suas botas começou a deslizar para a frente, ganhando velocidade. Não havia vento em seu rosto para indicar que ele estava se deslocando, nada naquela vastidão negra que sequer denunciasse algum movimento… a não ser o fato de que ele começava a alcançar Asmodean. Rand não sabia se estava operando aquilo com o Poder; simplesmente acontecia. O degrau bamboleou, e ele parou de se questionar. Ainda não sei o suficiente.

O homem de cabelos negros permanecia tranquilo, com uma das mãos no quadril e um dedo no queixo, pensativo. Um pedaço de renda branca pendia de seu pescoço; outros encobriam um pouco suas mãos. O casaco vermelho de gola alta brilhava mais que cetim de seda e tinha um corte estranho, com uma cauda que ia quase até os joelhos. Algo parecido com fios negros, feito finos arames de aço, saíam do homem e desapareciam na escuridão à sua volta. Rand tinha certeza de que já vira aqueles fios antes.

Asmodean girou a cabeça, e Rand o encarou, boquiaberto. Os Abandonados eram capazes de mudar suas feições — ou pelo menos exibir um rosto diferente; ele já vira Lanfear fazendo isso — mas aquele era o rosto de Jasin Natael, o menestrel. Ele tivera certeza de que seria Kadere, com aquele olhar predatório que jamais se alterava.

Asmodean encarou Rand no mesmo instante e levou um susto. O poleiro de prata do Abandonado deu um tranco para a frente… e de súbito um lençol de fogo, feito uma fatia finíssima de chama monstruosa, disparou para trás na direção de Rand, com uma milha de altura e uma de largura.

Ele canalizou desesperadamente na direção das chamas; no exato instante em que estava prestes a ser golpeado, o lençol se rompeu em fragmentos, expelidos com violência para longe dele e desaparecendo. Porém, assim que a cortina de fogo esvaneceu, outra surgiu, avançando até ele. Ele a estilhaçou, revelando mais uma; dilacerou a terceira e uma quarta se formou. Asmodean estava fugindo, Rand tinha certeza. Ele não conseguia ver o Abandonado, por conta do fogaréu. A raiva deslizou pela superfície do Vazio, e ele canalizou.

Uma onda de fogo envolveu a cortina carmesim que deslizava em sua direção e rolou, levando-a para longe. Não era um fragmento fino, mas gotas imensas e desenfreadas, como se chicoteando por uma ventania. Ele estremeceu com o Poder que ressoava dentro de si; a ira de Asmodean foi se agarrando à superfície do Vazio.

Um buraco se formou na superfície em erupção. Não, não exatamente um buraco. Asmodean e sua plataforma reluzente permaneciam bem no centro, mas, conforme a onda de fogo avançava, a terra voltou a se unir. O Abandonado havia erguido algum tipo de escudo ao seu redor.

Rand forçou-se a ignorar a raiva distante do lado de fora do Vazio. Apenas na calma fria ele conseguia tocar saidin; admitir a ira destruiria o Vazio. As imensas gotas de fogo sumiram quando ele parou de canalizar. Precisava pegar o homem, não matá-lo.

O degrau de pedra deslizava ainda mais depressa pela escuridão. Asmodean se aproximava.

De súbito, a plataforma do Abandonado parou. Um vão reluzente surgiu diante dele, e o homem saltou; a coisa prateada desapareceu, e a porta começou a se fechar.

Rand disparou ataques desenfreados com o Poder. Precisava manter a porta aberta; depois que ela se fechasse, não teria ideia do paradeiro de Asmodean. A contração cessou. Era u m quadrado de luz solar bem forte, grande o suficiente para entrar. Ele tinha que manter a porta aberta, tinha de alcançá-la antes que Asmodean conseguisse ir muito longe…

No mesmo instante em que Rand pensou em parar, o degrau parou. Estancou, porém ele continuou avançando e passou voando pela porta. Algo puxou sua bota, e ele saiu rolando em cambalhotas pelo chão duro, até por fim aterrissar embolado, sem fôlego.

Tentando desesperadamente encher os pulmões, ele fez força para se levantar, sem ousar perder a ação nem sequer por um instante. O Poder Único ainda o preenchia com vida e maldade; seus ferimentos pareciam tão longínquos quanto a luta para respirar, tão distante, quanto a poeira amarela que cobria suas roupas úmidas e seu corpo inteiro. Ao mesmo tempo, porém, ele estava consciente de cada mísero movimento do ar abafado, cada grão de poeira, cada diminuta fresta no chão de barro rachado. O sol já secava toda a umidade, absorvendo-a de sua camisa e calças. Ele estava no Deserto, no vale abaixo de Chaendaer, a menos de cinquenta passadas da nebulosa Rhuidean. A porta havia desaparecido.

Ele deu um passo em direção à muralha de névoa e parou, erguendo o pé esquerdo. O calcanhar de sua bota fora decepada. O puxão que ele sentira; a porta se fechando. Rand estava vagamente ciente de que tiritava, apesar do calor. Não imaginava que fosse assim tão perigoso. O Abandonado detinha todo o conhecimento. Asmodean não escaparia dele. Irritado, ajeitou as roupas, enfiou com firmeza o homenzinho entalhado e a espada no lugar, correu para a neblina e a adentrou. Uma cegueira cinzenta o envolveu. O Poder que o preenchia não o ajudava a enxergar melhor. Ele corria às cegas.

