A escuridão dos Caminhos reduzia a luz do lampião de Perrin a uma poça de luz angulosa em volta dele e de Gaul. O rangido da sela e o estalido arenoso dos cascos na pedra pareciam não ir além do limite da luz. Não havia cheiro no ar, nada. O Aiel caminhava tranquilamente a passos largos ao lado de Galope, mantendo um olho no brilho fraco do lampião do grupo de Loial, mais adiante. Perrin recusava-se a pensar nele como o “grupo de Faile”. Os Caminhos não pareciam incomodar Gaul, apesar da má fama. O próprio Perrin não conseguia parar de escutar, como fizera por quase dois dias — ou o que pareceram dois dias, naquele lugar sombrio. Suas orelhas seriam as primeiras a captar o som que indicava que todos morreriam, ou pior, o som do vento soprando onde vento algum jamais soprara. Nenhum vento além de Machin Shin, o Vento Negro devorador de almas. Não conseguia parar de pensar que viajar pelos Caminhos era uma loucura, mas a definição de asneira mudava de acordo com a necessidade.
A fraca luz à frente parou, e Perrin puxou a rédea bem no meio do que parecia uma antiga ponte de pedra subindo em arco em meio à escuridão total e completa, antiga por conta das fendas nas laterais, dos buracos e crateras rasas que pontilhavam o chão gasto. Ela devia ter aguentado firme por quase três mil anos, mas parecia prestes a desabar. Talvez caísse naquele exato instante.
O cavalo de carga correu atrás de Galope: os animais relincharam uns para os outros e reviraram os olhos, inquietos, para a escuridão ao redor. Perrin sabia como os cavalos se sentiam. A companhia de mais algumas pessoas aliviaria um pouco o peso daquela noite sem fim. Mesmo assim, nem se estivesse sozinho teria se aproximado das lanternas à frente. Não arriscaria repetir o ocorrido na primeira Ilha, logo depois de adentrar o Portal dos Caminhos em Tear. Coçou a barba cacheada, irritado. Não sabia ao certo o que esperar, mas não…
O lampião pendurado à haste balançou quando ele desceu da sela e conduziu Galope e o cavalo de carga ao Guia, uma tábua alta de pedra branca coberta de riscos prateados que lembravam vagamente vinhas e folhas, todas esburacadas como se tivessem sido corroídas por ácido. Não conseguiu ler, naturalmente — Loial tinha de fazer isso, era uma inscrição Ogier — e depois de um momento ficou caminhando ao redor, analisando a Ilha. Era igual às outras que vira, com um muro de pedras brancas na altura de seu peitoral decorado com um padrão intrincado de curvas e círculos simples encaixados. Aqui e ali, pontes perfuravam o muro, perpassando a escuridão, e rampas sem gradil corriam para cima ou para baixo sem que ele pudesse ver o que as sustentava. Havia rachaduras por todos os lados, buracos desiguais e crateras rasas, como se a pedra estivesse apodrecendo. O movimento dos cavalos produziu um som arranhado de pedra se soltando por baixo dos cascos. Gaul espiou a escuridão sem aparentar aflição, mas, por outro lado, não sabia o que poderia haver por ali. Perrin sabia, e muito bem.
Quando Loial e as outras chegaram, Faile saltou da égua negra na mesma hora e caminhou a passos firmes até Perrin, os olhos fixos em seu rosto. Ele já estava se arrependendo de tê-la deixado preocupada, mas a mulher não parecia nem um pouco preocupada. Não saberia dizer que expressão havia naquele rosto além de firmeza.
— Decidiu falar direto comigo, em vez de…?
O tapa cheio o fez ver estrelas.
— O que você estava pensando… — Faile praticamente cuspiu as palavras. — Correndo para dentro feito um javali selvagem? Você não tem consideração. Nenhuma!
Ele respirou fundo, bem devagar.
— Já pedi a você para não fazer isso.
