As sombras da alvorada ficavam mais curtas e pálidas enquanto Rand e Mat corriam pelo vale árido, escuro e quieto, deixando para trás Rhuidean, a cidade coberta de névoa. O ar seco prenunciava o calor, mas a brisa fraca parecia fria contra a pele de Rand, que estava sem casaco. Aquilo não duraria muito, em breve o dia escaldante se avultaria sobre eles. Os dois corriam o mais rápido que podiam, na esperança de ultrapassar o calor, mas Rand achava que não conseguiriam. O mais rápido que podiam não era lá muito veloz.
Mat mancava dolorosamente. Uma mancha escura se espalhava por metade do rosto, e o casaco pendia aberto, revelando a camisa desamarrada e colada ao peito por mais sangue seco. De vez em quando, o rapaz tocava o vergão grosso ao redor da garganta com cuidado. O ferimento já estava quase roxo. Grunhindo entre dentes, ele cambaleava bastante e se agarrava à estranha lança de cabo preto, apertando a cabeça. Mas não reclamava, o que era um mau sinal. Mat vivia reclamando dos menores desconfortos. Se estava em silêncio, significava que sentia dor de verdade.
Rand sentia como se algo se espalhasse por dentro da velha ferida meio cicatrizada na lateral do corpo, e os cortes no rosto e na cabeça ardiam. No entanto, enquanto avançava a um passo meio arrastado, inclinado para o lado que doía, quase não pensava nos próprios ferimentos. Estava muito consciente do sol que se erguia atrás de si e dos Aiel à espera na encosta nua da montanha à frente. Lá havia água e sombra, além de ajuda para Mat. O sol se erguia atrás deles e os Aiel estavam à frente. A aurora e os Aiel.
Aquele Que Vem Com a Aurora. Aquela Aes Sedai que ele vira, ou que sonhara que vira, antes de o povo chegar a Rhuidean — ela falara como se fizesse uma Previsão. Ele unirá todos vocês. Ele os unirá e destruirá. Palavras ditas como uma profecia. Destruí-los. Segundo a Profecia, ele causaria outra vez a Ruptura do Mundo. A ideia o deixava horrorizado. Talvez conseguisse escapar dessa parte, ao menos, mas a guerra, a morte e a destruição já manavam de seus passos. Tear fora o primeiro lugar no que parecia muito tempo onde ele não deixara um rastro de caos, homens morrendo e aldeias incendiadas.
Rand percebeu que desejava poder montar em Jeade’en e fugir o mais depressa que o garanhão conseguisse levá-lo. Não era a primeira vez. Mas não posso fugir, pensou. Tenho que fazer isso, porque não existe ninguém mais que possa. Ou eu faço, ou o Tenebroso vence. Uma barganha difícil, mas era a única que havia. Mas por que eu destruiria os Aiel? Como?
O último pensamento o fez sentir um calafrio. Era como se já aceitasse que o faria, que deveria fazer. E não queria fazer mal aos Aiel.
— Luz! — exclamou, em um tom ríspido. — Não quero destruir ninguém. — Sentiu outra vez como se a boca estivesse cheia de terra.
Mat o encarou em silêncio. Com um olhar cauteloso.
Eu ainda não enlouqueci, pensou Rand, taciturno.
Mais acima, na encosta, os Aiel despertavam nos três acampamentos. A verdade nua e crua era que Rand precisava deles. Fora por isso que começara a contemplar aquela ideia, quando descobriu que o Dragão Renascido e Aquele Que Vem Com a Aurora poderiam muito bem ser a mesma pessoa. Precisava de gente em quem pudesse confiar, gente que o seguisse por outra razão que não medo ou sede de poder. Gente que não pretendesse usá-lo para seus próprios fins. Fizera o necessário, e agora os usaria. Porque precisava. Ainda não estava louco — não achava que estivesse — mas muitos pensariam que sim, antes de aquilo terminar.
A luz do sol, forte e ofuscante, ultrapassou os dois antes que começassem a subir para Chaendaer. O calor os açoitava feito um porrete. Rand subia o mais depressa possível a encosta irregular, com seus aclives, declives e afloramentos rústicos. Sua garganta já se esquecera da última vez que bebera algo, e o sol secava a camisa tão rápido quanto o suor a molhava. Mat também não precisava de incentivo para correr. Havia água, lá em cima. Bair estava parada diante das tendas baixas da Sábia, segurando uma bolsa de água brilhante de condensação. Lambendo os lábios rachados, Rand tinha certeza de poder ver o brilho.
— Onde é que ele está? O que foi que você fez com ele?
O urro fez Rand parar na mesma hora. O homem de cabelos de fogo, Couladin, estava em cima de uma saliência de granito que se projetava da montanha. Havia outros do clã Shaido agrupados na base da saliência, todos encarando Mat e Rand. Alguns tinham os rostos velados.
— De quem você está falando? — gritou Rand, em resposta. Sua voz estava áspera de sede.
Os olhos de Couladin arregalaram-se, ultrajados.
— De Muradin, aguacento! Ele entrou dois dias antes de você, e mesmo assim você saiu primeiro. Ele não pode ter falhado se você sobreviveu! Você deve tê-lo matado!
Rand pensou ter ouvido um berro vindo das tendas da Sábia, mas, antes de sequer conseguir piscar, Couladin se espichou feito uma serpente e atirou uma lança para cima dele. Outras duas dispararam em seguida, vindas dos Aiel na base da saliência de granito.
Por instinto, Rand agarrou saidin e a espada forjada em fogo surgiu em suas mãos. Fez a lâmina rodopiar — Redemoinho na Montanha, um nome apropriado — fatiando em dois um par de cabos de lança. A lâmina negra de Mat apenas rodopiou e desviou a terceira.
— A prova! — uivou Couladin. — Eles adentraram Rhuidean armados! É proibido! Olhem como estão cobertos de sangue! Eles mataram Muradin! — Ao mesmo tempo em que falava, o homem arremessava outra lança. Dessa vez, foi uma entre dez outras.
Rand jogou-se para o lado, consciente de Mat saltando para o outro. Um instante antes de os dois tocarem o chão, as lanças se amontoaram onde Rand estivera parado e chocaram-se uma contra as outras. Ele rolou, levantou-se e viu as lanças cravadas no chão de pedras. Formaram um círculo perfeito que rodeava o ponto de onde ele saltara. Por um instante, até Couladin ficou atônito e paralisado.