De repente, alcançando se atirou para baixo e rolou para fora da névoa, alcançando as pedras de um pavimento arenoso. Estirado no chão, olhou para cima e viu três fitas brilhantes, de um azul-prateado, à estranha luz de Rhuidean, bem esticadas na horizontal, flutuando. Quando ele se levantou, viu que as fitas estavam na altura de sua cintura, peito e pescoço, tão finas que quase sumiam, quando vistas de lado. Ele podia ver como haviam sido feitas e presas ali, ainda que não compreendesse. Duras feito aço, tão afiadas que faziam uma navalha parecer uma pena. Se ele tivesse avançado até elas de pé, teria sido dilacerado. Uma pequenina explosão do Poder, e as fitas prateadas viraram pó. Uma raiva fria do lado de fora do Vazio; do lado de dentro, frieza, determinação e o Poder Único.

O brilho azulado do domo de neblina projetava sua luz sem sombras nos palácios inacabados de laterais planas, feitos de mármore, cristal e vidro recortado, e nas torres caneluradas e espiraladas que arranhavam o céu. Asmodean corria pela ampla rua à frente passando por fontes secas, em direção à enorme esplanada no coração da cidade.

Rand canalizou — foi estranhamente difícil; ele agarrou saidin e deu-lhe um puxão violento, e o contorceu até que foi invadido — e raios robustos e dentados irromperam das nuvens em domo. Não foram em cima de Asmodean. Logo adiante do Abandonado, pilares reluzentes em vermelho e branco de cinquenta pés de espessura e cem passadas de altura, erigidos séculos antes, explodiram e tombaram para a frente, formando um entulho e nuvens de poeira.

De imensas janelas de vidro colorido, figuras de homens e mulheres, serenos e majestosos, pareciam lançar a Rand um olhar de reprovação.

— Eu tenho que impedi-lo — disse Rand a eles; sua voz pareceu ecoar nos próprios ouvidos.

Asmodean parou, mas logo voltou a correr, escalando estrutura que colapsava. A poeira que pairava sobre ele não tocava seu casaco vermelho vivo, mas se fragmentava ao redor, deixando o ar limpo.

Um fogo começou a brotar em torno de Rand, envolvendo-o. O ar se tornou uma chama… que desapareceu antes que ele sequer tivesse consciência de como fizera aquilo. Suas roupas estavam secas e quentes; ele sentia o coração chamuscado, e a poeira esturricada pelo calor desabava a cada passo seu. Asmodean subia apressado a pedra esfacelada que bloqueava a rua; mais raios foram disparados, lançando para cima de Rand estilhaços das pedras do pavimento, rachando as paredes do palácio de cristal, que desabavam em ruínas diante dele.

O Abandonado não reduziu o passo. Enquanto ele se afastava, raios piscavam nas nuvens cintilantes em direção a Rand, atacando-o às cegas, porém enviados para matar. Correndo, Rand urdiu um escudo à sua volta. Fragmentos de pedra ricocheteavam enquanto ele desviava dos raios azuis que irrompiam e saltava pelos buracos abertos no chão. O próprio ar cintilava; os pelos de seus braços estavam eriçados, os cabelos em sua cabeça, desalinhados.

Algo se formou na barreira de colunas estilhaçadas. Ele enrijeceu o escudo em torno de si. Imensos nacos de pedra vermelha e branca que vinham rolando explodiram quando ele tentou escalá-las, uma explosão de pura luz e pedras voando. Seguro dentro de sua bolha, ele seguiu correndo, apenas vagamente consciente do estrondo das construções que colapsavam. Precisava deter Asmodean. Com esforço — e era preciso muito esforço — ele atirou um raio à frente, depois ondas de bolas de fogo expelidas do chão, qualquer coisa para retardar o sujeito de casaco vermelho. Ele estava chegando perto. Adentrou a esplanada somente umas doze passadas atrás do homem. Tentando aumentar a velocidade, Rand redobrou os esforços para retardar Asmodean, e, em fuga, o Abandonado lutava para matá-lo.

O ter’angreal e outros objetos preciosos pelos quais os Aiel deram suas vidas para levar até ali foram arremessados com os raios, lançados em frenéticos redemoinhos de fogo. Formas de prata e cristal se estilhaçavam, estranhas silhuetas de metal desabavam enquanto o chão estremecia e irrompia em imensas fendas.

Asmodean corria, em uma busca desenfreada. Então jogou-se no que parecia o objeto menos importante de todo aquele entulho. Uma estatueta de pedra branca entalhada de talvez um pé de altura, caída de costas, um homem segurando uma esfera de cristal com a mão erguida. Asmodean cerrou as mãos no objeto com um grito exultante.

Uma fração de segundo depois, as mãos de Rand também o agarraram. Por um milésimo de segundo, Rand encarou o rosto do Abandonado; a aparência era a mesma de quando o sujeito era menestrel, exceto por um desespero incontrolável nos olhos escuros. Era um homem de certa beleza, de meia-idade — nada que denunciasse um Abandonado. O mais breve instante e ambos buscaram o poder naquela estatueta, naquele ter’angreal, tentando alcançar um dos dois mais poderosos sa’angreal já produzidos.

