Vestida apenas com sua anágua folgada, Egwene respirou fundo e deixou o anel de pedra ao lado de um livro aberto no criado-mudo. Todo rajado de marrom, vermelho e azul, era largo demais usar no anelar e tinha uma forma estranha, meio achatado e torto, de modo que, se alguém passasse um dedo pela borda de fora, acabaria percorrendo também a de dentro. Havia apenas uma borda, por mais impossível que parecesse. Ela não estava deixando o anel ali porque sem ele poderia falhar, nem porque desejava falhar. Faria isso porque, mais cedo ou mais tarde, precisaria tentar sem o anel, ou jamais conseguiria fazer mais que molhar os dedos nas águas onde sonhava nadar. Poderia muito bem ser agora. Era essa a razão. Era essa.
O livro grosso de capa dura era Uma jornada para Tarabon, de Eurian Romavni, nativo de Kandor — pela data informada pelo autor na primeira linha, o livro fora escrito cinquenta e três anos antes, mas pouco mudara em Tanchico, em tão pouco tempo. Além do mais, fora o único volume que a jovem conseguira encontrar com ilustrações úteis. A maioria dos livros continha apenas retratos de reis ou imagens fantasiosas de batalhas reproduzidas por homens que não as haviam assistido.
A escuridão cobria ambas as janelas, mas os lampiões forneciam luz mais do que suficiente. Uma comprida vela de cera de abelha queimava em um castiçal dourado na mesinha de cabeceira. Ela mesma a apanhara, aquela não era uma boa-noite para pedir velas aos serviçais. A maioria estava cuidando dos feridos, pranteando os entes queridos ou sendo, eles mesmos, cuidados. O número era grande demais, então só era possível Curar os que corriam risco de vida.
Elayne e Nynaeve aguardavam em cadeiras de espaldar alto dispostas de cada lado da cama larga e de colunas altas com entalhes de andorinhas. Tentavam, com diferentes graus de sucesso, esconder o nervosismo. Elayne exibia uma tranquilidade majestosa e bem razoável, estragada apenas pelo franzir do cenho e pelas mordidas nos lábios quando pensava que Egwene não estava olhando. Nynaeve demonstrava uma confiança quase ríspida, que costumava ser reconfortante para a pessoa que ela ajudava a botar de repouso em uma cama macia, mas Egwene reconheceu a expressão em seus olhos. Eles revelavam seu medo.
Aviendha estava sentada de pernas cruzadas ao lado da porta, os tons marrons e cinza destacando-se no azul-escuro do carpete. Dessa vez, a Aiel levava a faca de lâmina comprida em um dos lados do cinto e uma aljava no outro, além de quatro lanças curtas que se encontravam sobre seus joelhos. O pequeno broquel redondo estava à mão, disposto em cima de um arco de chifre enfiado em um estojo de couro trabalhado, com tiras para prender nas costas. Depois da noite que tiveram, Egwene não a culpava por andar armada. Ela mesma desejava ter um raio prontinho para arremessar.
Luz, o que foi que Rand fez? Que o queime, ele me assustou quase tanto quanto os Desvanecidos. Talvez até mais. Não é justo ele ser capaz de fazer algo assim e eu não conseguir sequer ver os fluxos.
Ela subiu na cama, apoiou o livro de capa de couro nos joelhos e franziu o cenho para um mapa de Tanchico. Na verdade, não havia nada de muito útil marcado. Uma dúzia de fortalezas ao redor do ancoradouro, guardando a cidade em suas três penínsulas montanhosas, Verana a leste, Maseta no centro e Calpene mais perto do mar. Inúteis. Várias praças grandes, algumas áreas abertas que pareciam ser parques, diversos monumentos a governantes que havia muito tinham virado pó. Tudo inútil. Alguns palácios e outras coisas que pareciam estranhas. O Grande Círculo, por exemplo, em Calpene. No mapa era apenas um círculo, mas Mestre Romavni o descrevia como uma enorme assembleia capaz de reunir milhares de espectadores para corridas de cavalos ou exibições de fogos de artifício dos Iluminadores. Havia também um Círculo do Rei, em Maseta, que era ainda maior que o Grande Círculo, e um Círculo da Panarca, em Verana, que era apenas um pouquinho menor. A Casa do Capítulo da Guilda de Iluminadores também estava marcada. Era tudo inútil. O texto sem dúvida também não tinha serventia.
— Tem certeza de que quer tentar sem o anel? — perguntou Nynaeve, baixinho.
— Tenho — respondeu Egwene, com toda a calma que pôde. Seu estômago estava tão embrulhado quanto no instante em que vira o primeiro Trolloc aquela noite, erguendo a pobre mulher pelos cabelos e cortando sua garganta como se ela fosse um coelho. A mulher também gritara feito um coelho. Matar o Trolloc não adiantara de nada, a mulher continuava tão morta quanto a criatura. Mas o guincho penetrante que ela soltara não saía de sua cabeça. — Se não funcionar, sempre dá para tentar de novo, com o anel. — Ela se inclinou e marcou a vela com o polegar. — Me acordem quando queimar até aqui. Luz, queria que a gente tivesse um relógio.
Elayne soltou uma risada, um gorjeio jovial que quase soou forçado.
— Relógio dentro do quarto? Minha mãe tem um monte de relógios, mas nunca ouvi falar de um que ficasse dentro de um quarto.
— Bom, meu pai tem um relógio só — resmungou Egwene — o único da aldeia inteira, e eu queria tê-lo aqui comigo. Será que a vela queima isso tudo em uma hora? Não quero dormir mais do que isso. Me acordem assim que a chama atingir a marca. Assim que atingir!
— Pode deixar — disse Elayne, confortando-a. — Eu prometo.
— O anel de pedra — disse Aviendha, de repente. — Já que você não está usando, Egwene, será que alguém… alguma de nós… não poderia usar para ir com você?
— Não — murmurou Egwene. Luz, queria que todas elas pudessem vir comigo. — Mas obrigada por pensar nisso.
— É só você quem pode usar o anel, Egwene? — perguntou a Aiel.
— Qualquer uma de nós pode — respondeu Nynaeve — até você, Aviendha. Não é preciso que uma mulher saiba canalizar, basta dormir com o anel tocando a pele. Pelo que sabemos, pode ser que até um homem consiga. Mas não conhecemos Tel’aran’rhiod tão bem quanto Egwene, não sabemos as regras de lá.
