Perrin estava parado perto dos carroções dos Tuatha’an, sob o sol forte, sozinho, sem flecha nem dor no corpo. No meio dos carroções havia lenha empilhada já pronta para ser acesa sob panelas de ferro penduradas em tripés, e roupas estavam penduradas nos varais. Não se via gente nem cavalos. Perrin não usava casaco ou blusa, e sim um comprido colete de ferreiro que deixava os braços à mostra. Aquele poderia ser qualquer sonho, talvez, exceto pela consciência de que era um sonho. E Perrin conhecia a sensação do sonho de lobo, a realidade e a concretude da grama alta ao redor de suas botas, da brisa que soprava do oeste e bagunçava seus cabelos cacheados, dos carvalhos e pinheiros espalhados pelo campo aberto. No entanto, os carroções berrantes dos latoeiros não pareciam reais, tinham um ar de insubstancialidade, passavam a sensação de que iriam piscar e desaparecer a qualquer momento. Os latoeiros nunca permaneciam muito tempo em um lugar. Nenhum solo os segurava.
Perguntando-se quanta influência a terra exercia sobre ele, Perrin pousou a mão no machado — e olhou para baixo, surpreso. O que pendia no passante do cinto era o pesado martelo de ferreiro, não o machado. Ele franziu a testa. Um dia teria escolhido esse caminho, até pensara que tinha, mas sem dúvida não era mais o caso. O machado. Escolhera o machado. A cabeça do martelo de súbito transformou-se em uma lâmina em meia-lua e uma ponteira grossa, então tremulou e reassumiu a forma do cilindro robusto de aço frio, depois flutuou entre as duas. Por fim, repousou como machado, e ele expirou lentamente. Isso nunca acontecera antes. Ali, conseguia alterar as coisas com facilidade, pelo menos as que tinham relação com ele mesmo.
— E eu quero o machado — disse com firmeza. — O machado.
Ao olhar em volta, Perrin viu apenas uma casa de fazenda ao sul, com cervos pastando no campo de cevada, rodeado por um muro de pedra bruta. Não sentia a presença de lobos, e não chamou Saltador. O lobo poderia vir ou não, poderia nem ouvir, mas havia grandes chances de o Matador estar em algum canto por ali. Sentiu de repente o peso de uma aljava rústica, com o couro ainda coberto do pelo do animal, em seu cinturão do lado oposto ao machado, e em sua mão surgiu um arco longo robusto, com uma flecha de ponta chata já encaixada. Uma braçadeira comprida de couro cobria seu antebraço esquerdo. Nada se movia além dos cervos.
— Pouco provável que eu acorde logo — resmungou para si mesmo. Fosse o que fosse a tal coisa que Faile dera a ele, o nocauteara de vez. Perrin lembrava-se do que acontecera tão bem que era como se estivesse na sua frente. — Me empurrou aquele troço pela goela como se eu fosse um bebê — grunhiu. — Mulheres!
Deu uma de suas longas passadas — a paisagem ao redor ficou turva — e adentrou o pátio da fazenda. Havia duas ou três galinhas à solta, correndo como se fossem selvagens. O curral de ovelhas, com paredes de pedra, permanecia vazio, e os dois celeiros com telhado de palha estavam fechados com barras. Apesar das cortinas ainda nas janelas, a casa de dois andares parecia vazia. Se aquilo era um reflexo real do mundo desperto — e os sonhos de lobo, estranhamente, costumavam ser — então já não havia gente ali há dias. Faile tinha razão. Sua advertência se espalhara para além dos lugares onde ele tinha ido.
— Faile — murmurou, assombrado. Filha de um lorde. Não, não só um lorde. Três vezes lorde, general e tio de uma rainha. — Luz, e ela ainda é prima de uma rainha! — E amava um simples ferreiro. As mulheres eram estranhas e surpreendentes.
Procurando ver até onde as notícias tinham chegado, Perrin ziguezagueou por mais da metade do caminho até Trilha de Deven, uma milha ou mais a cada passada, retornando e entrecortando o caminho de ida. A maioria das fazendas que via mostravam o mesmo vazio. Em menos de uma a cada cinco havia sinais de algum habitante, como janelas e portas abertas, bonecas, argolas e cavalos esculpidos em madeira caídos na soleira de uma porta. Os brinquedos, em especial, faziam seu estômago revirar. Ainda que não tivessem acreditado no aviso dele, sem dúvida poderiam ter acreditado nas muitas fazendas incendiadas, pilhas de vigas de madeira desabadas, chaminés pretas de fuligem, mais parecendo dedos mortos e rígidos.
Ele se inclinou para ajeitar uma boneca de rosto vítreo e sorridente e um vestido com bordado de flores — alguma mulher amava muito a própria filha, para ter todo aquele trabalho de costura — e piscou. A mesma boneca permanecia nos degraus de pedra bruta de onde acabara de apanhá-la. Quando estendeu o braço, a que estava em sua mão sumiu.
Lampejos negros no céu o distraíram de seu espanto. Corvos, um grupo de vinte ou trinta, voavam em direção à Floresta do Oeste. Em direção às Montanhas da Névoa, onde tinha visto o Matador pela primeira vez. Perrin observou com frieza enquanto os corvos se esvaneciam até virar pontinhos negros e desaparecer. Então partiu atrás deles.