Rand percebeu vagamente a imagem de uma grande estátua, semienterrada na distante Cairhien, e a imensa esfera de cristal na mão da figura, reluzindo sob o sol, pulsando com o Poder Único. E o Poder nele explodiu, feito as tempestades de todos os mares do mundo. Com aquilo, ele decerto seria capaz de qualquer coisa; e decerto poderia inclusive ter Curado aquela criança morta. A mácula também se avolumou, envolvendo cada partícula de seu corpo, dominando cada fresta em sua alma. Ele queria urrar; queria explodir. No entanto, controlava apenas metade do que aquele sa’angreal era capaz; a outra metade preenchia Asmodean. Eles lutaram, avançando e recuando, tropeçando e caindo em vários ter’angreal espalhados e destruídos. Nenhum dos dois ousava desprender um dedo sequer da estatueta, temendo que o outro fosse tomá-la para si. No entanto, enquanto rolavam sem parar, chocando-se contra um batente de porta vermelho que de alguma forma ainda se mantinha de pé, depois contra uma estátua de cristal caída, porém intocada, de uma mulher nua segurando uma criança ao seio, enquanto lutavam pela posse do ter’angreal, a batalha era disputada em outro nível.

Rand era atacado por martelos de Poder grandes o suficiente para demolir montanhas e por espadas capazes de perfurar o centro da terra; torqueses invisíveis tentavam apartar sua mente de seu corpo, tentavam lacerar sua alma. Cada fragmento de Poder que ele conseguia evocar ia para rechaçar aqueles ataques. Qualquer investida poderia destruí-lo como se ele jamais tivesse existido; não havia dúvida. Para onde iam, ele não sabia ao certo. O chão ricocheteava sob os dois, sacudindo-os em meio à luta, um emaranhado de músculos rígidos e contorcidos. Ele tinha vaga consciência dos poderosos estrondos, dos mil zunidos lamentosos, como uma melodia estranha. As colunas de vidro trêmulas, vibrantes. N ão conseguia se importar com elas.

Todas aquelas noites sem dormir começaram a fazer efeito nele, e também a corrida que empreendera. Rand estava cansado, e se tinha consciência disso mesmo dentro do Vazio, era porque estava perto da exaustão. Sacudido pelo tremor da terra, ele percebeu que já não estava tentando arrancar o ter’angreal de Asmodean, apenas o segurava. Logo sua força iria embora. Mesmo que conseguisse manter o punho cerrado na figura de pedra, teria de largar saidin ou seria arrebatado por sua torrente, destruído tão certamente quanto seria por Asmodean. Ele não podia puxar outro fio do ter’angreal; ele e Asmodean estavam em perfeito equilíbrio, cada um com metade do que o grande sa’angreal em Cairhien era capaz de dispender. Asmodean arfava na face de Rand, rosnando; o suor pingava da testa do Abandonado e escorria pelo rosto. O homem também estava cansado. Mas tanto quanto ele?

A terra descontrolada ergueu Rand por um instante, e, com a mesma rapidez, girou Asmodean para o alto, mas naquele breve instante Rand sentiu uma pressão entre os dois. A ponta da espada do homenzinho redondo, ainda enfiado no cós de sua calça. Uma coisa insignificante perto do imenso Poder que eles manejavam. Uma xícara d’água comparada a um vasto rio, a um oceano. Ele sequer sabia se podia usar o objeto enquanto estivesse ligado ao grandioso sa’angreal. E se pudesse? Asmodean arreganhou os dentes. Não era uma careta, mas um esgar; o homem achava que estava vencendo. Talvez estivesse. Os dedos de Rand tremiam, fraquejando em torno do ter’angreal; tudo o que ele conseguia era agarrar-se a saidin, mesmo preso como estava ao imenso sa’angreal.

Ele não tinha visto aquelas coisas estranhas em torno de Asmodean, feito fios de aço negro, desde que deixara o local escuro, porém mesmo no Vazio era capaz de visualizá-las, de envolver o Abandonado nelas mentalmente. Tam lhe ensinara que o Vazio era um auxílio à arte do arco e flecha, uma forma de unir-se ao arco, à flecha, ao alvo. Ele se tornou um só com aqueles fios negros imaginários. Mal viu a cara franzida de Asmodean. O homem devia estar se perguntando por que o rosto de Rand havia ficado tão sereno; a calma sempre dominava o instante antes de a flecha ser solta. Ele tocou o pequenino angreal no cós da calça, e mais Poder fluiu para ele. Não perdeu tempo em se entusiasmar; era um fluxo tão pequeno junto ao que ele já tinha dentro de si, mas era o fluxo final. Iria requerer sua força final. Ele forjou uma espécie de espada com o Poder, uma espada de Luz, e golpeou; unido à espada, unido aos fios imaginários.

Asmodean arregalou os olhos e emitiu um uivo profundo de pavor; feito um gongo atingido, o Abandonado estremeceu. Por um instante, pareceu dividir-se em dois corpos, apartados e trêmulos; em seguida os dois se uniram outra vez. Ele desabou de costas, os braços estendidos dentro do casaco vermelho, já imundo e esfarrapado, o peito ofegante; seus olhos encaravam o nada, aparentemente perdidos.