Os olhos escuros e oblíquos da moça se arregalaram, como se ele tivesse dito algo enervante. Perrin ainda esfregava o rosto quando o segundo tapa veio pelo outro lado, quase deslocando sua mandíbula. Os Aiel observavam com interesse, e Loial os olhava com as orelhas caídas.
— Já disse para não fazer isso — grunhiu.
A mão em punho dela não era muito grande, mas o soco repentino na boca do estômago o fez perder quase todo o ar dos pulmões. Perrin se dobrou ao meio, de lado, e Faile se preparou para um novo soco. Com um rosnado, ele a puxou pelo pescoço e…
Bem, a culpa era dela. Já tinha pedido para não ser estapeado, avisara. A culpa era dela. No entanto, ficou surpreso por Faile não ter tentado puxar uma das facas — parecia levar tantas quanto Mat.
Ela tinha ficado furiosa, naturalmente. Furiosa com Loial, por tentar intervir — sabia se cuidar sozinha, muito obrigada. Furiosa com Bain e Chiad por não intervirem — e ficara surpresa quando as duas disseram ter pensado que ela não esperaria interferências em uma briga que havia começado. Quando você começa a briga, dissera Bain, deve aceitar as consequências, ganhando ou perdendo. Mas Faile não parecia mais nem um tantinho irritada com ele. Isso o afligia. A mulher apenas o fitava, os olhos negros brilhando com lágrimas não vertidas, o que o fez sentir-se culpado, o que por consequência o deixou com raiva. Por que deveria se sentir culpado? Tinha que ficar ali parado e deixar que ela o enchesse de sopapos como bem entendesse? Faile montara em Andorinha e ficara lá sentada, de costas rijas, recusando-se a se apoiar direito no cavalo, encarando-o com uma expressão indecifrável. Isso o deixava muito nervoso. Quase desejou que Faile tivesse puxado uma faca. Quase.
— Estão se mexendo outra vez — disse Gaul.
Perrin voltou depressa ao presente. A outra luz estava se mexendo. Agora parara. Um deles percebera que sua luz ainda não estava seguindo. Decerto Loial. Faile talvez não se importasse se ele se perdesse, e por duas vezes as Aiel tinham tentado convencê-lo a se juntar a elas mais à frente. Perrin não precisara do mínimo meneio de cabeça de Gaul para recusar. Cravara os calcanhares em Galope, que avançou, conduzindo o cavalo de carga.
Esse Guia era ainda mais esburacado que a maioria dos que vira antes, mas seguiu cavalgando sem prestar muita atenção. A luz das outras lanternas já começava a descer uma das rampas pouco íngremes, e ele foi atrás, com um suspiro. Odiava as rampas. Ladeado apenas pela escuridão, o chão começou a fazer uma curva para baixo, dando a volta, com nada distinguível além da luz contida da lanterna que balançava sobre sua cabeça. Algo lhe dizia que uma queda dali de cima seria infinita. Galope e o cavalo de carga se mantiveram no centro, sem pressa, e até Gaul evitava a beirada. Pior, quando a rampa terminava, em outra Ilha, não havia como escapar da conclusão de que ela estava exatamente sob a que haviam acabado de sair. Gostou de ver Gaul olhando para cima, de não ser o único a se perguntar o que sustentava aquelas Ilhas no alto e se era mesmo firme.
Mais uma vez, as lanternas de Loial e Faile pararam perto do Guia, então ele puxou a rédea de novo, logo na saída da rampa. Dessa vez, porém, o grupo da frente não se moveu. Depois de alguns instantes, a voz de Faile chamou:
— Perrin.
Ele e Gaul se entreolharam, e o Aiel deu de ombros. A mulher não falava com Perrin desde que ele…
— Perrin, venha cá. — Não era bem um tom peremptório, mas também não parecia pedir.
