Os Aiel levantaram acampamento cedo e já estavam longe de Rhuidean quando o sol ainda por nascer formava um contorno anguloso nas montanhas distantes. Em três grupos, eles contornaram Chaendaer, descendo por planícies serrilhadas intercaladas com montes, elevações de pedra e colinas de topo achatado. A terra era cinza, marrom e todas as tonalidades intermediárias, algumas partes rajadas de espirais compridas em tons de vermelho e ocre. Volta e meia, um grande arco natural se avultava enquanto os grupos se moviam para norte e oeste, ou imensas e estranhas placas de pedra se equilibravam temerariamente, quase à beira da queda. Em cada ponto que Rand olhava, montanhas recortadas se erguiam a distância. Todos os destroços da Ruptura do Mundo pareciam reunidos ali, no lugar chamado de Deserto Aiel. Onde o solo duro não era de barro rachado, amarelo, marrom ou de algum tom intermediário, era de um material escuro e pedregoso, dividido em vários pontos por valas e depressões secas. A vegetação isolada era baixa e escassa, toda de arbustos espinhosos e galhos sem folhas cheios de espinhos. As poucas flores, brancas, vermelhas ou amarelas, eram surpreendentes naquele isolamento. De vez em quando, a grama grossa cobria alguns trechos do solo, e raramente se via uma árvore — em geral atrofiada e também com espinhos. Comparado a Chaendaer e ao vale de Rhuidean, o lugar era quase exuberante. O ar era tão limpo, e a terra tão árida que Rand achava que podia ver milhas e milhas ao longe.
Aquele ar, porém, não era menos seco, o calor não era menos implacável, e o sol era uma massa de ouro fundido no alto de um céu sem nuvens. Rand enrolara uma shoufa na cabeça, em uma tentativa de se proteger do sol, e com frequência bebia da bolsa d’água na sela de Jeade’en. Por estranho que fosse, o casaco parecia ajudar. Ele não suava menos, mas a camisa permanecia molhada sob a lã vermelha, o que refrescava um pouco. Mat usava uma tira de tecido para amarrar um grande lenço branco na cabeça, feito um estranho gorro que descia pela nuca e protegia os olhos da claridade. Trazia consigo a estranha lança com lâmina de espada, a coronha enfiada no estribo.
O grupo deles consistia de cerca de quatrocentos Jindo. Rand e Mat cavalgavam à frente, lado a lado com Rhuarc e Heirn. Os Aiel caminhavam, naturalmente, levando as tendas e algumas pilhagens de Tear em mulas e cavalos de carga. Algumas Donzelas dos Jindo seguiam à frente como batedoras, e os Cães de Pedra iam atrás, vigiando a retaguarda. A coluna principal era cercada por olhos atentos, lanças a postos e arcos com flechas encaixadas. A Paz de Rhuidean supostamente valia até que todos os que tinham partido para Chaendaer retornassem os próprios fortes, mas, como Rhuarc explicara a Rand, já haviam acontecido mal-entendidos, e nem desculpas nem o preço do sangue traziam os mortos de volta dos túmulos. Rhuarc parecia achar que era ainda mais provável que algum mal-entendido ocorresse daquela vez, sem dúvida em parte por causa do grupo dos Shaido.
As terras dos Shaido ficavam depois das terras dos Taardad, na mesma direção de Chaendaer, e os Shaido avançavam em paralelo às terras dos Jindo, a cerca de um quarto de milha de distância. Segundo Rhuarc, Couladin deveria ter esperado mais um dia, para ver se o irmão voltaria. O fato de Rand ter visto Muradin depois de ele ter arrancado os próprios olhos não fazia diferença, dez dias era o tempo protocolar. Partir antes disso era abandonar quem tivesse adentrado Rhuidean. Ainda assim, Couladin pusera os Shaido para dobrar as tendas assim que viu os animais de carga dos Jindo sendo aprontados. Os Shaido viajavam com seus próprios batedores e vigias na retaguarda, aparentemente ignorando os Jindo, mas o espaço entre os dois grupos nunca aumentava mais do que trezentas passadas. Era comum haver testemunhas de talvez meia dúzia dos maiores ramos quando um homem reclamava a marca de um chefe de clã, e o povo de Couladin ultrapassava os Jindo em número: a vantagem era de pelo menos dois homens para um. Rand suspeitava que o terceiro grupo, entre os Shaido e os Taardad, fosse a razão pela qual o intervalo não se estreitava súbita e violentamente.