A cada passada ligeira e comprida, avançava cinco milhas, a paisagem ao redor toda borrada, exceto nos momentos entre um passo e outro. Seguia pela Floresta do Oeste, rochosa e repleta de árvores, cruzando as Colinas de Areia, cheias de arbustos, adentrando as montanhas enevoadas onde abetos, pinheiros e folhas-de-couro revestiam os vales e as encostas. Avançou até chegar ao mesmo vale onde vira pela primeira vez o homem que Saltador chamava de Matador, até a encosta da montanha por onde retornara a Tear.
O Portal dos Caminhos permanecia ali, fechado, a folha de Avendesora aparentemente apenas uma entre uma miríade de folhas e trepadeiras entalhadas com detalhes intrincados. Árvores isoladas, encarquilhadas e marcadas pelo vento pontilhavam o solo esparso na pedra polida onde Manetheren fora incendiada. A luz do sol cintilava sobre as águas do Manetherendrelle, mais abaixo. Um vento fraco vindo do vale trazia cheiro de cervos, coelhos e raposas. Nada se movia, que ele pudesse ver.
Já a ponto de ir embora, parou. A folha de Avendesora. Uma folha. Loial trancara o Portal dos Caminhos colocando as duas folhas daquele lado. Ele se virou, e os pelos de sua nuca se eriçaram. Viu o Portal dos Caminhos aberto, duas massas iguais de folhagem viva revolvendo com a brisa, expondo aquela superfície prateada e opaca. Seu reflexo brilhava sobre ela. Como assim?, perguntou-se. Loial trancou essa porcaria.
Sem se dar conta de que cruzara a distância até a entrada, viu-se de súbito bem diante do Portal dos Caminhos. A folha de três pontas não estava no meio do emaranhado verdejante do lado de dentro dos dois portões. Era estranho pensar que, naquele mesmo instante, no mundo desperto, alguém — ou algo — estava passando bem onde ele se encontrava. Perrin tocou a superfície opaca e grunhiu. Poderia muito bem ser um espelho. Sua mão deslizou na superfície como deslizaria por sobre o vidro mais delicado.
De canto de olho, notou que de repente a folha de Avendesora voltara ao lugar, do lado de dentro, e deu um salto para trás no exato instante em que o Portal dos Caminhos começou a se fechar. Alguém — ou algo — saíra… ou entrara. Saiu. Só pode ter saído. Queria duvidar que fossem mais Trollocs e Desvanecidos a caminho de Dois Rios. Os portões se fundiram, transformando-se outra vez em pedra entalhada.
A sensação de estar sendo observado foi a única advertência que teve. Saltou para o lado. Teve uma visão borrada de algo passando feito um raio onde seu peito estivera. Uma flecha. Tinha dado um daqueles saltos que transformavam o mundo ao redor em um borrão, e pousou em uma encosta ao longe. Então, saltou outra vez, saindo do vale de Manetheren e entrando em uma planície com imensos abetos. Depois, repetiu o movimento. Corria, pensando depressa, reprisando em sua mente o vale e aquele breve vislumbre da flecha. Tinha vindo daquela direção, e tinha aquele ângulo quando o alcançou, então só podia ter vindo de…
Um último salto o levou de volta a uma encosta acima da sepultura de Manetheren. Ficou agachado entre uns poucos pinheiros entortados pelo vento, o arco preparado para atirar. Abaixo dele, de entre as árvores mirradas e os pedregulhos, a flecha fora disparada. O Matador devia estar em algum ponto ali embaixo. Tinha de estar…
Sem pensar, Perrin saltou para longe, e as montanhas se transformaram em um borrão cinza, marrom e verde.
— Quase — grunhiu.
Quase repetira o erro da Floresta das Águas. Mais uma vez, pensara que um inimigo se deslocaria de acordo com sua vontade, que o esperaria onde Perrin desejasse.
Dessa vez, correu o mais depressa que pôde, apenas três saltos muito velozes até a beirada das Colinas de Areia, torcendo para não ter sido visto. Então deu a volta, saindo em um ponto mais alto da mesma encosta, bem acima, onde o ar era mais rarefeito, e as poucas árvores eram arbustos de troncos grossos, a cinquenta passadas de distância uma da outra ou mais. Estava bem no alto, onde um homem poderia se posicionar para vigiar outro que pretendesse chegar sorrateiro ao local de onde aquela flecha fora disparada.
E lá estava sua presa, cem passos abaixo, cabelos e casaco escuros. Um homem alto, acocorado ao lado de um afloramento de granito do tamanho de uma mesa, o arco na mão, analisando a encosta mais abaixo com uma paciência dedicada. Era a primeira vez que Perrin dava uma boa olhada no sujeito. Cem passadas era uma distância curta para seus olhos. O casaco daquele Matador tinha o estilo das Terras da Fronteira, e o rosto parecia tanto com o de Lan que os dois poderiam ser irmãos. Só que Lan não tinha irmãos — ou nenhum parente vivo, até onde Perrin sabia — e, ainda que tivesse, o sujeito não estaria ali. Pois bem, o homem era das Terras da Fronteira. Talvez shienarano, embora seus cabelos fossem mais compridos, sem as laterais raspadas de forma a restar apenas o rabo de cavalo, e presos com uma corda de couro, como os de Lan. O homem não podia ser malkieri. Lan era o último malkieri vivo.
