56 Olhos-Dourados

O salão da estalagem Fonte de Vinho estava silencioso, exceto pelo som dos rabiscos da caneta de Perrin. Silencioso e vazio, a não ser por ele e Aram. A luz do fim da manhã entrava pelas janelas. Da cozinha não vinha aroma algum. Não havia fogões acesos na aldeia, e até os carvões enfiados nas cinzas haviam sido encharcados. Não havia motivo para deixar o dom do fogo à mão. O latoeiro — ele às vezes se perguntava se era adequado ainda pensar em Aram como um latoeiro, mas um homem não podia deixar de ser o que era, portando uma espada ou não — permanecia encostado na parede, perto da porta principal, observando Perrin. O que ele esperava? O que queria? Mergulhando a pena no potinho de pedra cheio de tinta, Perrin pôs de lado a terceira folha de papel e começou a rabiscar a quarta.

Ban al’Seen abriu a porta, de arco na mão, e esfregou um dedo inquieto no nariz, para cima e para baixo.

— Os Aiel estão de volta — anunciou, baixinho, mas seus pés se remexiam como se tivessem vida própria. — Trollocs estão vindo do norte e do sul. Milhares deles, Lorde Perrin.

— Não me chame assim — retrucou o rapaz, distraído, o cenho franzido para a folha de papel.

Não tinha jeito com as palavras. Com certeza não sabia dizer as coisas do jeito rebuscado que as mulheres gostavam. Só conseguia escrever o que sentia. Mergulhou a pena outra vez no tinteiro e acrescentou mais algumas linhas.

Não vou pedir seu perdão pelo que fiz. Não sei se você seria capaz de me perdoar, mas não vou pedir isso. Você é mais preciosa para mim que minha própria vida. Não pense que eu a abandonei. Quando o sol brilhar em seu rosto, será o meu sorriso. Quando você ouvir a brisa soprando nas flores das macieiras, serei eu sussurrando “eu te amo”. O meu amor é seu, para sempre.

Perrin

Por um instante, analisou o que escrevera. Não era o bastante, mas teria de servir. Não tinha as palavras certas, e também não tinha tempo.

Com muito cuidado, secou a tinta molhada com um mata-borrão e dobrou as páginas. Quase escreveu “Faile Bashere” do lado de fora, mas trocou para “Faile Aybara”. Percebeu que sequer sabia se as esposas tomavam o nome dos maridos, em Saldaea. Havia lugares onde isso não acontecia. Bem, Faile se casara com ele em Dois Rios, e teria que aturar os costumes de Dois Rios.

Deixou a carta no centro da cornija da lareira. Talvez chegasse até ela, um dia. Ajeitou a faixa nupcial vermelha por detrás da gola da camisa, para que caísse pela lapela do jeito certo. Deveria usá-la por sete dias, para que todos vissem que estava recém-casado.

— Vou tentar — disse à carta, baixinho.

Faile tentara amarrar uma faixa na barba dele. Perrin desejou que a tivesse deixado.

— Como, Lorde Perrin? — indagou Ban, ainda remexendo os pés, ansioso. — Eu não ouvi.

Aram mordia os lábios, os olhos arregalados e assustados.

— É hora de cuidar das tarefas do dia — anunciou Perrin. Talvez a carta chegasse a ela. De alguma forma. Apanhou o arco da mesa e jogou-o nas costas. Machado e aljava já pendiam do cinto. — E não me chame assim!

Na frente da estalagem, encontrou os Companheiros reunidos, já montados nos cavalos. Wil al’Seen levava aquele estandarte idiota com a cabeça do lobo, o cajado longo apoiado no ferro do estribo. Não fazia muito tempo que Wil tinha se recusado a carregar aquela coisa. Os sobreviventes dos que haviam se juntado a ele no primeiro dia agora detinham, orgulhosamente o direito. Wil, com o arco nas costas e uma espada na cintura, parecia tão orgulhoso quanto qualquer idiota.

Enquanto Ban subia na sela, desajeitado, Perrin o ouviu dizer:

— O homem é frio feito um lago de inverno. Feito gelo. Talvez não seja tão ruim assim, hoje.

Ele mal prestou atenção. As mulheres estavam reunidas no campo.

Estavam dispostas em um círculo de cinco ou seis fileiras ao redor do mastro comprido onde o estandarte maior com a cabeça vermelha de lobo tremulava ao vento. Cinco ou seis fileiras, ombro a ombro, levando armas de haste feitas de foices e ancinhos, além de machados de cortar madeira e robustas facas de cozinha e cutelos. Com um nó na garganta, ele montou em Galope e cavalgou na direção delas. As crianças formavam uma massa espremida dentro do círculo de mulheres. Todas as crianças de Campo de Emond.

Ao cavalgar lentamente por entre as fileiras, Perrin sentiu os olhos das mulheres a acompanhá-lo, e também os das crianças. Cheiro de medo e preocupação, coisa que estava evidente nos rostinhos infantis, mas o odor emanava de todos. Puxou a rédea, parando onde estavam Marin al’Vere, Daise Congar e o restante do Círculo das Mulheres. Alsbet Luhhan levava nos ombros um dos martelos do marido, e, na cabeça, o capacete de Manto-branco adquirido na noite de seu resgate, um pouco torto por conta da trança grossa. Neysa Ayellin segurava com firmeza uma faca de entalhar de lâmina comprida e trazia mais duas presas no cinto, às costas.

— Nós já planejamos o que vamos fazer — anunciou Daise, encarando Perrin como se esperasse uma discussão que não pretendia permitir. Segurava um ancinho amarrado a uma vara quase três pés maior que ela, apoiado na vertical. — Se os Trollocs invadirem por algum lugar, vocês, homens, vão ficar ocupados, então levaremos as crianças embora. Os mais velhos já sabem o que fazer, e todos já brincaram de esconde-esconde na floresta. Só para mantê-los seguros até poderem sair outra vez.

Os mais velhos. Meninos e meninas de treze e quatorze anos levavam os pequeninos amarrados às costas e seguravam as mãos dos maiores. Garotas mais velhas do que isso estavam nas fileiras com as mulheres. Bo Cauthon segurava um machado de lenha com as duas mãos, e sua irmã, Eldrin, portava uma lança de javali de ponta larga. Os rapazes mais velhos estavam com os homens ou trepados nos telhados de sapê, de arcos em punho. Os latoeiros permaneciam com suas crianças, dentro das casas. Perrin olhou para Aram, parado ao lado do estribo. Aquela gente não lutaria, mas cada adulto carregava dois bebês amarrados às costas e mais um aninhado no braço. Raen e Ila, abraçados, não o encaravam. Era só para mantê-los seguros até poderem sair outra vez.

— Peço desculpas. — Ele precisou parar e pigarrear. Não era sua intenção que a coisa chegasse àquele ponto. Por mais que refletisse, não conseguia pensar em nada de diferente que pudesse ter feito. Nem se entregar aos Trollocs teria impedido a matança e os incêndios. O fim teria sido o mesmo. — Não foi justo o que fiz com Faile, mas eu tive que fazer. Por favor, entenda isso. Eu tive que fazer.

— Não seja bobo, Perrin — respondeu Alsbet, enfática, mas com um sorriso afetuoso no rosto redondo. — Eu não aguento quando você começa de bobeira. Acha que esperaríamos outra coisa de você?

Com um pesado cutelo em uma das mãos, Marin estendeu a outra para dar um tapinha no joelho de Perrin.

— Qualquer homem a quem valha a pena cozinhar uma boa refeição teria feito o mesmo.

