25 A rota para a Lança

Rand não hesitou ao alcançar a primeira fileira de colunas, forçando-se a caminhar por entre elas. Não podia mais voltar, não podia mais olhar para trás. Luz, o que é que vai acontecer aqui? O que é que isso realmente faz?

Límpidas como o vidro mais delicado, talvez com um pé de espessura e a três passadas ou mais de distância, as colunas eram uma floresta de luzes ofuscantes que ondeavam em cascata, clarões e estranhos arco-íris. O ar era mais frio ali, o bastante para fazê-lo querer um casaco, mas a mesma poeira arenosa cobria as pedras brancas e lisas debaixo das botas. Nem a mais leve brisa soprava, mas algo fazia cada pelo em seu corpo se eriçar, mesmo sob a camisa.

À frente e à direta, viu outro homem, nos mesmos tons de cinza e marrom dos Aiel, parado, rígido feito uma estátua sob a luz intermitente. Devia ser Muradin, irmão de Couladin. Parado e rígido, alguma coisa estava acontecendo. Era estranho, mas, mesmo com o fulgor da luz, Rand não conseguia distinguir as feições do Aiel com clareza. De olhos arregalados, rosto contraído, a boca trêmula quase em um rosnado. Fosse lá o que o homem estivesse vendo, não estava gostando. Mas Muradin já sobrevivera até ali, pelo menos. Se ele era capaz, Rand também seria. O homem estava no máximo seis ou sete passadas à frente dele. Perguntando-se por que ele e Mat não haviam visto Muradin entrar, avançou mais um passo.


Andava atrás de um par de olhos, sentindo um corpo, mas sem controlá-lo. O dono dos olhos acocorou-se por entre os pedregulhos de uma encosta árida, sob o céu ensolarado, olhando para estranhas estruturas de pedra inacabadas — Não! Menos que inacabadas. Isso é Rhuidean, mas sem névoa, bem no comecinho. O sujeito olhava com desdém. Ele era Mandein, jovem para um chefe de clã, com quarenta anos. A noção de separação se esvaiu, a aceitação veio. Era Mandein.

— Você precisa concordar — disse Sealdre, mas ele a ignorou por ora.

Os Jenn haviam construído coisas que puxavam a água e a despejavam em grandes bacias de pedra. Ele já entrara em batalhas por menos água do que cabia em um daqueles tanques, com gente que andava por aí como se a água fosse algo insignificante. Uma estranha floresta de vidro se erguia no centro da atividade, cintilando sob o sol, e, perto dela, estava a árvore mais alta que já vira, com pelo menos três braças de altura. Parecia que cada uma das estruturas de pedra era projetada para abrigar uma fortaleza inteira, um ramo inteiro, depois de prontas. Loucura. Essa Rhuidean era indefensável. Não que alguém fosse atacar os Jenn, naturalmente. A maioria os evitava como evitavam os malditos Perdidos, que vagavam à procura das canções que alegavam poder trazer de volta os dias antigos.

Uma procissão saía furtiva de Rhuidean em direção à montanha, poucas dezenas de Jenn e duas liteiras, cada uma carregada por oito homens. Nelas havia madeira suficiente para doze cadeiras de chefe. Ouvira dizer que ainda havia Aes Sedai entre os Jenn.

— Você deve concordar com o que eles pedirem, marido — disse Sealdre.

Ele olhou a mulher, desejando ter um instante para passar as mãos por seus longos cabelos louros, vendo a menina risonha que deitara a coroa nupcial a seus pés e o pedira em casamento. Mas ela agora estava séria, atenta e preocupada.

— Os outros virão? — perguntou.

— Alguns. A maioria. Conversei com minhas irmãs em sonho, e todas sonhamos o mesmo. Os chefes que não vierem, os que não concordarem… seus ramos vão morrer, Mandein. Virarão pó em três gerações, e seus fortes e gado passarão a pertencer a outros ramos. Eles perderão seus nomes.

Ele não gostava que ela falasse com as Sábias de outros ramos, nem mesmo em sonhos. Mas os sonhos das Sábias diziam a verdade. Quando elas sabiam, era verdade.

— Fique aqui — disse. — Se eu não voltar, ajude nossos filhos e filhas a manterem o ramo unido.

Ela tocou sua face.

— Vou fazer isso, sombra da minha vida. Mas não esqueça. Você precisa concordar.

Mandein acenou, e uma centena de silhuetas veladas o seguiram encosta abaixo, sumindo de rochedo em rochedo, arcos e lanças prontos, marrom e cinza misturados à terra árida, desaparecendo até da vista dele. Eram todos homens, deixara com Sealdre as mulheres do ramo que carregavam a lança junto aos homens. Caso alguma coisa desse errado, e ela decidisse fazer algo insensato para salvá-lo, os homens provavelmente a seguiriam. As mulheres a levariam de volta ao forte, sem ligar para seu desejo, assegurando a proteção do forte e do ramo. Esperava que elas fossem capazes. Elas às vezes conseguiam ser mais ferozes do que qualquer homem, mas também mais tolas.