Aviendha assentiu.
— Entendo. Uma mulher pode cometer erros em lugares desconhecidos, e esses erros podem acabar causando a morte de outros ou dela mesma.
— Isso mesmo — concordou Nynaeve. — O Mundo dos Sonhos é um lugar perigoso. Isso, pelo menos, nós sabemos.
— Mas Egwene vai tomar cuidado — acrescentou Elayne, dirigindo-se a Aviendha, mas obviamente falando para a própria Egwene. — Ela prometeu. Vai olhar a área com bastante cautela, nada mais.
Egwene se concentrou no mapa. Com cautela. Se não tivesse tanto ciúme de seu anel de pedra — considerava-o seu. Talvez o Salão da Torre não concordasse, mas não sabiam que ela o possuía — se tivesse deixado Elayne ou Nynaeve usarem-no mais de uma ou duas vezes, talvez elas já soubessem o suficiente para irem com ela. Contudo, não era arrependimento que a fazia evitar encarar as outras mulheres. Não queria que elas vissem o medo em seus olhos.
Tel’aran’rhiod. O Mundo Invisível. O Mundo dos Sonhos. Não os sonhos das pessoas comuns, embora às vezes elas tocassem Tel’aran’rhiod por um breve momento, em sonhos que pareciam verdadeiros como a vida. Porque eram. No Mundo Invisível, o que acontecia era real, de uma forma estranha. Nada do que acontecia lá afetava o que existia — uma porta aberta no Mundo Invisível permaneceria fechada no mundo real, uma árvore derrubada lá ainda estaria de pé ali — mas uma mulher podia ser morta nesse outro mundo, ou até estancada. “Estranho” era muito pouco para descrever. No Mundo Invisível o mundo inteiro jazia aberto, e talvez também outros mundos. Era possível chegar a qualquer lugar. Ou, pelo menos, o reflexo da pessoa no Mundo dos Sonhos podia chegar a qualquer lugar. Lá, a trama do Padrão podia ser lida — passado, presente e futuro — por qualquer um que tivesse essa capacidade. Por um Sonhador. Não houvera um Sonhador na Torre desde Corianin Nedeal, quase quinhentos anos antes.
Quatrocentos e setenta e três anos, para ser mais exata, pensou Egwene. Ou será que já faz quatrocentos e setenta e quatro? Quando foi que Corianin morreu? Se Egwene houvesse tido a chance de terminar o treinamento de noviça na Torre e de estudar lá como Aceita, talvez soubesse. E já poderia ter aprendido tantas outras coisas.
Havia uma lista na bolsa de Egwene com todos os ter’angreal — a maioria pequena o bastante para caber dentro de um bolso — que haviam sido roubados pelas integrantes da Ajah Negra que fugiram da Torre. Cada uma das três tinha uma cópia. Treze dos ter’angreal roubados eram acompanhados das observações “uso desconhecido” e “última análise realizada por Corianin Nedeal”. Porém, ainda que Corianin Sedai de fato não tivesse desvendado a serventia dos objetos, Egwene tinha certeza de uma coisa que faziam. Permitiam a entrada em Tel’aran’rhiod. Talvez não com a mesma facilidade do anel de pedra, e talvez não sem a necessidade de canalizar, mas permitiam.
Haviam recuperado dois itens da lista com Joiya e Amico: um disco de ferro de três polegadas de comprimento com uma espiral estreita traçada de ambos os lados e uma placa pouco menor que sua mão com uma mulher adormecida entalhada no meio. Essa segunda era de um material que parecia ser âmbar-claro, mas firme o bastante para arranhar aço. Amico falara abertamente a respeito deles. Joiya também, depois de uma sessão a sós com Moiraine em sua cela, o que deixara a Amiga das Trevas pálida e quase cortês. Quem canalizasse um fluxo de Espírito em cada um dos ter’angreal caía no sono e entrava em Tel’aran’rhiod. Elayne tentara usar ambos por um tempo, com sucesso, mas conseguiu ver apenas o interior da Pedra e do Palácio Real de Morgase, em Caemlyn.
Egwene não queria que ela tentasse, por mais fugaz que fosse a visita, mas não por ciúmes. Não fora muito eficaz no debate, pois tivera medo de que Elayne e Nynaeve percebessem o que havia em sua voz.
Dois recuperados significavam que onze ainda estavam com a Ajah Negra. Esse era o ponto que Egwene tentara defender. Onze ter’angreal capazes de levar uma mulher a Tel’aran’rhiod, todos nas mãos das irmãs Negras. Em suas breves viagens pelo Mundo Invisível, Elayne poderia ter encontrado a Ajah Negra à sua espera ou ido na direção delas antes de saber que estavam lá. O pensamento fez o estômago de Egwene se revirar. As mulheres podiam estar esperando por ela naquele exato momento. Não era provável, pelo menos, não de propósito — como saberiam que ela estava chegando? Mas poderiam estar lá quando ela entrasse. Conseguia enfrentar uma sozinha, a não ser que fosse pega de surpresa, e não permitiria tal coisa. Mas e se duas a surpreendessem? Ou três? Liandrin e Rianna, Chesmal Emry e Jeane Caide, ou todas as outras ao mesmo tempo?
Franzindo a testa para o mapa, ela afrouxou os punhos, que já estavam com as juntas brancas. Depois dos acontecimentos daquela noite, o tempo urgia. Se as criaturas da Sombra conseguiam atacar a Pedra, se algum dos Abandonados podia aparecer de repente ali no meio, Egwene não podia se dar ao luxo de sucumbir ao medo. As três precisavam saber o que fazer. Tinham de ter algo para se basear além da vaga história de Amico. Alguma coisa. Se ao menos ela pudesse descobrir onde estava Mazrim Taim, em que ponto da viagem a Tar Valon, ou se conseguisse dar um jeito de entrar nos sonhos da Amyrlin e falar com ela. Talvez essas coisas fossem possíveis para uma Sonhadora. Se eram, ela não sabia como. Tanchico era tudo o que tinha para trabalhar.
— Preciso ir sozinha, Aviendha. Preciso. — Pensou que a voz estava firme e calma, mas Elayne deu um tapinha em seu ombro.