— Obrigado. — Luz, como sua voz. Dali a pouco estaria fungando feito uma criancinha. Ainda assim, por algum motivo, estava embargada não conseguiu suavizar o tom. As mulheres deviam estar pensando que ele era um idiota. — Obrigado. Eu não deveria ter enganado a senhora, mas Faile não teria ido embora se tivesse suspeitado.

— Ah, Perrin. — Marin riu. Uma risada de verdade, mesmo com tudo o que estava enfrentando, com todo o cheiro de medo que exalava. O rapaz desejou ter metade da coragem daquela mulher. — Nós sabíamos qual era a sua intenção antes mesmo de você fazer a garota montar no cavalo, e não posso afirmar com certeza que a própria Faile não sabia. As mulheres acabam fazendo muitas coisas que não querem fazer só para agradar vocês, homens. — Então acrescentou, com firmeza: — Agora vá cuidar do que tem que fazer. Isso aqui é assunto do Círculo das Mulheres.

Perrin conseguiu dar um jeito de retribuir o sorriso.

— Sim, senhora — respondeu, coçando a testa. — Me perdoe. Eu sei muito bem que é melhor não meter o bedelho nessas coisas.

As mulheres à volta de Marin riram, achando graça, e ele deu meia-volta com Galope.

Percebeu que Ban e Tell vieram cavalgando logo atrás, trazendo o restante dos Companheiros na cola de Wil e do estandarte. Fez um gesto para que os dois se aproximassem.

— Se as coisas ficarem ruins hoje — anunciou, com um de cada lado — os Companheiros devem voltar para cá e ajudar as mulheres.

— Mas…

Ele interrompeu o protesto de Tell.

— Façam o que eu mandei! Se alguma coisa der errado, saiam daqui com as mulheres e as crianças! Estão me ouvindo? — Os homens assentiram. Relutantes, mas assentiram.

— E você? — perguntou Ban, baixinho.

Perrin o ignorou.

— Aram, você fica com os Companheiros.

Avançando entre Galope e o cavalo peludo de Tell, o latoeiro sequer olhou para cima.

— Eu não vou sair do seu lado — respondeu ele, simplesmente, mas em um tom que não deixava espaço para discussão. O rapaz não mudaria de ideia, não importava o que ele dissesse, e Perrin se perguntou se os lordes de verdade passavam pelo mesmo tipo de problema.

Na ponta oeste do Campo, os Filhos estavam montados nos cavalos, os mantos reluzindo com o raio de sol dourado, os capacetes e armaduras brilhando, as pontas das lanças cintilando. Formavam uma longa coluna de duas parelhas que se estendia até o meio das casas mais próximas. Deviam ter passado a noite inteira polindo as armaduras. Dain Bornhald e Jaret Byar moveram os cavalos para virar-se de frente para Perrin. Bornhald permanecia sentado ereto sobre a sela, mas cheirava a conhaque de maçã. O rosto encovado de Byar se contorceu, com uma raiva ainda mais profunda do que de costume, quando ele encarou Perrin.

— Achei que vocês já estariam em suas posições — disse Perrin.

Bornhald torceu o nariz e encarou a crina do cavalo, sem responder. Depois de um instante, Byar retrucou:

— Estamos indo embora daqui, Criatura da Sombra. — Um burburinho raivoso começou a se elevar entre os Companheiros, mas o homem de olhos fundos os ignorou, assim como ignorou Aram, que passou a mão pelo ombro para agarrar o punho da espada. — Vamos passar pelos seus amigos no caminho de volta para Colina da Vigília e nos unir ao restante dos nossos homens.

Indo embora. Mais de quatrocentos soldados indo embora. Eram Mantos-brancos, mas eram soldados montados, não fazendeiros. Soldados que haviam concordado — Bornhald concordara! — em apoiar os homens de Dois Rios onde quer que a batalha ebulisse. Se Campo de Emond quisesse ter a menor chance que fosse, Perrin teria de contar com aqueles homens. Galope deu um tranco com a cabeça e bufou, como se captasse o humor do dono.

— Você ainda acredita que eu sou Amigo das Trevas, Bornhald? Quantos ataques viu até agora? Esses Trollocs tentaram me matar da mesma forma que tentaram matar os outros.

Bornhald ergueu a cabeça devagar, os olhos perturbados e ao mesmo tempo meio vidrados. As mãos protegidas pelas manoplas de aço se flexionaram nas rédeas, em um movimento inconsciente.

— Você acha que a essa altura eu já não descobri que essas defesas foram erguidas sem você? Nada disso foi coisa sua, sim? Eu não vou manter meus homens aqui para ver você jogar seus próprios aldeões na boca dos Trollocs. Você vai dançar em cima da pilha de corpos quando isso tudo acabar, Criatura da Sombra? Ah, não em cima dos nossos! Pretendo viver por tempo suficiente para ver você ser levado à justiça!

Perrin deu um tapinha no pescoço de Galope, tentando acalmar o garanhão. Precisava daqueles homens.

— Vocês querem me levar? Muito bem. Quando isso tudo acabar, quando os Trollocs estiverem derrotados, não vou resistir se vocês tentarem me prender.

— Não! — gritaram Ban e Tell, ao mesmo tempo.

Atrás deles, ergueu-se um estrondo de protestos. Aram encarou Perrin, perturbado.

— Uma promessa vazia — retrucou Bornhald, encarando-o com desprezo. — Você quer que todo mundo morra aqui, exceto você mesmo!

— E você nunca vai saber se fugir, não é mesmo? — Perrin assumiu um tom áspero e desdenhoso. — Vou manter a minha promessa, mas, se você for embora, pode ser que nunca volte a me encontrar. Vá, se quiser! Fuja e tente esquecer o que está acontecendo aqui! Toda aquela conversa de proteger o povo dos Trollocs… Quantos morreram nas mãos dos Trollocs, depois que você chegou? A minha família não foi a primeira, e com certeza não será a última. Fuja! Ou fique, se for capaz de lembrar que é homem. Se precisar encontrar coragem, olhe só para essas mulheres, Bornhald. Qualquer uma delas tem mais coragem do que todos vocês, Mantos-brancos, juntos!

Bornhald tremia como se cada palavra fosse um golpe. Perrin achou que o homem fosse desabar da sela. Ereto e cambaleante, o Manto-branco o encarou.

— Eu vou ficar — anunciou, com a voz rouca.

— Mas, meu Lorde Bornhald… — protestou Byar.

— Uma morte honrada! — rosnou Bornhald. — Se temos que morrer aqui, teremos uma morte honrada! — Ele virou a cabeça com violência de volta para Perrin, com saliva nos lábios. — Nós vamos ficar. Mas, no fim, eu verei você morto, Criatura da Sombra! Pela minha família, pelo meu pai, eu… verei… você… morto!

Ele puxou o cavalo bruscamente e retornou a meio-galope até a fileira de Mantos-brancos. Byar arreganhou os dentes para Perrin, em um rosnado silencioso, antes de seguir seu comandante.

— Você pretende manter essa promessa? — perguntou Aram. — Você não pode.

— Preciso ver como estão todos — comentou Perrin. Não havia muita chance de que vivesse o bastante para manter a promessa. — Não temos muito tempo.

Ele cravou as botas nos flancos de Galope, e o cavalo deu um pinote para a frente, em direção ao lado oeste da aldeia.

Atrás das estacas pontudas voltadas para a Floresta do Oeste, homens permaneciam agachados com suas lanças, alabardas e armas de haste confeccionadas por Haral Luhhan, que também estava lá, com o colete de ferreiro e uma lâmina de foice presa à ponta de uma vara de oito pés de comprimento. Atrás deles estavam os homens com arcos, em fileiras entremeadas por quatro catapultas. Abell Cauthon caminhava devagar por entre elas, falando com cada um dos homens.