— Parem! — gritou Bair, avançando correndo durante aquele segundo. A saia longa e pesada não atrapalhava seus movimentos, muito menos a idade. A Sábia foi descendo a encosta aos saltos, feito uma menina, apesar dos cabelos brancos. Tinha inclusive a fúria de uma menina. — A paz de Rhuidean, Couladin! — Sua voz aguda era como uma vara de ferro. — Já é a segunda vez que você tenta destruí-la. Mais uma, e será considerado fora da lei! Dou minha palavra! Você e qualquer um que erguer a mão! — Ela parou derrapando perto de Rand, encarando os Shaido com a bolsa d’água erguida feito um porrete, como se fosse acertá-los. — Quem duvidar de mim, que erga a arma! Quem fizer isto será privado de sombra, como dita o Acordo de Rhuidean, e terá negado abrigo, suporte e tenda. Seu próprio ramo vai caçá-lo feito uma besta selvagem.
Alguns dos Shaido logo desvelaram o rosto — alguns — mas Couladin não foi dissuadido.
— Eles estão armados, Bair! Entraram em Rhuidean armados! Isso é…!
— Silêncio! — Bair ergueu o punho para o homem. — Você se atreve a falar de armas? Você, que ia quebrar a Paz de Rhuidean e matar com a cara exposta? Eles não levaram arma nenhuma para lá, eu mesma garanto isso. — Ela deu as costas para o homem, em um movimento deliberado, mas o olhar que lançou a Mat e Rand não foi mais suave do que o dado a Couladin. A mulher fez uma careta para a estranha lança com lâmina de espada de Mat e murmurou: — Você encontrou isso em Rhuidean, rapaz?
— Eu ganhei, velha — rosnou Mat de volta, com a voz rouca. — Paguei por ela, e pretendo ficar com ela.
A Sábia fungou.
— Vocês dois parecem que acabaram de rolar em capim-navalha. O que…? Não, isso vocês me contam depois. — Ela encarou a espada de Rand, forjada no Poder, e estremeceu. — Livre-se disso. E mostre os sinais a eles, antes que o idiota do Couladin tente elevar os ânimos outra vez. Do jeito que ele é nervoso, o homem faria o clã inteiro quebrar as leis em um piscar de olhos. Rápido!
Rand a encarou por um instante, pasmo. Sinais? Então lembrou-se do que Rhuarc lhe mostrara, um dia, a marca de um homem que sobrevivera a Rhuidean. Deixou a espada desaparecer, desatou o laço do punho esquerdo da camisa e puxou a manga até o cotovelo.
Em volta do antebraço serpenteava uma imagem igual à do estandarte do Dragão, uma figura sinuosa de crina dourada, com escamas vermelhas e douradas. Já esperava por aquilo, sem dúvidas, mas ainda assim era um choque. A coisa parecia fazer parte de sua pele, como se a própria criatura inexistente tivesse se entranhado nele. O braço não lhe parecia diferente, mas as escamas cintilavam sob o sol como metal polido. Parecia que, se tocasse aquela crina dourada perto do pulso, sentiria cada fio de seus pelos.
Ergueu o braço assim que o descobriu, bem alto, para que Couladin e seu povo pudessem enxergar. Um burburinho se elevou entre os Shaido, e Couladin soltou um rosnado. O número de pessoas na saliência de granito aumentava, pois mais Shaido vinham correndo das tendas. Rhuarc permaneceu com Heirn e os Jindo um pouco mais acima, na encosta. Eles observavam os Shaido com desconfiança, e encaravam Rand com um ar de expectativa que o braço erguido não diminuiu. Lan estava parado a meio caminho entre os dois grupos, as mãos pousadas no cabo da espada, a expressão no rosto como a de uma tempestade prestes a cair.
Quando Rand começou a perceber que os Aiel queriam algo mais, Egwene e as outras três Sábias chegaram até ele, descendo a montanha. As mulheres Aiel pareciam desconcertadas por terem tido que correr, além de tão irritadas quanto Bair estivera. Amys cravou os olhos em Couladin, enquanto Melaine, com cabelos da cor do sol, encarou Rand com ar de reprovação. Seana parecia furiosa. Egwene, com um lenço amarrado na cabeça e caído ao redor dos ombros, encarava Mat e ele, meio consternada, meio como se tivesse pensado que nunca mais os veria.
— Homem idiota — resmungou Bair. — Todos os sinais.
Ela atirou a bolsa d’água para Mat, agarrou o braço direito de Rand e puxou a manga, expondo um desenho espelhado da criatura em seu braço esquerdo. A mulher segurou o fôlego, depois o soltou em um longo suspiro. Parecia equilibrada no fio da navalha entre o alívio e a apreensão. Não havia dúvida: ela esperava ver a segunda marca, mas ficara com medo. Amys e as outras duas Sábias ecoaram o som que ela fez quase de forma idêntica. Era estranho ver um Aiel com medo.
Rand quase riu. Não que estivesse achando a situação engraçada. “Por duas e mais duas vezes ele será marcado.” Era o que diziam as Profecias do Dragão. Uma garça marcada em cada palma, e agora isso. Uma das criaturas peculiares — Dragões, como chamava a Profecia — deveria representar “a memória perdida”. Rhuidean sem dúvida fornecera isso, a história perdida das origens Aiel. A outra era para “cobrar o preço a ser pago”. Quando será que eu terei que pagar?, perguntou-se. E quantos terão que pagar comigo? Sempre havia outros, mesmo quando ele tentava pagar sozinho.
Apreensiva ou não, Bair não parou antes de erguer o outro braço dele acima de sua cabeça e proclamar em voz alta:
— Contemplem o que nunca antes foi visto. Um Car’a’carn foi escolhido, um chefe dos chefes. Nascido de uma Donzela, ele veio de Rhuidean com a aurora, conforme a profecia, para unir os Aiel! O cumprimento da profecia começou!
A reação dos outros Aiel não foi nada do que Rand antevira. Couladin o encarou de cima, ainda mais cheio de ódio do que antes, se é que era possível, depois saltou da saliência, subiu a encosta a passos pesados e desapareceu por entre as tendas Shaido. Os próprios Shaido começaram a se dispersar, encarando Rand com semblantes indecifráveis antes de retornar às tendas. Heirn e os guerreiros do ramo Jindo fizeram o mesmo, sem hesitar. Dentro de instantes, restava apenas Rhuarc, com o olhar perturbado. Lan foi até o chefe do clã. Pela expressão, o Guardião parecia não dar muita importância a ele. Rand não sabia muito bem o que estava esperando, mas sem dúvida era algo diferente daquilo.