Egwene não sabia por que verificava tanto o mapa. Já o decorara, já sabia se orientar perfeitamente. O que quer que existisse neste mundo, existia no Mundo dos Sonhos, e às vezes ainda mais, sem dúvida. Ela já escolhera o lugar para onde ia. Folheou o livro até chegar à única figura que mostrava o interior de um edifício nomeado no mapa, o Palácio da Panarca. Não adiantaria de nada acabar em um edifício sem saber sua localização na cidade. De nada ajudaria, em nenhum dos casos. Tirou a ideia da cabeça. Tinha de acreditar que havia alguma chance.
A gravura mostrava um amplo salão com pé-direito alto. Uma corda estendida entre pilares da altura de sua cintura impedia qualquer um de se aproximar dos objetos expostos em suportes e armários abertos nas paredes. A maioria dos objetos não tinha uma forma muito distinta, exceto o que se encontrava no canto extremo do recinto. O artista se esforçara muito para retratar o gigantesco esqueleto, como se o resto da criatura tivesse desaparecido naquele exato instante. Tinha quatro pernas de ossos robustos, mas não se parecia com qualquer animal que Egwene já vira. Para começar, de pé deveria ter pelo menos duas braças de altura, bem mais que o dobro da dela. O crânio redondo, afundado nos ombros como o de um touro, parecia grande o suficiente para comportar uma criança, e, na imagem, quatro globos oculares despontavam. O esqueleto distinguia o aposento em relação a todos os outros, não havia como confundi-lo. Fosse lá o que fosse. Se Eurian Romavni sabia o que era aquilo, não tinha registrado a informação no livro.
— O que é uma panarca, afinal? — perguntou, deitando o livro de lado. Examinara a figura mais de dez vezes. — Todos esses autores parecem presumir que a gente já saiba.
— A Panarca de Tanchico tem autoridade equivalente à do rei — recitou Elayne. — Ela é responsável por coletar impostos e taxas alfandegárias, enquanto ele os gasta de forma apropriada. Ela controla a Guarda Civil e os tribunais, exceto o Alto Tribunal, que é do rei. O exército é dele, claro, exceto pela Legião da Panarca. Ela…
— Na verdade, eu não estava interessada. — Egwene suspirou. Só estava puxando papo para adiar por alguns instantes o que teria de fazer. A vela queimava, desperdiçando minutos preciosos. Sabia como sair do sonho quando quisesse, como acordar sozinha, mas o tempo passava de forma diferente no Mundo dos Sonhos, e era fácil perder a noção. — Assim que atingir a marca — disse, e Elayne e Nynaeve murmuraram em concordância.
Ajeitando-se nos travesseiros de plumas, a princípio apenas encarou o teto pintado de azul-celeste, com nuvens e andorinhas voejantes. Mas não reparou nos desenhos.
Seus sonhos andavam muito ruins ultimamente, pelo menos a maioria. Rand estava neles, sem dúvida. Rand do tamanho de uma montanha, caminhando pelas cidades, esmagando prédios sob seus pés, com gente diminuta feito formigas gritando e fugindo dele. Rand acorrentado, gritando. Rand construindo um muro, ele de um lado e ela do outro, junto com Elayne e outras mulheres indistinguíveis. “Preciso fazer isso”, dizia ele, enquanto empilhava as pedras. “Não vou deixar vocês me impedirem.” Esses não eram os únicos pesadelos. Egwene sonhara com Aiel lutando entre si, matando uns aos outros, até largando as armas e correndo, como se tivessem enlouquecido. Mat lutando com uma mulher Seanchan que o prendera a uma corrente invisível. Um lobo, que tinha certeza de que era Perrin, lutando com uma mulher cujo rosto ficava se transformando. Galad envolvendo a si mesmo em um pano branco, como se vestisse a própria mortalha, e Gawyn com os olhos cheios de sofrimento e ódio. Sua mãe chorando. Esses eram os sonhos realistas, os que ela sabia que queriam dizer alguma coisa. Eram terríveis, e Egwene não sabia o significado de nenhum. Como pudera deduzir que encontraria qualquer dica ou resposta em Tel’aran’rhiod? Mas não havia escolha. A única alternativa era a ignorância, e não podia escolher isso.
Apesar da ansiedade, dormir não era problema: estava exausta. Era só questão de fechar os olhos e respirar profundamente, de forma regular. Fixou os pensamentos no aposento do Palácio da Panarca e no imenso esqueleto. Respirações profundas e regulares. Podia lembrar como era a sensação de usar o anel, o passo para adentrar Tel’aran’rhiod. Respirações — profundas — regulares.
Egwene deu um passo atrás, ofegante, com uma das mãos na garganta. De perto, o esqueleto parecia ainda maior do que ela imaginara, os ossos brancos, secos e descorados. Estava parada bem diante dele, dentro da corda. Uma corda branca, da grossura de seu pulso, que parecia ser de seda. Não teve dúvida de que estava em Tel’aran’rhiod. Os detalhes eram sutis como a realidade, mesmo do que ela via com o canto do olho. Até o fato de ter consciência das diferenças entre este sonho e outro comum informavam onde estava. Além do mais, parecia… certo.
Egwene abriu-se a saidar. Se cortasse o dedo no Mundo dos Sonhos, o corte ainda existiria quando ela acordasse. Não haveria como acordar de um golpe mortal com o Poder, ou mesmo de uma espada ou porrete. E não pretendia ficar vulnerável por um instante sequer.
Em vez do vestido, usava algo muito mais parecido com a indumentária de Aviendha, mas em seda vermelha brocada. Mesmo as botas macias, amarradas até os joelhos, eram de um couro vermelho flexível, usado em luvas, com costuras e rendas douradas. Ela riu para si mesma, baixinho. As roupas em Tel’aran’rhiod eram o que a pessoa desejava que fossem. Parecia que uma parte dela queria ser capaz de se movimentar com agilidade, enquanto a outra queria estar pronta para um baile. Não era uma boa escolha. O vermelho esvaneceu para tons de cinza e marrom, casaco, calças e botas se transformaram em cópias exatas das usadas pelas Donzelas. Não era melhor, na verdade, não em uma cidade. De súbito, viu-se dentro de uma réplica dos vestidos que Faile costumava usar, escuros, com saias estreitas e divididas, mangas compridas e um corpete alto e flexível. É bobagem me preocupar com isso. Ninguém vai me ver, a não ser dentro dos sonhos, e poucos sonhos comuns chegam aqui. Não faria diferença se eu estivesse nua.