Perrin freou as rédeas ao lado de Abell.

— A notícia é que eles estão vindo do norte e do sul — murmurou — mas fique de olho.

— Vamos vigiar. E estou pronto para mandar metade dos meus homens para onde for preciso. Eles vão ver que o povo de Dois Rios não é presa fácil.

O sorriso escancarado de Abell era muito parecido com o do filho.

Para o constrangimento de Perrin, os homens urraram um comprimento ressonante enquanto ele avançava, com os Companheiros e o estandarte logo atrás.

— Olhos-Dourados! Olhos-Dourados! — gritavam.

Volta e meia surgia um “Lorde Perrin!” em meio à algazarra. Sabia que deveria ter batido o pé mais forte no início.

Tam assumira a liderança ao sul, com o rosto mais sombrio que o de Abell, avançando quase como um Guardião, a mão apoiada no punho da espada. Aquela graça mortal e voraz parecia estranha no fazendeiro corpulento e grisalho. Ainda assim, suas palavras para Perrin não foram tão diferentes das de Abell.

— Nós de Dois Rios somos muito mais fortes do que a maioria pensa — murmurou. — Não se preocupe, hoje seremos motivo de muito orgulho.

Alanna estava parada ao lado de uma das seis catapultas erguidas naquela área, toda preocupada com uma grande pedra que era içada para dentro de um dos suportes na ponta de uma das vigas robustas. Ihvon parou o cavalo perto dela, com a capa furta-cor de Guardião, esguio feito uma lâmina de aço e alerta como um gavião. Não havia dúvida de que ele escolhera seu lugar — onde quer que Alanna estivesse — e sua luta — preservar a vida dela, independentemente do que acontecesse. O homem mal olhou para Perrin. Mas, quando ele passou, a Aes Sedai fez uma pausa, as mãos suspensas sobre a pedra, os olhos a acompanhá-lo. O rapaz quase pôde senti-la avaliando-o, medindo-o, julgando-o. Os urros também o acompanhavam ali.

No ponto onde a cerca de estacas ficava à frente das poucas casas a leste da estalagem Fonte de Vinho, Jon Thane e Samel Crawe dividiam o comando. Perrin disse aos dois o mesmo que dissera a Abell, e recebeu a mesma resposta. Jon, vestido em uma cota de malha com buracos em diversos pontos, vira a fumaça de seu moinho incendiado, e Samel, com cara de cavalo e nariz comprido, tinha certeza de ter visto a fumaça de sua fazenda. Nenhum dos dois esperava que o dia fosse fácil, mas ambos estavam cobertos de um manto rígido de determinação.

Perrin decidiu que sua luta seria no norte. Dedilhando a fita que pendia de uma lapela, espiou na direção de Colina da Vigília, na direção que Faile seguira, e se perguntou por que teria escolhido o lado norte. Voe livre, Faile. Voe livre, meu coração. Imaginou que aquela área seria tão apropriada para morrer quanto qualquer outra.

Bran supostamente assumira a liderança daquelas bandas, com seu elmo e colete com discos de metal cerzidos, mas parou de conferir os homens ao longo da cerca para dispensar uma mesura a Perrin, a maior que sua circunferência corporal permitia. Gaul e Chiad permaneciam a postos, as cabeças envoltas nas shoufas, os rostos encobertos até os olhos por detrás dos véus negros. Lado a lado, percebeu Perrin. Fosse lá o que tivesse se passado entre os dois, parecia se sobrepor à rixa de sangue dos clãs. Loial portava um par de machados de madeira, pequenos se comparados às suas mãos imensas. As orelhas peludas se inclinavam para a frente, cheias de fúria, e o rosto largo estava fechado.

Você acha que eu fugiria?, perguntara ele, quando Perrin sugerira que o Ogier poderia escapulir no meio da noite atrás de Faile. As orelhas haviam caído, cheias de pesar e cansaço. Eu vim com você, Perrin, e vou ficar até você ir embora. Então soltara uma risada repentina, um som grave e retumbante que quase sacudira as louças. Talvez alguém até conte uma história a meu respeito, um dia. Não é frequente acontecer com meu povo, mas acho que pode haver um herói Ogier. Uma piada, Perrin! Eu fiz uma piada! Ria! Venha, vamos contar umas piadas, rir um pouco e pensar em Faile voando livre.

— Não é piada, Loial — murmurou Perrin, enquanto cavalgava entre as fileiras de homens, tentando não escutar a algazarra. — Você é um herói, queira ou não.

O Ogier abriu um sorriso largo e tenso antes de deitar os olhos outra vez no chão limpo em frente à cerca. Pedaços de pau rajados de branco marcavam intervalos de cem a quinhentas passadas. Para além disso, havia campos forrados de tabaco e cevada, a maioria esmagada por ataques anteriores, além de sebes, cercas baixas de pedra e bosques de folhas-de-couro, pinheiros e carvalhos.

Perrin conhecia muitos rostos naquelas fileiras de homens à espera. O corpulento Eward Candwin junto de Paet al’Caar, de queixo-quadrado, erguendo lanças. Buel Dowtry, o flecheiro grisalho, estava ao lado dos arqueiros, claro. E Jac al’Seen, forte e grisalho, estava junto com seu primo careca, Wit. Também tinha Flann Lewin, um senhor enrugado, um varapau magricela como todos os homens de sua família. Jim Torfinn e Hu Marwin, dois dos primeiros a acompanhá-lo, estavam muito constrangidos para se juntar aos Companheiros. Como se a falha em detectar a emboscada na Floresta das Águas tivesse aberto uma espécie de abismo entre eles e os outros. Elam Dowtry, Dav Ayellin e Ewin Finngar também estavam lá. Assim como Hari Coplin e seu irmão, Darl, além do velho Bili Congar. Perrin também viu Berin Thane, o irmão do moleiro; Athan Dearn, o gordo; Kevrim al’Azar, cujos netos já tinham filhos crescidos; Tuck Padwhin, o carpinteiro; e…

Ele se obrigou a parar de enumerar os homens e cavalgou até onde estava Verin, ao lado de uma das catapultas, sob o olhar atento de Tomas, montado no garanhão cinzento. A Aes Sedai roliça, vestida de marrom, analisou Aram por um instante antes de voltar o olhar a Perrin. Parecia uma ave de rapina, com uma sobrancelha erguida, como se questionasse por que ele viera incomodá-la.

— Estou um pouco surpreso em ver você e Alanna ainda aqui — comentou Perrin. — Ir atrás de garotas capazes de aprender a canalizar não pode ser algo pelo qual valha a pena acabar morrendo. Nem se prender a um ta’veren.

— É isso que estamos fazendo? — Ela apoiou as mãos na cintura e inclinou a cabeça para o lado, pensativa. — Não — disse, por fim — acho que ainda não dá para irmos embora. Você é um estudo muito interessante. Tanto quanto Rand, a seu próprio modo. E o jovem Mat. Se eu pudesse me dividir em três, ficaria colada a cada um e acompanharia cada momento, dia e noite, mesmo que tivesse de me casar com vocês.

— Eu já tenho uma esposa. — Era estranho dizer aquilo. Estranho e bom. Tinha uma esposa, e ela estava em segurança.

Verin despedaçou o devaneio de Perrin.

— Verdade, tem mesmo. Mas não sabe o que significa se casar com Zarine Bashere, não é? — Ela estendeu o braço para virar o machado dele, preso ao cinto, e analisá-lo. — Quando vai trocar isso aqui pelo martelo?