— Que me queime! — resmungou Mat.
Ele pareceu enfim notar que estava com a bolsa d’água nas mãos. Arrancando a tampa, ergueu a bolsa de couro, deixando verter quase tanta água no rosto quanto para dentro da boca. Quando enfim baixou-a de volta, olhou outra vez as marcas nos braços de Rand e balançou a cabeça, repetindo “que me queime” enquanto empurrava a bolsa cheia d’água para o amigo.
Rand encarou os Aiel, consternado, mas ficou mais do que feliz em beber. Os primeiros goles fizeram a garganta doer, de tão seca que estava.
— O que aconteceu com vocês? — inquiriu Egwene. — Muradin atacou os dois?
— É proibido falar sobre o que acontece em Rhuidean — retorquiu Bair, em um tom ríspido.
— Não foi Muradin — respondeu Rand. — Onde está Moiraine? Achei que ela fosse ser a primeira a vir nos encontrar. — Ele esfregou o rosto. Flocos negros de sangue seco se soltaram em sua mão. — Pela primeira vez, não vou me importar se ela me Curar sem pedir permissão.
— Nem eu — concordou Mat, com a voz rouca. Ele cambaleou, se apoiou na lança e pressionou a testa com a base da palma. — Estou tonto.
Egwene fez uma careta.
— Acho que ela ainda está em Rhuidean. Mas, se vocês finalmente saíram, talvez ela chegue logo. Moiraine entrou logo depois de vocês. Aviendha também. Todos ficaram bastante tempo fora.
— Moiraine foi para Rhuidean? — perguntou Rand, incrédulo. — E Aviendha? Por que…? — De repente ele registrou o restante do que Egwene dissera. — Como assim, “bastante tempo”?
— Hoje é o sétimo dia — respondeu a jovem. — O sétimo dia desde que vocês desceram o vale.
Ele deixou a bolsa d’água cair. Seana a agarrou antes que mais do que um pouco do conteúdo, tão precioso no Deserto, escorresse pela encosta de pedra. Rand mal notou. Sete dias. Qualquer coisa poderia ter acontecido em sete dias. Eles podem estar se aproximando, podem ter descoberto o que planejo. Preciso seguir em frente. E logo. Preciso continuar na dianteira. Não cheguei tão longe para falhar.
Todos o encaravam, até Mat e Rhuarc, os rostos repletos de preocupação. E cautela. Não era de se admirar. Quem poderia dizer o que ele faria, ou se ainda estava são? Apenas a cara fechada de Lan não se alterou.
— Eu disse que era Aviendha, Rand. Nua como veio ao mundo. — A voz de Mat tinha um tom rouco e dolorido, e as pernas não pareciam muito firmes.
— Em quanto tempo será que Moiraine volta? — perguntou Rand.
Se a Aes Sedai saíra na mesma hora, deveria retornar em breve.
— Se ela não voltar até o décimo dia — respondeu Bair — não volta mais. Ninguém nunca voltou depois de dez dias.
Mais três dias, talvez. Mais três dias, e ele já perdera sete. Deixe que venham, agora. Não vou fracassar! Mal conteve o rosnado.
— Vocês conseguem canalizar. Uma de vocês, pelo menos. Vi como lidaram com Couladin. Podem Curar Mat?
Amys e Melaine trocaram olhares que ele só pôde classificar como pesarosos.
— Nós não seguimos esse caminho — respondeu Amys, pesarosamente. — Há Sábias que poderiam fazer o que você está pedindo, de certo modo, mas não estamos entre elas.
— Como assim? — perguntou ele, em um tom irritado. — Vocês canalizam como Aes Sedai. Por que não podem Curá-lo? Nem queriam que ele fosse para Rhuidean, para começo de conversa. Acham que podem deixá-lo morrer por causa disso?
— Eu vou sobreviver — argumentou Mat, mas seus olhos estavam contraídos de dor.
Egwene pôs a mão no braço de Rand.
— Nem todas as Aes Sedai conseguem Curar muito bem — explicou, com uma voz consoladora. — As melhores Curandeiras são todas da Ajah Amarela. Sheriam, a Mestra das Noviças, não consegue Curar nada mais sério que um hematoma ou um cortezinho. Não existem duas mulheres com os mesmos Talentos e habilidades.
O tom dela o irritou. Rand não era uma criancinha impertinente, para ser acalmado. Franziu o cenho para as Sábias. Se não podiam ou não queriam Curar, não importava. Mat e ele teriam de esperar Moiraine. Isso se a mulher já não tivesse sido morta por aquela bolha de mal, aquelas criaturas das cinzas. Àquela altura, já devia ter se dissipado, como acontecera com a de Tear. Aquelas coisas não a derrubariam. Moiraine poderia canalizar e passar. Ela sabe o que está fazendo, não precisa ficar descobrindo tudo aos poucos, feito eu. Mas então por que ainda não retornara? Por que fora, para começo de conversa, e por que ele não a vira? Que pergunta idiota. Centenas de pessoas podiam ter estado em Rhuidean sem serem vistas. Teria muitas perguntas e nenhuma resposta até ela retornar, suspeitava Rand. Se é que teria respostas depois.
— Existem ervas e pomadas — disse Seana. — Saia do sol, e vamos cuidar de seus ferimentos.
— Sair do sol — resmungou Rand. — Sim. — Ele estava sendo malcriado, mas não se importava. Por que Moiraine havia entrado em Rhuidean? Não confiava que ela pararia de empurrá-lo na direção que pensava ser a melhor, e que o Tenebroso o carregasse se tentasse discutir. Se ela estava na velha cidade, será que poderia ter afetado as visões dele? Tê-las alterado de alguma forma? Se a mulher sequer suspeitasse do que ele planejava…
Começou a caminhar em direção às tendas dos Jindo — era improvável que o pessoal de Couladin lhe oferecesse um canto para descansar — mas Amys o direcionou para a planície mais acima, onde ficavam as tendas das Sábias.
— Talvez eles ainda não se sintam muito confortáveis em ter você por perto — explicou.
Rhuarc, que se aproximava, assentiu em concordância.
Melaine olhou para Lan.