Quando ele desabou, Rand perdeu a posse de saidin, e o Poder o abandonou. Ele mal teve força suficiente para apertar o ter’angreal contra o peito e rolar para longe de Asmodean. Ao levantar-se, parecia carregar o peso de uma montanha. Ele se aninhou em torno da figura com a esfera de cristal.

A terra parou de se mover. As colunas de vidro ainda estavam de pé — ele sentiu-se grato por isso; destruí-las teria sido como obliterar a história dos Aiel — mas Avendesora, que vivera por três mil anos em verdade e lenda, ardia em chamas feito uma tocha. Quanto ao restante de Rhuidean…

Na esplanada, tudo parecia ter sido revirado por um gigante ensandecido. Metade dos imensos palácios e torres eram só pilhas de entulho, algumas adentrando a praça; gigantescas colunas tombadas desfiguravam as outras, havia paredes desmoronadas, e buracos abertos onde antes havia imensas janelas de vidro colorido. Uma rachadura percorria um caminho por toda a cidade, uma fenda no chão de cinquenta passadas de largura. A destruição não terminava ali. O domo de névoa que encobrira Rhuidean por tantos séculos estava se dissipando; seu interior já não cintilava, e a luz rígida do sol entrava pelas novas e imensas frestas. Logo adiante, o cume de Chaendaer parecia diferente, mais baixo. Do outro lado do vale, algumas das montanhas sem dúvida estavam mais baixas. Onde antes existia uma delas, na ponta mais a norte do vale, se estirava um leque de pedras e poeira.

Eu destruo. Eu sempre destruo! Luz, isso não vai acabar nunca?

Asmodean rolou de barriga para baixo e se ergueu, de quatro. Seus olhos encontraram Rand e o ter’angreal, e ele ameaçou engatinhar na direção deles.

Rand não podia canalizar nem uma faísca, mas havia aprendido a lutar antes de ter o primeiro pesadelo com a canalização. Ergueu o punho.

— Nem ouse pensar nisso.

O Abandonado parou, o corpo tremendo, cansado. Seu rosto desabou, mas o desespero e o desejo guerreavam dentro dele; ódio e medo cintilavam em seus olhos.

— Eu gosto muito de ver homens lutando, mas vocês dois não conseguem nem ficar de pé. — Lanfear posicionou-se à vista de Rand, avaliando a destruição. — Fizeram o trabalho completo. Conseguem sentir os vestígios? Este lugar foi blindado, de alguma forma. Vocês não deixaram nem o suficiente para eu poder dizer como. — Os olhos escuros da mulher de súbito se iluminaram, e ela ajoelhou-se diante de Rand, encarando o que ele segurava. — Então era disso que ele estava atrás. Pensei que estavam todos destruídos. Só resta a metade do único que eu já vi; ótima armadilha para uma Aes Sedai desatenta. — Ela estendeu a mão, e ele agarrou o ter’angreal com mais força. Ela sorria, mas um sorriso falso. — Fique com ele, claro. Para mim, é só uma estatueta. — Ela se levantou e sacudiu a poeira das saias, embora não fosse necessário. Quando percebeu que ele a observava, a mulher parou de perscrutar a esplanada tomada de entulho e escancarou ainda mais o sorriso. — O que você usou foi um dos dois sa’angreal sobre os quais lhe falei. Sentiu a imensidão dele? Sempre imaginei como deve ser. — Ela parecia ignorar a avidez da própria voz. — Com esses dois juntos, podemos destituir o Grande Senhor das Trevas em pessoa. Nós podemos, Lews Therin! Juntos.

— Me ajude! — Asmodean engatinhou em direção a ela, cambaleante, o rosto erguido tomado de pavor. — Você não sabe o que ele fez. Tem que me ajudar. Eu não teria vindo até aqui se não fosse por você.

— O que foi que ele fez? — perguntou ela, com uma fungada. — Espancou você feito um cachorro, e não foi nem a metade do que merecia. Você nunca esteve destinado à grandeza, Asmodean, apenas a seguir os grandes.

Rand deu um jeito de se levantar, apertando contra o peito a figura de pedra e cristal. Não continuaria de joelhos na presença daquela mulher.

— Vocês, Escolhidos — sabia que era perigoso insultá-la, mas não pôde evitar — entregaram a alma para o Tenebroso. Deixaram que ele se unisse a vocês. — Quantas vezes ele reencenara a batalha contra Ba’alzamon? Quantas vezes, antes de começar a imaginar o que eram aqueles fios negros? — Eu o desconectei do Tenebroso, Lanfear. Eu cortei o elo!

Ela arregalou os olhos em choque, encarando Rand e em seguida Asmodean, sem parar. O homem tinha começado a chorar.

— Eu não achava que isso fosse possível. Por quê? Você acha que vai trazer Asmodean para a Luz? Você não mudou nada nele.