As Sábias caminhavam como qualquer Aiel, incluindo aqueles homens e mulheres estranhos de robes brancos, que Rhuarc chamava de gai’shain, conduzindo os cavalos de carga. Não eram bem servos, mas Rand não sabia se de fato entendera a explicação de Rhuarc sobre honra, obrigação e prisioneiros. Heirn fora ainda mais confuso, como se tentasse explicar por que a água era molhada. Moiraine, Egwene e Lan seguiam com as Sábias, ou pelo menos as duas mulheres seguiam. O Guardião conduzia o cavalo de batalha um pouco para o lado dos Shaido, observando-os com a mesma atenção com que examinava a paisagem escarpada. Às vezes, Moiraine, Egwene ou ambas desciam para conversar um pouco com as Sábias. Rand teria dado sua última moeda para ouvir o que diziam. Elas com frequência olhavam em sua direção, de soslaio, decerto para que ele não notasse. Por alguma razão, Egwene usava os cabelos em duas tranças, amarrados por fitas vermelhas compridas, feito os de uma noiva. Ele não sabia por quê. Comentara sobre os cabelos dela antes de sair de Chaendaer — apenas mencionara — e a amiga quase arrancara sua cabeça.
— Elayne é a mulher para você.
Ele encarou Aviendha, confuso. O olhar desafiador estava de volta aos olhos verde-azulados, mas ainda misturado a desgosto. Ela estava esperando do lado de fora da tenda quando ele acordou, naquela manhã, e desde então não se afastara mais de três passadas. Estava claro que as Sábias a haviam mandado espionar, e ainda mais claro que não era para ele reparar. A Aiel era bonita, e ele era considerado tolo o bastante para não enxergar nada além disso. Sem dúvida era por essa razão que ela estava de saias e não portava arma além da faca de cintura. As mulheres pareciam pensar que a mente masculina carecia de sofisticação. Pensando bem, nenhum dos outros Aiel comentara sobre a mudança no vestuário de Aviendha, mas até Rhuarc evitava encará-la por muito tempo. Deviam saber por que ela estava lá, ou tinham um palpite sobre o plano das Sábias, e não queriam mencionar o assunto.
Rhuidean. Ele ainda não sabia por que a jovem tinha ido até lá. Rhuarc murmurou algo sobre “assuntos das mulheres”, claramente relutante em conversar sobre aquilo perto dela. Considerando como a jovem estava colada em Rand, aquilo significava que não discutiriam coisa alguma. O chefe de clã sem dúvida estava escutando a conversa, assim como Heirn e todos os Jindo por perto. Às vezes, era difícil interpretar os Aiel, mas ele achava que todos pareciam estar achando graça. Mat assobiava baixinho, deixando bem claro que encarava tudo, menos os dois. Mesmo assim, era a primeira vez no dia que Aviendha falava com ele.
— Como assim? — indagou Rand.
As saias pesadas não a impediam de caminhar ao lado de Jeade’en. Não, Aviendha não caminhava. Perseguia. Se fosse um gato, estaria balançando o rabo.
— Elayne é uma aguacenta, como você. — Ela balançou a cabeça, arrogante. O rabo curto que os guerreiros Aiel usavam na nuca não estava mais lá. O lenço dobrado em torno das têmporas quase tapava seus cabelos. — A mulher certa para você. Ela não é bonita? Tem a postura ereta, membros esguios e fortes, lábios vermelhos como uma fruta-do-amor suculenta. Seus cabelos são como fios de ouro, e os olhos, safiras azuis. A pele é mais macia que a seda mais delicada, os seios são lindos e redondos. Os quadris…
Rand a interrompeu bruscamente, com o rosto ardendo.
— Eu sei que ela é bonita. O que você está fazendo?
— Descrevendo Elayne. — Aviendha franziu o cenho para ele. — Você já a viu no banho? Não preciso descrevê-la se você já a tiver visto…
— Eu não vi!
Rand desejou não ter soado irritado. Rhuarc e os outros estavam escutando, os rostos impassíveis demais para quem não estava se divertindo. Mat revirou os olhos com um sorriso escancarado e malicioso.