— Isso não é da sua conta, Aan’allein. Você e Rhuarc levem Matrim e…
— Não — interrompeu Rand. — Quero eles comigo. — Em parte porque desejava respostas do chefe do clã, e em parte por pura teimosia. As Sábias queriam mantê-lo em rédea curta, assim como Moiraine. Não estava disposto a tolerar aquilo. As mulheres se entreolharam, depois assentiram, como se aquiescessem a um pedido. Se pensavam que ele seria um bom menino porque ganhara um doce, estavam enganadas. — Pensei que você estaria com Moiraine — disse a Lan, ignorando as Sábias e seus acenos de cabeça.
Um lampejo de vergonha tomou a face do Guardião.
— As Sábias conseguiram esconder a partida dela até quase o pôr do sol — disse, rígido. — Então… me convenceram de que não adiantaria ir atrás. Disseram que, mesmo que eu fosse, não conseguiria encontrá-la até ela estar de volta. E que Moiraine já não precisaria de mim. Não tenho mais muita certeza se deveria ter dado ouvidos.
— Dado ouvidos! — Melaine bufou com desdém. Os braceletes de ouro e marfim chocalhavam enquanto ela ajustava o xale, irritada. — Não dá para pensar que um homem vá dizer algo sensato. Você muito provavelmente teria morrido, e acabaria por matá-la também.
— Melaine e eu tivemos de segurá-lo por metade da noite, até que ele escutasse — comentou Amys. Ela mantinha um sorrisinho ao mesmo tempo bem-humorado e azedo.
O rosto de Lan poderia ter sido talhado em nuvens carregadas. Não era de se admirar, já que as Sábias haviam usado o Poder nele. O que Moiraine estava fazendo lá?
— Rhuarc — começou Rand — como é que vou poder unir os Aiel? Eles não querem nem olhar na minha cara. — Ergueu os antebraços descobertos por um instante. As escamas dos Dragões cintilaram à luz forte do sol. — Isso aqui confirma que sou Aquele Que Vem Com a Aurora, mas todos praticamente evaporaram assim que mostrei as marcas.
— Uma coisa é saber que a profecia um dia será cumprida — respondeu o chefe de clã, medindo as palavras — outra é ver isso acontecendo bem diante dos próprios olhos. Dizem que você vai reunir os clãs em um só povo outra vez, como era há muito tempo, mas lutamos uns contra os outros há tantos anos quanto lutamos contra o restante do mundo. E, para alguns de nós, há ainda mais.
Ele os unirá e os destruirá. Rhuarc também devia ter ouvido isso. Assim como os outros chefes dos clãs e as Sábias, se também haviam adentrado aquela floresta de colunas de vidro reluzente. Isso se Moiraine não tivesse arrumado uma visão especial para ele.
— Todo mundo vê as mesmas coisas dentro daquelas colunas, Rhuarc?
— Não! — interrompeu Melaine, em um tom brusco, os olhos feito aço verde. — Fique quieto, ou mande Aan’allein e Matrim embora. Você também terá que ir, Egwene.
— Não é permitido — começou a explicar Amys, em um tom levemente mais suave — falar sobre o que acontece dentro de Rhuidean, a não ser com os que já estiveram lá. — Só um tantinho mais suave, talvez. — Mesmo assim, poucos falam a respeito, e muito raramente.
— Pretendo mudar o que é permitido e o que não é — retrucou Rand, muito calmo. — Acostumem-se. — Viu Egwene resmungando sobre ele precisar levar uns tapas na orelha e abriu um sorriso para a amiga. — Egwene pode ficar também, já que pediu com tanta delicadeza.
A jovem mostrou a língua para ele, depois enrubesceu ao perceber o que fizera.
— Mudança — comentou Rhuarc. — Você sabe que ele traz mudança, Amys. Não saber o que muda, nem como, é o que nos deixa feito crianças sozinhas no escuro. Já que tem de ser, que comece agora. Nunca conversei com dois chefes de clã que tenham visto a coisa exatamente com os mesmos olhos, Rand, ou que tenham visto exatamente as mesmas coisas. Até mesmo a partilha da água e a reunião onde aconteceu o Acordo de Rhuidean. Se o mesmo vale para as Sábias, já não sei, mas suspeito que sim. Acho que é uma questão de linhagens de sangue. Acredito que eu tenha visto pelos olhos de meus ancestrais, e você, pelos dos seus.
Amys e as outras Sábias o encararam em silêncio, furiosas e emburradas. Mat e Egwene tinham a expressão igualmente confusa. Apenas Lan parecia sequer escutar. Seus olhos estavam perdidos em pensamentos, decerto cheios de preocupação com Moiraine.
O próprio Rand se sentia um pouco estranho. Ver pelos olhos de seus ancestrais. Ele já sabia fazia algum tempo que Tam al’Thor não era seu verdadeiro pai, que ele fora encontrado recém-nascido nas encostas do Monte do Dragão depois da última grande batalha da Guerra dos Aiel. Um recém-nascido ao lado da mãe morta, uma Donzela da Lança. Alegara ter sangue Aiel para ganhar acesso a Rhuidean, mas apenas agora o fato lhe saltava aos olhos. Seus ancestrais. Aiel.
— Então você também viu Rhuidean começar a ser construída — disse. — E as duas Aes Sedai. Você… ouviu o que uma delas disse. — Ele os destruirá.
— Ouvi. — Rhuarc tinha um semblante resignado, como um homem que acabava de saber que precisaria amputar a perna. — Eu sei.
Rand mudou de assunto.
— O que foi “a partilha da água”?
As sobrancelhas do chefe de clã se ergueram, surpresas.
— Você não reconheceu? Bem, acho que não tinha mesmo como reconhecer. Você não cresceu ouvindo as histórias. Segundo as mais antigas, desde o dia em que a Ruptura do Mundo começou até o dia em que adentramos a Terra da Trindade, apenas um povo não nos atacou. Um povo nos concedeu água de graça, sempre que precisamos. Levamos muito tempo para descobrir quem eram. Agora, isso acabou. O compromisso de paz foi destruído, os assassinos da árvore cuspiram na nossa cara.
— Cairhien — disse Rand. — Está falando dos cairhienos, de Avendoraldera, e de Laman derrubando a Árvore.
— Laman teve a morte como punição — disse Rhuarc, em um tom inexpressivo. — Os que quebraram os juramentos morreram. — Ele olhou de esguelha para Rand. — Alguns, como Couladin, tomam isso como prova de que não podemos confiar em ninguém que não seja Aiel. Isso explica, em parte, por que ele odeia você. Em parte. Ele toma seu rosto e seu sangue por mentiras. Ou afirma que toma.