A procissão vinda de Rhuidean já parara no baixio de barro rachado quando ele alcançou a encosta mais baixa. Fez um gesto para que os homens se abaixassem e prosseguiu sozinho, baixando o véu. Estava ciente de que havia outros homens percorrendo a montanha, à esquerda e à direita, e avançando pelo solo seco, vindos de outras direções. Quantos seriam? Cinquenta? Talvez cem? Esperava que alguns rostos estivessem ausentes. Sealdre estava certa, como de costume. Alguns não tinham dado atenção ao sonho de suas Sábias. Havia rostos que ele nunca vira antes, e rostos de homens que tentara matar e de outros que haviam tentado matá-lo. Pelo menos nenhum usava o véu. Matar alguém na frente de um Jenn era quase tão ruim quanto matar um Jenn. Desejou que os outros se lembrassem disso. Se um cometesse uma traição, os véus seriam erguidos. Os guerreiros trazidos por cada chefe viriam das montanhas, e a terra ressecada ficaria encharcada de sangue. De certo modo, esperava a qualquer momento sentir uma lança entre as costelas.

Mesmo tentando ficar atento a uma centena de possibilidades de morte, foi difícil não encarar as Aes Sedai quando os carregadores baixaram ao chão as cadeiras com entalhes ornamentados. Mulheres de cabelos tão brancos que pareciam quase transparentes. Rostos etéreos com peles que poderiam ser rasgadas pelo vento. Ouvira dizer que os anos não afetavam as Aes Sedai. Qual seria a idade das duas? O que elas já haviam visto? Será que se lembravam de quando seu avô, Comran, encontrou pela primeira vez os pousos Ogier na Muralha do Dragão e começou a negociar com eles? Ou talvez de quando o avô de Comran, Rhodric, liderou os Aiel para matar os homens vestidos em camisas de ferro que haviam cruzado a Muralha do Dragão? As Aes Sedai voltaram os olhos para ele — azul penetrante e castanho muito, muito escuro, o primeiro par de olhos escuros que vira — e pareceram ver dentro de seu crânio, dentro de seus pensamentos. Sabia que fora escolhido, mas não sabia por quê. Com esforço, desviou o olhar dos das mulheres, que o conheciam mais do que conhecia a si mesmo.

Um homem encovado de cabelos brancos, alto, mas curvado, veio andando do grupo de Jenn. Era flanqueado por duas mulheres grisalhas que poderiam ser irmãs, com os mesmos pares de olhos verdes e o mesmo jeito de inclinar a cabeça ao olhar para alguma coisa. Os outros Jenn encaravam o chão, inquietos, em vez de olhar para os Aiel, mas não esses três.

— Sou Dermon — disse o homem, com a voz forte e profunda. O escrutínio em seus olhos azuis era firme como o de qualquer Aiel. — Essas são Mordaine e Narisse. — Ele apontou para as mulheres a seu lado, uma de cada vez. — Falamos por Rhuidean e pelos Aiel Jenn.

Uma inquietude percorreu os homens à volta de Mandein. A maioria, como ele, não gostava que os Jenn alegassem ser Aiel.

— Por que nos chamou aqui? — inquiriu, embora sentisse a língua queimar ao admitir ter sido convocado.

Em vez de responder, Dermon perguntou:

— Por que não porta espada? — A frase ocasionou murmúrios irritados.

— É proibido — vociferou Mandein. — Até os Jenn deviam saber disso. — Ergueu as lanças e tocou a faca em sua cintura e o arco nas costas. — Essas armas bastam para um guerreiro.

Os murmúrios tornaram-se aprovativos, incluindo alguns vindos dos homens que haviam jurado matá-lo. Ainda matariam, se tivessem chance, mas aprovaram o que ele dissera. E pareciam satisfeitos em deixá-lo falar, com aquelas Aes Sedai observando.

— Você não sabe por quê — disse Mordaine, e Narisse acrescentou:

— Há muito que você não sabe. Mas precisa saber.

— O que vocês querem? — inquiriu Mandein.

— Vocês. — Dermon passou os olhos pelos Aiel, dirigindo as palavras a todos. — Seja quem for o líder entre vocês, ele deve ir a Rhuidean para saber de onde viemos e por que vocês não portam espadas. Quem não puder aprender, não poderá viver.

— Suas Sábias falaram com vocês — disse Mordaine — ou não estariam aqui. Sabem que preço pagam os que se recusam.

Charendin foi abrindo caminho para avançar, os olhos cravados ora em Mandein, ora nos Jenn. Fora Mandein quem pusera aquela cicatriz franzida em seu rosto, e os dois quase se mataram três outras vezes.

— Basta ir até vocês? — indagou Charendin. — Quem de nós for até vocês comandará os Aiel?

— Não. — A palavra saiu feito um sussurro, mas com força suficiente para chegar a todos os ouvidos. Veio da Aes Sedai de olhos escuros, sentada na cadeira entalhada com um cobertor sobre as pernas, como se sentisse frio sob o sol escaldante. — Esse virá depois — disse. — A pedra que nunca cai cairá para anunciar sua chegada. Saído do sangue, mas não criado no sangue, ele virá de Rhuidean ao amanhecer e unirá todos com elos que não poderão ser desfeitos. Ele os trará de volta e os destruirá.

Alguns chefes dos ramos fizeram menção de partir, mas nenhum avançou mais que alguns passos. Cada um escutara a Sábia de seu ramo. Concordem, ou seremos destruídos como se nunca tivéssemos existido. Concordem, ou causaremos nossa própria destruição.

— Que belo truque — gritou Charendin. Baixou a voz diante dos olhares das Aes Sedai, mas ainda falava com raiva. — Vocês querem ter controle sobre os ramos. Os Aiel não se ajoelham diante de homens ou mulheres. — Ele virou a cabeça de repente, evitando encarar as Aes Sedai. — De ninguém — murmurou.