— Ele ainda é o mesmo homem que se entregou para a Sombra, lá no início — concordou Rand. — Você me contou que Escolhidos confiam muito pouco uns nos outros. Por quanto tempo mais ele conseguiria manter isso em segredo? Quantos de vocês acreditariam que ele próprio não teria feito isso sozinho? Fico contente por você considerar uma coisa dessas impossível; talvez o restante também considere. Foi você quem me deu a ideia, Lanfear. Um homem para me ensinar a controlar o Poder. Mas não vou aprender de um homem ligado ao Tenebroso. Agora eu não preciso. Ele pode até ser o mesmo homem, mas não tem muita escolha, não é? Pode ficar e me instruir, torcer para que eu vença, me ajudar a vencer, ou pode ficar esperando que vocês não usem isso como justificativa para se voltar contra ele. O que você acha que ele vai escolher?

Asmodean encarou Rand, encolhido, com os olhos arregalados, depois vociferou uma súplica para Lanfear.

— Eles vão acreditar em você! Pode contar para eles! Eu não estaria aqui se não fosse por você! Precisa contar a eles! Eu sou fiel ao Grande Senhor das Trevas!

Lanfear também encarou Rand. Pela primeira vez, viu que ela estava indecisa.

— De quanto você se lembra, Lews Therin? O quanto disso é você, e o quanto é o pastor? Esse é o tipo de plano que você deveria ter bolado quando nós… — Ela respirou fundo e virou a cabeça para Asmodean. — Sim, eles vão acreditar em mim. Quando eu contar que você resolveu ficar do lado de Lews Therin. Todo mundo sabe que você se vira para onde acredita ter mais chances. Pois bem. — Ela assentiu com satisfação. — Outro presentinho para você, Lews Therin. Esse escudo vai permitir que passe apenas um tantinho de cada vez, o suficiente para ele instruí-lo. Vai se dissipar com o tempo, mas durante meses ele não vai ser capaz de desafiar você, e a essa altura ele não vai mesmo ter outra escolha a não ser permanecer com você. Ele nunca teve muito talento para quebrar escudos; você deve estar disposto a aceitar a dor, e ele jamais esteve.

— Nãããooo! — Asmodean rastejou em direção a ela. — Você não pode fazer isso comigo! Por favor, Mierin! Por favor!

— Meu nome é Lanfear! — A ira deformou o rosto da mulher a uma cara horrenda, e o homem foi içado no ar, com os braços e pernas abertos; suas roupas grudaram no corpo, e a carne de seu rosto se contorceu, achatada feito um naco de manteiga.

Rand não podia permitir que ela matasse o homem, mas estava muito cansado para tocar a Fonte Verdadeira sem auxílio; mal conseguia senti-la, um brilho muito fraco praticamente fora do alcance de sua visão. Por um instante, suas mãos agarraram o homenzinho de pedra com a esfera de cristal. Se ele tocasse o imenso sa’angreal em Cairhien agora, aquela quantidade de Poder poderia destruí-lo. Em vez disso, ele tocou a estatueta no cós da calça; com o angreal vinha um fluxo fraco, um fio de cabelo comparado ao outro, mas ele estava muito cansado para extrair mais. Despejou tudo entre os dois Abandonados, na intenção de pelo menos desviar a atenção da mulher.

Uma barra de fogo de dez pés de comprimento acertou o vão entre os dois, formando um borrão envolto por raios azuis distorcidos e abrindo um sulco de um passo de profundidade em torno da praça, uma fenda de superfície lisa e reluzente, cheia de terra e pedras derretidas; a barra de luz causticante acertou a parede de listras verdes de um palácio e explodiu, ressoando um estrondo no mármore que se rompia. De um dos lados da fenda derretida, Asmodean desabou no chão com um salto trêmulo, o sangue escorrendo de seu nariz e orelhas; do outro, Lanfear cambaleou para trás, como se tivesse sido atingida, depois virou-se para Rand. Ele bamboleou com o esforço do que havia feito, e perdeu saidin mais uma vez.

Por um instante, a ira dominou o rosto da mulher de maneira tão profunda quanto acontecera com Asmodean. Por um instante, Rand permaneceu à beira da morte. Então a fúria desapareceu com uma rapidez impressionante, soterrada por detrás de um sorriso sedutor.

— Não, eu não preciso matá-lo. Não depois do que passamos com tanto esforço. — Ela se aproximou e estendeu a mão para afagar o pescoço dele, onde a mordida que ela lhe dera em sonho estava cicatrizando; ele não tinha deixado Moiraine saber. — Você ainda tem a minha marca. Será que eu devo torná-la permanente?

— Você machucou alguém em Alcair Dal ou nos acampamentos?

Ela não paro de sorrir, mas o carinho mudou, e seus dedos se ergueram de repente, como se ela fosse lhe arrancar a garganta.

— Como quem? Pensei que você tivesse percebido que não amava aquela camponesinha. Ou será que é a tal Aiel indecente? — Uma víbora. Uma víbora assassina que o amava… que a Luz me ajude! E cuja mordida ele não sabia como impedir, independentemente de quem fosse o alvo.

— Eu não quero ninguém ferido. Ainda preciso deles. Posso usá-los. — Era doloroso dizer essa frase, pela verdade que ela carregava. No entanto, para manter as garras de Lanfear longe de Egwene e Moiraine, longe de Aviendha e de quem mais fosse próximo dele, valia a pena sofrer um pouco.