A mulher deu de ombros e ajeitou o xale.
— Ela deveria ter providenciado isso. Mas eu vi, e vou agir como se fosse quase-irmã dela. — A ênfase parecia indicar que aquilo era o mesmo que dele poderia se dizer “quase-irmã” dele. Os costumes Aiel eram estranhos, mas isso era loucura! — Os quadris dela…
— Pare com isso!
Aviendha disparou um olhar de esguelha furioso para ele.
— Elayne é a mulher certa para você. Ela pôs o coração aos seus pés por uma grinalda matrimonial. Acha que existe alguém na Pedra de Tear que não saiba disso?
— Eu não quero falar sobre Elayne — retrucou, com firmeza. Ainda mais se ela pretendesse continuar da forma como começara. O pensamento fez seu rosto esquentar outra vez. A mulher não parecia se importar com o que dizia, nem com quem escutava!
— Tem mais é que corar, mesmo, por deixar a moça de lado quando ela desnudou o coração para você. — A voz de Aviendha era ríspida e desdenhosa. — Ela escreveu duas cartas, expondo tudo, como se tivesse se despido debaixo do teto de sua mãe. Você a atrai para os cantos para beijá-la, depois a rejeita. Elayne foi honesta em cada palavra daquelas cartas, Rand al’Thor! Egwene me contou. Ela foi honesta em cada palavra. O que é que você quer com ela, aguacento?
Rand esfregou a mão nos cabelos e precisou ajeitar a shoufa. Elayne fora honesta em cada palavra? Nas duas cartas? Era impossível. Uma contradizia a outra quase ponto a ponto! De repente, levou um susto. Egwene contara a ela? Sobre as cartas de Elayne? As mulheres conversavam sobre essas coisas? Planejavam juntas as melhores maneiras de confundir um homem?
Percebeu que sentia falta de Min. Min nunca o fizera parecer um idiota. Bem, não mais de uma ou duas vezes. E nunca o insultara. Bem, ela o chamara de “pastor” algumas vezes. Mas Rand se sentia à vontade perto dela, confortável, de um jeito estranho. Ela jamais o fizera se sentir um completo idiota, como Elayne e Aviendha.
O silêncio dele pareceu irritar ainda mais a Aiel, se tal coisa fosse possível. Resmungando sozinha, caminhando a passos largos como se quisesse esmagar alguma coisa, ela arrumou e rearrumou o xale meia dúzia de vezes. Enfim os resmungos cessaram. Em vez disso, ela passou a encará-lo. Feito um abutre. Rand não sabia como ela não tropeçava e caía de cara no chão.
— Por que você está me olhando desse jeito?
— Estou escutando, Rand al’Thor, já que você quer que eu fique em silêncio. — Aviendha sorriu, rangendo os dentes. — Não gosta que eu escute você?
Ele olhou para Mat, que balançou a cabeça atrás dela. Era impossível entender as mulheres, ponto final. Rand tentou refletir sobre o que o aguardava, mas era difícil, com os olhos da mulher em cima dele. Seriam belos olhos, se não estivessem cheios de rancor, mas ele preferiria que Aviendha estivesse encarando outra coisa.
Protegendo os olhos do brilho do sol, Mat fazia o possível para não encarar Rand e a Aiel que caminhava a passos largos entre os cavalos dos dois. Não entendia por que Rand a aguentava. Aviendha era muito bonita, sem dúvida — mais do que bonita, ainda mais agora que usava um arremedo de roupas decentes — mas tinha uma língua ferina e um temperamento que fazia Nynaeve parecer dócil. Achava ótimo que Rand estivesse preso à mulher, e não ele.
Puxou o lenço da cabeça e enxugou o suor do rosto, depois amarrou-o de volta. O calor e o sol incessante nos olhos estavam começando a irritá-lo. Será que não havia uma única sombra naquela terra inteira? O suor fazia as feridas arderem. Ele recusara a Cura na noite anterior, quando Moiraine o acordara depois de ele finalmente conseguir pegar no sono. Uns poucos cortes eram um preço baixo para não ter o Poder usado em si, e o chá nojento das Sábias dera um alívio na dor de cabeça. Bem, de certo modo. Não acreditava que Moiraine fosse capaz de fazer algo a respeito da outra coisa que o afligia, e também não tinha intenção de contar a ela até que ele mesmo tivesse compreendido. Se é que contaria depois. Não queria nem pensar a respeito.