Por um instante, ficou nua. Seu rosto enrubesceu de vergonha. Não havia ninguém ali para vê-la, despida como se fosse tomar banho, e ela mais que depressa trouxe de volta o vestido escuro, mas deveria ter se lembrado de como os pensamentos perdidos eram capazes de afetar as coisas por aqui, sobretudo quando abraçada ao Poder. Elayne e Nynaeve pensavam que ela sabia tantas coisas. Egwene conhecia algumas regras do Mundo Invisível, mas sabia que havia outras centenas, milhares, desconhecidas. Precisava dar um jeito de aprendê-las, se quisesse ser a primeira Sonhadora da Torre desde Corianin.
Olhou o crânio imenso mais de perto. Crescera em uma vila do interior e sabia que aspecto tinham os ossos de animais. Não eram quatro globos oculares, afinal. Dois na verdade pareciam ser buracos para algum tipo de presa, de cada um dos lados onde houvera um nariz. Algum tipo de javali monstruoso, talvez, embora não se parecesse com o crânio de qualquer porco que ela já vira. Parecia antigo. Muito antigo.
Abraçando o Poder, era capaz de sentir coisas como essa, nesse lugar. A habitual exacerbação dos sentidos ainda acontecia, é claro. Podia sentir rachaduras diminutas nos ornamentos de gesso dourado que cobriam o teto, a cinquenta pés de altura, e o polimento liso do chão de pedras brancas. Rachaduras infinitesimais, invisíveis aos olhos, espalhadas também pelas pedras do chão.
O aposento era gigantesco, talvez com duzentas passadas de comprimento e quase a metade de largura, ostentando fileiras de colunas estreitas e brancas. Aquela corda branca circulava por toda a extensão, exceto onde havia portas, com arcos de duas pontas. Mais cordas envolviam suportes de madeira polida e armários contendo outros objetos expostos. Bem em cima, sob o teto, uma padronagem elaborada de pequeninos entalhes perfurava as paredes, deixando entrar bastante luz. Ao que parecia, ela se transportara em sonho a uma Tanchico durante o dia.
“Uma grande exposição de artefatos de Eras há muito findadas, da Era das Lendas e de Eras anteriores, abertas a todos, até aos plebeus, por três dias no mês e em dias de festival”, escrevera Eurian Romavni. Ele fizera elogios à inestimável coleção de estatuetas cuendillar, seis delas, que ficava em um estojo de vidro no centro do salão, sempre vigiada por quatro dos guardas pessoais da Panarca, quando era permitida a entrada de pessoas, e passara duas páginas discorrendo sobre as ossadas de bestas fabulosas “jamais vistas com vida pelos olhos dos homens”. Egwene estava vendo algumas dessas. Em um dos cantos do salão, havia o esqueleto de algo que parecia um urso, se ursos tivessem dois dentes frontais do tamanho de seu antebraço. Do lado oposto, jazia a ossada de alguma besta esguia de quatro patas, com um pescoço tão comprido que o crânio chegava à metade da altura das paredes. Havia mais, espalhados pelas paredes do salão, igualmente fantásticos. Todos pareciam antigos o bastante para fazer a Pedra de Tear parecer recém-construída. Ela se abaixou por sob a barreira de cordas e percorreu o salão lentamente, olhando tudo.
Uma estatueta desgastada pelo tempo exibia uma mulher aparentemente sem roupas, envolta em cabelos que caíam até os tornozelos. A princípio era similar às outras que estavam no mesmo estojo, todas não muito maiores do que a mão de Egwene. No entanto, emitia uma impressão de calor suave que ela reconhecia. Era um angreal, teve certeza. Perguntou-se por que a Torre não conseguira tomá-lo da Panarca. Um colar de elos delicados e dois braceletes de metal preto fosco, sozinhos em um suporte, a fizeram estremecer. Ela sentiu escuridão e dor associados a eles — uma dor aguda e muito, muito antiga. Uma coisa prateada em outro armário, algo que mais parecia uma estrela de três pontas dentro de um círculo, não era feita de qualquer substância que ela conhecesse. Era mais macia que metal, toda arranhada e cheia de goivaduras, porém ainda mais antiga do que qualquer um dos ossos. A dez passadas de distância, podia sentir orgulho e vaidade.
Uma coisa de fato parecia familiar, embora ela não fosse capaz de identificar o motivo. Enfiada em um canto de um dos armários, como se quem a tivesse posto ali não soubesse ao certo se era digna de ser exibida, jazia a metade superior de uma estatueta quebrada, entalhada em alguma pedra branca brilhante. Retratava uma mulher com uma das mãos erguidas, segurando uma esfera de cristal com a expressão calma, cheia de dignidade e de sábia autoridade. Quando inteira, deveria ter um pé de altura. Mas por que era tão familiar? O objeto parecia quase convidar Egwene a pegá-lo.
Foi só depois que os dedos de Egwene se fecharam na estatueta quebrada que ela percebeu que passara por cima da corda. Uma tolice, se não sei o que é, pensou, mas já era tarde demais.
Quando a mão agarrou a estatueta, o Poder jorrou em torrente para dentro dela, de volta para a figura quebrada, depois para ela, para a figura e de volta, para dentro e de volta. A esfera de cristal tremeluzia em clarões espasmódicos e sombrios, e seu cérebro sofreu pontadas dolorosas a cada clarão. Com um soluço de agonia, ela soltou a estatueta e apertou as mãos na cabeça.
A esfera de cristal se estilhaçou quando a estatueta caiu no chão e partiu-se em pedaços, e as pontadas em seu cérebro cessaram, deixando apenas uma lembrança embotada da dor e uma náusea que fez seus joelhos tremerem. Egwene fechou os olhos com força para não ver o quarto se deslocando. A estatueta só podia ser um ter’angreal, mas por que a machucara daquela forma simplesmente ao tocá-la? Talvez porque estivesse quebrado. Talvez, quebrado, não pudesse fazer aquilo a que se destinava. Ela nem mesmo queria pensar qual teria sido seu propósito. Testar ter’angreal era sempre perigoso. Pelo menos deveria estar irremediavelmente quebrado. Ali, pelo menos. Por que ele parecia me chamar?