Jogando a bela cabeça para trás, ela soltou uma risada que mais parecia o repique de sinos.

— Eu me lembro de quando você tinha coração mole demais para usar qualquer pessoa que fosse. Era excelente na batalha, duro feito pedra e arrogante como uma montanha, mas aberto e de coração mole, igualzinho a uma garota! Não, eu não machuquei nenhuma das suas preciosas Aes Sedai, nem de seus preciosos Aiel. Eu não mato sem motivo, Lews Therin. Nem sequer machuco sem motivo. — Ele teve o cuidado de não encarar Asmodean; de rosto pálido, exalando suspiros entrecortados, o homem estava apoiado em uma das mãos e usava a outra para limpar sangue da boca e do queixo.

Lanfear deu um giro lento e analisou a grande praça.

— Você destruiu esta cidade bem como qualquer exército poderia ter feito. — Mas não eram os palácios em ruínas que ela encarava, embora fingisse que sim; era a praça destruída com o amontoado de ter’angreal e tudo o mais que havia ali. Quando ela se virou de volta para Rand, tinha os cantos da boca contraídos; seus olhos negros guardavam uma centelha de raiva reprimida. — Use bem esses ensinamentos, Lews Therin. Os outros ainda estão por aí, Sammael, cheio de inveja de você, Demandred, cheio de ódio, Rahvin, sedento de poder. Eles vão ficar mais ávidos por derrotá-lo, ainda mais se… quando descobrirem que você está de posse disso.

O olhar dela tremulou em direção à figura de um pé de altura que ele tinha nas mãos, e por um instante Rand achou que ela estivesse considerando pegá-la. Não para evitar que os outros fossem atrás dele, mas porque com aquilo ele poderia tornar-se poderoso demais para ela. Naquele exato momento ele não sabia se seria capaz de detê-la caso ela lutasse apenas com as próprias mãos. Em um instante ela ponderava se deveria deixar o ter’angreal com ele, em outro, avaliava o grau de cansaço de Rand. Por mais que dissesse que o amava, a mulher iria querer manter a distância quando ele voltasse a ganhar força suficiente para usar aquilo. Ela lançou outra olhadela ligeira à esplanada, de lábios contraídos. Então, de súbito, uma porta se abriu a seu lado; não uma porta para a escuridão, mas em direção ao que parecia o aposento de um palácio, todo em mármore branco entalhado e tapeçarias de seda branca.

— Qual deles você era? — perguntou Rand, enquanto a mulher adentrava o aposento, e ela parou e olhou para trás, encarando-o com um sorriso quase recatado.

— Você acha que eu aguentaria ser aquela gorda e feia da Keille? — Ela correu as mãos pelo corpo magro e sinuoso, para enfatizar. — Isendre, pois sim. A bela e esbelta Isendre. Achei que, se você fosse suspeitar, suspeitaria dela. Meu orgulho aguenta um pouquinho de gordura, quando é necessário. — O sorriso transformou-se em um esgar de dentes. — Isendre achava que estava lidando só com Amigos da Sombra. Não me surpreende se agora mesmo ela estiver tentando explicar a alguma Aiel enfurecida por que uma enorme quantidade de seus colares e braceletes de ouro estão enfiados no fundo do baú dela. Ela de fato roubou alguns sozinha.

— Achei que você tinha dito que não machucaria ninguém!

— Lá vem o seu coração mole se revelando. Eu consigo ser uma mulher de coração afetuoso, quando quero. Você não vai poder evitar que ela leve uma surra, eu acho… ela merece isso, pelo menor dos olhares que me disparou. Mas, se retornar depressa, pode evitar que ela seja expulsa daquela terra maldita com um mísero cantil d’água. Eles são bem duros com os ladrões, ao que parece, esses Aiel. — Ela soltou uma risada de satisfação e sacudiu a cabeça, admirada. — Tão diferentes do que eram. Quando alguém estapeava a cara de um Da’shain, a única coisa que ele fazia era perguntar o que tinha feito de errado. Quando batiam de novo, ele perguntava se tinha feito algo ofensivo. E continuaria assim, durante o resto do dia. — Ela lançou a Asmodean um olhar desdenhoso de soslaio e acrescentou: — Aprenda bem e depressa, Lews Therin. Pretendo governar junto com você, não quero que fiquemos esperando Sammael vir matá-lo ou Graendal somá-lo à sua coleção de belos jovens. Aprenda bem e depressa. — Ela adentrou o aposento de mármore e seda branca, e a porta pareceu girar de lado, estreitou-se e desapareceu.

Rand respirou fundo pela primeira vez desde a chegada da mulher. Mierin. Um nome que ele recordava das colunas de vidro. A mulher que encontrara a prisão do Tenebroso na Era das Lendas, que adentrara a prisão. Será que ela sabia o que era? Como havia escapado daquela ruína incandescente que ele vira? Ela tinha se entregado ao Tenebroso ainda assim?

Asmodean lutava para se levantar, cambaleante, quase caindo outra vez. Já não sangrava, mas o sangue ainda traçava linhas finas que iam das orelhas até as laterais do pescoço, formando uma mancha em sua boca e queixo. Seu casaco vermelho estava imundo e esfarrapado, a renda branca, rasgada e com os fios puxados.