Bain e Chiad estavam agachadas, tranquilas, junto ao Guia, e Loial e Faile assentaram os cavalos ali perto, com os lampiões em mãos. O Ogier segurava as rédeas dos cavalos de cargas, e as orelhas peludas se contorciam enquanto olhava de Faile para Perrin, depois de volta para Faile. A jovem, por outro lado, parecia absorta em ajustar as luvas de cavalgada, de couro verde macio e com falcões dourados bordados no dorso. Também trocara de vestido. O novo tinha o mesmo corte, com gola alta e saias divididas, mas era de uma seda brocada verde-escura, e parecia enfatizar o busto. Perrin nunca a vira naquele vestido.
— O que é que você quer? — perguntou, desconfiado.
Faile olhou para cima, como se estivesse surpresa em vê-lo, inclinou a cabeça, pensativa, depois sorriu, como se acabasse de lhe ocorrer a resposta.
— Ah, sim. Queria saber se você aprendia a vir quando chamo.
Ela alargou o sorriso, decerto porque ouvira o ranger dos dentes de Perrin, que esfregou o nariz. Havia um cheiro fraco de ranço por ali.
Gaul deu uma risadinha baixa.
— É feito tentar entender o sol, Perrin. Ele apenas existe, não é para ser compreendido. Você não pode viver sem ele, mas tem um preço. Assim são as mulheres.
Bain se inclinou para cochichar no ouvido de Chiad, e as duas gargalharam. Pelo jeito como olhavam para ele e Gaul, Perrin achou que não gostaria de ouvir o que as mulheres tinham achado tão engraçado.
— Não é nada disso — ressoou Loial, as orelhas se remexendo, impacientes. Ele disparou um olhar acusatório para Faile, o que não a deixou nem um pouco desconcertada. A mulher abriu um sorriso vago em resposta e retornou às luvas, ajeitando cada dedo mais uma vez. — Me desculpe, Perrin. Ela insistiu em chamar. É que chegamos. — Ele apontou para a base do Guia, atravessado por uma rachadura branca, não em direção à ponte ou à rampa, mas à escuridão. — Aqui é o Portal dos Caminhos de Manetheren, Perrin.
Perrin assentiu, sem dizer uma palavra. Não iria sugerir que seguissem adiante, para que Faile não o acusasse de tentar tomar a liderança. Esfregou o nariz outra vez, absorto — aquele cheiro de ranço, quase imperceptível, era irritante. Não daria sequer a sugestão mais sutil. Se Faile queria liderar, que liderasse. Mas a mulher subiu na sela, brincando com as luvas, obviamente esperando que ele se pronunciasse para que pudesse fazer alguma observação mordaz. Faile gostava disso, mas Perrin preferia dizer o que de fato pensava. Irritado, girou Galope, com a intenção de prosseguir sem ela e Loial. A linha levava ao Portal dos Caminhos, e ele poderia pegar a folha de Avendesora sozinho e abrir o Portal.
De repente, seu ouvido captou um som abafado de cascos na escuridão, e o cheiro fétido fez sentido.
— Trollocs! — gritou.
Gaul deu um rodopio suave e deslizou uma lança na malha do peitoral de um Trolloc com focinho de lobo que irrompeu na luz erguendo uma espada em forma de foice. Com o mesmo movimento tranquilo, o Aiel puxou de volta a lâmina e desviou, deixando a enorme massa desabar no chão. Mas outros vieram, com seus focinhos de bode e presas de javali, bicos cruéis e chifres retorcidos, trazendo espadas curvas, machados com ponteiras e lanças enganchadas. Os cavalos se agitavam e relinchavam.
Erguendo o lampião bem alto — a ideia de encarar aquelas coisas na escuridão o fazia suar frio — Perrin agarrou uma arma e virou-se para um rosto distorcido por um focinho cheio de dentes afiados. Ficou surpreso ao perceber que fora o martelo que desamarrara dos alforjes, mas, mesmo sem a ponta afiada do machado, dez libras de aço no braço de um ferreiro ainda serviam para afastar os Trollocs, que saíam cambaleantes, guinchando e agarrando os rostos destruídos.