— Não buscamos controle — retrucou Narisse.

— Nossos dias estão definhando — disse Mordaine. — Chegará o dia em que não haverá mais Jenn, e restarão apenas vocês para lembrar os Aiel. Vocês precisam permanecer, ou tudo será em vão e estará perdido.

A insipidez de sua voz, firme e tranquila, silenciou Charendin, mas Mandein ainda tinha uma pergunta.

— Por quê? Se você sabe da ruína, por que fazer isso? — Apontou para as estruturas que se erguiam a distância.

— É nosso propósito — respondeu Dermon, calmo. — Procuramos este lugar por longos anos, e agora o preparamos, ainda que não para o propósito que imaginávamos. Fazemos o que é necessário e mantemos a fé.

Mandein observou o rosto do homem. Não havia medo.

— Vocês são Aiel — disse, e quando alguns dos outros chefes arquejaram, ergueu a voz. — Vou até os Aiel Jenn.

— Não se pode entrar em Rhuidean armado — disse Dermon.

Mandein riu alto da temeridade do homem. Pedir a um Aiel que fosse desarmado. Ele largou as armas e deu um passo adiante.

— Leve-me até Rhuidean, Aiel. Farei frente à sua coragem.


Rand piscou os olhos sob a luz trêmula. Ele tinha sido Mandein, podia sentir o desprezo pelos Jenn dando lugar à admiração. Eram os Jenn Aiel, ou não eram? Pareciam iguais, altos, de olhos claros e rostos queimados pelo sol, vestidos nas mesmas roupas, mas sem os véus. Porém não portavam armas, apenas facas simples de cintura, próprias para o trabalho. Não havia algo como um Aiel sem armas.

Adentrara as colunas mais longe do que um simples passo poderia levar, estava mais perto de Muradin do que antes. O olhar fixo do Aiel se transformara em uma careta lúgubre.

Quando Rand se aproximou, a terra granulosa do chão arranhou as solas de suas botas.


Seu nome era Rhodric, e tinha quase vinte anos. O sol brilhava forte no céu, mas mantinha o véu erguido e os olhos alertas. As lanças estavam prontas — uma na mão direita, três no pequeno broquel de couro de boi — e ele também. Jeordam estava no baixio de grama marrom ao sul das colinas, onde a maior parte dos arbustos era frágil e murcha. O velho tinha cabelos brancos, feito aquela coisa chamada neve de que os antigos falavam, mas tinha olhos argutos, então observar os cavadores do poço erguendo bolsas cheias d’água não ocupava toda a sua atenção.

Montanhas se erguiam a norte e a leste. A cadeia a nordeste era alta, pontuda e de cumes brancos, mas parecia pequena se comparada às montanhas do leste. Elas faziam parecer que o mundo tentava tocar os céus, e talvez tentasse. Aquele branco seria neve? Não pretendia descobrir. Diante das circunstâncias, os Jenn teriam que virar a leste. Haviam trilhado rumo ao norte ao longo daquela muralha montanhosa por longos meses, arrastando penosamente os carroções atrás de si, tentando denegar os Aiel que os seguiam. Pelo menos encontraram água ao cruzar um rio, ainda que não muita. Já fazia anos que Rhodric não via um rio que não pudesse cruzar, a maioria era apenas barro seco e rachado, distante das montanhas. Torcia para que as chuvas viessem outra vez, que o verde crescesse outra vez. Lembrava-se de quando o mundo era verde.

Ouviu os cavalos antes de vê-los, três homens cavalgando pelas colinas marrons em camisas de couro com discos de metal costurados ao longo de todo o comprimento, dois com lanças. Conhecia o comandante. Era Garam, filho do chefe da cidade. Acabara de desaparecer pelo caminho de onde os outros vinham, não muito mais velho que ele. Eram cegos, esses cidadãos. Não viram os Aiel que se remexeram depois de sua passagem, logo voltando a ser quase invisíveis sobre a terra ressequida. Rhodric baixou o véu. Não haveria matança, a não ser que os cavaleiros começassem. Não se arrependia — não exatamente — mas não podia confiar em homens que viviam em casas e cidades. Houvera muitas batalhas com esses tipos. As histórias diziam que fora sempre assim.

Garam puxou as rédeas e ergueu a mão direita em saudação. Era um homem pequeno e de olhos escuros, assim como os dois acompanhantes, mas todos os três pareciam fortes e aptos.

— Ei, Rhodric. Seu povo já terminou de encher os cantis?

— Vejo você, Garam. — Manteve a voz firme e inexpressiva. Aquilo o incomodava, ver homens montados em cavalos era ainda pior do que vê-los portando espadas. Os Aiel possuíam animais de carga, mas havia algo de pouco natural em sentar-se em cima de um cavalo. As pernas de um homem bastavam. — Estamos perto. Seu pai retira a permissão para pegarmos água de suas terras? — Nenhuma outra terra jamais concedera permissão. A água tinha de ser disputada se houvesse homens por perto, assim como tudo o mais. E, se havia água, havia homens por perto. Não seria fácil derrubar aqueles três sozinho. Mudou de posição, pronto para dançar e provavelmente morrer.

— Não retira — disse Garam. Nem percebera que Rhodric se remexera. — Temos uma nascente forte na cidade, e meu pai diz que, quando vocês forem embora, teremos os novos poços que cavaram até irmos embora também. Mas seu avô parecia querer saber se os outros começaram a se mudar, e começaram. — Ele se inclinou para a frente, com um cotovelo apoiado na sela. — Diga, Rhodric, eles são o mesmo povo que vocês?