— Foi o meu elo com o Grande Senhor que me permitiu tocar saidin sem enlouquecer — disse ele, com a voz rouca. — A única coisa que você fez foi me deixar tão vulnerável quanto você. Pode muito bem me libertar. Não sou bom professor. Ela só me escolheu porque… — Ele contorceu os lábios, tentando engolir as palavras de volta.

— Porque não tem mais ninguém — concluiu Rand, virando as costas para o homem.

Com as pernas cambaleantes, Rand cruzou a ampla praça, abrindo caminho por entre os entulhos. Ele e Asmodean haviam percorrido metade do entorno da floresta de colunas de vidro desde Avendesora. Plintos de cristal jaziam ao lado de estátuas derrubadas de homens e mulheres, algumas despedaçadas, outras nem sequer lascadas. Havia um imenso aro liso de metal prateado jogado por cima de cadeiras de aço e pedra, objetos com formas estranhas de metal, cristal e vidro, todos misturados em uma pilha de estilhaços, e um cabo de metal negro, apoiado na vertical, equilibrado sobre a pilha de maneira improvável. A esplanada inteira estava daquele jeito.

Nos arredores da grande árvore, bastou ele procurar um pouco no meio da mixórdia para encontrar o que buscava. Chutou longe pedaços do que pareciam ser tubos de vidro espiralados, jogou uma cadeira vermelha de cristal entalhado para o lado e apanhou uma estatueta de um pé de altura, uma mulher de rosto sereno usando um vestido, toda trabalhada em pedra branca, com uma esfera transparente em uma das mãos. Intocada. Tão inútil para ele ou para qualquer homem quanto seu par masculino era para Lanfear. Ele considerou quebrá-la. Um movimento com o braço poderia estilhaçar aquela bola de cristal nas pedras do pavimento, sem dúvida.

— Ela estava procurando por isso. — Ele não havia percebido que Asmodean havia ido atrás dele. Trêmulo, o homem esfregou a boca ensanguentada. — Ela vai arrancar seu coração fora para conseguir colocar as mãos nisso.

— Ou o seu, por ter guardado segredo dela. Ela me ama. — Que a Luz me ajude. Gostar de ser amado por um lobo raivoso! Depois de um instante ele guardou a estátua feminina sob a dobra do braço, junto à masculina. Deveria haver algum uso para aquilo. E eu não quero destruir mais nada.

No entanto, ao olhar em volta, viu algo além da destruição. A névoa tinha se dissipado quase por completo da cidade em ruínas; apenas umas camadas finas pairavam por entre as construções que ainda se mantinham de pé sob o sol po ente. O chão do vale agora descrevia uma inclinação brusca para o sul, e a água jorrava da enorme fenda que percorria a cidade, a fenda que seguia por todo o caminho até onde jazia um profundo oceano de águas recônditas. A extremidade mais baixa do vale já estava cheia. Um lago. Talvez, eventualmente, chegasse à cidade. Um lago de cerca de três milhas de extensão, em uma terra onde uma pocinha de dez pés de diâmetro já atraía o povo. O povo viria viver naquele vale. Ele quase podia ver as montanhas ao redor já plenas de verde e plantações a crescer. O povo cuidaria de Avendesora, a última árvore de cora. Talvez até reerguesse Rhuidean. O Deserto teria uma cidade. Talvez ele até vivesse para ver tudo isso.

Com o angreal, o homenzinho redondo com a espada, ele conseguiu abrir uma porta para a escuridão. Asmodean adentrou com ele, relutante, encarando com vago desprezo ao ver surgir um único degrau de pedra entalhada, com largura suficiente apenas para os dois. Ainda era o mesmo homem que havia se entregado ao Tenebroso. Seus olhares calculistas e oblíquos eram boas lembranças disso, se Rand precisasse de alguma.

Eles se falaram apenas duas vezes enquanto o degrau seguiu flutuando pela escuridão.

— Não posso chamar você de Asmodean — disse Rand, em dado momento.

O homem estremeceu.

— Meu nome era Joar Addam Nesossin — respondeu ele, por fim. Soava como se tivesse se desnudado ou perdido alguma coisa.

— Também não posso usar esse. Quem sabe que resquícios de outros lugares esse nome guarda? A ideia é evitar que alguém mate você por ser um Abandonado. — E evitar que alguém soubesse que ele tinha um Abandonado como professor. — Você vai ter que continuar sendo Jasin Natael, eu acho. Menestrel do Dragão Renascido. É um bom pretexto para manter você por perto. — Natael fez uma careta, mas não retrucou.

Pouco tempo depois, Rand disse:

— A primeira coisa que você vai me ensinar é como proteger os meus sonhos.

O homem apenas assentiu, taciturno. Ele causaria problemas, mas não poderiam ser maiores do que os causados pela ignorância.

O degrau reduziu a velocidade, parou, e Rand cingiu outra vez. A porta se abriu na saliência de Alcair Dal.