Fosse lá de onde o sujeito viesse, Perrin não sentiu remorso algum em preparar o arco e mirar a flecha de ponta larga para as costas do Matador. O homem tentara matá-lo em uma emboscada. Um disparo encosta abaixo seria complicado.
Talvez tivesse demorado demais, ou talvez o sujeito tivesse sentido o olhar frio que Perrin lhe direcionava, mas de súbito o Matador tornou-se um borrão, disparando para longe em direção ao leste.
Perrin soltou um palavrão e saiu atrás, três passadas até as Colinas de Areia, mais uma até a Floresta do Oeste. O Matador desapareceu por entre os carvalhos, as folhas-de-couro e a vegetação rasteira.
Perrin parou e escutou. Silêncio. Os esquilos e pássaros estavam imóveis. Inspirou profundamente. Um pequeno bando de cervos passara por ali havia pouco tempo. Também sentiu o leve traço de algo. Era humano, porém frio demais para ser um homem, desprovido demais de emoção. Um odor cuja familiaridade instigava seu pensamento. O Matador estava próximo. O ar parecia tão inerte quanto a floresta. Não havia qualquer brisa para informar de onde vinha aquele cheiro.
— Belo truque, Olhos-Dourados, trancar o Portal dos Caminhos.
Perrin ficou tenso, apurando os ouvidos. Não havia como dizer de que ponto daquele denso matagal viera a voz. Nem uma única folha se mexia.
— Se você soubesse quantos Forjados das Sombras morreram tentando sair dos Caminhos por ali, ficaria feliz. Machin Shin se refestelou naquele portão, Olhos-Dourados. Mas não foi um truque bom o bastante. Você mesmo viu: o portão agora está aberto.
Ali, à direita. Perrin deslizou pelas árvores, tão silencioso como quando caçara pelo lugar.
— No começo, foram só umas poucas centenas, Olhos-Dourados. Só o suficiente para desestabilizar aqueles imbecis dos Mantos-brancos e garantir a morte do renegado. — A voz do Matador se encheu de raiva. — Que a Sombra me consuma se aquele homem não tiver mais sorte que a Torre Branca. — De repente, o sujeito soltou uma risada. — Mas você, Olhos-Dourados… sua presença foi uma surpresa. Tem gente que quer ver sua cabeça em um espeto. Sua preciosa Dois Rios será arrasada de ponta a ponta, para que você seja arrancado de lá. O que me diz, Olhos-Dourados?
Perrin permanecia parado ao lado do tronco retorcido de um grande carvalho. Por que o homem falava tanto? Por que estava falando? Está me atraindo para ele.
Colando as costas no tronco robusto do carvalho, ele examinou a floresta. Nenhum movimento. O Matador queria que ele se aproximasse. Com certeza era uma emboscada. E Perrin queria encontrar o homem e dilacerar a garganta dele. No entanto, poderia acabar morrendo, e, se isso acontecesse, ninguém saberia que o Portal dos Caminhos estava aberto, nem que os Trollocs estavam avançando às centenas, talvez aos milhares. Não entraria no jogo do Matador.
Com um sorriso infeliz, saiu do sonho de lobo, se forçando a acordar, e…
… Faile passou os braços ao redor de seu pescoço e mordiscou sua barba com os dentinhos brancos, enquanto as rabecas dos latoeiros entoavam uma melodia cálida e alegre ao redor das fogueiras. O pó de Ila. Não consigo acordar! A consciência de que estava sonhando se esvaneceu. Rindo, tomou Faile nos braços e a conduziu para as sombras, onde a grama era macia.
O despertar foi um processo lento, embalado pela dor indistinta na lateral do corpo. A luz do dia entrava pelas pequenas janelas. Luz clara. Manhã. Ele tentou se sentar e desabou de volta, com um grunhido.
Faile saltou de um banquinho baixo. Pelo aspecto dos olhos negros, não tinha dormido.
— Fique deitado — mandou. — Você já se debateu demais durante o sono. Não dei tudo de mim tentando impedir você de rolar e acabar enfiando esse troço ainda mais para dentro só para você fazer isso agora, acordado. — Ihvon permanecia parado, encostado na porta feito uma lâmina negra.
— Me ajude a levantar — pediu Perrin. Falar doía, mas respirar também, e ele precisava falar. — Preciso ir até as montanhas. Até o Portal dos Caminhos.
Faile pôs a mão na testa dele, franzindo o rosto.
— Sem febre — murmurou. Depois, mais alto: — Você vai para Campo de Emond, onde uma Aes Sedai vai poder Curá-lo. Você não vai se matar tentando cavalgar até as montanhas com uma flecha cravada no corpo. Está me escutando? Se eu ouvir mais uma palavra que seja sobre montanhas ou Portais dos Caminhos, vou mandar Ila preparar outra mistura para você voltar a dormir, e aí você viajar em cima de uma liteira. Talvez até fosse melhor, mesmo.
— Os Trollocs, Faile! O Portal dos Caminhos está aberto outra vez! Preciso impedi-los!