— Eles são os Aiel Jenn. Nós somos os Aiel. Somos iguais, mas diferentes. Não posso explicar mais nada, Garam. — Ele mesmo não entendia muito bem.

— Para que lado estão indo? — perguntou Jeordam.

Rhodric curvou-se em uma mesura tranquila para seu avô. Ouvira o som de passos, o som de uma bota macia, e sabia que pertenciam a um Aiel. Mas os cidadãos não tinham notado a aproximação de Jeordam, e puxaram as rédeas com um solavanco, surpresos. Apenas o gesto lento de Garam impediu os outros dois de puxarem as lanças. Rhodric e seu avô aguardaram.

— Leste — disse Garam, depois de assumir o controle sobre o cavalo outra vez. — Cruzando a Espinha do Mundo. — Ele apontou para as montanhas que penetravam o céu.

Rhodric estremeceu, mas Jeordam disse, tranquilo:

— O que há do outro lado?

— O fim do mundo, pelo que sei — respondeu Garam. — Não sei muito bem se existe como atravessar a montanha. — Ele hesitou. — Os Jenn levam Aes Sedai com eles. Dezenas, pelo que ouvi dizer. Não acha desconfortável viajar perto de Aes Sedai? Ouvi dizer que o mundo era diferente, mas elas o destruíram.

As Aes Sedai deixavam Rhodric muito nervoso, mas ele manteve o rosto impassível. Eram apenas quatro, não dezenas, mas o bastante para fazê-lo recordar as histórias de que os Aiel haviam decepcionado as Aes Sedai de alguma forma que ninguém entendia. As Aes Sedai deviam saber, quase não saíram dos carroções dos Jenn durante o ano que se passara desde sua chegada, mas, quando saíam, olhavam os Aiel com tristeza. Rhodric não era o único que tentava evitá-las.

— Nós vigiamos os Jenn — disse Jeordam. — São eles que viajam com Aes Sedai.

Garam assentiu, como se aquilo fizesse diferença, depois inclinou-se outra vez para a frente e baixou a voz.

— Meu pai tem uma conselheira Aes Sedai, embora tente esconder isso da cidade. Ela disse que devemos sair dessas colinas e rumar para o leste. Disse que os rios secos voltarão a correr, e que vamos construir uma grande cidade ao lado de um. Ela disse muitas coisas. Ouvi dizer que as Aes Sedai planejam erguer uma cidade, que encontraram Ogiers que vão erguê-la para elas. Ogiers! — Ele balançou a cabeça, saindo das lendas e voltando à realidade. — Acham que elas querem governar o mundo outra vez? As Aes Sedai? Acho que deveríamos matar todas antes que elas nos destruam de novo.

— Devem fazer o que acharem melhor. — A voz de Jeordam não dava pista de seus pensamentos. — Preciso aprontar meu povo para cruzar essas montanhas.

O homem de cabelos escuros se endireitou sobre a sela, claramente decepcionado. Rhodric suspeitou que ele quisesse a ajuda dos Aiel para matar as Aes Sedai.

— A Espinha do Mundo — disse Garam, de repente. — Tem outro nome. Alguns a chamam de Muralha do Dragão.

— Um nome apropriado — retrucou Jeordam.

Rhodric encarou as montanhas que se agigantavam a distância. Um nome apropriado para os Aiel. Seu próprio nome secreto, jamais revelado a ninguém, era Povo do Dragão. Ele não sabia por quê, só sabia que o nome não era pronunciado em voz alta, a não ser quando alguém recebia as lanças. O que havia para além da Muralha do Dragão? Pelo menos haveria gente com quem lutar. Sempre havia. No mundo inteiro, havia apenas Aiel, Jenn e inimigos. Apenas isso. Aiel, Jenn e inimigos.


A respiração de Rand saiu profunda e arranhada, como se ele tivesse passado A respiração de Rand saiu profunda e arranhada, como se ele tivesse passado horas sem respirar. Raios de luz ofuscantes subiam depressa pelas colunas à volta. As palavras ainda ecoavam em sua mente. Aiel, Jenn e inimigos, assim era o mundo. Aquele lugar não era o Deserto, sem dúvida. Ele tinha visto — e vivido — uma época antes de os Aiel chegarem à Terra da Trindade.

Estava ainda mais próximo de Muradin. Os olhos do Aiel se remexiam, incomodados, e ele parecia lutar para não dar o próximo passo.

Rand seguiu em frente.


Jeordam acocorou-se, confortável, na encosta coberta de branco, ignorando o frio e observando cinco pessoas caminharem a passos pesados em direção a ele. Três homens de mantos e duas mulheres em vestidos robustos atravessando a neve com dificuldade. O inverno deveria ter acabado havia tempos, segundo os antigos, mas eles contavam histórias sobre as estações não estarem se comportando da forma habitual. Diziam também que nos velhos tempos a terra se sacudia, e as montanhas se erguiam ou afundavam, como quando alguém joga uma pedra em um laguinho no verão. Jeordam não acreditava. Tinha dezoito anos, nascera nas tendas, e aquela era a única vida que conhecia. A neve, as tendas e o dever de proteger.

Baixou o véu e levantou-se devagar, apoiado na lança longa para não assustar o povo no carroção, mas mesmo assim eles pararam de repente, encarando a lança, o arco atravessado em suas costas e a aljava na cintura. Nenhum parecia mais velho do que ele.