Encarando a Aes Sedai, Perrin puxou a rédea de Galope, para afastá-lo um passo, e puxou o machado das mãos da mulher antes que percebesse o que fazia. O que se casar com Faile significava? Largar o machado? O que ela queria dizer? O que ela sabia?

— ISAM! — O urro gutural se ergueu como um trovão. Trollocs surgiram, cada um com metade a mais da altura de um homem e o dobro da largura, trotando pelos campos e parando além do alcance de uma flechada. Era uma massa imensa, protegida por malha negra, espalhando-se por toda a extensão da aldeia. Havia milhares agrupados, as caras imensas distorcidas por bicos e focinhos, as cabeças com chifres ou cristas emplumadas. Tinham pregos nos ombros e cotovelos, espadas curvas feito foices e machados com ponteiras, lanças retorcidas e tridentes farpados, um verdadeiro mar de armas letais. Atrás deles, Myrddraal galopavam para cima e para baixo em cavalos negros como a meia-noite, as capas negras feito corvos, imóveis enquanto seus donos rodopiavam em cima das montarias.

— ISAM!

— Interessante — murmurou Verin.

Perrin não achou que fosse a palavra certa para descrever a cena. Era a primeira vez que os Trollocs gritavam qualquer coisa compreensível. Não que ele tivesse a mais vaga ideia do significado.

Alisando a faixa nupcial, forçou-se a cavalgar com calma até o centro da fileira de Dois Rios. Os Companheiros entraram em formação atrás dele. A brisa erguia o estandarte com a cabeça vermelha de lobo. Aram empunhava a espada com as duas mãos.

— A postos! — gritou Perrin. Sua voz saiu firme, ele não pôde acreditar.

— ISAM!

A onda negra avançou, emitindo uivos incompreensíveis.

Faile estava em segurança. Nada mais importava. Não se permitiria ver os rostos dos homens que se alinhavam de cada lado. Ouviu os mesmos urros vindos do sul. De duas direções ao mesmo tempo. Os inimigos nunca tinham tentado isso. Faile estava a salvo.

— A quatrocentas passadas…! — Em todas as fileiras, os arcos se ergueram de uma só vez. A massa urrante se aproximou ainda mais, as pernas compridas e grossas devorando o chão. Mais perto. — Disparar!

O estrépito das cordas dos arcos se perdeu em meio ao rugido dos Trollocs, mas uma chuva de flechas de penas de ganso varou o céu, caindo em arco em direção à horda de malhas negras. Pedras das catapultas estouraram em bolas chamejantes e fragmentos pontiagudos em cima das fileiras que fervilhavam com as Criaturas das Trevas. Trollocs desabaram. Perrin os viu caindo, esmagados em meio a botas e cascos. Até alguns Myrddraal caíram. Ainda assim, a onda continuava avançando, fechando os buracos e vãos, sem parecer ter qualquer baixa.

Não foi necessário ordenar outra saraivada. Uma segunda se seguiu à primeira com tanta rapidez quanto os homens conseguiram encaixar as flechas nos arcos, uma nova chuva de pontas largas se erguendo antes que a primeira tivesse caído, a terceira vindo logo em seguida, a quarta, a quinta. O fogo irrompia por entre os Trollocs com tanta rapidez quanto era possível baixar os braços das catapultas. Verin galopava de uma a outra, inclinada na sela. Mas as imensas silhuetas urrantes avançavam, gritando em uma língua que Perrin era incapaz de compreender, mas sabia que gritavam por sangue, sangue e carne humanos. Os homens agachados atrás das estacas se aprontaram, erguendo as armas.

Perrin sentiu um calafrio. Já via o solo atrás da avançada dos Trollocs tomado pelos mortos e moribundos, mas o número de criaturas parecia não diminuir. Galope empinava, nervoso, mas Perrin não conseguia ouvir o relincho do garanhão por conta dos urros dos Trollocs em disparada. O machado veio para sua mão com suavidade, a lâmina comprida em meia-lua e a ponteira grossa reluzindo à luz do sol. Ainda não era nem meio-dia. Meu coração é para sempre seu, Faile. Desta vez, ele não achou que as estacas fossem…

Sem sequer reduzir a marcha, a fileira dianteira de Trollocs partiu para cima das estacas afiadas, as caras deformadas pelos focinhos e bicos se contorcendo com guinchos e uivos quando os corpos eram espetados. As criaturas foram sendo derrubadas por outras, ainda mais imensas, que se amontoavam por detrás delas, caíam por cima das estacas e iam sendo substituídas por mais, sempre mais. Uma última saraivada de flechas foi disparada, quase à queima-roupa. Em seguida veio a investida com lanças, alabardas e armas de haste caseiras, que eram enfiadas e cravadas nos imensos corpos cobertos de malha negra. Os Trollocs iam desabando enquanto os arqueiros atiravam como podiam nas caras inumanas, uns por cima dos outros. Até os garotos em cima dos telhados disparavam flechas. Loucura, morte, urros, gritos e uivos ensurdecedores se espalhavam. Lenta e inexoravelmente, a coluna de Dois Rios foi sendo empurrada. Se os Trollocs, em qualquer um dos pontos…

— Recuem! — gritou Perrin.

Um Trolloc com focinho de javali, já sangrando, forçou passagem por entre as fileiras de homens, guinchando e golpeando com a espada grossa e curva. O machado de Perrin acertou seu focinho, dividindo a cabeça ao meio. Galope tentava recuar, dando berros inaudíveis em meio ao estrondo.

— Recuem!

Darl Coplin caiu, agarrado à coxa perfurada por uma lança da grossura de um punho. O velho Bili Congar tentou arrastá-lo para trás enquanto manejava uma lança de javali com dificuldade. Hari Coplin balançava a alabarda para defender o irmão, a boca escancarada no que parecia um grito sem som.

— Recuem para as casas!

Não soube ao certo se outros ouviram a ordem e passaram adiante ou se a montanha opressora de Trollocs pressionou ainda mais, mas, bem devagar, um passo relutante de cada vez, os humanos foram recuando. Loial balançava os machados ensanguentados feito malhos, a imensa boca contorcida em um rosnado. Ao lado do Ogier, Bran golpeava com sua lança. O homem tinha um ar sombrio: perdera o elmo tosco, e sangue escorria da franja de cabelos grisalhos. De cima do garanhão, Tomas abriu um espaço em volta de Verin. A Aes Sedai, com os cabelos despenteados feito uma louca, perdera o cavalo, mas bolas de fogo saíam de suas mãos, e cada Trolloc atingido explodia em chamas como se estivesse embebido em óleo. Não era suficiente para se defender. Os homens de Dois Rios recuavam aos poucos, acotovelando-se ao redor de Galope. Gaul e Chiad lutavam de costas um para o outro. A Donzela empunhava apenas uma lança, enquanto o Cão de Pedra golpeava e cortava com a faca pesada. Recuar. A leste e oeste, os homens haviam saído das linhas de defesa para evitar que os Trollocs os flanqueassem, mas continuavam disparando flechas. Não era suficiente. Recuar.

De súbito, uma silhueta com chifres de carneiro começou a tentar puxar Perrin para fora da sela, a tentar montar atrás dele. Debatendo-se, Galope desabou com o peso dos dois. Com a perna presa embaixo da montaria, quase a ponto de quebrar, morrendo de dor, Perrin fez esforço para puxar o machado, para afastar da garganta aquelas mãos maiores que as de um Ogier. O Trolloc gritou quando a espada de Aram foi cravada em seu pescoço. O latoeiro deu um giro suave e acertou outro Trolloc, bem no meio do corpo, ao mesmo tempo em que a primeira criatura desabava ao lado de Perrin, jorrando sangue.