A mulher sequer hesitou antes de balançar a cabeça.
— Você não pode fazer nada em relação a isso, não no estado em que se encontra. Você vai para Campo de Emond e ponto final.
— Mas…!
— Não me venha com “mas”, Perrin Aybara. Nem mais uma palavra.
Ele rangeu os dentes. O pior era que a mulher estava certa. Se não conseguia se levantar sozinho de uma cama, como poderia ir até Manetheren montado em uma sela?
— Campo de Emond — concordou calmamente, mas Faile ainda fungou e resmungou algo sobre “cabeça-dura”. O que ela queria? Eu fui delicado, e que a Luz a queime por ser tão teimosa!
— Então chegarão mais Trollocs — comentou Ihvon, pensativo. Não perguntou como Perrin sabia. Depois balançou a cabeça, como se dispensasse a informação. — Avisarei aos outros que você acordou. — Saiu depressa, fechando a porta atrás de si.
— Será que eu sou o único que vê o perigo? — resmungou Perrin.
— Eu vejo uma flecha cravada em você — retrucou Faile, com firmeza.
O lembrete trouxe uma pontada de dor. Perrin sufocou um ganido e ela meneou a cabeça, satisfeita. Satisfeita!
Queria se levantar e partir naquele instante. Quanto mais cedo fosse Curado, mais cedo poderia ir fechar o Portal dos Caminhos, e dessa vez seria definitivamente. Faile insistiu em lhe dar o café da manhã na boca, um caldo espesso com purê de vegetais, próprio para um bebezinho banguela. Uma colherada de cada vez, com pausas para limpar o queixo. E não permitiu que ele comesse sozinho. Quando ele protestava ou pedia que ela acelerasse o ritmo, Faile o fazia engolir de volta as palavras com mais uma colherada de papa. Não permitiu sequer que ele lavasse o próprio rosto. Quando começou a escovar seus cabelos e pentear a barba, Perrin já havia caído em um silêncio digno.
— Você fica lindo de mau humor — comentou ela. E beliscou seu nariz!
Ila, que naquela manhã usava blusa verde e saia azul, subiu no carroção trazendo o casaco e a camisa dele, ambos limpos e cerzidos. Para sua irritação, precisou da ajuda das duas mulheres para se vestir. Precisou de ajuda para se sentar para se vestir, o casaco desabotoado e a camisa para fora da calça, emboladinha em volta do toco da flecha.
— Obrigado, Ila — disse, passando os dedos pelos remendos caprichados. — A costura está excelente.
— Está mesmo — concordou a mulher. — Faile é muito habilidosa com a agulha.
A jovem enrubesceu, e Perrin abriu um sorriso, pensando em como ela fora firme em dizer que nunca remendaria as roupas dele. Um lampejo nos olhos da garota o fez segurar a língua. Às vezes, o silêncio era a atitude mais sábia.
— Obrigado, Faile — disse, em vez de zombar, em um tom sério.
A jovem enrubesceu ainda mais.
Depois que as mulheres o puseram de pé, Perrin conseguiu chegar à porta sem maiores dificuldades, mas precisou se apoiar nas duas para descer os degraus de madeira. Pelo menos os cavalos estavam selados, e todos os rapazes de Dois Rios, reunidos, os arcos pendurados nas costas. De caras e roupas limpas, com apenas alguns curativos à mostra.
Uma noite com os Tuatha’an fora claramente suficiente para melhorar os ânimos do grupo, mesmo dos que ainda pareciam não conseguir caminhar nem cem passos. Os olhos mostravam apenas um resquício do esgotamento que era evidente na noite anterior. Wil tinha uma bela garota latoeira de olhos grandes em cada braço, é claro, e Ban al’Seen, com aquele nariz e uma atadura na cabeça que fazia o cabelo escuro ficar eriçado como um arbusto, estava de mãos dadas com uma terceira, de sorriso tímido. A maioria dos outros rapazes segurava tigelas com um cozido espesso de vegetais, que eles comiam com gosto.
— Isso é bom, Perrin — comentou Dannil, entregando a tigela vazia para uma mulher latoeira. Ela gesticulou, querendo saber se o varapau comeria mais, e ele balançou a cabeça, mas disse: — Acho que nunca me cansaria de comer isso, e você?
— Já estou satisfeito — respondeu Perrin, em um tom amargo. Purê de vegetais e caldo.
— As garotas latoeiras dançaram, ontem à noite — comentou Tell, irmão de Dannil, os olhos arregalados. — Todas as solteiras, e algumas das casadas! Você devia ter visto, Perrin.
— Já vi latoeiras dançando antes, Tell.
Aparentemente, não conseguira disfarçar o que sentira vendo as moças, pois Faile retrucou, em um tom seco:
— Você já viu a tiganza, foi? Um dia, se for bonzinho, eu danço a sa’sara para você. Aí vai ver o que é uma dança de verdade. — Ila soltou um arquejo ao reconhecer o nome, e Faile ficou ainda mais corada do que ficara no quarto.
Perrin apertou os lábios. Se essa sa’sara fizesse o coração bater mais forte do que o gingado lânguido dos quadris das latoeiras… tiganza, era isso? Definitivamente iria querer assistir a uma dança de Faile. Teve a prudência de não olhar para a jovem.