Rand balançou a cabeça. Moiraine às vezes falava sobre a complexidade da Renda de uma Era, o Padrão de uma Era urdido pela Roda do Tempo com os fios das vidas humanas. Se os ancestrais dos cairhienos não tivessem cedido água para os Aiel, trezentos anos antes, Cairhien nunca teria conquistado o direito de usar o Caminho da Seda para cruzar o Deserto, com uma muda de Avendesora para selar o acordo. Sem acordo, o Rei Laman não teria tido a Árvore para cortar. A Guerra dos Aiel não teria acontecido, e ele não teria nascido na encosta do Monte do Dragão nem sido levado embora e criado em Dois Rios. Quantos outros pontos como esse haviam acontecido, onde uma simples decisão para um lado ou outro afetou a trama do Padrão por milhares de anos? Mil vezes mil diminutos pontos de ramificação, vezes mil outra vez, tudo contorcendo o Padrão em um desenho diferente. Ele mesmo era um ponto de ramificação, talvez Mat e Perrin também. O que faziam ou deixavam de fazer reverberava pelos anos, pelas Eras.
Ele encarou Mat, que mancava ao subir a encosta, apoiado na lança, de cabeça baixa e olhos apertados de dor. O Criador não devia estar pensando direito quando pôs o futuro nos ombros de três garotos fazendeiros. Não posso deixá-lo cair. Preciso carregar o fardo, custe o que custar.
Ao chegarem às tendas baixas e sem paredes das Sábias, as mulheres se curvaram para entrar, murmurando sobre água e sombra. Elas praticamente puxaram Mat para dentro. Como prova do quanto sua cabeça e garganta doíam, o rapaz não só obedeceu como também o fez em silêncio.
Rand começou a segui-lo, mas Lan pousou a mão em seu ombro.
— Você a viu lá dentro? — perguntou o Guardião.
— Não, Lan. Sinto muito, mas não vi. Moiraine vai sair de lá sã e salva, se os outros saíram.
Lan grunhiu e recolheu a mão.
— Cuidado com Couladin, Rand. Conheço o tipo. A ambição o corrói por dentro. Ele sacrificaria o mundo para conquistá-lo.
— Aan’allein diz a verdade — comentou Rhuarc. — Os Dragões nos seus braços não valerão de nada se você morrer antes que os chefes dos clãs saibam. Vou me certificar de que alguns Jindo de Heirn estejam sempre perto de você até chegarmos a Pedras Frias. Mesmo lá, Couladin deve tentar arrumar confusão. E os Shaido, pelo menos, vão segui-lo. Talvez outros façam o mesmo. A Profecia de Rhuidean diz que você cresceria com gente que não é do sangue, mas Couladin não deve ser o único a enxergá-lo como um aguacento.
— Vou tentar me cuidar — retrucou Rand, em um tom seco.
Nas histórias, quando alguém cumpria uma profecia, todos gritavam “Vejam só!” e pronto, só restava lidar com os vilões. Na vida real parecia que não funcionava do mesmo jeito.
Quando adentraram a tenda, Mat já estava sentado em uma almofada vermelha com borlas douradas, sem casaco nem camisa. Uma mulher com robe branco de capuz já terminara de lavar o sangue de seu rosto e começava a fazer o mesmo no peito. Amys tinha um pilão de pedra entre os joelhos e misturava algum unguento enquanto Bair e Seana observavam de perto as ervas que ferviam em um bule de água quente.
Melaine fez uma careta para Lan e Rhuarc, depois fixou os olhos verdes e frios em Rand.
— Tire a roupa da cintura para cima — disse, áspera. — Os cortes na sua cabeça não parecem tão ruins, mas deixe-me ver o que está lhe deixando corcunda. — Ela golpeou um pequeno gongo de latão, e outra mulher de robe branco entrou pelos fundos da tenda, trazendo uma bacia de prata fumegante nas mãos e roupas por cima do braço.
Rand escolheu uma almofada e sentou-se, com a coluna ereta.
— Não é nada com que se preocupar — assegurou para a Sábia.
A segunda mulher de branco ajoelhou-se graciosamente a seu lado e, resistindo aos esforços do rapaz em aceitar o pedaço de pano úmido que ela torcera na bacia, começou a lavar o rosto dele com delicadeza. Rand se perguntou quem seria a mulher. Parecia Aiel, mas decerto não agia como tal. Os olhos cinza revelavam uma submissão determinada.
— É uma ferida antiga — disse Egwene à Sábia de cabelos dourados. — Moiraine nunca conseguiu Curá-la direito.
O olhar que a jovem lançou a Rand dizia que teria sido educado da parte dele contar isso. Mas, pelos olhares que as Sábias trocaram, ele julgou que a amiga já falara mais do que o suficiente. Uma ferida que uma Aes Sedai não fora capaz de Curar. Aquilo era um enigma para elas. Moiraine parecia saber mais sobre Rand do que ele próprio, e o rapaz tinha dificuldade de lidar com a Azul. Talvez fosse mais fácil com as Sábias, que não sabiam tanto sobre ele.
Mat estremeceu assim que Amys começou a esfregar o unguento nos cortes em seu peito. Se a sensação fosse tão ruim quanto o cheiro, Rand imaginou que o amigo tinha motivo para se encolher. Bair empurrou uma caneca de prata para o rapaz.
— Beba, meu jovem. Se alguma coisa pode ajudar com as dores de cabeça, são raízes de tomísia e de folha-de-prata.
Ele não hesitou antes de engolir tudo de uma vez. Em seguida, se arrepiou e fez careta.
— Tem gosto de sola de bota. — Mas fez uma mesura para a mulher, ainda sentado, com formalidade suficiente para um taireno, à exceção do torso nu e de ele ter aberto um sorriso de repente. — Agradeço, Sábia. E não vou perguntar se a senhora acrescentou alguma coisa para dar este… sabor… memorável. — O riso baixinho de Bair e Seana poderia ter sido porque tinham ou não acrescentado, mas, como sempre, Mat arranjara um jeito de amaciar as mulheres. Até Melaine deu um breve sorriso.
— Rhuarc — disse Rand — se Couladin está pensando em tornar as coisas mais difíceis, preciso me antecipar a ele. Como posso contar aos outros chefes de clãs? Sobre mim. Sobre isso. — Girou os braços envoltos pelos Dragões.