Moiraine e as Sábias o observavam. Observavam Rand, na verdade, mas a sensação era a mesma. Foi uma surpresa notar que a de cabelos dourados, Melaine, montara em Aldieb atrás da Aes Sedai e cavalgava desajeitada, segurando Moiraine pela cintura, enquanto as duas conversavam. Ele não sabia que os Aiel cavalgavam. Uma mulher muito bonita, Melaine, com aqueles olhos verdes impetuosos. Exceto, naturalmente, pelo fato de que ela conseguia canalizar. Só mesmo um completo idiota para se meter com uma dessas. Remexendo-se na sela de Pips, lembrou a si mesmo que o que os Aiel faziam não era de sua conta.
Estive em Rhuidean. Fiz o que aquela gente traiçoeira disse que eu tinha de fazer. E o que ganhara com aquilo? Essa porcaria de lança, um medalhão de prata e… Eu podia ir embora agora. Se tiver algum bom senso, eu vou.
Ele poderia ir. Tentar encontrar sozinho a saída do Deserto, antes que morresse de sede ou insolação. Poderia, se Rand ainda não o estivesse puxando, segurando. A maneira mais fácil de descobrir seria simplesmente tentar ir embora. Encarando a paisagem sombria, ele fez uma careta. Um vento se elevou — parecia soprar de um forno superaquecido — e pequenos torvelinhos afunilados de poeira amarela subiram do chão rachado. A névoa quente fazia as montanhas ao longe cintilarem. Talvez fosse melhor ficar um pouquinho mais.
Uma das Donzelas que saíra como batedora voltou correndo e inclinou-se ao lado de Rhuarc, falando apenas em seu ouvido. A mulher abriu um sorriso para Mat, ao terminar, e ele se ocupou em puxar um carrapicho da crina de Pips. Lembrava-se muito bem dela, uma Donzela de cabelos ruivos chamada Dorindha, mais ou menos da idade de Egwene. Dorindha fora uma das que tentara convencê-lo a jogar O Beijo da Donzela. Cobrara a primeira prenda. Não que ele não quisesse cruzar os olhos com os da moça, e não que não pudesse, mas era importante tirar os carrapichos do cavalo, e tudo o mais.
— Mascates — anunciou Rhuarc, quando Dorindha voltou feito uma flecha por onde viera. — Carroções de mascates vindo nesta direção. — Ele não parecia satisfeito.
Mat, no entanto, se viu bastante animado. Um mascate poderia ser muito bem o que ele precisava. Se o sujeito conhecia o caminho de entrada, conhecia o de saída. Ele se perguntou se Rand suspeitava de suas ideias. O amigo estava tão impassível quanto qualquer Aiel.
Os Aiel apertaram um pouco o passo — o povo de Couladin seguiu o ritmo dos Jindo e do grupo das Sábias sem hesitar; decerto seus batedores também tinham levado a notícia. Todos caminhavam rápido o bastante para que os cavalos tivessem de manter um ritmo ligeiro. O sol não incomodava os Aiel, nem mesmo os gai’shain de robes brancos. Eles deslizavam pelo solo rachado.
A menos de duas milhas, os carroções surgiram em seu campo de visão. Dezoito deles, enfileirados. Todos pareciam exibir os sinais de desgaste de uma viagem difícil, com as rodas reserva surradas em todos os pontos. Apesar da camada de poeira amarela, os dois primeiros pareciam caixas brancas sobre rodas, ou mesmo casinhas, com degraus de madeira nos fundos e uma chaminé de metal projetando-se do teto. Os três últimos, puxados por engates de vinte mulas, pareciam apenas imensos barris, também brancos, decerto cheios d’água. Os que iam no meio teriam se passado por carroções de mascates em Dois Rios, com rodas raiadas altas e pesadas e amontoados de panelas e outras coisas de metal tilintando nas grandes redes presas às coberturas de lona comprida.