— Precisam de nós, Jenn? — gritou.

— Você nos chama assim para zombar — gritou de volta um homem alto de nariz pontudo — mas é verdade. Somos os únicos verdadeiros Aiel. Vocês abriram mão do Caminho.

— Isso é mentira! — bradou Jeordam, de repente. — Nunca ergui uma espada! — Ele respirou fundo para se acalmar. Não estava ali para se irritar com os Jenn. — Se estiverem perdidos, seus carroções estão para o lado de lá. — Apontou para o sul com a lança.

Uma mulher tocou o braço do homem de nariz pontudo e falou baixinho. Os outros assentiram, e, por fim, o homem fez o mesmo, embora relutante. Ela era bonita, tinha mechas de cabelo loiro escapando pelo xale escuro que envolvia o pescoço. Olhando para Jeordam, a mulher disse:

— Não estamos perdidos.

De repente ela o perscrutou, como se o visse pela primeira vez, e apertou o xale no corpo.

Ele assentiu, não achava que estivessem. Os Jenn sempre davam um jeito de evitar qualquer um que viesse das tendas, mesmo quando precisavam de ajuda. Os poucos que não evitavam se aproximavam apenas por desespero, em busca da ajuda que não podiam encontrar em nenhum outro lugar.

— Venham comigo.

As tendas de seu pai ficavam a uma milha de caminhada pelas colinas, contornos baixos parcialmente cobertos pela última nevada, que se agarrava às encostas. Seu povo olhava receoso para os recém-chegados, mas isso não os fez parar o que faziam, estivessem cozinhando, cuidando das armas, ou brincando de guerra de neve com uma criança. Jeordam tinha orgulho de seu ramo, formado por quase duzentos, o maior dos dez acampamentos espalhados ao norte dos carroções. Mas os Jenn não pareciam muito impressionados. Ele ficava irritado em ver que havia muitos mais Jenn que Aiel.

Lewin saiu de sua tenda, um homem alto, grisalho e de feições severas. Ele nunca sorria, pelo que diziam, e Jeordam nunca o vira sorrir. Talvez o homem sorrisse, antes de a mãe de Jeordam morrer por causa de uma febre, mas o rapaz achava que não.

A mulher de cabelos loiros — seu nome era Morin — contou uma história bem parecida com a que Jeordam esperava. Os Jenn haviam feito negócios com uma aldeia, um lugar com uma muralha de troncos, e os homens da aldeia voltaram durante a noite e tomaram de volta o que haviam trocado, além de levarem outras coisas. Os Jenn sempre achavam que podiam confiar no povo que morava em casas, achavam que o Caminho os protegeria. Os mortos foram enumerados — pais, uma mãe, irmãos-primeiros. Os reféns — irmãs-primeiras, uma irmã-da-mãe, uma filha. A última surpreendeu Jeordam. Foi Morin quem falou em tom amargo sobre uma filha de cinco anos levada para ser criada por alguma outra mulher. Analisando-a mais de perto, somou alguns anos à idade que pensara que Morin tivesse.

— Vamos trazê-los de volta — prometeu Lewin. Pegou uma pilha de lanças que lhe foi entregue e empurrou-as no chão, de ponta para baixo. — Podem ficar conosco, se desejarem, desde que estejam dispostos a defender a si mesmos e aos outros. Se ficarem, não poderão voltar aos carroções. — O sujeito de nariz pontudo se virou e retornou por onde haviam vindo. Lewin prosseguiu, era raro que apenas um fosse embora nesse momento. — Os que desejarem vir conosco até essa aldeia, peguem uma lança. Mas lembrem-se, se usarem a lança contra um homem, terão que ficar conosco. — Sua voz e seus olhos estavam petrificados. — Terão morrido para os Jenn.

Um dos homens restantes hesitou, mas cada um deles enfim puxou uma lança do chão. Morin também. Jeordam a encarou, boquiaberto, e até Lewin piscou.

— Não precisa pegar uma lança só para ficar — disse Lewin — ou para que tragamos seus familiares de volta. Pegar uma lança indica disposição para lutar, não apenas para se defender. Pode baixar, não precisa ter vergonha.

— Eles levaram minha filha — respondeu Morin.

Para espanto de Jeordam, Lewin mal pausou antes de assentir.

— Para tudo existe uma primeira vez. Para tudo. Então que seja.

O pai começou a dar pancadinhas nos ombros dos homens, caminhando pelos acampamentos e convocando-os a visitar a tal aldeia murada com troncos. Jeordam foi o primeiro. Desde que passou a ter idade suficiente para segurar uma lança, o pai sempre o escolhia em primeiro lugar. E nunca teria feito o contrário.

Morin estava tendo problemas com a lança, cujo cabo se embolara em suas longas saias.

— Você não precisa ir — disse Jeordam. — Nenhuma mulher nunca foi. Traremos sua filha de volta.

— Quero tirar Kirin de lá pessoalmente — respondeu ela, feroz. — Vocês não vão me impedir.

Que mulher teimosa.

— Nesse caso, deverá se vestir assim. — Ele apontou para o casaco e as calças que usava. — Não dá para cruzar as terras no meio da noite usando um vestido. — Então tomou a lança da mão da mulher antes que ela pudesse reagir. — Não é fácil aprender a lança. — Os dois homens que tinham vindo com ela, desajeitados ao receberem instruções, quase tropeçando nos próprios pés, eram prova disso. Jeordam pegou um machadinho e cortou um pedaço do cabo, deixando apenas quatro pés e mais quase um pé de lâmina. — Espete as pessoas com ela. Nada mais que isso. Só espete. O cabo também é usado para bloquear, mas vou encontrar alguma coisa para você usar de escudo na outra mão.