A mulher de robe branco, a seu lado, agora limpando o talho comprido em sua cabeça, evitava encarar as marcas.
— Não existe um protocolo — respondeu Rhuarc. — Como poderia existir um protocolo para algo que só vai acontecer uma vez? Quando é preciso haver reunião entre os chefes dos clãs, existem locais como os fortes da Paz de Rhuidean. O mais perto de Pedras Frias, de Rhuidean, é Alcair Dal. Você pode mostrar as provas para os chefes dos clãs e dos ramos lá.
— Al’cair Dal? — perguntou Mat, com um sotaque distinto. — A Bacia de Ouro?
Rhuarc assentiu.
— Um cânion redondo, mas não há nada de dourado por lá. Em uma das pontas tem uma saliência, e um homem de pé ali pode ser ouvido por qualquer um no cânion sem precisar erguer a voz.
Rand franziu o cenho para os Dragões em seus antebraços. Não fora o único a ser marcado de alguma forma em Rhuidean. Mat parara de volta e meia proferir algumas palavras na Língua Antiga sem saber o que estava dizendo. Desde Rhuidean, entendia o idioma, embora parecesse não perceber. Egwene observava Mat com uma expressão pensativa. Passara tempo demais com Aes Sedai.
— Rhuarc, pode enviar mensageiros aos chefes dos clãs? — perguntou Rand. — Quanto tempo leva para convocar todos para Alcair Dal? Como podemos garantir que eles irão?
— Mensageiros levarão semanas, e mais outras semanas até que todos se reúnam. — Rhuarc fez um gesto, indicando as quatro Sábias. — Elas podem falar com todos os chefes de clã em sonhos em uma só noite, com todos os chefes dos ramos. E todas as Sábias, para garantir que nenhum homem tome o sonho como apenas um sonho.
— Aprecio sua confiança de que podemos mover montanhas, sombra do meu coração — interveio Amys, com ironia, acomodando-se ao lado de Rand com o unguento — mas a coisa não é bem assim. Levaria muitas noites para fazer o que você está sugerindo, com pouco tempo de descanso no meio.
Rand tomou a mão da mulher assim que ela começou a esfregar a mistura de cheiro pungente em seu rosto.
— Pode fazer isso?
— Está tão ansioso assim para nos destruir? — inquiriu a Sábia, depois mordeu o lábio, irritada. A mulher de capuz branco do outro lado de Rand levou um susto.
Melaine bateu palmas duas vezes.
— Vão embora — disse com rispidez, e as mulheres de branco saíram, fazendo mesuras e levando as bacias e roupas.
— Você me irrita como um amaranto espinhoso arranhando a pele — disse Amys a Rand, em um tom amargo. — Não importa o que seja dito a elas, essas mulheres vão começar a falar sobre o que não deveriam saber.
Ela soltou a mão e começou a esfregar o unguento com mais energia do que deveria ser necessário. A ardência era pior que o cheiro.
— Não pretendia irritá-la — respondeu Rand — mas não temos tempo. Os Abandonados estão à solta, Amys, e se descobrirem onde eu estou ou o que estou planejando… — As mulheres Aiel não pareceram surpresas. Será que já sabiam? — Nove ainda vivem. São muitos, e os que não querem me matar acham que podem me usar. Não tenho tempo. Se eu soubesse como trazer todos os chefes dos clãs para cá agora mesmo e fazê-los me aceitarem, faria.
— Qual é o plano? — A voz de Amys soou tão inflexível quanto o rosto.
— Vai pedir… mandar… os chefes seguirem para Alcair Dal?
A mulher o encarou por um longo instante. Quando enfim assentiu, foi de má vontade.
Má vontade ou não, um pouco da tensão em Rand se dissipou. Não havia como recuperar sete dias perdidos, mas talvez conseguisse evitar perder ainda mais. Porém, Moiraine, ainda em Rhuidean com Aviendha, o prendia àquele lugar. Não podia simplesmente abandoná-la.
— A senhora conheceu a minha mãe — disse.
Egwene inclinou-se para a frente, tão atenta quanto ele, e Mat balançou a cabeça.
Amys parou a mão que percorria o rosto dele.
— Conheci.
— Me fale dela. Por favor.
A Sábia voltou a atenção ao corte acima da orelha de Rand. Se uma carranca tivesse o poder de Curar, a pomada seria desnecessária. Enfim, disse:
— A história de Shaiel, como conheço, começa quando eu ainda era Far Dareis Mai, mais de um ano antes de eu abrir mão da lança. Havia muitas de nós juntas, quase chegando à Muralha do Dragão. Um dia vimos uma mulher, uma jovem aguacenta de cabelos loiros, toda vestida em sedas, levando cavalos de carga e cavalgando uma linda égua. Se fosse um homem, teríamos matado, é claro, mas ela não levava arma além de uma faca comum no cinto. Algumas quiseram botá-la para correr para a Muralha do Dragão, nua… — Egwene piscou, parecia continuamente surpresa com a dureza dos Aiel. Amys prosseguiu, sem pausar: — … mas a mulher parecia muito determinada na busca de algo. Curiosas, nós a seguimos, dia após dia, sem que ela visse. Os cavalos morreram, a comida acabou, a água também, mas ela não retrocedeu. Seguiu a pé, cambaleante, até que caiu e não conseguiu mais se levantar. Decidimos dar água a ela, depois perguntamos sua história. A mulher estava quase morrendo e levou um dia inteiro para conseguir falar.
— O nome dela era Shaiel? — perguntou Rand quando a mulher fez uma pausa. — De onde ela vinha? Por que veio para cá?
— Shaiel — respondeu Bair — foi o nome que ela adotou. Nunca nos deu outro nome durante todo o tempo em que a conheci. Na Língua Antiga, significa Mulher Que é Dedicada. — Mat assentiu, parecendo não perceber o que acabara de fazer. Lan o observou, pensativo, por sobre uma caneca de prata cheia d’água. — Havia uma amargura em Shaiel, no início.
Agachada, apoiando-se nos calcanhares ao lado de Rand, Amys assentiu.