Raen chegou, vestindo o mesmo casaco verde-claro, porém com calças mais vermelhas do que qualquer uma que Perrin já tivesse visto. A combinação dava dor de cabeça.
— Por duas vezes você visitou nossas fogueiras, Perrin, e, pela segunda vez, vai embora sem uma festa de despedida. Precisa voltar logo, para podemos corrigir esse erro.
Afastando-se de Faile e Ila — conseguia ao menos ficar de pé sozinho — Perrin pousou a mão no ombro do homem forte.
— Venham com a gente, Raen. Ninguém em Campo de Emond fará mal a vocês. Pelo menos é mais seguro do que aqui fora, com os Trollocs.
Raen hesitou, depois sacudiu o corpo, murmurando:
— Não sei como você consegue a proeza de me fazer sequer considerar esse tipo de coisa. — Ele se virou e disse, em voz alta: — Povo, Perrin nos chamou para ir com ele até sua aldeia, onde estaremos a salvo dos Trollocs. Quem deseja ir? — Rostos em choque o encararam de volta. Algumas mulheres puxaram as crianças para perto, que se esconderam debaixo das saias das mães, como se a mera ideia já as assustasse. — Entende, Perrin? — perguntou Raen. — Para nós, a segurança está no deslocamento, não nas aldeias. Garanto a você que não passamos duas noites no mesmo lugar, e viajamos o dia inteiro até parar de novo.
— Talvez isso não seja o bastante, Raen.
O Mahdi deu de ombros.
— Sua preocupação me comove, mas nós vamos ficar a salvo, se for o que a Luz desejar.
— O Caminho da Folha não existe apenas para que não haja violência — interveio Ila, com gentileza — mas para que aceitemos o que vem. A folha cai na hora certa, sem reclamar. A Luz vai nos proteger enquanto não for a nossa hora.
Perrin quis discutir, mas debaixo de toda a ternura e compaixão em seus rostos havia uma firmeza rígida. Achava que conseguiria forçar Bain e Chiad a usar vestidos e abandonar as lanças — ou até mesmo Gaul! — antes de fazer aquela gente ceder um tantinho que fosse.
Raen apertou a mão de Perrin, e, com isso, as mulheres começaram a dar abraços de despedida nos rapazes de Dois Rios e até em Ihvon, e os homens trocaram apertos de mãos, todos rindo e desejando boa viagem, esperando que retornassem. Quase todos. Aram permaneceu afastado em um canto, a testa franzida e as mãos enfiadas nos bolsos do casaco. Na última vez em que o encontrara, Perrin achou que o homem parecia meio azedo, o que era estranho para um latoeiro.
Os homens não se contentaram em apertar a mão de Faile, também a abraçaram. Perrin conseguiu manter a expressão serena quando alguns dos rapazes mais jovens exageraram no entusiasmo, apenas cerrando um pouco os dentes. Conseguiu sorrir. Nenhuma mulher mais jovem que Ila o abraçou. Mesmo quando Faile permitia que algum magrela de casaco pomposo a abraçasse e tentasse dar uns apertões em suas bochechas, parecia dar um jeito de vigiá-lo feito um cão de guarda. As mulheres sem cabelos grisalhos davam uma olhadela para o rosto dela e escolhiam outra pessoa. Enquanto isso, Wil parecia beijar todas as mulheres do acampamento. Ban também, com aquele nariz. Aliás, até Ihvon estava se divertindo. Seria bem feito para Faile se algum daqueles sujeitos quebrasse suas costelas.
Enfim os latoeiros se afastaram, exceto por Raen e Ila, abrindo um espaço em torno do pessoal de Dois Rios. O homem magro e grisalho se curvou em uma mesura formal, com as mãos no peito.
— Vocês vieram em paz. Partam agora em paz. Nossas fogueiras sempre os receberão. O Caminho da Folha é a paz.
— Que a paz esteja sempre com vocês — respondeu Perrin — e com todo o Povo. — Luz, que assim seja. — Eu encontrarei a canção, ou outro a encontrará, mas a canção será cantada, este ano ou em um ano por vir. — Ele se perguntou se algum dia tinha havido uma canção, ou se o início da jornada dos Tuatha’an fora em busca de outra coisa. Elyas dissera que eles não sabiam que canção era, mas saberiam quando a encontrassem. Que encontrem segurança, ao menos. — Assim como foi um dia, assim haverá de ser novamente, neste mundo sem fim.
— Mundo sem fim — responderam os Tuatha’an, em um murmúrio solene. — Mundo e tempo sem fim.
Alguns abraços e apertos de mão finais foram trocados enquanto Ihvon e Faile ajudavam Perrin a montar em Galope. Mais alguns beijos de Wil. E Ban. Ban! Mesmo com aquele nariz! Outros, os bastante feridos, foram erguidos nos cavalos. Os latoeiros acenavam como se dessem adeus a vizinhos que partiam em uma longa viagem.
Raen veio apertar a mão de Perrin.
— Você não quer reconsiderar? — indagou o rapaz de Dois Rios. — Lembro que disse uma vez que havia maldade solta no mundo. Está pior agora, Raen, e está aqui.