A náusea foi embora, e ela abriu os olhos. A estatueta estava de volta na prateleira, tão inteira quanto da primeira vez em que a vira. Coisas estranhas aconteciam em Tel’aran’rhiod, mas aquilo era mais estranho do que o que ela desejava ver. E não fora por isso que viera. Primeiro precisava encontrar a saída do Palácio da Panarca. Passando de volta por cima da corda, ela saiu depressa do salão, tentando não correr.
Não havia sinal de vida no palácio, naturalmente. De vida humana, pelo menos. Peixes coloridos nadavam em grandes fontes, que esguichavam água, alegremente, nos pátios rodeados por varandas e calçadas cercadas de colunas delicadas, protegidas por trabalhos de cantaria que mais pareciam renda entalhada em padronagens intrincadas. Nas águas, flutuavam lótus com flores brancas do tamanho de pratos de jantar. No Mundo dos Sonhos, os lugares eram como no chamado mundo real. Só não havia gente. Lustres dourados muito elaborados ocupavam os corredores com pavios ainda não queimados, mas ela sentia o aroma do óleo perfumado. Seus pés não levantavam poeira dos carpetes luminosos, que sem dúvida nunca haviam sido pisados. Não ali.
Em dado momento, viu outra pessoa caminhando à sua frente, um homem de armadura de placa e malha douradas e ornamentadas, levando debaixo do braço um capacete dourado e pontudo com uma crista de plumas de garçota branca.
— Aeldra. — chamou o homem, sorrindo. — Aeldra, venha olhar para mim. Fui nomeado Senhor Capitão da Legião da Panarca. Aeldra? — Ele deu mais um passo à frente, ainda chamando, e de repente desapareceu. Não era um Sonhador. Não era sequer alguém usando um ter’angreal como seu anel de pedra ou o disco de ferro de Amico. Era apenas um homem cujo sonho chegara a um lugar do qual ele não tinha consciência, com perigos que desconhecia. Era comum que pessoas que morriam de repente durante o sono na verdade tivessem ido a Tel’aran’rhiod em seus sonhos e morrido por lá. Mas ele já se fora, de volta a um sonho comum.
Em Tear, a vela queimava ao lado da cama. Seu tempo em Tel’aran’rhiod estava se extinguindo.
Egwene apressou o passo e chegou diante de portas altas e entalhadas que levavam ao exterior, a uma ampla escadaria branca e uma imensa praça vazia. Tanchico se expandia para todas as direções ao longo de colinas íngremes, prédios brancos atrás de prédios brancos, todos reluzentes sob o sol, pontuados por centenas de torres finas e quase a mesma quantidade de domos pontiagudos, alguns dourados. O Círculo da Panarca, uma muralha alta e redonda de pedra branca, ficava à plena vista, a menos de meia milha de distância. Era apenas um pouco mais baixa que o Palácio da Panarca, que erguia-se no topo de uma das colinas mais elevadas. No topo da gigantesca escadaria, Egwene estava a uma altura suficiente para ver água brilhando a oeste, as baías que a separavam de outros dedos montanhosos onde ficava o restante da cidade. Tanchico era maior que Tear, talvez maior que Caemlyn.
Tanto a vasculhar, e ela nem sequer sabia em busca de quê. De algo que sugerisse a presença da Ajah Negra ou que indicasse algum tipo de perigo para Rand, se ambos existissem por ali. Se fosse uma Sonhadora de verdade, treinada no uso de seu talento, saberia o que procurar, saberia como interpretar o que via. Mas não restara ninguém para ensiná-la. As Sábias Aiel supostamente sabiam decifrar sonhos. Aviendha fora tão relutante em falar sobre as Sábias que Egwene não perguntara a nenhuma das outras Aiel. Talvez uma Sábia pudesse instruí-la. Se ela conseguisse encontrar alguma.
Deu um passo em direção à praça e de repente viu-se em outro lugar.
Imensas torres de pedra erguiam-se à sua volta, produzindo um calor que sugava toda a umidade da respiração. O sol parecia assá-la por baixo do vestido, e a brisa que soprava em seu rosto parecia saída de um forno. Havia árvores retorcidas aqui e ali, e a paisagem quase não tinha vegetação, exceto por esparsos trechos de grama grossa e algumas plantas espinhosas que Egwene não soube identificar. Mas reconheceu o leão, ainda que nunca tivesse visto um em carne e osso. O animal estava deitado em uma fresta na rocha, a menos de vinte passadas de distância, abanando o rabo escuro e peludo despretensiosamente, olhando não para ela, mas para algo cem passadas atrás. O enorme javali de pelos grossos fuçava e fungava a terra na base de um arbusto espinhento, sem notar a mulher Aiel subindo, sorrateira com uma lança, pronta para golpeá-lo. Vestida como os Aiel da Pedra, ela usava a shoufa em volta da cabeça, mas tinha o rosto descoberto.
O Deserto, pensou Egwene, incrédula. Estou no Deserto Aiel! Quando é que vou aprender a tomar cuidado com o que penso por aqui?
A Aiel congelou. Agora tinha os olhos fixos em Egwene, não no javali. Isso se o bicho fosse um javali, não parecia ter a forma certa.
Egwene teve certeza de que a mulher não era uma Sábia. E também não se vestia como as Donzelas. Pelo que ouvira falar, uma Donzela da Lança que quisesse se tornar Sábia teria de “abrir mão da lança”. Decerto era apenas uma Aiel que adentrara Tel’aran’rhiod em seu sonho, como o sujeito no palácio. Ele também a teria visto, se tivesse se virado. Egwene fechou os olhos e se concentrou na única imagem clara de Tanchico que tinha, aquele enorme esqueleto no amplo salão.
Ao abrir os olhos de novo, encarava as imensas ossadas. Dessa vez, percebeu que os ossos estavam amarrados uns aos outros. E de forma muito habilidosa, pois os fios mal apareciam. A estatueta partida com a esfera de cristal ainda estava na prateleira. Egwene não se aproximou da peça, nem do colar e dos braceletes negros que emanavam tanta dor e sofrimento. O angreal, a mulher de pedra, era uma tentação. O que você vai fazer com ela? Luz, está aqui para olhar, para procurar! Nada além disso. Siga em frente, mulher!
Dessa vez encontrou depressa o caminho de volta à praça. O tempo passava de forma diferente ali. Elayne e Nynaeve a acordariam a qualquer momento, e ela ainda mal começara. Não podia perder mais um minuto sequer. Teria de tomar cuidado com seus pensamentos dali em diante. Nada de pensar nas Sábias. Até essa repreensão fez tudo dar uma guinada ao seu redor. Mantenha o foco no que está fazendo, disse a si mesma, com firmeza.