A chuva havia parado, embora o chão do cânion, encoberto pelas sombras da noite, ainda estivesse encharcado, transformado em lama pelos pés dos Aiel. Menos Aiel do que antes, talvez um quarto a menos. Mas não lutavam. Encaravam a saliência, onde Moiraine e Egwene, Aviendha e as Sábias haviam se juntado aos chefes dos clãs, que conversavam com Lan. Mat estava agachado um pouco afastado deles, a aba do chapéu puxada para baixo e a lança de cabo preto apoiada no ombro, com Adelin e suas Donzelas paradas de pé ao seu redor. Elas ficaram boquiabertas ao ver Rand saindo da porta, e encararam mais ainda quando Natael veio atrás, vestindo o casaco vermelho vivo todo arrebentado e a renda branca. Mat levantou-se de um salto e escancarou um sorriso, e Aviendha ergueu a mão um tantinho em direção a ele. Os Aiel no cânion observavam em silêncio.

Antes que alguém pudesse falar, Rand disse:

— Adelin, pode mandar alguém até a feira e ordenar que parem de bater em Isendre? Ela não é tão ladra como elas pensam. — A mulher de cabelos louros o encarou, mas na mesma hora falou com uma das Donzelas, que saiu em disparada.

— Como é que você sabia disso? — perguntou Egwene.

E no mesmo instante Moiraine inquiriu:

— Onde é que você estava? Como? — Seus olhos grandes e escuros saltaram dele para Natael; não havia nenhuma evidência da calma de uma Aes Sedai. E as Sábias…? Melaine, com seus cabelos da cor do sol, parecia pronta para arrancar as respostas de Rand com as próprias mãos. Bair fechou uma carranca como se pretendesse enchê-lo de varadas. Amys remexia o xale e corria os dedos pelos cabelos claros, incapaz de decidir se estava preocupada ou aliviada.

Adelin entregou a ele seu casaco, ainda úmido. Rand enrolou nele as duas figuras de pedra. Moiraine observava os dois objetos também. Ele não sabia se ela sequer imaginava o que fossem, mas pretendia escondê-los o melhor possível de qualquer pessoa. Se ele não era capaz de confiar nem em si mesmo com o poder de Callandor, menos ainda poderia com o grandioso ter’angreal. Não antes que ele tivesse aprendido mais sobre como controlá-lo, e a si mesmo.

— O que foi que aconteceu aqui? — perguntou ele, e a Aes Sedai apertou a boca ao ser ignorada. Egwene também não parecia muito satisfeita.

— Os Shaido foram embora, atrás de Sevanna e Couladin — disse Rhuarc. — Todos os que permaneceram reconhecem você como o Car’a’carn.

— Os Shaido não foram os únicos que fugiram. — O rosto curtido de Han se contorceu, cheio de amargura. — Alguns dos meus Tomanelle também se foram. E Goshien, e Shaarad, e Chareen. — Jheran e Erim assentiram, quase tão soturnos quanto Han.

— Não foram com os Shaido — completou o comprido Bael, em sua voz retumbante — mas foram. Eles vão espalhar a história sobre o que aconteceu aqui, sobre o que você revelou. Isso foi um descuido. Eu vi homens largarem suas lanças e correrem!

Ele os unirá e os destruirá.

— Nenhum Taardad foi embora — acrescentou Rhuarc, não em tom de orgulho, mas como a mera constatação de um fato. — Estamos prontos para ir aonde você nos levar.

Aonde ele os levasse. Rand não havia terminado com os Shaido, com Couladin ou com Sevanna. Perscrutando os Aiel por todo o cânion, via rostos abalados, apesar de terem escolhido ficar. Como estariam os que haviam fugido? Os Aiel, porém, eram apenas os meios para um fim. Ele precisava se lembrar disso. Eu tenho que ser ainda mais duro do que eles.

Jeade’en aguardava ao lado da saliência com o capão de Mat. Fazendo um gesto para que Natael não se afastasse, Rand montou a sela, o embrulho feito com o casaco preso firmemente debaixo do braço. Com a boca contorcida, o outrora Abandonado veio se postar ao lado do estribo esquerdo de Rand. Adelin e as Donzelas remanescentes desceram para se enfileirar em torno dele, e surpreendentemente Aviendha foi tomar seu lugar de costume à direita de Rand. Mat pulou na sela de Pips com um balanceio só.

Rand olhou para trás, para o povo no alto da saliência, todos observando, aguardando.

— Vai ser uma longa viagem de volta. — Bael virou o rosto. — Longa e sangrenta. — As expressões dos Aiel não se alteravam. Egwene estendeu um pouco a mão em direção a ele, com os olhos cheios de dor, mas ele a ignorou. — Quando o resto dos chefes dos clãs vier, vai começar.

— Já começou há muito tempo — retrucou Rhuarc, baixinho. — A pergunta é onde e como vai acabar.

Para isso, Rand não tinha resposta. Ele girou o sarapintado e cavalgou lentamente pelo cânion, rodeado por sua peculiar comitiva. Os Aiel partiram na frente dele, observando, aguardando. O frio da noite já começava a cair.


E quando o sangue foi derramado no solo onde nada crescia, os Filhos do Dragão começaram a brotar, o Povo do Dragão, armados para dançar com a morte. E ele os convocou desde as terras desérticas, e eles abrasaram o mundo com batalhas.

— de A Roda do Tempo, por Sulamein so Bhagad Historiador-chefe da Corte do Sol, a Quarta Era

Fim do Quarto Livro de A Roda do Tempo
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