Os condutores dos carroções frearam as rédeas assim que avistaram os Aiel, esperando que se aproximassem. Um homem pesado de casaco cinza-claro e chapéu escuro de aba larga desceu dos fundos do primeiro carroção e ficou observando, de vez em quando tirando o chapéu para secar a testa com um grande lenço branco. Se estava nervoso, já que encarava uns mil e quinhentos Aiel deslizando em sua direção, Mat não o culpava. O mais estranho eram as expressões nos rostos dos Aiel mais perto de Mat. Rhuarc, trotando adiante do cavalo de Rand, fechara a cara e estava com o rosto soturno, e Heirn tinha uma expressão capaz de detonar pedregulhos.
— Não entendo — comentou Mat. — Parece que vocês vão matar alguém. — Aquilo sem dúvida era o fim de todas as esperanças. — Pensei que houvesse três tipos de gente que vocês Aiel deixavam entrar aqui no Deserto: mascates, menestréis e o Povo Errante.
— Mascates e menestréis são bem-vindos — retrucou Heirn, em um tom áspero.
Se aquilo eram boas-vindas, Mat não queria ver os Aiel quando não estavam sendo hospitaleiros.
— E o Povo Errante? — perguntou, curioso. Quando Heirn manteve o silêncio, ele acrescentou: — Latoeiros? Os Tuatha’an?
O rosto do chefe de ramo ficou ainda mais rígido antes de ele voltar o olhar outra vez para os carroções. Aviendha fuzilou Mat com os olhos, como se ele fosse um idiota.
Rand aproximou Jeade’en de Pips.
— Se eu fosse você, não mencionaria os latoeiros perto dos Aiel — disse baixinho. — É… um assunto delicado.
— Se você diz. — Por que latoeiros eram um assunto delicado? — Para mim, parece que eles já estão bastante irritados com esse mascate. Mascate! Eu me lembro de mercadores que apareciam em Campo de Emond com menos carroções.
— Ele entrou no Deserto. — Rand deu uma risadinha. Jeade’en jogou a cabeça para trás e deu uns passos bambos. — Será que vai sair?
O sorriso de Rand não chegava aos olhos. Às vezes, Mat quase desejava que o amigo decidisse de uma vez se estava ou não louco e acabasse logo com tudo. Quase.
A trezentas passadas dos carroções, Rhuarc fez um gesto para que o grupo parasse, e ele e Heirn prosseguiram sozinhos. Pelo menos, aquela parecia ter sido a intenção do homem, mas Rand cravou os calcanhares no garanhão sarapintado e foi atrás dos dois, e a centena de inevitáveis guarda-costas Jindo o acompanhou. E Aviendha, naturalmente, que estava colada em Rand como se estivesse amarrada à sela de Jeade’en. Mat foi cavalgando com os outros. Se Rhuarc mandasse o camarada fazer as malas, não pretendia perder a chance de ir junto.
Couladin veio trotando do grupo dos Shaido. Sozinho. Talvez tivesse a intenção de fazer o mesmo que Rhuarc e Heirn, mas Mat suspeitou que o homem chamava a atenção para o fato de que ia sozinho aonde Rand precisava de cem guardas. A princípio, pareceu que Moiraine também se aproximaria, mas ela e as Sábias trocaram algumas palavras e ficaram onde estavam. Só que observavam, atentas. A Aes Sedai desceu da montaria, mexendo em um objeto pequeno e reluzente, e Egwene e as Sábias se agruparam à volta dela.
Ao chegar perto, Mat viu que, apesar de ficar secando o rosto, o homem grande de casaco cinza não parecia incomodado, embora tivesse se sobressaltado quando Donzelas surgiram do nada e rodearam os carroções. Os condutores, sujeitos de rostos duros e mais do que uma boa cota de cicatrizes e narizes quebrados, pareciam prontos para se esconder sob os assentos. Comparados aos lobos Aiel, eles não eram mais que cachorros de rua selvagens. O mascate se recuperou depressa. Não era gordo, apesar do tamanho. Todo aquele peso eram músculos. Rand e Mat, em cima dos cavalos, foram alvo de seus olhares curiosos, mas ele distinguiu Rhuarc logo de primeira. O nariz curvo e aquilino e os olhos escuros e oblíquos conferiam um ar predatório ao rosto quadrado e moreno do homem, que não se suavizou quando ele abriu um sorriso largo e deslizou da cabeça o chapéu de aba larga, em uma mesura.