Ela avançou pela cidade vazia, caminhando depressa, às vezes quase correndo. Ruas de pedra sinuosas se inclinavam para cima e para baixo, cheias de curvas, todas vazias, exceto por pombos imperiais de asas verdes e gaivotas cinza-claro, que alçaram voo ruidosamente quando ela se aproximou. Por que pássaros, e não pessoas? Moscas zuniam próximas, e ela pôde ver baratas e besouros correndo pelas sombras. Um grupo de cães magros, todos de cores diferentes, avançava depressa pela rua, bem à frente. Por que cães?
Ela retrocedeu um pouco e concentrou-se no motivo de estar ali. Quais seriam os sinais da Ajah Negra? Ou do perigo que Rand poderia estar correndo? A maioria dos prédios brancos era caiada, com o reboco rachado e lascado que revelava em muitos pontos a madeira desgastada pelo tempo ou os tijolos marrom-claros. Apenas as torres e estruturas maiores — palácios, supôs — eram feitas de pedra, ainda que também branca. No entanto, até mesmo as pedras — pelo menos a maioria — exibiam pequeninas fissuras, rachaduras ínfimas demais para serem percebidas a olho nu, mas Egwene podia senti-las com o Poder. Formavam uma teia por cima dos domos e torres. Talvez isso significasse algo. Talvez significasse que Tanchico era uma cidade negligenciada por seus habitantes. Como todo o resto.
Deu um salto quando um homem de repente despencou do céu bem à sua frente, berrando. Só teve tempo de registrar as calças brancas e largas e o bigode grosso coberto por um véu transparente antes que o homem desaparecesse, uma passada acima da calçada. Se tivesse chegado ao chão em Tel’aran’rhiod, teria sido encontrado morto em sua cama.
Ele deve ter tanto a ver com a situação quanto as baratas, disse a si mesma.
Talvez algo dentro dos prédios. Era uma ínfima possibilidade, uma esperança louca, mas ela estava desesperada o suficiente para tentar qualquer coisa. Quase qualquer coisa. Tempo. Quanto tempo ainda tinha? Começou a correr de porta em porta, enfiando a cabeça em lojas, estalagens e casas.
Mesas e bancos ocupavam os salões à espera de clientes, tão organizadas quanto os pratos e canecas de peltre meio foscos nas prateleiras. As lojas estavam limpas, como se fosse o início do dia, mas, enquanto a mesa do alfaiate exibia rolos de tecido e as do cuteleiro ostentava facas e tesouras, os ganchos do açougue estavam vazios, e as prateleiras, desocupadas. Quem passasse o dedo por qualquer móvel não encontraria poeira. Egwene achou que tudo estava limpo até para os padrões de sua mãe.
Nas ruas mais estreitas havia casas, construções simples e pequenas, caiadas, com tetos planos e nenhuma janela para a rua, prontas para receber famílias para sentarem-se em bancos diante de lareiras frias, ou em volta de mesas estreitas com pés entalhados, onde a melhor travessa ou vasilhame ocupava lugar de destaque. Roupas pendiam de ganchos, panelas pendiam de tetos e ferramentas jaziam sobre bancos, à espera.
Sem pensar, Egwene refez os passos, só para ver no que daria, voltando por uma dúzia de portas. Espiou pela segunda vez a casa de alguma mulher no mundo real. Estava quase do mesmo jeito de antes. Quase. O vasilhame de listras vermelhas que antes ocupava a mesa agora era um vaso azul estreito. Um dos bancos, antes perto da lareira, sustentando um arreio quebrado e as ferramentas para consertá-lo, agora ocupava um canto ao lado da porta e apoiava uma cesta de remendos e um vestido de criança bordado.
Por que as mudanças?, perguntou-se. Aliás, por que tudo deveria permanecer igual? Luz, eu não sei de nada!
Havia um estábulo do outro lado da rua, com a cal branca rachada revelando grandes nacos de tijolos da parede. Egwene correu até lá e abriu uma das enormes portas. O chão batido estava coberto de palha, como em qualquer estábulo que ela já vira, mas as baias estavam vazias. Sem cavalos. Por quê? Algo farfalhou na palha, e ela percebeu que, na verdade, as baias não estavam vazias. Ratos. Dezenas de ratos, encarando-a com audácia, os narizes testando o ar para captar seu cheiro. Nenhum deles fugiu, sequer recuou. Comportavam-se como se tivessem mais direitos do que ela, naquele lugar. Por impulso, Egwene deu um passo atrás. Pombos, gaivotas, cães, moscas e ratos. Talvez uma Sábia entendesse o porquê.
Em um piscar de olhos, estava de volta ao Deserto.
Com um berro, desabou assim que a criatura peluda parecida com um javali — quase do tamanho de um pônei pequeno — deu um salto em sua direção. Não era um porco, notou, quando o bicho pulou com agilidade por cima dela. O focinho era pontudo demais e cheio de dentes afiados, e tinha quatro dedos em cada pata. Não foi um pensamento alarmante, mas ela estremeceu quando a besta galopou, apressada, por entre as pedras. Era grande o bastante para tê-la esmagado com as patas, quebrando ossos e tudo o mais. Aqueles dentes eram tão capazes de dilacerar e despedaçar quanto os de qualquer lobo. Ela teria acordado ferida. Isso se chegasse a acordar.
A rocha arenosa sob suas costas era como um fogão escaldante. Ela se levantou apressada, irritada consigo mesma. Se não fosse capaz de se concentrar no que estava fazendo, não obteria resultado algum. Tanchico era onde deveria estar, precisava se concentrar nisso. Em nada mais.
Ela parou de esfregar as mãos nas saias quando viu a mulher Aiel observando-a a dez passadas de distância, os olhos azuis e aguçados. A mulher tinha a idade de Aviendha, não muito mais velha do que a própria Egwene, mas os cachos de cabelo que despontavam por baixo da shoufa eram tão claros que pareciam quase brancos. A lança em suas mãos parecia pronta para ser atirada, e, àquela distância, com certeza não erraria o alvo.