Ela o encarou de um jeito estranho.

— Quantos anos você tem? — perguntou, revelando ainda mais estranheza.

Jeordam lhe disse, e a mulher apenas assentiu, pensativa.

Depois de um instante, ele perguntou:

— Algum desses homens é seu marido?

Os dois Jenn ainda tropeçavam nas próprias lanças.

— Meu marido já está de luto por Kirin. Dá mais importância às árvores do que à própria filha.

— Árvores?

— As Árvores da Vida. — Jeordam ficou olhando para ela, atônito, e a mulher balançou a cabeça. — Três arvorezinhas plantadas em barris. Eles cuidam delas quase tão bem quanto de si mesmos. Pretendem plantá-las quando encontrarem um lugar seguro, dizem que os dias antigos retornarão quando isso acontecer. Eles. Eu disse eles. Está certo. Não sou mais Jenn. — Morin ergueu a lança de cabo encurtado. — Isso aqui agora é meu marido. — Encarando-o de perto, ela perguntou: — Se alguém levasse um filho seu, você ficaria falando do Caminho da Folha e do sofrimento que foi enviado para nos testar? — Jeordam balançou a cabeça, e a mulher completou: — Foi o que pensei. Você será um pai excelente. Agora me ensine a usar a lança.

Uma mulher estranha, porém bonita. Ele tomou a lança e começou a ensiná-la, explicando tudo o que fazia. A lança ficava ainda mais ágil e ligeira com o cabo curto.

Morin o observava com aquele sorriso estranho, mas a lança requeria toda a atenção de Jeordam.

— Vi seu rosto no sonho — disse a mulher, baixinho, mas ele não escutou.

Com uma lança daquelas, era mais rápido do que um homem com uma espada. No olho da mente, via os Aiel derrotando todos os homens com espadas. Ninguém ofereceria resistência. Ninguém.


Luzes cegantes piscaram pelas colunas de vidro. Muradin estava apenas um passo ou dois adiante, os dentes arreganhados, rosnando em silêncio. As colunas os levavam de volta para a história Aiel perdida no tempo. Os pés de Rand se moviam por vontade própria. Em frente. E voltando no tempo.


Lewin arrumou o véu no rosto e espiou o pequeno acampamento onde o carvão que sobrara de uma fogueira extinta ainda ardia sob uma panela de ferro. O vento trazia cheiro de cozido meio queimado. Montinhos de cobertores jaziam em volta do carvão ao luar. Não havia cavalos à vista. Desejou ter trazido um pouco de água, mas apenas as crianças tinham permissão de beber água fora das refeições. Ele se lembrou vagamente de um tempo em que havia mais água, quando os dias não eram tão quentes e secos, e o vento não soprava o tempo inteiro. A noite trazia apenas um pequeno alívio, trocando o sol vermelho, ardente e ígneo pelo frio. Apertou contra o corpo a capa feita de peles de cabra-selvagem que usava como cobertor.

Os companheiros tropeçaram mais para perto, enrolados em trouxas, como ele, chutando pedras e resmungando até ele ter certeza de que acordariam os homens embaixo. Lewin não reclamou, estava tão pouco acostumado quanto eles. Véus cobriam suas faces, mas ele podia distinguir quem era quem. Luca, cujos ombros tinham o dobro da largura dos outros, gostava de pregar peças. Gearan, desengonçado feito uma cegonha, o melhor corredor entre carroções. Charlin e Alijha, idênticos como reflexos, exceto pelo hábito de Charlin de inclinar a cabeça quando fica preocupado, como fazia no momento. A irmã deles, Colline, estava no acampamento lá embaixo. Assim como Maigran, irmã de Lewin.

Quando as mochilas das garotas foram encontradas no chão, destroçadas por uma luta, todos os outros se puseram de luto e seguiram em frente, como haviam feito tantas vezes. Até mesmo o avô de Lewin. Se Adan soubesse o que os cinco planejavam, teria impedido. Adan só fazia resmungar sobre manter a lealdade a Aes Sedai que Lewin jamais vira e tentar manter os Aiel vivos. Os Aiel como um povo, mas nenhum em particular. Nem mesmo Maigran.

— Eles estão em quatro — sussurrou Lewin. — As garotas estão deste lado da fogueira. Vou acordá-las sem fazer barulho, e nós as levaremos embora enquanto os homens estão dormindo. — Os amigos se entreolharam e assentiram. Achava que o grupo deveria ter bolado um plano antes, mas só conseguiam pensar em resgatar as garotas e em como sair dos carroções sem serem vistos. Não tinha certeza de que seriam capazes de seguir aqueles homens ou encontrá-los antes que retornassem à aldeia de onde haviam saído, um ajuntamento de cabanas toscas de onde os Aiel foram expulsos a paus e pedras. Não haveria nada a fazer se os captores tivessem chegado tão longe.

— E se eles acabarem acordando? — perguntou Gearan.

— Não vou abandonar Colline — disse Charlin, bruscamente, e seu irmão acrescentou, mais baixo:

— Vamos levá-la de volta, Gearan.

— Vamos mesmo — concordou Lewin.

Luca cutucou a costela de Gearan, que assentiu.