Loial acertou a haste do lampião em uma cabeça com chifres de bode, e o lampião se quebrou. Banhado em óleo fervente, o Trolloc disparou escuridão adentro, uivando. O Ogier continuou rodopiando a haste pesada — uma vara em suas mãos gigantescas, mas que produzia o ruído de ossos sendo partidos ao atingir o alvo. Uma das facas de Faile irrompeu em olhos demasiado humanos sobre um focinho com presas afiadas. Os Aiel dançavam com as lanças, já tendo encontrado tempo para erguer os véus. Perrin golpeava, golpeava e golpeava. Um redemoinho de morte que durou… Um minuto? Cinco? Parecia uma hora. Mas de repente viram os Trollocs caídos, e os que ainda não estavam mortos se contorciam em espasmos.
Perrin sugou o ar para dentro dos pulmões. Sentia como se o peso do martelo fosse arrancar o braço direito. Havia uma sensação de queimação no rosto, e algo úmido escorria pela lateral do corpo e pela perna, onde fora ferido pelo aço dos Trollocs. Cada Aiel tinha pelo menos uma mancha úmida e escura nas roupas marrons e cinza, e Loial tinha um talho profundo na coxa. Os olhos de Perrin passaram por todos, em busca de Faile. Se ela estivesse ferida… A mulher estava sentada na égua negra, com uma faca nas mãos, pronta para atirá-la. Conseguira tirar as luvas e enfiá-las atrás do cinto. Perrin não viu uma única ferida em seu corpo. Não teria conseguido identificar o sangue de Faile em meio ao cheiro de todos os outros — de humanos, Ogier, Trollocs — mas conhecia o aroma da garota, que não exalava cheiro de dor e feridas. As luzes brilhantes machucavam os olhos dos Trollocs, que não se adaptavam muito depressa. Era provável que a única razão pela qual estivessem vivos, e os Trollocs, mortos, fosse a passagem abrupta da escuridão para a luz.
Foi todo o tempo que tiveram. Um instante de trégua, o suficiente para olhar em volta e respirar. Com um estrondo como cem libras de ossos triturados em um gigantesco moedor de carne, um Desvanecido irrompeu na luz, a mirada sem olhos era uma encarada da morte, a espada negra cintilando como um raio. Os cavalos relincharam, tentando fugir em disparada.
Gaul quase não conseguiu aparar o golpe da lâmina com o broquel, e uma lasca da lateral se soltou como se as camadas de couro de boi curtido fossem de papel. Ele golpeou, esquivou-se de um golpe — por pouco — e golpeou outra vez. Flechas brotaram no peito do Myrddraal. Bain e Chiad haviam prendido as lanças nos arreios às costas, onde estavam os estojos com os arcos, e usavam os arcos de chifre curvados. Mais flechas alfinetaram o peitoral do Meio-homem. A lança de Gaul saltava e golpeava. De repente, uma das facas de Faile irrompeu no rosto de verme, liso e branco. O Desvanecido não sucumbia, não desistia de tentar matar. Só conseguiam evitar que aquela espada se cravasse em seus corpos graças às guinadas frenéticas.
Perrin arreganhou os dentes em um rosnado inconsciente. Odiava Trollocs como um inimigo de sangue, mas um Desnascido…? Para matar um Desnascido, valeria a pena morrer. Cravar meus dentes naquela garganta…! Sem perceber se ficava no caminho das flechas de Bain e Chiad, conduziu Galope para perto das costas do Desnascido, forçando a aproximação do cavalo relutante com as rédeas e os joelhos. A criatura rodopiou para longe de Gaul no último instante, parecendo ignorar a ponta de uma lança sendo fincada entre seus ombros e despontando abaixo da garganta, encarando Perrin com a expressão sem olhos que aterrorizava a alma de qualquer homem. Tarde demais. O martelo de Perrin desceu, destroçando de uma vez só a cabeça e o rosto sem olhos.
Mesmo abatido e praticamente sem cabeça, o Myrddraal ainda se debatia com violência, golpeando a esmo com a espada forjada em Thakan’dar. Galope dançava para trás, relinchando, nervoso, e Perrin sentiu-se como se fosse ensopado em água congelante. Aquela lâmina negra causava feridas que até mesmo Aes Sedai tinham dificuldade em Curar, e ele avançara sem se preocupar. Meus dentes naquela… Luz, preciso manter o controle. Preciso!