— Ela falava de uma criança abandonada, um filho que amava. Um marido que não amava. Mas não dizia onde. Acho que Shaiel nunca se perdoou por ter deixado a criança. Contava pouco além do necessário. Era por nós que andava procurando, pelas Donzelas da Lança. Uma Aes Sedai de nome Gitara Moroso, que tinha o dom da Previsão, dissera a ela que um desastre se abateria sobre suas terras e seu povo, talvez sobre o mundo, se ela não fosse viver com as Donzelas da Lança sem contar a ninguém aonde estava indo. Shaiel deveria se tornar uma Donzela e não poderia retornar à própria terra até que as Donzelas fossem para Tar Valon.
A Sábia balançou a cabeça, pensativa.
— É importante que você entenda como isso soava, na época. Donzelas indo para Tar Valon? Nenhum Aiel cruzara a Muralha do Dragão desde o dia em que chegamos à Terra da Trindade. Levaria mais quatro anos até que o crime de Laman nos trouxesse de volta às terras aguacentas. E sem dúvida ninguém que não fosse Aiel jamais se tornara uma Donzela da Lança. Algumas de nós pensamos que ela tinha enlouquecido com a insolação. Mas Shaiel era teimosa, e de alguma forma acabamos concordando em deixá-la tentar.
Gitara Moroso. Uma Aes Sedai com o dom da Previsão. Já ouvira aquele nome em algum lugar, mas onde? E tinha um irmão. Um meio-irmão. Quando pequeno, sempre se perguntava como seria ter um irmão ou irmã. Quem, e onde? Mas Amys prosseguiu.
— Quase toda garota sonha em se tornar Donzela e aprende a usar arco e lança pelo menos de forma rudimentar e a lutar com mãos e pés. Mesmo assim, as que dão o passo final e desposam a lança descobrem que não sabem nada. Foi ainda mais difícil para Shaiel. Ela sabia lidar bem com o arco, mas nunca correra mais do que uma milha nem vivera do que encontrasse no caminho. Uma garota de dez anos conseguia derrotá-la, e ela sequer sabia quais plantas indicavam a presença de água. Ainda assim, Shaiel perseverou. Em um ano fez os votos à lança, tornou-se uma Donzela e foi adotada pelo ramo Chumai dos Taardad.
E em algum momento, Shaiel partira para Tar Valon com as Donzelas, para morrer nas encostas do Monte do Dragão. Era uma meia resposta, e deixava novas perguntas. Se ao menos ele tivesse visto o rosto da mãe…
— Você parece um pouco com ela — comentou Seana, como se lesse os pensamentos dele. Ela se sentara de pernas cruzadas e bebia de uma pequena caneca de vinho. — E menos com Janduin.
— Janduin? Meu pai?
— Isso — respondeu Seana. — Era o chefe do clã dos Taardad, na época, o mais jovem de que se tem lembrança. Mas tinha um jeito especial, um poder. As pessoas o escutavam e seguiam, até os que não eram do clã. Ele acabou com a rixa de sangue de duzentos anos entre os Taardad e os Nakai e fez alianças com eles e com os Reyn, com quem tinha quase uma rixa de sangue também. Quase conseguiu acabar com a desavença entre os Shaarad e os Goshien, e poderia ter levado Laman a não cortar a árvore. Por mais jovem que fosse, foi ele quem levou os Taardad, os Nakai, os Reyn e os Shaarad a tentar fazer Laman pagar sua dívida de sangue.
Foi. Então ele também tinha morrido. O rosto de Egwene estava cheio de compaixão. Rand ignorou, não queria compaixão. Como poderia sentir a perda de gente que sequer conhecera? Mas sentia.
— Como foi que Janduin morreu?
As Sábias trocaram olhares hesitantes. Por fim, Amys disse:
— Foi no início do terceiro ano da busca por Laman, quando Shaiel descobriu que estava grávida. Pela lei, ela deveria ter retornado à Terra da Trindade. Uma Donzela é proibida de carregar a lança quando carrega uma criança. Mas Janduin não conseguia proibi-la de nada. Se ela pedisse a lua em um colar, ele tentaria dar a ela. Então ela ficou e, na última luta, antes de Tar Valon, se perdeu, e a criança foi junto. Janduin não conseguiu se perdoar por não tê-la obrigado a obedecer a lei.
— Ele abriu mão de sua posição como chefe de clã — continuou Bair. — Ninguém nunca fizera tal coisa. Disseram que ele não podia fazer aquilo, mas Janduin simplesmente foi embora. Seguiu para o norte com os jovens, para caçar Trollocs e Myrddraal na Praga. É uma coisa que os homens mais desvairados fazem, assim como as Donzelas com mais coragem que juízo. Os que retornaram disseram que ele foi morto por um homem. Disseram que Janduin alegou que o homem parecia Shaiel e não ergueu a lança quando o sujeito partiu para cima dele.
Mortos, então. Ambos mortos. Ele nunca deixaria de amar Tam, nunca deixaria de pensar nele como pai, mas queria poder ter visto Janduin e Shaiel pelo menos uma vez.
Egwene tentou confortá-lo, naturalmente, como as mulheres sempre faziam. Não adiantaria tentar fazê-la compreender que ele perdera algo que nunca tivera. Como lembrança dos pais, tinha a risada baixinha de Tam al’Thor e a fraca memória das mãos suaves de Kari. Era tudo o que um homem poderia querer ou precisar. Mas sua amiga parecia decepcionada, até um pouco chateada com ele, e as Sábias de uma forma ou outra compartilhavam do sentimento, pelo que deixava transparecer a careta de desaprovação de Bair e a fungada e remexida ostentosa no xale de Melaine. As mulheres nunca entendiam. Rhuarc, Lan e Mat, sim. Eles o deixaram sozinho, como queria.
Por alguma razão, Rand estava sem apetite quando Melaine trouxe comida, então foi se deitar na beirada da tenda, com uma das almofadas sob o cotovelo, de onde podia observar a encosta e a cidade enevoada. O sol inundava o vale e as montanhas vizinhas, incendiando as sombras. O ar que remoinhava para dentro da tenda parecia vir de um forno.
Mat se aproximou depois de um tempo, já com uma camisa limpa. Sentou-se ao lado de Rand sem dizer palavra, perscrutando o vale abaixo, a estranha lança apoiada no joelho. Vez ou outra passava o dedo pela inscrição cursiva entalhada no cabo preto.
— Como está a cabeça? — perguntou Rand, e Mat deu um salto.
— É… não está doendo mais. — Ele tirou os dedos do entalhe de repente e entrelaçou as mãos no colo. — Não muito, de todo modo. Seja lá o que elas tenham feito, funcionou.