Dizia-se que os Aiel eram mais do que duros com os que adentravam o Deserto sem permissão. Egwene sabia que era capaz de envolver tanto a mulher quanto a lança em Ar, mantê-la presa para garantir a própria segurança, mas será que os fluxos se manteriam por tempo suficiente quando ela começasse a esvanecer? Ou será que apenas irritariam a mulher a ponto de fazê-la atirar a lança na primeira chance, talvez antes que Egwene sumisse por completo? De muito adiantaria retornar a Tanchico com uma lança Aiel cravada no peito. Se urdisse os fluxos, a mulher ficaria presa em Tel’aran’rhiod até que eles fossem desfeitos, impotente, caso o leão ou a criatura parecida com um javali retornasse.
Não. Apenas precisava que a mulher baixasse a lança, só por tempo suficiente para que se sentisse segura em fechar os olhos e retornar a Tanchico. De volta para o que deveria estar fazendo. Não tinha mais tempo para esses voos e fantasias. Não sabia muito bem como alguém cujos sonhos apenas tocavam Tel’aran’rhiod poderia fazer mal a ela da mesma forma que tudo o mais que havia lá, mas não arriscaria descobrir na ponta da lança de uma Aiel. A mulher provavelmente desapareceria em alguns instantes. Precisava de algo para desestabilizá-la até lá.
Mudar de roupa era fácil. Assim que o pensamento veio, Egwene percebeu que usava os mesmos marrons e cinza que a mulher.
— Não vou lhe fazer mal — disse, aparentemente tranquila.
A mulher não baixou a arma. Em vez disso, franziu a testa e disse:
— Você não tem o direito de usar cadin’sor, garota. — Então Egwene ficou sem roupas, o sol a arder sua cabeça, o chão a queimar seus pés descalços.
Por um instante, abriu a boca, incrédula, pulando de pé em pé. Não pensava que desse para alterar coisas em outra pessoa. Tantas possibilidades, tantas regras que ela não sabia. Mais do que depressa, voltou os pensamentos aos calçados robustos e ao vestido escuro de saias divididas, e ao mesmo tempo fez as roupas da mulher Aiel desaparecerem. Precisou recorrer a saidar, pois a mulher devia estar concentrada em manter Egwene nua. Preparou um fluxo prestes a agarrar a lança, caso a outra mulher fizesse menção de jogá-la.
Foi a vez de a Aiel parecer chocada. Ela deixou a lança desabar na lateral do corpo, e Egwene aproveitou o momento para fechar os olhos e se transportar de volta a Tanchico, de volta ao esqueleto daquele imenso javali. Ou o que fosse. Dessa vez, mal olhou para o bicho. Estava ficando cansada de coisas que pareciam javalis mas não eram. Como ela conseguiu fazer aquilo? Não! Ficar pensando sobre como e por que é que me desvia do caminho. Dessa vez vou me manter firme.
Mas ela hesitou. Enquanto fechava os olhos, teve a impressão de ver outra mulher, atrás da Aiel, a vigiá-las. Uma mulher de cabelos dourados com um arco de prata na mão. Agora já está se deixando dominar por fantasias loucas. Andou escutando muitas histórias de Thom Merrilin. Birgitte estava morta havia muito tempo, não retornaria até que a Trombeta de Valere a invocasse do túmulo. Mulheres mortas, mesmo as heroínas lendárias, com certeza não eram capazes de adentrar Tel’aran’rhiod em seus sonhos.
No entanto, fora apenas um instante de pausa. Deixando de lado as especulações inúteis, ela correu de volta para a praça. Quanto tempo ainda restaria? A cidade inteira para vasculhar, o tempo se esvaindo, e ela tão ignorante quanto começara. Se pelo menos fizesse alguma ideia do que procurar. Ou de onde. Correr não parecia deixá-la cansada no Mundo dos Sonhos, mas, por mais depressa que corresse, não conseguiria percorrer a cidade inteira antes que Elayne e Nynaeve a acordassem. Não queria ter de voltar.
De repente surgiu uma mulher no meio do bando de pombos que se aglomerara na praça. Usava um vestido verde-claro, tão fino e drapejado que quase poderia agradar Berelain, e os cabelos escuros estavam presos em dezenas de finas tranças, o rosto coberto até os olhos por um véu transparente, igual ao do homem que caíra do céu. Os pombos levantaram voo, e também a mulher, deslizando com eles pelos telhados mais próximos, antes de desaparecer de súbito.
Egwene sorriu. Sempre sonhava que estava voando como um pássaro, e, afinal de contas, aquilo era um sonho. Saltou no ar e continuou subindo, em direção aos telhados. Vacilou um pouco ao pensar no quanto aquilo era ridículo — voar? As pessoas não voavam! — depois recuperou a estabilidade, forçando-se a manter a confiança. Estava conseguindo, e isso era o que importava. Era um sonho, e ela estava voando. O vento corria por seu rosto, e ela sentia vontade de rir.
Passou os olhos pelo Círculo da Panarca, onde fileiras de bancos de pedra estavam dispostos desde a alta muralha até um amplo campo de terra batida, bem no centro. Imaginou como seria ver tanta gente reunida, como seria assistir a uma exibição de fogos de artifício da própria Guilda de Iluminadores. Em casa, fogos de artifício eram um luxo raro. Lembrava-se do bocado de vezes em que os vira em Campo de Emond, quando os adultos ficavam tão animados quanto as crianças.
Voou por sobre os telhados como um falcão, percorreu palácios e mansões, habitações e lojas, armazéns e estábulos. Deslizou por sobre domos cobertos de ponteiras douradas e cata-ventos, por torres cercadas de varandas de pedra trabalhada como renda. Carros e carroções pontilhavam os pátios, à espera. Navios abarrotavam o enorme porto e os dedos de água entre as penínsulas da cidade, além de enfileirarem-se no ancoradouro. Tudo parecia em péssimas condições, desde os carros até os navios, mas ela não viu qualquer coisa que indicasse a Ajah Negra. Até onde podia perceber.
Considerou tentar pressentir Liandrin — conhecia muito bem aquele rostinho de boneca, com as inúmeras tranças louras, olhos castanhos cheios de satisfação e uma boca de botão de rosa, sempre com um sorriso malicioso — tentar visualizá-la na esperança de ser conduzida até a irmã Negra. Porém, se aquilo funcionasse, poderia encontrar Liandrin em Tel’aran’rhiod, e talvez também as outras. Não estava pronta para isso.