Ainda ouvia os sons abafados da escuridão no extremo oposto da Ilha, o clangor de patas ferradas, o raspar de botas, respirações entrecortadas e murmúrios guturais. Mais Trollocs. Quantos, não sabia precisar. Pena que não estivessem ligados ao Myrddraal, mas talvez hesitassem em atacar, sem ele a conduzi-los. Trollocs sozinhos quase sempre eram covardes, preferiam apostas certas e mortes fáceis. Porém, mesmo na falta de um Myrddraal, acabariam por organizar um retorno.
— O Portal dos Caminhos — disse Perrin. — Precisamos sair antes que decidam o que fazer sem isso. — Ele apontou com o martelo ensanguentado para o Desvanecido, que ainda se debatia. Faile puxou a rédea de Andorinha na mesma hora para dar meia-volta, e ele ficou tão surpreso que disse, sem pensar: — Não vai discutir?
— Não discuto quando você é sensato — retrucou a moça, de repente. — Não quando você é sensato. Loial?
O Ogier guiou o grupo montado no animal alto e de boletos peludos. Perrin seguiu com Galope atrás de Faile e Loial, o martelo na mão, os Aiel a seu lado, todos com os arcos preparados. A mescla de cascos e botas os acompanharam na escuridão, além de murmúrios duros em um idioma bruto demais para as línguas humanas. Os Trollocs voltavam, reunindo coragem, os murmúrios cada vez mais próximos.
Outro som flutuou até Perrin, parecia um roçar de seda contra seda. Sentiu os ossos se arrepiarem. O som crescia, era a respiração de um gigante, subindo, descendo, subindo mais.
— Corram! — gritou. — Corram!
— Estou correndo — vociferou Loial. — Eu… Esse som! É…? Que a Luz ilumine nossas almas, e que a mão do Criador nos proteja! Está abrindo! Está abrindo! Tenho que ser o último. Saiam! Saiam! Mas não tão… não, Faile!
Perrin arriscou uma olhadela por cima do ombro. Dois portões iguais se abriam. Pareciam feitos de folhas vivas e revelavam a visão enevoada de um campo montanhoso. Loial desceu da montaria para remover a folha de Avendesora e destrancar o portão, e Faile tomou as rédeas dos animais de carga e do imenso animal do Ogier.
— Venham comigo! Rápido! — gritou, apressada, cravando as botas nas costelas de Andorinha, e a égua tairena deu um salto em direção à abertura.
— Vão atrás dela — disse Perrin, aos Aiel. — Corram! Vocês não podem lutar contra isso. — Sabiamente, eles hesitaram apenas uma fração de segundos antes de desaparecer. Gaul ia agarrado à guia do cavalo de carga. Galope veio lado a lado com Loial. — Você consegue dar um jeito de trancar a passagem? Bloqueá-la?
Os murmúrios ásperos revelavam uma tensão frenética — os Trollocs também haviam reconhecido o som. Machin Shin estava chegando. Para viver, era preciso sair dos Caminhos.
— Consigo — disse Loial. — Consigo. Mas saia daqui! Saia!
Perrin levou Galope de costas depressa de volta em direção ao Portão, mas, antes de perceber o que fazia, jogou a cabeça para trás e liberou um uivo provocativo e desafiador. Tolo, tolo, tolo! Ainda assim, manteve os olhos fixos na escuridão profunda e recuou com Galope até o Portal dos Caminhos. Uma onda gélida percorreu todo o seu corpo, até os fios de cabelo, e o tempo se alongou. O solavanco da saída dos Caminhos o atingiu, como se passasse de um galope intenso à parada em um passo só.