— Sou Hadnan Kadere, mascate — anunciou. — Procuro o Forte das Pedras Frias, bons senhores, mas faço negócios com qualquer um e com todos. Tenho muitos produtos excelentes…
Rhuarc cortou o homem feito uma faca afiada.
— Você está muito longe das Pedras Frias ou de qualquer forte. Como foi que chegou tão longe da Muralha do Dragão sem um guia?
— Eu não sei, bom senhor. — Kadere não fechou o sorriso, mas contraiu um pouco os cantos da boca. — Tenho viajado sem disfarce. Esta é minha primeira visita tão ao sul da Terra da Trindade. Pensei que talvez aqui não houvesse guias.
Couladin bufou alto e rodopiou uma das lanças preguiçosamente. Kadere encolheu os ombros, como se já sentisse o aço deslizando pelo corpo compacto.
— Sempre há guias — respondeu Rhuarc, com frieza. — Você teve sorte de chegar tão longe sem um. Sorte de não estar morto, nem de precisar voltar nu em pelo para a Muralha do Dragão. — Kadere abriu um sorriso constrangido, cheio de dentes, e o chefe de clã continuou. — Teve sorte de nos encontrar. Se tivesse continuado por esse caminho por mais um ou dois dias, teria chegado até Rhuidean.
O rosto do mascate ficou cinza.
— Eu ouvi… — Ele parou para engolir. — Eu não sabia, bons senhores. Os senhores têm de acreditar, eu não faria tal coisa. Nem mesmo por acidente — acrescentou depressa. — Que a Luz ilumine minhas verdadeiras palavras, bons senhores, eu não faria!
— O que é bom — retrucou Rhuarc — pois as penalidades são severas. Você pode viajar comigo até as Pedras Frias. Não seria bom se perder. A Terra da Trindade pode ser um lugar perigoso para os que não a conhecem.
Couladin ergueu a cabeça, desafiador.
— Por que não comigo? — retrucou, em uma voz penetrante. — Os Shaido estão em maior número, Rhuarc. Por costume, ele viaja comigo.
— Você virou chefe do clã enquanto eu não estava olhando? — O Shaido de cabelos de fogo enrubesceu, mas Rhuarc não demonstrou qualquer sinal de satisfação, apenas prosseguiu com aquela voz impassível. — O mascate procura as Pedras Frias. Ele seguirá comigo. Os Shaido que estão com você podem negociar com ele enquanto viajamos. Os Taardad não estão tão famintos por mascates a ponto de querermos estes só para nós.
O rosto de Couladin ficou ainda mais sombrio, mas ele moderou o tom, ainda que o esforço o fizesse falar em um ganido.
— Acamparei perto das Pedras Frias, Rhuarc. Aquele Que Vem Com a Aurora diz respeito a todos os Aiel, não apenas aos Taardad. Os Shaido terão o lugar que merecem. Os Shaido também seguirão Aquele Que Vem Com a Aurora.
Mat percebeu que o homem não reconhecera que era de Rand que falava. Espiando os carroções, seu amigo parecia não escutar a conversa.
Rhuarc fez silêncio por um instante.
— Os Shaido serão hóspedes bem-vindos nas terras dos Taardad, se decidirem seguir Aquele Que Vem Com a Aurora. — Isso também era ambíguo.
Kadere passara o tempo todo esfregando o rosto, decerto vendo-se no meio de uma batalha entre Aiel. O homem pontuou o convite de Rhuarc com um suspiro pesado de alívio.
— Obrigado, bons senhores. Obrigado. — Sem dúvida, por não o terem matado. — Quem sabe os senhores gostariam de ver o que meus carroções têm a oferecer? Algo especial que possam estar querendo?
— Mais tarde — disse Rhuarc. — Passaremos a noite em Parada de Imre, e lá você pode mostrar suas mercadorias. — Couladin foi se afastando a passos firmes depois de ouvir o nome Parada de Imre, fosse lá o que fosse. Kadere começou a pôr o chapéu de volta na cabeça.
— Um chapéu — disse Mat, puxando as rédeas de Pips mais para perto do mascate. Se tinha de permanecer mais algum tempo no Deserto, pelo menos poderia proteger os olhos do maldito sol. — Dou um marco de ouro por um chapéu feito esse.
— Fechado! — gritou uma voz de mulher, rouca e melodiosa.