— Que a paz esteja convosco, Perrin — respondeu Raen, com um sorriso.
— E convosco — retrucou o rapaz, em um tom triste.
Os Aiel só apareceram quando o grupo já estava uma milha a norte do acampamento dos latoeiros. Bain e Chiad olharam para Faile antes de seguir adiante, até a posição de sempre. Perrin não sabia ao certo o que as duas pensavam que poderia acontecer com Faile no meio dos Tuatha’an.
Gaul postou-se ao lado de Galope, caminhando a passos largos sem esforço. O grupo não avançava muito depressa, com metade dos homens a pé. Ele lançou um olhar avaliativo a Ihvon, como de costume, antes de virar-se para Perrin.
— Sua ferida melhorou?
A ferida doía terrivelmente. Cada passo do cavalo dava um solavanco naquele toco de flecha.
— Estou ótimo — respondeu, sem cerrar os dentes. — Talvez consiga até dançar em Campo de Emond, hoje à noite. E você? Passou uma noite boa jogando O Beijo da Donzela? — Gaul tropeçou e quase caiu de cara no chão. — O que houve?
— Quem foi que você ouviu sugerir esse jogo? — perguntou o Aiel, baixinho, com o olhar fixo à frente.
— Chiad. Por quê?
— Chiad — resmungou Gaul. — A mulher é Goshien. Goshien! Eu devia levá-la de volta às Águas Quentes como gai’shain. — As palavras pareciam raivosas, mas não no tom singular do homem. — Chiad.
— Pode me dizer qual é o problema?
— Um Myrddraal tem menos astúcia que uma mulher — respondeu Gaul, impassível — e um Trolloc luta com mais honra. — Depois de um instante acrescentou, em um tom feroz e mais baixo: — E um bode é mais sensato.
Então apressou o passo e correu adiante para juntar-se às Donzelas. Não falou com elas, pelo que Perrin pôde perceber, apenas reduziu a marcha para caminhar ao lado das duas.
— Você entendeu alguma coisa? — perguntou Perrin a Ihvon.
O Guardião balançou a cabeça.
Faile fungou com desdém.
— Se ele está pensando em causar problemas a elas, as duas vão pendurá-lo de cabeça para baixo em um galho, para esfriar a cabeça.
— Você entendeu? — perguntou Perrin. Faile continuou andando, sem olhar para ele nem responder, o que Perrin interpretou como uma negativa. — Acho que talvez precise cruzar outra vez com o acampamento de Raen. Tem muito tempo que não vejo a tiganza. Foi… interessante.
Ela resmungou algo entre dentes, mas ele entendeu: “Você é que devia ser pendurado de cabeça para baixo!”
Perrin olhou para baixo e abriu um sorriso.
— Mas não vou precisar. Você prometeu dançar essa tal de sa’sara para mim. — Um rubor subiu pelo rosto da jovem. — É parecida com a tiganza? Quer dizer, se não for, não faz muito sentido.
— Seu idiota descerebrado! — gritou ela, de repente, cravando os olhos em Perrin. — Homens deitaram seus corações e fortunas aos pés de mulheres que dançaram a sa’sara. Se minha mãe suspeitasse que sei dançar…
Faile cerrou os dentes, como se tivesse falado demais, e voltou a olhar para a frente. O rubor a cobria por inteiro, desde os cabelos escuros até o decote do vestido.
— Não tem motivo para você dançar — murmurou ele. — Meu coração e fortuna já estão inteirinhos a seus pés.
Faile tropeçou, depois riu baixinho e pressionou o rosto contra a panturrilha dele, coberta pela bota.
— Você é esperto demais — sussurrou. — Um dia vou dançar para você, e seu sangue vai ferver.
— Você já faz isso comigo — respondeu Perrin, e a jovem riu outra vez.
Ela enfiou o braço por trás do estribo e abraçou a perna dele enquanto caminhava.
Depois de um tempo, nem a ideia de Faile dançando — ele imaginou como seria, exagerando a dança das latoeiras, mas tinha que ser muito impressionante para superar — era capaz de competir com a dor na lateral do corpo. Cada passo de Galope era uma agonia. Ele se aguentava com as costas bem retas. Parecia doer um pouquinho menos se sentasse desse jeito. Além do mais, não queria estragar a injeção de ânimo que os Tuatha’an tinham dado ao grupo. Os outros homens também estavam empertigados nas selas, mesmo os que no dia anterior pareciam cabisbaixos e coxos. E Ban, Dannil e os outros caminhavam de cabeça erguida. Perrin não seria o primeiro a esmorecer.
Wil começou a assobiar “Voltando da Falha de Tarwin”, e uns três ou quatro o acompanharam. Depois de um tempo, Ban começou a cantar, a voz grave e clara:
“Minha casa espera por mim,
e a moça que deixei para trás.
Dos tesouros que esperam por mim,
esse é o que desejo mais.
De olhos alegres e um sorriso para adoçar,
com abraços quentes e lindo caminhar,
e beijos ferventes para me amansar.
Tesouro maior em minha mente não há.”
Outros se juntaram no segundo verso, e logo todos estavam cantando, até Ihvon. E Faile. Não Perrin, naturalmente. Muita gente já tinha dito que ele cantava igual a um sapo esmagado. Alguns até começaram a caminhar no compasso da canção.