Caminhar no escuro não era tarefa fácil. Galhos finos e secos se quebravam sob seus pés, pedras e seixos rolavam pela encosta ressequida diante deles. Quanto mais Lewin tentava se movimentar em silêncio, mais barulho parecia fazer. Luca caiu em um espinheiro que se despedaçou com um estalido alto, mas conseguiu se reerguer com apenas um arquejo. Charlin escorregou e foi deslizando para baixo, até a metade do caminho. No entanto, nada se movia no acampamento.

Lewin parou bem próximo aos homens que dormiam, trocou olhares ansiosos com os amigos, então adentrou o acampamento nas pontas dos pés. A própria respiração ressoava em seus ouvidos feito um trovão, alta como os roncos que vinham de uma das quatro saliências. Ele congelou quando os roncos altos pararam e uma das saliências se ergueu. O homem se ajeitou, o ronco recomeçou, e Lewin pôde respirar outra vez.

Com muito cuidado, agachou-se ao lado de um dos montinhos menores e levantou um cobertor de lã bruta, duro de terra. Maigran o encarou, o rosto ferido e inchado, o vestido todo rasgado, em trapos. Ele tapou a boca da menina com a mão para impedi-la de gritar, mas ela apenas continuou a encará-lo, atônita, sem nem piscar.

— Vou retalhar você feito um porco, garoto. — Um dos montinhos mais altos tombou para o lado, e um homem de barba desgrenhada e roupas imundas pôs-se de pé, segurando uma faca comprida que brilhava de leve sob o luar, captando o cintilar vermelho dos carvões. O homem chutou os montinhos de ambos os lados, gerando grunhidos e agitação. — Feito um porco. Você guincha, garoto, ou seu povo só sabe correr?

— Corra — disse Lewin, mas a irmã apenas o encarou, paralisada. Frenético, ele agarrou a menina pelos ombros e tentou puxá-la até onde os outros aguardavam. — Corra!

Ela saiu de debaixo dos cobertores, rígida, quase um peso morto. Colline estava acordada — ele conseguia ouvi-la choramingar — mas ela parecia apertar os cobertores sujos ainda mais contra o corpo, tentando se esconder sob eles. Maigran continuava parada, olhando para o nada, vendo nada.

— Parece que nem isso vocês sabem fazer.

Abrindo um sorriso largo, o homem começou a contornar a fogueira, mantendo a faca abaixada. Os outros estavam sentados nos cobertores, rindo e assistindo à cena.

Lewin não sabia o que fazer. Não podia deixar a irmã. Só poderia morrer. Talvez isso desse a Maigran uma chance de correr.

— Corra, Maigran! Por favor, corra! — A garota não se mexeu. Não parecia sequer ouvi-lo. O que haviam feito com ela?

O homem barbado se aproximou com muita calma, rindo, saboreando cada passo lento.

— Nããããããããooooooo! — Charlin irrompeu da escuridão com violência, abraçando o homem com a faca e derrubando-o no chão.

Os outros levantaram-se depressa. Um, cuja cabeça raspada reluzia à luz fraca, ergueu uma espada para golpear Charlin.

Lewin não entendeu bem como a coisa aconteceu. De alguma forma, conseguira erguer o caldeirão pesado pelo cabo de ferro e balançá-lo. Golpeou a cabeça raspada com um baque alto. O homem desabou, como se os ossos tivessem se liquefeito. Lewin cambaleou, tonto, tentando evitar o fogo, e caiu bem ao lado do homem, largando o panelão. Um homem escuro de cabelos trançados ergueu outra espada, pronto para furá-lo. Ele recuou de costas, feito uma aranha, os olhos cravados na lâmina afiada da espada, as mãos, frenéticas, buscando algo para conter o golpe do homem, um pedaço de pau, qualquer coisa. Sentiu a palma da mão tocar uma madeira redonda. Girou-a com força e a empurrou para cima do homem rosnento. Ele arregalou os olhos escuros, e seu punho largou a espada. O sangue jorrava da boca. Não era um pedaço de pau. Era uma lança.

As mãos de Lewin soltaram o cabo assim que percebeu o que era. Tarde demais. Rastejou para trás, tentando evitar que o homem caísse por cima dele, e o encarou, trêmulo. Um homem morto. Um homem morto por ele. O vento estava muito frio.

Depois de um tempo, começou a se perguntar por que nenhum dos outros o havia matado. Ficou surpreso em ver o restante dos amigos ali, em volta do carvão. Gearan, Luca e Alijha, ofegantes e de olhos arregalados por cima dos véus. Colline ainda soluçava e fungava sob o cobertor, e Maigran encarava os homens, paralisada. Charlin estava encolhido, ajoelhado, em posição fetal. Todos os quatro aldeões… Lewin olhou os corpos inertes e ensanguentados, um a um.

— Nós… os matamos. — A voz de Luca tremia. — Nós… Que a misericórdia da Luz esteja conosco.

Lewin rastejou até Charlin e tocou seu ombro.

— Está ferido?

O amigo desabou. As mãos, úmidas e vermelhas, agarravam-se ao cabo da faca cravada na barriga.

— Está doendo, Lewin — sussurrou. Ele estremeceu uma vez, e os olhos pararam de ver.

— O que vamos fazer? — perguntou Gearan. — Charlin está morto, e nós… Luz, o que foi que fizemos? O que vamos fazer?

— Vamos levar as garotas de volta para os carroções. — Lewin não conseguia parar de encarar o olhar vidrado de Charlin. — Vamos fazer isso.