Mat olhou em volta e levou um susto. A única mulher à vista, além de Aviendha e as Donzelas, vinha caminhando do segundo vagão, mas sem dúvida não combinava com a voz, uma das mais encantadoras que ele já ouvira. Rand franziu o cenho para ela e balançou a cabeça, e havia motivo. A mulher era um pé mais baixa que Kadere e devia pesar o mesmo, ou mais. As camadas de gordura quase escondiam os olhos escuros, sem deixar entrever se eram ou não oblíquos, mas o nariz fazia o do mascate parecer pequeno. Usava um vestido de seda cor de creme todo justo no corpanzil, um xale de renda branca sobre a cabeça e elaborados pentes de marfim enfiados nos cabelos grossos e negros. Ela se movia com uma leveza inesperada, quase feito uma Donzela.
— Uma boa oferta — disse a mulher, naquele tom musical. — Sou Keille Shaogi, mascate. — Ela arrancou o chapéu de Kadere e empurrou-o para Mat. — É bem grosso, meu bom senhor, e quase novo. O senhor vai precisar de um assim para sobreviver à Terra da Trindade. Um homem pode morrer de repente, neste lugar. — Ela estalou os dedos gordos, para enfatizar a rapidez com que a morte poderia chegar. — A risada súbita tinha a mesma característica gutural e amorosa da voz. — Ou uma mulher. Um marco de ouro, o senhor disse. — Quando Mat hesitou, os olhos meio escondidos da mulher cintilaram, negros como os de um corvo. — É raro eu oferecer duas vezes a mesma barganha.
Uma mulher peculiar, para dizer o mínimo. Kadere não protestou, exceto por uma leve careta. Se Keille era sua parceira, não havia dúvida de quem mandava. E, se o chapéu evitasse que a cabeça de Mat torrasse, realmente valia o preço, em sua opinião. Antes de soltar o chapéu a mulher mordeu o marco taireno que ele lhe entregou. Incrivelmente, o chapéu serviu. E, ainda que aquela aba larga não refrescasse, pelo menos proporcionava uma sombra abençoada. Guardou o lenço no bolso do casaco.
— Algo para os outros? — A mulher robusta passou os olhos pelos Aiel. — Que bela criança — murmurou para Aviendha, com um esgar de dentes que talvez fosse um sorriso. Para Rand disse, com doçura: — E o senhor? — A voz que saía daquele rosto era realmente dissonante, sobretudo quando assumia o tal tom aveludado. — Algo para protegê-lo desta terra desesperadora? — Virando Jeade’en para poder olhar os condutores dos carroções, Rand apenas balançou a cabeça. Com aquela shoufa enrolada no rosto, ele de fato parecia um Aiel.
— À noite, Keille — disse Kadere. — Abriremos os negócios à noite, em um lugar chamado Parada de Imre.
— Ah, abriremos, é? — Ela espiou a fileira de Shaido por um longo instante, depois encarou o grupo das Sábias por um instante ainda mais longo. Então se virou para o próprio carroção e falou por sobre o ombro, para o outro mascate: — Então por que é que você está atrasando esses bons senhores? Mexa-se, Kadere. Mexa-se.
Rand a encarou, balançando a cabeça outra vez.
Havia um menestrel ao fundo, perto do carroção dela. Mat piscou, pensando que o calor o estava afetando, mas o sujeito não desapareceu. Era um homem de meia-idade, com cabelos escuros, usando um manto coberto de retalhos. O homem observava a reunião, apreensivo, até que Keille o empurrou para dentro do carroção à frente. Kadere encarou o carroção branco da mulher com o rosto mais impassível do que o de um Aiel antes de seguir até o seu pisando firme. Sem dúvida, um bando esquisito.
— Você viu o menestrel? — perguntou Mat a Rand, que assentiu distraído, encarando a fileira de carroções como se nunca tivesse visto um. Rhuarc e Heirn já estavam retornando para o restante dos Jindo. A centena que rodeava Rand aguardava pacientemente, dividindo a atenção entre ele e qualquer coisa que pudesse esconder um ratinho que fosse. Os condutores começaram a pegar as rédeas, mas Rand não se mexeu. — Povo estranho esses mascates, você não acha, Rand? Mas imagino que seja preciso ser estranho para vir para o Deserto. Olhe só para nós. — O comentário fez Aviendha esboçar uma careta, mas Rand pareceu não ter ouvido. Mat queria que ele dissesse algo. Qualquer coisa. Aquele silêncio era enervante. — Você imaginava que escoltar um mascate fosse uma honra tão grande a ponto de fazer Rhuarc e Couladin brigarem? Entende alguma coisa desse ji’e’toh?