“Ora, a sombria Fenda de Tarwin eu vi,
E uma horda de Trollocs conheci.
De um Meio-homem um ataque sofri,
e na cara fria da morte sorri.
Mas uma linda garota espera por mim
na macieira, para uma dança e beijos sem fim…”
Perrin balançou a cabeça. Um dia antes, eles estavam prontos para fugir e se esconder. Hoje, cantavam sobre uma batalha tão antiga que deixara em Dois Rios apenas a lembrança dessa canção. Talvez estivessem virando soldados. Teriam de virar, a menos que ele conseguisse fechar o Portal dos Caminhos.
Fazendas começaram a aparecer com mais frequência, mais próximas, até que o grupo se viu cruzando um trecho de terra batida entre campos margeados por cercas-vivas ou muros baixos de pedra bruta. Fazendas abandonadas. Ninguém ali era apegado à terra.
O grupo chegou à Estrada Velha, que corria a norte do Rio Branco, o Manetherendrelle, por Trilha de Deven até Campo de Emond. Enfim começaram a ver ovelhas nos pastos, agrupadas aos montes como se fossem rebanhos de doze homens reunidos, com dez pastores onde antes teriam visto um, metade deles homens feitos. Pastores levando arcos os observaram passar, cantando a plenos pulmões, sem saber muito bem o que pensar.
Perrin também não soube o que pensar de sua primeira visão de Campo de Emond, e, pelo jeito como a cantoria titubeou e morreu, nem os outros homens de Dois Rios.
As árvores, cercas e sebes mais próximas da aldeia haviam simplesmente desaparecido, sido cortadas. As casas mais a oeste de Campo de Emond um dia estiveram rodeadas das árvores da orla da Floresta do Oeste. Os carvalhos e folhas-de-couro entre as casas permaneciam, mas a floresta começava a quinhentos passos, a distância de uma flechada longa, e os machados ressoavam enquanto os homens trabalhavam para cortar ainda mais troncos. Fileiras e mais fileiras de estacas da altura da cintura de um homem, cravadas inclinadas no chão, rodeavam a aldeia a curta distância das casas, formando um cercado contínuo de pontas afiadas, exceto onde passava a estrada. Nos intervalos entre as estacas havia homens parados feito guardas, alguns vestindo partes de armaduras antigas ou camisas de couro com discos de aço enferrujado costurados, uns poucos usando quepes velhos e amassados, com lanças de caça, alabardas desenterradas dos sótãos ou ganchos presos a bastões compridos. Mais homens, e também alguns garotos, todos com arcos nas mãos, vigiavam do alto de alguns dos telhados de sapê. Levantaram-se ao avistar Perrin e os outros chegando e gritaram para os que estavam embaixo.
Ao lado da estrada, atrás das estacas, havia uma geringonça feita de madeira e uma corda grossa retorcida e, bem perto, uma pilha de pedras maiores que uma cabeça humana. Ihvon percebeu a cara fechada de Perrin, enquanto se aproximavam.
— Catapultas — comentou o Guardião. — Já são seis. Seus carpinteiros souberam o que fazer, quando Tomas e eu mostramos como eram as máquinas. As estacas impedirão a investida dos Trollocs ou dos Mantos-brancos, qualquer um dos dois. — Pelo tom, o homem poderia estar falando sobre a possibilidade de mais chuvas.
— Eu disse que sua aldeia estava se preparando para se defender sozinha. — Faile soava firme e orgulhosa, como se a aldeia fosse dela. — Um povo forte, para uma terra tão branda. Quase poderiam ser de Saldaea. Moiraine sempre disse que o sangue de Manetheren ainda corre forte por aqui.
Perrin só conseguiu balançar a cabeça.
As ruas de terra batida estavam quase apinhadas o bastante para uma cidade, os espaços entre as casas, repletos de carros e carroções. Dava para ver ainda mais gente atrás das portas abertas e janelas sem cortinas. A multidão abriu espaço para Ihvon e os Aiel, e murmúrios e sussurros os acompanharam pela rua.
— É Perrin Olhos-Dourados.
— Perrin Olhos-Dourados.
Queria que o povo não fizesse aquilo. Aquela gente o conhecia, ao menos alguns deles. O que pensavam que estavam fazendo? Lá estava Neysa Ayellin, com sua cara de cavalo, que lhe dera umas palmadas no bumbum aos dez anos de idade, naquela vez em que Mat o convencera a roubar uma de suas tortas de groselha. E Cilia Cole, com bochechas rosadas e olhos grandes, a primeira garota que beijara, ainda roliça e atraente. E Pel Aydaer, com seu cachimbo e sua cabeça careca, que ensinara Perrin a caçar trutas com as mãos. Além da própria Daise Congar, uma mulher alta e corpulenta que fazia Alsbet Luhhan parecer meiga, e seu marido, Wit, um homem magrelo, sempre sobrepujado pela esposa. Todos o encaravam e sussurravam para o povo de fora, que talvez não soubesse quem ele era. Quando o velho Cenn Buie ergueu um garoto nos ombros, apontando para Perrin e falando de um jeito animado, o rapaz grunhiu. Estavam todos loucos.