Ele fez silêncio outra vez, e Rand o deixou quieto. Também não queria falar. Quase podia sentir o tempo passando, grãos de areia em uma ampulheta caindo um por um, de tão lentamente. Mas tudo também parecia tremular, a areia prestes a explodir em uma torrente. Bobagem. Estava apenas sendo afetado pela névoa quente que subia da rocha nua da montanha. Os chefes de clã não conseguiriam chegar a Alcair Dal mais cedo, mesmo se Moiraine surgisse diante dele naquele instante. De todo modo, aqueles homens eram apenas uma parte do plano, talvez a menos importante. Pouco depois, percebeu Lan agachado em cima da mesma saliência de granito que Couladin usara, sem dar atenção ao sol. O Guardião também estava vigiando o vale. Outro homem que não queria falar.
Rand também recusou a refeição do meio-dia, embora Egwene e as Sábias se revezassem para tentar fazê-lo comer. Pareciam aceitar a recusa com bastante calma, mas, quando ele sugeriu retornar a Rhuidean para procurar Moiraine — e também Aviendha — Melaine explodiu.
— Seu idiota! Homem nenhum pode ir duas vezes para Rhuidean. Nem você retornaria vivo! Ah, morra de fome, se quiser!
Ela arremessou na cabeça dele metade de um pedaço redondo de pão. Mat o pegou no ar e começou a comer com muita calma.
— Por que você me quer vivo? — perguntou Rand a ela. — Sabe o que aquela Aes Sedai disse diante de Rhuidean. Vou destruir vocês. Por que não estão tramando com Couladin para me matar?
Mat engasgou, e Egwene plantou as mãos na cintura, pronta para passar um sermão, mas Rand manteve a atenção em Melaine. Em vez de responder, a Sábia cravou os olhos nele e saiu da tenda.
Foi Bair quem falou.
— Todo mundo pensa que conhece a Profecia de Rhuidean, mas o que o povo sabe é o que as Sábias e os chefes de clã vêm contando por gerações. Não são mentiras, mas não é a verdade completa. A verdade pode destruir até o homem mais forte.
— Qual é a verdade completa? — insistiu Rand.
Ela olhou para Mat, depois disse:
— Neste caso, a verdade completa, a verdade que apenas as Sábias e os chefes dos clãs conheciam, é que você é a nossa ruína. Nossa ruína e nossa salvação. Sem você, ninguém do povo vai sobreviver à Última Batalha. Talvez nem chegue à Última Batalha. Essa é a profecia e a verdade. Com você… “Ele derramará o sangue daqueles que se denominam Aiel como água na areia e os destruirá como a ramos secos, mas o que restar do restante ele salvará, e eles viverão.” Uma profecia dura, mas esta nunca foi uma terra branda. — A mulher o encarou, sem hesitar. Uma terra dura, e uma mulher dura.
Ele se virou para o lado de novo e voltou a perscrutar o vale. Os outros haviam ido embora, exceto por Mat.
No meio da tarde ele enfim avistou uma silhueta subindo a montanha, escalando com cansaço e dificuldade. Aviendha. Mat tinha razão, a jovem estava nua como veio ao mundo. E também exibia efeitos do sol, Aiel ou não. Apenas o rosto e as mãos estavam escurecidos pelo sol, e o restante parecia bastante vermelho. Rand ficou contente em vê-la. A mulher não gostava dele, mas só porque achava que ele destratara Elayne. O mais simples dos motivos. Não pela profecia ou pela ruína, não pelos Dragões em seu braço ou porque ele era o Dragão Renascido. Por um motivo simples e humano. Rand quase ansiava por aqueles olhares frios e desafiadores.
Quando ela o viu, congelou, e não havia nada de frio em seus olhos azul-esverdeados. O olhar dela fez o sol parecer frio. Rand deveria ter sido transformado em cinzas ali mesmo onde estava.
— É… Rand? — murmurou Mat. — Acho que eu não viraria as costas para ela, se fosse você.
Um suspiro cansado escapou de seus lábios. Claro. Se ela tinha passado por aquelas colunas de vidro, sabia. Bair, Melaine, as outras — todas tiveram anos para se acostumar à ideia. Para Aviendha, era uma ferida nova e sem cicatriz. Não é de se admirar que ela agora me odeie.
As Sábias correram ao encontro de Aviendha e a levaram depressa para dentro de outra tenda. Quando Rand a viu outra vez, a mulher estava usando uma saia marrom pesada e uma blusa branca larga, com um xale passado nos braços. Não parecia muito feliz com as roupas. Aviendha notou que ele a observava, e a ira em seu rosto — pura fúria animal — foi suficiente para fazê-lo desviar os olhos.
As sombras começavam a se espichar na direção das montanhas mais distantes quando Moiraine apareceu, caindo e se reerguendo, cambaleante, enquanto subia a encosta. Estava tão queimada de sol quanto Aviendha. Rand ficou espantado em ver que a Aes Sedai também estava sem roupa. As mulheres eram loucas, essa era a verdade.
Lan saltou da saliência de pedra e correu até ela, então tomou-a nos braços e subiu a encosta depressa, talvez mais depressa do que descera, xingando e gritando pelas Sábias, uma após a outra. A cabeça de Moiraine pendia sobre o ombro do Guardião. As Sábias vieram pegá-la, e Melaine barrou a passagem de Lan quando ele tentou segui-las para dentro da tenda. O Guardião foi deixado do lado de fora, andando de um lado para outro, a mão em punho socando a palma da outra.
Rand virou-se de costas e encarou o teto baixo da tenda. Três dias poupados. Deveria estar contente por Moiraine e Aviendha terem voltado, mas o alívio que sentia era pelos três dias poupados. Tempo era tudo. Ele precisava poder escolher o próprio caminho. Talvez ainda pudesse.
— O que você vai fazer agora? — perguntou Mat.
— Uma coisa que acho que você vai gostar. Vou quebrar as regras.
— Estava querendo saber se você ia pegar alguma coisa para comer. Porque eu estou com fome.
Rand soltou uma risada, mesmo sem querer. Alguma coisa para comer? Não daria a mínima se nunca mais comesse na vida. Mat o encarou como se ele estivesse louco, e aquilo só o fez gargalhar mais alto. Não estava louco. Pela primeira vez, alguém aprenderia o que significava ele ser o Dragão Renascido. Ele infringiria as regras de uma forma que ninguém esperava.