Os Aiel ainda se viravam para encarar o Portal dos Caminhos, espalhados pela encosta com as flechas encaixadas nos arcos, em meio a arbustos baixos e árvores atrofiadas, pinheiros, abetos e folhas-de-couro deformados pelo vento. Faile se levantava de onde rolara da sela de Andorinha, a égua negra apertando-a com o focinho. Sair de um Portal dos Caminhos era no mínimo tão ruim quanto entrar, ela teve sorte de não quebrar o pescoço, e a égua também. O imenso cavalo de Loial e os animais de carga tremiam como se tivessem levado um murro na cara. Perrin abriu a boca, e Faile cravou os olhos nele, desafiando-o a fazer qualquer comentário que fosse, muito menos um solidário. Ele fez uma careta irônica e, sabiamente, permaneceu em silêncio.
De repente, Loial foi expelido com violência do Portal dos Caminhos, saltando de um espelho fosco e prateado com o próprio reflexo avultando-se por trás, e rolou pelo chão. Quase na cola dele surgiram dois Trollocs — um com chifres e focinhos de carneiro, outro com bico de águia e cristas emplumada, mas, antes que mais da metade de seus corpos aparecesse do outro lado, a superfície reluzente transformou-se em negro profundo, borbulhante e intumescido, agarrando-se a eles.
Vozes sussurraram na cabeça de Perrin, mil vozes insanas balbuciando em seu crânio. Sangue amargo. Tão amargo. Beba o sangue e quebre o osso. Quebre o osso e sugue o tutano. Tutano amargo, gritos doces. Melodia de gritos. Cante os gritos. Almas diminutas. Almas pungentes. Devore todas. Dor tão doce. E continuava, e continuava.
Ganindo e uivando, os Trollocs tentavam golpear o negrume que ebulia à sua volta, arranhando-o para tentar se libertar enquanto eram sugados com mais e mais força, até que restou apenas uma mão peluda, agarrando o nada em frenesi, depois apenas a escuridão saliente, perscrutadora. Bem lentamente, os portões surgiram, deslizando juntos, espremendo a escuridão de volta para dentro. As vozes na cabeça de Perrin enfim cessaram. Loial correu à frente, bem depressa e pôs não um, mas dois trevos entre as ervas-pinheirinhas e vinhas. O Portal dos Caminhos tornou-se pedra outra vez, um trecho de muro de pedra com entalhes intrincados, isolado em meio a uma montanha com árvores esparsas. Entre as ervas-pinheirinhas e vinhas havia não uma, mas duas folhas de Avendesora. Loial recolocara o trevo de dentro do lado de fora.
O Ogier soltou um suspiro profundo de alívio.
— É o melhor que consigo fazer. Agora só pode ser aberto por este lado. — Lançou a Perrin um olhar ao mesmo tempo ansioso e firme. — Eu poderia ter trancado a porta para sempre se não tivesse recolocado as folhas, mas não vou estragar um Portal dos Caminhos, Perrin. Nós cultivamos e cuidamos dos Caminhos. Talvez eles um dia possam ser purificados. Não posso arruinar um Portal dos Caminhos.
— Está bom assim — respondeu Perrin.
Será que os Trollocs estavam indo para aquele Portal dos Caminhos, ou fora apenas obra do acaso? De todo modo, estava bom daquele jeito.
— Isso foi…? — começou Faile, insegura, depois parou para engolir em seco.
Até os Aiel pareciam abalados, para variar.
— Machin Shin — respondeu Loial. — O Vento Negro. Uma criatura da Sombra, ou uma coisa criada pela própria mácula dos Caminhos… ninguém sabe. Sinto pena dos Trollocs. Mesmo sendo o que são.
Perrin não sabia ao certo se sentia pena, nem mesmo com uma morte dessas. Já vira o que Trollocs deixavam para trás quando punham as mãos em humanos. Trollocs comiam qualquer coisa, desde que fosse carne, e às vezes gostavam de dilacerar a carne ainda viva. Não se permitiria sentir pena deles.
Os cascos de Galope trituraram a terra arenosa quando Perrin o virou para ver onde estavam.