Grunhindo de dor, Perrin sacudiu as pernas para se libertar, ajudado por Galope, que logo se pôs de pé. No entanto, não houve tempo para pensar em montar outra vez. Perrin mal conseguira girar o corpo quando os cascos de um cavalo negro pisotearam o local onde sua cabeça estivera apenas segundos antes. Pálido, o rosto sem olhos contorcido em um rosnado, o Desvanecido se inclinou na sela enquanto Perrin tentava se levantar, brandindo a espada negra feito a morte, a lâmina roçando em seus cabelos quando o rapaz caiu. Sem piedade, Perrin balançou o machado, arrancando uma das pernas do cavalo da criatura. Cavalo e cavaleiro desabaram para a frente, juntos. Durante a queda, o ferreiro enfiou o machado onde deveriam ficar os olhos, no rosto do Meio-homem.

Perrin soltou o machado com um puxão a tempo de ver as pontas do ancinho de Daise Congar acertarem a garganta de um Trolloc com focinho de bode. A criatura agarrou o cabo longo com uma das mãos e partiu para cima da mulher com uma lança farpada na outra, mas Marin al’Vere interrompeu o golpe, muito tranquila, com uma investida do cutelo. A perna do Trolloc cedeu, e, com a mesma frieza, a mulher retalhou a espinha da Criatura das Trevas bem na base do pescoço. Outro Trolloc ergueu Bo Cauthon no ar, pela trança. Com a boca escancarada em um grito apavorado, a jovem cravou o machado de lenha no ombro da criatura, protegido pela malha, enquanto sua irmã, Eldrin, enfiava a lança de javali no peito da criatura, e Neysa Ayellin, de tranças grisalhas, fazia o mesmo com uma faca grossa de açougueiro.

De um extremo a outro da fileira, até onde Perrin podia ver, as mulheres estavam presentes. Era graças a elas que a fileira ainda resistia, recuada quase até o meio das casas. Mulheres entre homens, ombro a ombro. Algumas ainda era garotas, mas, por outro lado, alguns daqueles “homens” também nunca sequer tinham feito a barba. Alguns jamais viriam a fazer. Onde estavam os Mantos-brancos? As crianças! Se as mulheres estavam ali, não havia ninguém para proteger as crianças. Onde estão os malditos Mantos-brancos? Se chegassem naquele instante, eles pelo menos conseguiriam mais alguns minutos. Uns poucos minutos para remover as crianças.

Um garoto, o mesmo mensageiro de cabelinhos escuros que viera até ele na noite anterior, agarrou seu braço quando Perrin se virou para procurar os Companheiros. Os Companheiros precisavam abrir caminho para remover as crianças. Ele os enviaria para cuidar das crianças e faria o possível por ali.

— Lorde Perrin! — gritou o garoto, em meio ao barulho ensurdecedor. — Lorde Perrin!

Perrin tentou se desvencilhar, depois agarrou o braço do garoto esperneante. O lugar dele era com as outras crianças. Divididos em fileiras espremidas que se estendiam de casa a casa, Ban, Tell e os outros Companheiros atiravam, de cima das selas, por sobre as cabeças dos homens e mulheres. Wil enfiara o mastro do estandarte no chão para poder manejar o arco. Tell conseguira dar um jeito de alcançar Galope, e as rédeas do castanho estavam amarradas às de seu cavalo. O garoto poderia ir na traseira do animal.

— Lorde Perrin! Por favor, escute! Mestre al’Thor disse que tem alguém atacando os Trollocs! Lorde Perrin!

Perrin estava se virando para Tell, mancando da perna ferida, quando a mensagem chegou a seu cérebro. Enfiou o cabo do machado no cinto para erguer o garoto pelos ombros e ficar frente a frente com ele.

— Atacando? Quem?

— Eu não sei, Lorde Perrin. Mestre al’Thor mandou dizer ao senhor que ele achou que tinha ouvido alguém gritar “Trilha de Deven”.

Aram agarrou o braço de Perrin e, sem dizer uma palavra, apontou com a espada ensanguentada. Perrin virou-se a tempo de ver uma chuva de flechas cair em cima dos Trollocs. Vinda do norte. Outra saraivada já se erguia rumo ao ponto mais alto da trajetória em arco.

— Vá ficar com as outras crianças — mandou, recolocando o garoto no chão. Precisava se posicionar onde conseguisse ver. — Vá! Você fez muito bem, garoto! — acrescentou, enquanto corria desajeitado até Galope.

O garotinho disparou de volta para a aldeia, com um sorriso enorme no rosto. Cada passo gerava mais uma pontada de dor que subia pela perna de Perrin. Talvez estivesse quebrada, mas ele não tinha tempo de se preocupar com isso.

Agarrando as rédeas que Tell atirou, alavancou o próprio corpo até a sela. Então se perguntou se estava vendo o que queria ver, em vez do que de fato estava acontecendo.

Sob um estandarte de águia vermelha, no limite de onde antes ficavam as plantações, compridas fileiras de homens vestidos em roupas de fazendeiros disparavam flechas metodicamente. Ao lado do estandarte, Faile estava sentada sobre a sela de Andorinha, com Bain junto ao estribo. Só podia ser Bain por detrás daquele véu negro, e dava para ver muito bem o rosto de Faile. A mulher estava empolgada, receosa, aterrorizada e exuberante. Estava linda.

Myrddraal tentavam fazer alguns Trollocs se virarem para liderar uma investida contra os homens de Colina da Vigília, mas era inútil. Até os Trollocs que se viravam caíam antes de avançar cinquenta passos. Um Desvanecido e seu cavalo desabaram, abatidos não pelas flechas, mas pelas mãos e lanças dos Trollocs em pânico. Agora eram as Criaturas das Sombras que recuavam, correndo em frenesi, fugindo dos disparos de ambos os lados que começaram depois que os homens de Campo de Emond também conseguiram erguer os arcos. Trollocs caíam, Myrddraal tombavam. Era uma carnificina, mas Perrin nem reparava. Faile.

O mesmo garoto apareceu em seu estribo.

— Lorde Perrin! — gritou ele. Tentava ser ouvido por sobre os gritos de vitória, homens e mulheres comemorando a alegria e o alívio ao verem os últimos Trollocs desabarem, atingidos pelos arcos. Perrin acreditava que poucos tinham conseguido escapar, mas mal conseguia pensar. Faile. O garoto puxou uma perna de sua calça. — Lorde Perrin! Mestre al’Thor mandou dizer ao senhor que os Trollocs estão perdendo! E eles estão mesmo gritando “Trilha de Deven”! Os homens, quer dizer. Eu ouvi!

Perrin se inclinou para afagar os cabelos cacheados do menino.

— Qual é o seu nome, rapaz?

— Jaim Aybara, Lorde Perrin. Sou seu primo, eu acho. Mais ou menos.

Perrin estreitou os olhos para evitar as lágrimas. Quando os abriu de novo, suas mãos ainda tremiam por sobre a cabeça do garoto.

— Bem, primo Jaim, conte aos seus filhos o que aconteceu aqui hoje. Conte aos seus netos e aos filhos dos seus netos.

— Eu não vou ter filhos — retrucou Jaim, com vigor. — As garotas são horrorosas. Elas riem da gente e não gostam de fazer nada de bom, e nunca dá para entender o que elas estão dizendo.

— Acho que um dia você vai descobrir que elas são o oposto de horrorosas. Algumas coisas não vão mudar, mas isso vai.