O povo da aldeia acompanhou seu grupo, uma marcha que suscitou uma onda de murmúrios. Galinhas corriam por todos os cantos, por entre os pés das pessoas. Os gritos de bezerros e guinchos de porcos nos currais competiam com o barulho dos humanos. Ovelhas se apinhavam pelo campo comunitário, e vacas leiteiras malhadas pastavam a grama na companhia de gansos cinza e brancos.
Bem no meio do campo comunitário havia um poste comprido com um estandarte branco de bordas vermelhas no topo. O tecido tremulava devagar, exibindo a cabeça vermelha de um lobo. Perrin encarou Faile, mas a jovem balançou a cabeça, tão surpresa quanto ele.
— Um símbolo.
Perrin não tinha ouvido Verin se aproximar, mas agora percebia os sussurros baixinhos de “Aes Sedai” ao redor dela. Ihvon não parecia surpreso. O povo a encarava, assombrado.
— O povo precisa de símbolos — prosseguiu Verin, pousando a mão no ombro de Galope. — Quando Alanna contou aos aldeões o quanto os Trollocs temiam os lobos, todo mundo começou a achar esse estandarte uma ótima ideia. Você não concorda, Perrin? — Haveria uma frieza na voz dela? Seus olhos escuros o encaravam, feito os de um pássaro. Um pássaro prestes a apanhar um verme?
— Fico me perguntando o que a Rainha Morgase vai pensar disso — comentou Faile. — Isso aqui faz parte de Andor. Rainhas não gostam muito de ver estandartes estranhos sendo erguidos em seus domínios.
— São só linhas num mapa — retrucou Perrin. Era bom estar parado. A flecha parecia ter diminuído um pouquinho o latejar. — Eu nem sabia que essa terra era parte de Andor antes de ir a Caemlyn. E duvido que muita gente por aqui saiba.
— Os governantes têm a tendência de acreditar nos mapas, Perrin. — Não havia dúvidas quanto à frieza na voz de Faile. — Quando eu era pequena, havia algumas partes de Saldaea que não viam um coletor de impostos há cinco gerações. Quando meu pai conseguiu desviar a atenção da Praga por um tempinho, Tenobia garantiu que o povo de lá soubesse quem era a rainha.
— Isso aqui é Dois Rios — respondeu ele, abrindo um sorriso — não Saldaea. — Eles pareciam muito ameaçadores, esse povo de Saldaea. Quando Perrin virou-se de volta para Verin, o sorriso transformou-se em uma careta de desgosto. — Pensei que você estivesse… escondendo… quem é. — Não sabia o que era mais perturbador: uma Aes Sedai em segredo, ou uma Aes Sedai às claras.
A mão da mulher pairou a um milímetro do toco de flecha quebrada que se projetava da lateral do corpo de Perrin. O entorno da ferida começou a formigar.
— Ah, isso não é bom — murmurou. — Acertou a costela e infeccionou, apesar do cataplasma. Acho que vou precisar de Alanna. — Ela piscou e recolheu a mão. O formigamento também desapareceu. — O quê? Escondendo? Ah. Com tudo o que veio à tona, não conseguimos mais permanecer escondidas. Acho que poderíamos ter… ido embora. Mas você não iria querer isso, não é mesmo? — Lá estava outra vez aquele olhar penetrante e avaliador, feito o de um pássaro.
Perrin hesitou, mas enfim soltou um suspiro.
— Acho que não.
— Ah, que bom ouvir isso — respondeu a mulher, com um sorriso.
— Por que você veio para cá, Verin, de verdade?
A Aes Sedai pareceu não ouvi-lo. Ou não quis ouvir.
— Agora temos que ver esse seu problema. E esses outros rapazes também precisam de cuidados. Alanna e eu vamos tratar dos piores, mas…
Os outros homens ficaram tão atônitos com o que encontraram quanto ele. Ban coçou a cabeça ao olhar o estandarte, e alguns ficaram apenas olhando ao redor, estupefatos. Mas a maioria encarava Verin, todos apreensivos e de olhos arregalados. Sem dúvida haviam ouvido os sussurros de “Aes Sedai”. O próprio Perrin percebeu que não escapava totalmente àqueles olhares, já que estava de conversa com uma Aes Sedai, como se fosse qualquer mulher da aldeia.
Verin devolveu o olhar do grupo, então, de súbito, sem nem olhar, esticou o braço para trás e apanhou uma garota de uns dez ou doze anos dentre os espectadores. A garota, de cabelos longos e escuros presos com fitas azuis, enrijeceu com o choque.
— Você conhece Daise Congar, garota? — perguntou Verin. — Bom, vá atrás dela e diga que tem homens feridos precisando de umas ervas da Sabedoria. E mande-a se apressar. Diga que não tenho paciência para a empáfia dela. Entendeu? Agora vá.
Perrin não reconheceu a garota, mas era evidente que ela conhecia Daise, pois se encolheu com a mensagem. Ainda assim, Verin era Aes Sedai. Depois de um instante avaliando o que era pior — Daise Congar ou uma Aes Sedai — a menina disparou pela multidão.
— Alanna vai dar um jeito em você — disse Verin, encarando-o outra vez.
Perrin desejou que as palavras dela não dessem margem a tantas interpretações.