Montanhas cobertas por nuvens se erguiam ao redor. Eram as nuvens sempre presentes que lhe conferiam o nome — Montanhas da Névoa. O ar era frio àquela altitude, mesmo no verão, sobretudo se comparado a Tear. O sol de fim de tarde já se assentava nos cumes a oeste, cintilando nos córregos que desciam para o rio que corria no fundo do extenso vale abaixo. O Manetherendrelle tinha esse nome depois que deixava as montanhas e descia para bem longe, a oeste e sul, mas Perrin crescera chamando o intervalo que corria pela divisa sul de sua cidade de Rio Branco — um trecho de corredeiras intransponíveis e águas revoltas e espumosas. O Manetherendrelle. Águas da Casa da Montanha.
Tanto onde as pedras nuas surgiam no vale abaixo quanto nas encostas circundantes, o rio reluzia feito cristal. Já existira uma cidade, ali, cobrindo vale e montanhas. Manetheren, cidade de torres sublimes e fontes exuberantes, capital da grande nação de mesmo nome, talvez a mais bela do mundo, segundo as antigas histórias Ogier. Agora não restava um resquício sequer, exceto pelo Portal dos Caminhos quase indestrutível, situado no bosque Ogier. O lugar fora queimado até virar terra árida mais de dois mil anos antes, enquanto as Guerras dos Trollocs ainda devastavam tudo, destruído pelo Poder Único após a morte de seu último rei, Aemon al Caar al Thorin, que pereceu em sua última batalha sangrenta contra a Sombra. Campo de Aemon fora o nome que os homens deram ao lugar, onde agora fica a aldeia chamada Campo de Emond.
Perrin estremeceu. Aquilo fora há muito tempo. Os Trollocs haviam voltado apenas uma vez desde então, em uma Noite Invernal mais de um ano antes, na véspera da noite em que ele, Rand e Mat foram obrigados a fugir com Moiraine escuridão adentro. Agora parecia ter acontecido havia muito tempo. Não poderia acontecer outra vez, com o Portal dos Caminhos trancado. É com Mantos-brancos que tenho que me preocupar, não com Trollocs.
Um par de gaviões de asas brancas sobrevoaram o extremo oposto do vale. Os olhos de Perrin quase não perceberam o traço de uma flecha subindo. Um dos gaviões rodopiou e caiu, e o rapaz franziu o cenho. Por que alguém daria uma flechada em um gavião, ali nas montanhas? Em uma fazenda, se o bicho estivesse atrás das galinhas ou dos gansos, tudo bem; mas ali? Por que haveria alguém por ali? O povo de Dois Rios evitava as montanhas.
O segundo gavião desceu em uma arremetida de asas brancas como a neve em direção ao ponto onde o companheiro caíra, mas logo subiu de volta, desesperado. Uma nuvem negra de corvos irrompeu das árvores, uma multidão ensandecida rodeando a ave, e, quando se acalmaram outra vez, o gavião havia desaparecido.
Perrin forçou-se a respirar. Já tinha visto corvos e outros pássaros atacarem um gavião que chegara perto demais de seus ninhos, mas não podia acreditar que dessa vez fosse só isso. As aves tinham surgido de onde viera a flecha. Corvos. A Sombra usava animais como espiões, às vezes. Em geral, ratos e outros que se alimentavam de morte. Sobretudo corvos. Tinha lembranças vívidas de fugir de fileiras de corvos que o caçavam como se tivessem inteligência.
— O que está olhando? — perguntou Faile, protegendo os olhos com as mãos para espiar pelo vale. — Aquilo eram pássaros?
— Só pássaros — respondeu.
Talvez fossem apenas pássaros. Não posso assustar todo mundo até ter certeza. Não com todos ainda abalados por causa do Machin Shin.
Percebeu que ainda segurava o machado ensanguentado, escorregadio com o sangue negro do Myrddraal. Os dedos encontraram sangue seco na bochecha, endurecendo na barba rente. Quando desceu do cavalo, sentiu dor na perna e no lado direito do corpo. Encontrou uma camisa nos alforjes e limpou o machado antes que o sangue do Desvanecido causticasse o metal. Em um instante descobriria se havia algo a temer nas montanhas. Se fosse algo além de homens, os lobos saberiam.