Faile.

Jaim estava meio desconfiado, mas logo um sorriso iluminou seu rosto.

— Espere só até eu contar a Had que o Lorde Perrin me chamou de primo! — E saiu saltitante para contar a Had, que também teria filhos, e a todos os garotos que um dia também teriam filhos.

O sol estava a pino. Uma hora se passara, talvez. Tudo aquilo levara menos de uma hora. Parecia uma eternidade.

Galope avançou, e Perrin notou que provavelmente cravara os calcanhares no animal. O povo em polvorosa abriu espaço para o garanhão, mas Perrin mal ouvia seus gritos de alegria. Havia imensos buracos onde os Trollocs tinham destruído as estacas com o mero peso de seus numerosos corpos. Ele passou por um desses buracos e contornou um montinho de Trollocs mortos sem nem perceber. Trollocs mortos cravados de flechas formavam um tapete no chão, e aqui e ali um Desvanecido todo espetado se debatia violentamente. Mas ele não viu nada daquilo. Só tinha olhos para uma coisa. Faile.

A mulher disparou por entre os homens de Colina da Vigília, fez uma pausa para pedir a Bain que não a seguisse e avançou cavalgando ao encontro dele. Vinha tão graciosa, como se a égua negra fosse parte de seu corpo, empertigada e esbelta, conduzindo Andorinha mais com os joelhos do que com as rédeas, que estavam presas displicentemente a uma das mãos. A faixa nupcial vermelha ainda estava trançada em seus cabelos, as pontas caídas por sobre os ombros. Perrin precisava encontrar umas flores para ela.

Por um instante, aqueles olhos oblíquos o analisaram, e a boca… Ela não poderia estar insegura, poderia? Mas ele sentiu o cheiro.

— Eu falei que iria — disse ela, por fim, de cabeça erguida. Andorinha dançou para os lados, o pescoço arqueado, e Faile dominou a égua sem nem perceber. — Não falei para onde. Você não pode dizer que eu falei para onde.

Perrin não conseguiu responder. Faile era tão bonita. Só queria olhar para ela, vê-la, linda, viva e a seu lado. Ela cheirava a suor limpo com o mais leve sabão herbóreo. O rapaz não sabia ao certo se queria rir ou chorar. Talvez as duas coisas. Queria sugar todo o aroma de Faile para dentro de seus pulmões.

De cenho franzido, a mulher prosseguiu:

— Eles estavam preparados, Perrin. Estavam mesmo, de verdade. Eu quase não precisei dizer nada para convencê-los a vir. Os Trollocs nem chegaram a incomodá-los, mas eles viram a fumaça. A viagem foi dura para mim e Bain. Chegamos a Colina da Vigília bem antes de o dia raiar e começamos a voltar assim que o sol nasceu. — O cenho franzido de Faile se abriu em um sorriso largo, cheio de orgulho e ansiedade. Que sorriso mais lindo. Os olhos escuros cintilavam. — Eles me seguiram, Perrin. Eles me seguiram! Nem Tenobia liderou homens em batalha. Ela quis, uma vez, quando eu tinha oito anos, mas meu pai conversou com ela a sós, em seus aposentos, e, quando ele partiu para a Praga, ela acabou ficando. — Com um sorriso pesaroso, a jovem acrescentou: — Acho que você e ele às vezes usam os mesmos métodos. Tenobia o baniu, mas ela só tinha só dezesseis anos, e o Conselho de Lordes conseguiu convencê-la a mudar de ideia depois de umas semanas. Ela vai ficar azul de inveja quando eu contar isso. — Faile fez outra pausa, desta vez respirando fundo e plantando uma mão na cintura. — Você não vai dizer nada? — inquiriu, impaciente. — Só vai ficar aí sentado, feito um palerma peludo? Eu não disse que sairia de Dois Rios. Você disse isso, não eu. Você não tem o direito de ficar bravo comigo porque eu não fiz uma coisa que nunca cheguei a prometer! E você me mandou embora porque pensou que iria morrer! Eu voltei para…

— Eu te amo. — Foi tudo o que ele conseguiu dizer, mas, estranhamente, pareceu o bastante.

As palavras mal haviam acabado de sair da boca de Perrin quando Faile conduziu Andorinha para bem perto dele, abraçou-o e apertou o rosto contra seu peito. A mulher parecia estar tentando dividi-lo em dois com o aperto. Ele acariciou os cabelos da esposa delicadamente, sentindo a maciez, apenas sentindo Faile.

— Eu estava com tanto medo de ser tarde demais — comentou ela, com o rosto enfiado no casaco de Perrin. — Os homens de Colina da Vigília marcharam o mais depressa que puderam, mas, quando a gente chegou, eu vi os Trollocs lutando bem no meio das casas, tantos deles, como se a aldeia estivesse sendo soterrada por uma avalanche. E não consegui ver você… — Ela inspirou, trêmula, e exalou devagar. Quando voltou a falar, a voz estava mais calma. Um pouco. — Os homens de Trilha de Deven vieram?

Ele levou um susto, e sua mão parou de alisar os cabelos de Faile.

— Vieram, sim. Como é que você sabia? Você organizou isso também? — Ela começou a tremer; Perrin levou um instante para perceber que ela estava rindo.

— Não, meu coração, mas teria feito isso, se pudesse. Quando aquele homem passou o recado… “estamos vindo”… eu achei… torci para que fosse isso o que ele estivesse querendo dizer. — Ela afastou um pouco o rosto e o encarou, muito séria. — Eu não podia contar a você, Perrin. Não podia encher você de esperanças, quando tudo o que tinha era uma suspeita. Teria sido muito cruel se… Não fique com raiva de mim, Perrin.

Rindo, ele a ergueu da sela e sentou-a de lado em cima de Galope. Faile protestou, gargalhando, e se esticou em cima do cepilho alto para abraçá-lo.

— Eu nunca, jamais, vou ficar com raiva de você, eu ju…

Ela pôs a mão sobre a boca de Perrin, para interrompê-lo.

— Minha mãe diz que a pior coisa que meu pai fez na vida foi jurar nunca sentir raiva dela. Levou um ano para ela conseguir obrigá-lo a retirar o que tinha dito, mas diz que muito antes disso já era insuportável conviver com ele, de tanto ressentimento que ele guardava. Você vai sentir raiva de mim, Perrin, e eu de você. Se quiser me fazer outra jura de casamento, jure que não vai tentar disfarçar a raiva que estiver sentindo. Eu não tenho como enfrentar as coisas que você esconder de mim, meu marido. Meu marido — repetiu ela, com satisfação, aconchegando-se nele. — Gosto muito de dizer isso.

Perrin notou que Faile não prometera que ela própria não esconderia a raiva. Segundo as experiências anteriores, ele teria de descobrir a irritação da esposa da pior maneira, pelo menos na metade das vezes. Além do mais, a mulher também não prometera não esconder mais nada dele. Naquele momento, nada disso importava, contanto que Faile estivesse ao seu lado.

— Eu não vou esconder de você quando estiver com raiva, minha esposa — prometeu o rapaz.

Faile o olhou de soslaio, como se não soubesse ao certo como receber a promessa. Você nunca vai conseguir entendê-las, primo Jaim, mas não vai nem ligar.