— Você é mesmo um imbecil — resmungou Aviendha. — Não teve nada a ver com o ji’e’toh. Couladin está tentando se comportar como um chefe de clã. Rhuarc não pode permitir isso até que… a não ser que ele vá para Rhuidean. Os Shaido roubariam ossos de um cachorro, roubariam os ossos e o cachorro, mas até eles merecem um chefe de verdade. E, graças a Rand al’Thor, temos que dar permissão a mil deles para assentarem as tendas em nossas terras.
— Os olhos dele — comentou Rand, sem desviar o olhar dos carroções. — Homem perigoso.
Mat franziu o cenho para ele.
— Os olhos de quem? De Couladin?
— De Kadere. Todo aquele suor, a cara branca. Mas os olhos dele não se alteraram. A gente sempre tem que prestar atenção nos olhos. Não na aparência.
— Claro, Rand. — Mat se remexeu na sela, meio erguendo as rédeas, como se fosse cavalgar. Talvez o silêncio não fosse tão ruim. — Temos que prestar atenção nos olhos.
Rand desviou a atenção para os topos dos montes e colinas mais próximos, girando a cabeça de um lado para outro.
— O risco é o tempo — murmurou. — O tempo prepara armadilhas. Preciso evitar as deles enquanto apronto a minha.
Não havia nada por lá que Mat pudesse distinguir além de alguns poucos arbustos espaçados e, vez ou outra, uma árvore mirrada. Aviendha franziu o cenho para os cumes, depois para Rand, ajustando o xale.
— Armadilhas? — perguntou Mat. Luz, permita que ele me dê uma resposta que não seja louca. — Quem é que está preparando armadilhas?
Por um instante, Rand o encarou como se não compreendesse a pergunta. Os carroções dos mascates começaram a avançar com uma escolta de Donzelas trotando ao lado, virando-se para seguir os Jindo que passavam a passos largos, seguidos pelos Shaido. Mais Donzelas dispararam na frente, para escoltá-los. Apenas os Aiel ao redor de Rand ficaram parados, embora o grupo das Sábias se movesse bem devagar, observando. Pelos gestos de Egwene, Mat achou que ela queria ir até eles e conferir como estavam.
— Não dá para ver, nem sentir — respondeu Rand, por fim. Ele inclinou-se um pouco em direção a Mat e sussurrou alto, como se estivesse fingindo. — Cavalgamos com o mal, agora, Mat. Tome cuidado.
O rapaz exibia aquele sorriso estranho outra vez, enquanto observava os carroções se arrastando.
— Acha que esse Kadere é mau?
— É um homem perigoso, Mat, os olhos sempre denunciam, mas quem é que pode dizer? Porém, que motivo eu tenho para me preocupar, com Moiraine e as Sábias olhando por mim? E não podemos nos esquecer de Lanfear. Será que algum homem já esteve sob olhares tão atentos? — De súbito, Rand se endireitou na sela. — Começou — murmurou ele. — Eu queria ter a sua sorte, Mat. Começou, e agora não dá para voltar atrás, não importa para que lado a espada caia. — Assentindo para si mesmo, ele arrancou com o cavalo sarapintado atrás de Rhuarc. Aviendha foi trotando ao lado, e os cem Jindo seguiram atrás.
Mat ficou bastante satisfeito em ir também. Melhor do que ser deixado ali, sem dúvida. O sol queimava no alto de um céu azul e cruel. Ainda havia um longo caminho pela frente até o pôr do sol. Tinha começado? O que ele queria dizer com isso? Tinha começado em Rhuidean. Ou melhor, em Campo de Emond, na Noite Invernal, um ano antes. “Cavalgando com o mal” e “não dá para voltar atrás”? E Lanfear? Rand estava caminhando no fio da navalha, agora. Sem sombra de dúvida. Tinha de haver um jeito de sair do Deserto antes que fosse tarde demais. De tempos em tempos, Mat examinava os carroções dos mascates. Antes que fosse tarde demais. Isso se já não fosse.