De súbito lhe ocorreu que, se qualquer Ajah Negra estivesse em Tanchico, na Tanchico de Tel’aran’rhiod, Egwene estaria revelando sua presença para elas. Qualquer par de olhos que observasse o céu notaria uma mulher voando, uma mulher que não desapareceria depois de alguns instantes. Seu voo suave se desestabilizou, e ela mergulhou, sob o nível dos telhados. Seguiu flutuando pelas ruas, agora mais devagar, porém ainda mais ligeira que o galope de um cavalo. Poderia estar correndo em direção às outras, mas não podia se forçar a parar e esperar por elas.
Idiota!, ralhou consigo mesma, furiosa. Idiota! Elas podem saber que estou aqui agora. Podem já estar preparando uma armadilha. Considerou sair do sonho e voltar para a cama em Tear, mas não encontrara qualquer resposta. Isso se houvesse respostas para encontrar.
Uma mulher alta de repente surgiu na rua à sua frente. Era magra, vestia uma volumosa saia marrom e uma blusa branca solta no corpo, com um xale marrom ao redor dos ombros e um cachecol dobrado em volta da testa, para segurar os cabelos brancos que desciam até a cintura. Apesar das roupas simples, a mulher usava muitos colares e braceletes de ouro, marfim ou ambos. De mãos plantadas na cintura, encarava Egwene nos olhos, franzindo a testa.
Outra mulher tola cujos sonhos a levaram onde ela não tinha o direito de estar e que não acredita no que vê, pensou Egwene. Tinha as descrições de todas as mulheres que haviam fugido com Liandrin, e esta sem dúvida não correspondia a nenhuma delas. No entanto, a mulher não desapareceu. Ficou ali parada enquanto Egwene se aproximava depressa. Por que ainda não sumiu? Por que ela…? Ah, Luz! Ela está mesmo…! Agarrou os fluxos para urdir raios, para envolver a mulher em Ar, alarmada e afobada.
— Ponha os pés no chão, garota — vociferou a mulher. — Já tive trabalho demais para encontrar você de novo sem que saísse voando feito um passarinho.
Egwene parou de voar de repente. Os pés tocaram o chão com um baque, e ela cambaleou. Era a voz da mulher Aiel, mas agora mais velha. Não tão velha quanto Egwene pensara a princípio — na verdade, parecia muito mais jovem do que os cabelos brancos sugeriam. Mas a voz e aqueles aguçados olhos azuis a faziam ter certeza de que se tratava da mesma pessoa.
— Você está… diferente — disse.
— Aqui você pode ser o que quiser. — A mulher soava constrangida, mas só um pouco. — Certas horas, eu gosto de me lembrar… Não importa. Você é da Torre Branca? Faz tempo que não se vê uma Andarilha dos Sonhos por lá. Muito Tempo. Eu sou Amys, do ramo dos Nove Vales, dos Aiel Taardad.
— Você é uma Sábia? É, sim! E conhece os sonhos, conhece Tel’aran’rhiod! Você pode… Meu nome é Egwene. Egwene al’Vere. Eu… — Ela respirou fundo. Amys não parecia uma mulher a quem se pudesse contar mentiras. — Sou Aes Sedai. Da Ajah Verde.
A expressão de Amys não se alterou, na verdade. Um leve enrugar de olhos, talvez por ceticismo. Egwene não parecia ter idade suficiente para ser uma Aes Sedai completa. No entanto, o que disse foi:
— Eu pretendia deixar você pelada até que me pedisse roupas apropriadas. Usar cadin’sor desse jeito, como se fosse… Você me surpreendeu se soltando, virando minha própria lança contra mim. Mas ainda não foi ensinada, não é? Por mais forte que seja. Caso contrário, não teria aparecido daquele jeito no meio da minha caçada, onde obviamente não desejava estar. E esse voo por aí? Você veio até aqui, a Tel’aran’rhiod!, para ficar olhando essa cidade, seja lá qual for?
— É Tanchico — respondeu Egwene, com a voz fraca. Ela não sabia. Mas como fora que Amys a seguira, ou como a encontrara? Estava óbvio que a mulher sabia muito mais do que Egwene sobre o Mundo dos Sonhos. — Você pode me ajudar. Estou tentando encontrar mulheres da Ajah Negra, Amigas das Trevas. Acho que elas estão aqui, e preciso encontrá-las, se estiverem.
— Então é verdade. — Amys quase sussurrou. — Uma Ajah de Mensageiras das Sombras na Torre Branca. — Ela balançou a cabeça. — Você parece uma garota recém-desposada com a lança que pensa que agora pode lutar com homens e saltar montanhas. Para ela, isso significa alguns hematomas e uma valiosa lição de humildade. Para você, aqui, pode significar a morte. — Amys olhou as construções brancas ao redor e fez uma careta. — Tanchico? Em… Tarabon? Esta cidade está morrendo, devorando a si mesma. Há uma escuridão aqui, uma maldade. É pior do que os homens são capazes de criar. Ou as mulheres. — A Aiel encarou Egwene com um olhar penetrante. — Você não consegue ver nem ouvir, não é? E quer caçar Mensageiros das Sombras em Tel’aran’rhiod.
— Maldade? — perguntou Egwene, mais do que depressa. — Podem ser elas. Tem certeza? Se eu contar como elas são, será que você pode se certificar de que são elas? Posso descrevê-las. Posso descrever uma por uma até o último fio da trança.
— Uma criança — murmurou Amys — exigindo do pai um bracelete de prata neste exato instante, sem saber nada sobre negócios ou sobre a feitura de braceletes. Você tem muito que aprender. Muito mais do que posso começar a ensiná-la agora. Venha à Terra da Trindade. Espalharei a notícia de que uma Aes Sedai de nome Egwene al’Vere deve ser trazida a mim, até o Forte das Pedras Frias. Diga seu nome e mostre o anel da Grande Serpente, então poderá seguir em segurança. Não estou lá agora, mas voltarei de Rhuidean antes de você chegar.
— Por favor, você tem que me ajudar. Preciso saber se elas estão aqui. Preciso saber.
— Mas não posso lhe dizer. Não as conheço, nem conheço este lugar, esta Tanchico. Você precisa vir até mim. O que faz é perigoso, muito mais perigoso do que imagina. Você precisa… Aonde está indo? Fique!
Algo pareceu agarrar Egwene, puxá-la para a escuridão.
A voz de Amys a acompanhou, fraca e minguante.
— Você precisa vir até mim e aprender. Você precisa…