De súbito, ele se deu conta dos Trollocs mortos ao redor, um campo negro de ervas daninhas, com os Myrddraal se debatendo, ainda se recusando a finalmente morrer. Girou Galope, receoso. A extensão da carnificina de Criaturas da Sombra ocupava centenas de passadas, em todas as direções. Os corvos já chegavam, pulando pelo chão, e os abutres revoavam logo acima, em uma nuvem gigantesca e fervilhante. Não era pagamento suficiente para a morte de Deselle, de Adora, do pequeno Paet, ou… Não era suficiente, nunca seria. Nada jamais poderia pagar aquilo. Ele abraçou Faile com tanta força que a mulher grunhiu, mas, quando tentou soltá-la, ela segurou seus braços, apertando-os com a mesma força. Faile era suficiente.

O povo saía correndo de Campo de Emond. Bran mancava, usando a lança como cajado, Marin sorria, com um braço em volta dele. Daise era abraçada pelo marido, Wit. Gaul e Chiad estavam de mãos dadas, com os véus baixados. As orelhas de Loial estavam caídas, abatidas, Tam tinha sangue no rosto, e Flann Lewin só se mantinha de pé com ajuda da esposa, Adine. Quase todos estavam cobertos de sangue e usavam ataduras feitas às pressas. No entanto, a multidão avançava. Elam e Dav, Ewin e Aram, Eward Candwin e Buel Dowtry, Hu e Tad, os cavalariços da estalagem Fonte de Vinho, Ban e Tell, junto com os Companheiros a cavalo, ainda carregando aquele estandarte. Desta vez, Perrin não notou os rostos que faltavam, apenas os que ainda estavam ali. Verin e Alanna em seus cavalos, com Tomas e Ihvon seguindo logo atrás. O velho Bili Congar balançava uma moringa que decerto continha cerveja, ou, melhor ainda, conhaque. Cenn Buie resmungava mais do que nunca, mesmo machucado. Jac al’Seen abraçava a esposa, e seus filhos e filhas seguiam ao redor dele, com as esposas e maridos. Rael e Ila ainda levavam os bebês nas costas. E outros. Rostos que ele sequer reconhecia, homens que deviam ser de Trilha de Deven e fazendeiros que moravam perto de lá. Meninos e meninas corriam à volta deles, gargalhando.

Eles se espalharam para os dois lados, formando um enorme círculo oco com os homens de Colina da Vigília, Faile e Perrin no centro. A multidão evitava os Desvanecidos agonizantes, mas era como se não vissem as Criaturas da Sombra caídas por todos os cantos, apenas o casal em cima de Galope. Em silêncio, ficaram observando até Perrin começar a ficar nervoso. Por que ninguém diz nada? Por que estão me encarando desse jeito?

Os Mantos-brancos apareceram, cavalgando devagar para fora da aldeia em fileiras de parelhas, extensas e reluzentes. Dain Bornhald vinha na liderança, com Jaret Byar. Cada Manto-branco brilhava como se tivesse acabado de se lavar, e cada lança estava apontada precisamente para o mesmo ângulo. Murmúrios taciturnos se ergueram pela multidão, mas o povo se afastou para que eles adentrassem o círculo.

Bornhald ergueu a mão protegida pela manopla de aço, parando a fileira em um tinido de rédeas e rangidos de selas, e encarou Perrin.

— Acabou, Critura da Sombra. — A boca de Byar estremecia quase a ponto de se abrir em um rosnado, mas o rosto de Bornhald não se alterava, a voz não se elevava. — Os Trollocs foram derrotados, por aqui. Conforme combinamos, prenderei você como Amigo das Trevas e assassino.

— Não! — Faile se virou para encarar Perrin, os olhos cheios de fúria. — Como assim “conforme combinamos”?

Suas palavras quase foram abafadas pelo estrondo que veio de todos os cantos.

— Não! Não!

— Vocês não podem levá-lo!

— Olhos-Dourados!

Com o olhar fixo em Bornhald, Perrin ergueu uma das mãos, e o silêncio lentamente se abateu sobre a multidão. Quando tudo se aquietou, ele disse:

— Eu falei que não resistiria se vocês ajudassem. — A calma em sua voz era surpreendente, mas por dentro ele fervilhava com uma raiva lenta e fria. — Se vocês ajudassem, Manto-branco. Onde vocês estavam?

O homem não respondeu.

Daise Congar e Wit saíram do meio da multidão que os rodeava, o homem se apoiava na esposa como se nunca mais pretendesse soltá-la. E o braço robusto de Daise envolvia os ombros do marido com a mesma intensidade. Foi uma cena estranha quando ela, uma cabeça mais alta do que o homem, plantou o ancinho-arma com firmeza no chão, segurando o marido, consideravelmente mais baixo, como se pretendesse protegê-lo.

— Eles ficaram no campo — anunciou a mulher, em voz alta — todos enfileirados e sentadinhos nos cavalos, feito belas mocinhas prontas para dançar no Dia do Sol. Nem se mexeram. Foi isso o que nos fez ir até vocês… — um murmúrio furioso de concordância se elevou, vindo das mulheres — Quando vimos que estavam a ponto de serem esmagados, e eles continuavam ali, parados, feito blocos de madeira!

Bornhald não tirou os olhos de Perrin nem por um instante. O homem sequer piscava.

— Você acha que eu confiaria em você? — indagou ele, com desprezo. — Seu plano só falhou porque os outros chegaram, sim? Aí você pôde alegar que não teve participação nisso. — Faile se remexeu. Sem desviar os olhos do homem, Perrin encostou um dedo na boca da esposa assim que ela a abriu. Faile mordeu o dedo com força, mas nada disse. Por fim, a voz de Bornhald começou a se elevar. — Eu verei você enforcado, Criatura da Sombra. Verei você enforcado, custe o que custar. Verei você morto, nem que o mundo se queime! — A última frase saiu em um berro.

A espada de Byar deslizou um tantinho para fora da bainha. Um Manto-branco corpulento atrás dele, que Perrin pensava se chamar Farran, desembainhou a própria arma por completo, dando um sorriso de satisfação, em vez do esgar de dentes desdenhoso de Byar.

Eles congelaram ao ouvir o clangor das flechas sendo puxadas das aljavas. Arcos se elevaram por todo o círculo, flechas foram levadas às orelhas e cada lança de ponta larga foi apontada para um Manto-branco. Por toda a extensão da coluna robusta, as selas de patilho alto rangeram quando os homens em cima delas se remexeram, receosos. Bornhald não demonstrava sinal de medo, tampouco exalava cheiro de medo. Seu odor era todo de ódio. Ele passou os olhos quase febris pelo povo de Dois Rios, ao redor de seus homens, depois voltou a encarar Perrin, com a mesma fúria e o mesmo rancor.

Perrin fez um gesto para que o povo baixasse as armas. Relutantes, eles foram afrouxando a tensão das cordas, baixando os arcos devagar.

— Vocês não ajudaram. — Sua voz era fria como aço e dura feito uma bigorna. — Desde que chegaram a Dois Rios, a ajuda que forneceram foi quase insignificante. Nunca se importaram de verdade com as pessoas incendiadas e mortas, desde que arrumassem alguém para chamar de Amigo das Trevas. — Bornhald estremeceu, mas seus olhos ainda faiscavam. — Está na hora de vocês irem embora. Não só de Campo de Emond. Está na hora de recolherem seus Mantos-brancos e saírem de Dois Rios. Agora, Bornhald. Vocês vão embora agora.

— Eu ainda verei você enforcado — murmurou o comandante dos Filhos da Luz.

Ele fez um gesto brusco com a mão, para reunir a fileira, cravou as botas no cavalo e avançou, como se pretendesse passar por cima de Perrin.

Perrin afastou Galope para o lado. Queria aqueles homens fora dali, sem mais matança. Se o sujeito quisesse fazer um gesto final de provocação, que fosse.