Reuniram tudo o que tinha utilidade, que era basicamente o panelão e as facas. Era difícil encontrar objetos de metal.

— Podemos muito bem fazer isso — disse Alijha, de repente. — Eles com certeza roubaram isso de alguém igual a nós.

Quando Alijha fez menção de pegar uma das espadas, Lewin o deteve.

— Não, Alijha. Isso é uma arma, feita para matar. Não tem outra finalidade. — Alijha ficou em silêncio, mas os olhos percorreram os quatro corpos e se fixaram nas lanças que Luca enrolava nos cobertores, para carregar o corpo de Charlin. Lewin se recusava a encarar os aldeões. — Uma lança pode pôr comida nas panelas, Alijha. Uma espada, não. É proibida pelo Caminho.

Alijha permaneceu em silêncio, mas Lewin pensou ter visto um olhar de desprezo por trás do véu. Ainda assim, quando todos enfim adentraram a noite, as espadas jaziam ao lado das fogueiras apagadas e dos homens mortos.

Foi uma longa caminhada de volta pela escuridão, carregando Charlin na maca improvisada, as rajadas de vento por vezes erguendo nuvens sufocantes de poeira. Maigran ia na frente, cambaleante, os olhos fixos adiante. Não sabia onde estava, nem quem eles eram. Colline parecia com medo, mesmo do próprio irmão, e pulava quando alguém a tocava. Não fora assim que Lewin imaginara o retorno. Em sua cabeça, as meninas estariam sorridentes, felizes em retornar aos carroções. Todos estariam gargalhando. Não carregando o corpo de Charlin. Não silenciados pelas lembranças do que haviam feito.

As luzes das fogueiras surgiram ao longe, depois os carroções, os arreios já estendidos para que os homens tomassem seus lugares ao nascer do sol. Ninguém deixava o abrigo dos carroções depois de anoitecer, por isso Lewin se surpreendeu ao ver três silhuetas correndo em direção a eles. Os cabelos brancos de Adan se destacavam na escuridão. As outras duas eram Nerrine, mãe de Colline, e Saralin, mãe dele e de Maigran. Lewin baixou o véu com um pressentimento ruim.

As mulheres correram para as filhas, com braços amorosos e murmúrios doces. Colline rendeu-se ao abraço da mãe com um suspiro delicado, Maigran mal pareceu notar Saralin, que encarava os hematomas no rosto da filha quase aos prantos.

Adan franziu o cenho para os jovens, as rugas permanentes de preocupação formando sulcos profundos na face.

— Em nome da Luz, o que aconteceu? Quando vimos que vocês também tinham ido embora… — A voz do homem foi morrendo quando ele viu a maca que levava Charlin. — O que aconteceu? — perguntou ele outra vez, como se temesse a resposta.

Lewin abriu a boca devagar, mas Maigran falou primeiro:

— Eles os mataram. — Ela fixava o olhar em algo a distância e falava com a voz sincera de uma criança. — Os homens maus machucaram a gente. Eles… Depois Lewin chegou e matou todos.

— Não diga esse tipo de coisa, criança — retrucou Saralin, com delicadeza. — Você… — Ela parou, encarando a filha nos olhos, depois virou-se para olhar Lewin, indecisa. — Isso é…? Isso é verdade?

— Foi necessário — respondeu Alijha, com a voz cheia de pesar. — Eles tentaram nos matar. Mataram Charlin.

Adan deu um passo atrás.

— Vocês… mataram? Mataram homens? Mas e o Pacto? Nós não machucamos ninguém. Ninguém! Não há motivo para justificar a morte de outro ser humano. Nenhum!

— Eles levaram Maigran, avô — retrucou Lewin. — Levaram Maigran e Colline e as machucaram. Eles…

— Não há motivo! — vociferou Adan, tremendo de raiva. — Precisamos aceitar o que vem. Os sofrimentos são enviados para testar nossa lealdade. Nós aceitamos e resistimos! Não matamos! Vocês não se desgarraram do Caminho, vocês o abandonaram. Não são mais Da’shain. Foram corrompidos, e não permitirei que os Aiel sejam corrompidos por vocês. Deixem-nos, estranhos. Assassinos! Vocês não são bem-vindos nos carroções dos Aiel. — O homem deu as costas ao grupo e foi embora pisando firme, como se eles já não existissem. Saralin e Nerrine foram atrás em disparada, levando as meninas.

— Mãe — chamou Lewin, encolhendo-se quando ela virou o rosto para trás, encarando-o com olhos frios. — Mãe, por favor…

— Quem é você para se dirigir a mim dessa forma? Esconda seu rosto de mim, estranho. Já tive um filho, um dia, de rosto igual ao seu. Não desejo vê-lo em um assassino.

Ela levou Maigran atrás dos outros.

— Ainda sou Aiel — gritou Lewin, mas eles não olharam para trás. Pensou ter ouvido Luca chorando. O ventou soprou, remexendo a terra, e ele cobriu o rosto com o véu. — Eu sou Aiel!


O movimento rápido de luzes atingiu os olhos de Rand. A dor da perda de Lewin ainda o dominava, e sua mente se revolvia, furiosa. Lewin não estava armado. Não sabia como usar uma arma. A matança o aterrorizava. Não fazia sentido.

Estava quase ao lado de Muradin, mas o homem não o percebera. Muradin mantinha a boca contraída num rosnado, um riso forçado, e seu corpo tremia, como se ele quisesse correr.

Os pés de Rand o levaram em frente, e de volta.

Загрузка...