Faile começou a desabotoar o casaco dele.
— O que você está fazendo? — perguntou Perrin.
— Cuidando de suas feridas — respondeu a mulher, de um jeito brusco. — Não deixarei que sangre até a morte na minha frente. Isso seria bem típico de você, morrer e me deixar o trabalho de enterrá-lo. Não tem um pingo de consideração. Fique parado.
— Obrigado — disse Perrin, baixinho, e ela o encarou, surpresa.
Faile o fez se despir quase inteiro, deixando apenas as cuecas, para lavar as feridas e esfregá-las com o unguento que pegou nos alforjes. Perrin não conseguia ver o talho no próprio rosto, naturalmente, mas parecia pequeno e superficial, ainda que incômodo, por estar muito perto dos olhos. Mas o corte no lado esquerdo do corpo era mais comprido que sua mão, estendido ao longo de uma costela, e o buraco que a lança infligira em sua coxa direita estava bem profundo. Nesse, Faile precisou dar pontos com agulha e linha tiradas do conjunto de costura. Perrin aceitou os pontos com resignação — era ela quem se encolhia a cada agulhada. Enquanto trabalhava, a mulher resmungava, entre dentes, irritada, sobretudo ao esfregar o creme escuro e ardido na bochecha do rapaz. Era quase como se as feridas estivessem em seu corpo, e a culpa fosse dele, mas mesmo assim enrolou as ataduras nas costelas e na coxa com a mão gentil. Era um contraste impressionante, o toque suave e os resmungos furiosos. Muito confuso.
Enquanto ele vestia uma camisa limpa e uma calça reserva que pegara nos alforjes, Faile continuava passando o dedo pelo talho na lateral do casaco. Duas polegadas para a esquerda e ele não teria deixado aquela Ilha. Batendo os pés para ajeitá-los dentro das botas, Perrin esticou o braço para pegar o casaco — e Faile o atirou em cima dele.
— Nem pense que vou costurar isso para você. Já costurei tudo o que queria! Está me ouvindo, Perrin Aybara?
— Eu não pedi…
— Nem pense nisso! E chega! — A mulher saiu pisando firme para ajudar os Aiel a cuidarem uns dos outros e de Loial. Era um estranho grupo: o Ogier com as calças largas arriadas, Gaul e Chiad se olhando feito gatos estranhos, Faile passando o unguento e aplicando ataduras enquanto disparava olhares acusadores para ele. O que teria feito dessa vez?
Perrin balançou a cabeça. Gaul tinha razão, concluiu: era como tentar entender o sol.
Mesmo sabendo o que tinha de fazer, estava relutante, ainda mais depois do que acontecera nos Caminhos, com os Desvanecidos. Já vira um homem que se esquecera de que era humano. O mesmo poderia acontecer com ele. Idiota. Você só precisa aguentar mais uns dias. Só até encontrar os Mantos-brancos. E tinha que saber. Aqueles corvos.
Enviou as perguntas mentais pelo vale, em busca dos lobos. Sempre havia lobos onde não havia homens, e, se eles estivessem por perto, poderiam conversar. Os lobos evitavam os homens, ignorando-os o quanto fosse possível, mas odiavam os Trollocs, criaturas não naturais, e desprezavam os Myrddraal com um ódio profundo e incontrolável. Se houvesse criaturas da Sombra nas Montanhas da Névoa, os lobos poderiam avisá-lo.
Mas não encontrou lobos. Nenhum. Deveriam estar por aí, nessa selva inóspita. Via cervos pastando pelo vale. Talvez apenas não houvesse lobo por perto. Eles conseguiam conversar a certa distância, mas até uma milha já era longe demais. Talvez a distância limite fosse ainda menor nas montanhas. Talvez fosse isso.
Seu olhar varreu os picos cobertos de nuvens e pousou no extremo oposto do vale, de onde os corvos haviam saído. Talvez encontrasse lobos no dia seguinte. Não queria pensar nas alternativas.