Bornhald nem virou a cabeça para olhá-lo, mas Byar, com o rosto encovado, encarou Perrin em silêncio, cheio de ódio. Por alguma razão, Farran parecia olhar para ele com arrependimento. Os outros mantiveram o olhar fixo à frente ao passar só se ouvia o barulho das rédeas e o clangor dos cascos dos cavalos. Em silêncio, o círculo abriu caminho para eles, que rumavam para o norte.

Logo que o último Manto-branco passou, um bando de dez ou doze homens aproximou-se de Perrin a pé, alguns vestindo partes desconexas de armaduras, todos com sorrisos ansiosos. Ele não reconheceu os rostos. Um sujeito de nariz largo e pele curtida parecia ser o líder, com os cabelos brancos à mostra, usando uma cota de malha que ia até os joelhos, mas com a gola de um casaco de fazendeiro aparecendo no pescoço. O homem se curvou em uma mesura esquisita por cima do arco.

— Jerinvar Barstere, Lorde Perrin. Jer, é como me chamam. — O homem falava depressa, como se temesse ser interrompido. — Peço perdão por incomodar o senhor. Alguns de nós decidimos acompanhar a partida dos Mantos-brancos, se o senhor concordar. E muitos querem ir para casa, mesmo não tendo como chegar lá entes de escurecer. Tem o mesmo número de Mantos-brancos em Colina da Vigília, eles apareceram por lá de novo, mas não quiseram vir para cá. Tinham ordens de não sair de lá, pelo que disseram. Um bando de idiotas, se o senhor quer saber, e já estamos cansados de tê-los por perto, metendo o nariz dentro das casas das pessoas e tentando fazer vizinhos se acusarem de alguma maldade. Se o senhor concordar, a gente quer tirá-los de lá. — Ele lançou a Faile um olhar constrangido e baixou o queixo largo, mas o fluxo de palavras não diminuiu. — Peço perdão, Lady Faile. Não tive a intenção de incomodar a senhora e o seu marido. Só queria que ele soubesse que estamos do lado dele. O senhor tem uma bela esposa, Lorde Perrin. Peço perdão outra vez, Lady Faile. — O homem fez outra mesura e logo foi imitado pelos outros. O grupo foi embora sob a liderança do homem, que os apressava, resmungando: — Não temos tempo de ficar incomodando o lorde e sua lady. Ainda temos trabalho a fazer.

— Quem é ele? — perguntou Perrin, um pouco atônito com a torrente de palavras. Nem Daise e Cenn juntos eram capazes de falar tanto. — Você conhece esse homem, Faile? É de Colina da Vigília?

— Mestre Barstere é o Prefeito de Colina da Vigília, e os outros são do Conselho da Aldeia. O Círculo das Mulheres de lá vai enviar uma delegação designada pela Sabedoria delas, quando tiverem certeza de que é seguro. Para ver se “o tal Lorde Perrin” é o melhor para Dois Rios, pelo que disseram, mas todos queriam que eu explicasse como fazer reverências a você. E a Sabedoria, Edelle Gaelin, está trazendo umas tortas de maçã desidratada que ela faz.

— Ah, que me queime! — Perrin soltou um suspiro. Aquela história estava se espalhando. Sabia que deveria ter impedido tudo logo no início. — Não me chamem assim! —gritou, para os homens que partiam. — Eu sou um ferreiro! Estão me ouvindo? Um ferreiro!

Jer Barstere se virou para acenar para ele e assentir, antes de voltar a apressar os outros.

Com uma risada divertida, Faile puxou a barba de Perrin.

— Você é um bobinho, Lorde Ferreiro. Agora é tarde para voltar atrás. — De repente, o sorriso dela adquiriu um tom de profunda malícia. — Aliás, será que tem alguma possibilidade de você ficar a sós comigo, dentro em breve? Acho que esse casamento me deixou atrevida que nem as domanesas! Sei que você deve estar cansado, mas… — Ela parou de falar, deu um gritinho e se agarrou ao casaco de Perrin, que cravou as botas em Galope.

O cavalo saiu trotando em direção à estalagem Fonte de Vinho. Pela primeira vez, as saudações que se seguiram não o incomodaram nem um pouco.

— Olhos-Dourados! Lorde Perrin! Olhos-Dourados!


Do galho robusto de um frondoso carvalho, à margem da Floresta do Oeste, Ordeith encarava Campo de Emond, uma milha ao sul. Era impossível. Flagele-os. Fustigue-os. Tudo estivera de acordo com o plano. Até Isam jogara seu jogo. Por que o idiota parou de trazer Trollocs? Devia ter trazido o suficiente para transformar Dois Rios em um mar negro! Saliva escorria de seus lábios, mas ele não percebia, assim como não percebia a mão se remexendo no cinto. Destrua-os até explodir seus corações! Devaste-os até o chão, aos berros! Tudo planejado para trazer Rand al’Thor até ele, e acabava assim! Dois Rios não sofrera sequer um arranhão. Umas poucas fazendas incendiadas não contavam, nem uns fazendeiros enfiados vivos nos caldeirões dos Trollocs. Eu quero que Dois Rios queime, queime tanto que o fogo viva na memória dos homens por mil anos!

Ele analisou o estandarte que tremulava por cima da aldeia e o outro, logo abaixo. A cabeça escarlate de um lobo em um fundo branco de bordas escarlates e uma águia vermelha. Vermelha, pois era preciso verter o sangue de Dois Rios para fazer Rand al’Thor urrar. E Manetheren. Esse deveria ser o estandarte de Manetheren. Alguém tinha contado a eles sobre Manetheren, não tinha? O que os tolos sabiam a respeito da glória de Manetheren? Manetheren. Isso mesmo. Havia mais de uma maneira de destruí-los. O homem riu tão intensamente que quase caiu de cima do carvalho, antes de perceber que não estava se segurando com as duas mãos. Uma estava agarrada ao cinto, onde deveria haver uma adaga. A gargalhada se transformou em um rosnado quando ele encarou aquela mão. A Torre Branca estava de posse do que lhe fora roubado. Do que era dele por direito, desde as Guerras dos Trollocs.

Ele deixou-se cair no chão, depois montou sem jeito no cavalo e encarou seus companheiros. Seus sabujos. Os cerca de trinta Mantos-brancos que restavam não usavam mais os mantos brancos, naturalmente. As placas e malhas estavam foscas e enferrujadas. Bornhald nunca teria reconhecido os rostos taciturnos, desconfiados, imundos e barbados. Os humanos observavam Ordeith com desconfiança, porém cheios de medo, sem nem olhar para o Myrddraal entre eles, com o rosto sem olhos, branco feito um verme, tão frio e duro quanto os dos próprios humanos. O Meio-homem temia que Isam descobrisse o que se passara. Isam não ficara nem um pouco satisfeito quando a invasão a Barca do Taren deixara que tantos escapassem para levar a notícia do que estava acontecendo em Dois Rios. Ordeith deu uma risadinha ao pensar em Isam incomodado. O homem era problema para outra hora, se ainda estivesse vivo.

— Nós vamos para Tar Valon — anunciou, de repente. Avançariam depressa para chegar antes de Bornhald à barca. O estandarte de Manetheren, erguido outra vez em Dois Rios depois de tantos séculos. Como a Águia Vermelha o arrasara, tantos anos antes. — Mas, primeiro, Caemlyn!

Flagele-os e fustigue-os! Que Dois Rios pagasse primeiro, depois Rand al’Thor, depois…

Às gargalhadas, Ordeith galopou para o norte pela floresta, sem olhar para trás e conferir se os outros o seguiam. Eles seguiriam. Já não tinham para onde ir.

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