Mancando da perna direita, Thom curvou-se em uma reverência, dando um floreio do manto de menestrel que fazia tremular os retalhos coloridos. Os olhos ardiam, mas forçou-se a falar com alegria:
— Bom dia a todos. — Aprumando-se, massageou o longo bigode branco, cheio de pompa.
Os serviçais de uniformes preto e dourado ficaram surpresos. Os dois rapazes musculosos que estavam prestes a erguer o baú de verniz vermelho salpicado de dourado com a tampa danificada pararam na mesma hora, e as três mulheres com os esfregões também ficaram imóveis. O corredor estava vazio, exceto por eles, e qualquer desculpa para interromper o trabalho era boa, ainda mais àquela hora. Pareciam tão cansados quanto Thom se sentia, com ombros caídos e olheiras profundas.
— Bom dia para o senhor, menestrel — disse a mais velha das mulheres. Um pouco roliça e de rosto comum, talvez, mas tinha um belo sorriso, por mais cansada que estivesse. — Em que podemos servi-lo?
Thom tirou quatro bolas coloridas da manga bufante do casaco e começou a mexê-las nas mãos.
— Estou só tentando melhorar o ânimo. Um menestrel precisa fazer o que pode. — Teria usado mais de quatro bolas, mas estava cansado até para se concentrar nisso. Quanto tempo fazia que quase deixara cair a quinta? Duas horas? Abafou um bocejo e o transformou em um sorriso reconfortante. — Uma noite terrível, e precisamos melhorar o ânimo.
— O Lorde Dragão nos salvou — disse uma das mulheres mais jovens.
Era bonita e magra, mas com um brilho predatório nos olhos escuros e sombrios que servia de aviso para Thom controlar o sorriso. Claro, ela poderia ser útil, se fosse ao mesmo tempo ambiciosa e honesta, pois continuaria fiel depois de comprada. Era sempre bom ter mais um par de mãos onde pôr uma nota, uma língua que contasse o que ouvia e depois dissesse o que ele quisesse, onde quisesse. Velho tolo! Já tem mãos e ouvidos suficientes, então pare de pensar em um belo par de seios e lembre-se da expressão no olhar dela! O mais interessante foi que a mulher parecia estar sendo sincera, e um dos rapazes mais jovens assentiu.
— Sim — disse Thom. — Qual Grão-lorde será que ficou encarregado do cais ontem? — Quase deixou cair as bolas, de tão irritado consigo mesmo. Perguntar assim, sem mais nem menos. Estava muito cansado, deveria estar na cama. Deveria ter ido para a cama três horas antes.
— O cais é responsabilidade dos Defensores — afirmou a mulher mais velha. — O senhor não sabe disso, é claro. Os Grão-lordes não se preocupam.
Thom sabia muito bem.
— Ah, é mesmo? Bem, não sou taireno, claro. — Ele mudou a manobra, e as bolas passaram de um simples círculo a uma volta dupla. Parecia mais difícil do que era, e a moça de olhar predatório bateu palmas. Agora que ele começara, era melhor seguir em frente. Mas depois disso daria por encerradas as atividades da noite. Da noite? O sol já despontava. — Mesmo assim, é uma pena que ninguém tenha perguntado por que aquelas barcaças estavam no cais. Com as escotilhas abaixadas, escondendo tantos Trollocs. Não que eu esteja insinuando que alguém sabia que os Trollocs estavam lá. — A volta dupla deu uma bamboleada, e ele logo retornou aos círculos. Luz, como estava cansado. — Seria de se imaginar que um dos Grão-lorde tivesse perguntado, no entanto.
Os dois rapazes franziram o cenho um para o outro, pensativos, e Thom sorriu para si mesmo. Outra semente plantada, fácil assim, ainda que de forma meio desastrada. Outro boato iniciado, independentemente de qual fosse a informação verdadeira que tivessem a respeito do encarregado do cais. E boatos se espalhavam — um desses não ficaria limitado à cidade — então seria mais um tantinho de suspeita entre plebeus e nobres. A quem os plebeus se voltariam, se não ao homem que, todos sabiam, os nobres odiavam? O homem que salvara a Pedra das criaturas da Sombra. Rand al’Thor. O Lorde Dragão.
Era hora de deixar o que semeara. Se a coisa já tivesse criado raízes no grupo, nada do que dissesse seria capaz de arrancá-las, e ele espalhara outras sementes naquela noite. Mas não seria nada bom se alguém descobrisse que era ele quem andava fazendo o plantio.
— Eles lutaram bravamente ontem à noite, os Grão-lordes. Ora, eu vi… — A voz dele morreu quando as mulheres deram um salto e voltaram a esfregar o chão, e os homens se aprumaram e saíram apressados.
— Também posso arrumar trabalho para menestréis — disse a majhere, atrás dele. — Mãos ociosas são mãos ociosas.
Ele deu um giro gracioso, apesar da perna, e curvou-se em uma mesura profunda. A cabeça da mulher batia abaixo de seu ombro, mas ela provavelmente tinha uma vez e meia o peso dele. Tinha cara de bigorna — que ficava mais acentuada com a atadura envolta nas têmporas — queixo duplo e olhos fundos que pareciam lascas de pederneira negra.
— Tenha um bom dia, graciosa senhora. Uma pequena lembrança deste dia novo e fresco.
Thom fez um floreio com as mãos e tirou uma flor amarelo-alaranjada da manga do casaco — um pouco amassada pelo tempo que passara lá — e prendeu-a nos cabelos grisalhos acima da atadura da mulher. A majhere a arrancou dos cabelos, naturalmente, e a analisou, desconfiada, mas era exatamente o que o menestrel queria. Enquanto a mulher hesitava, deu três passos largos e mancos, e, quando ela o chamou outra vez, aos gritos, ele não deu ouvidos nem reduziu o passo.
Mulher horrível, pensou. Se a tivéssemos jogado no meio dos Trollocs, ela os teria feito sair varrendo e esfregando.
Bocejou por detrás da mão, fazendo ranger o maxilar. Estava velho demais para isso. Estava cansado, e o joelho não parava de doer. Noites sem dormir, batalhas, tramoias. Velho demais. Deveria estar vivendo tranquilo em alguma fazenda. Com galinhas. Fazendas sempre tinham galinhas. E ovelhas. Não devia ser difícil tomar conta delas, os pastores pareciam sempre alegres, passavam o tempo todo tocando gaita. Ele tocaria harpa, é claro, não gaita. Ou a flauta, já que o ar livre não era muito bom para a harpa. E haveria uma cidadezinha por perto, com uma estalagem onde poderia divertir a clientela do salão. Fez um floreio com o manto ao passar por duas serviçais. A única razão para usar a pesada peça de tecido naquele calor era poder mostrar às pessoas que era um menestrel. Elas se agitaram ao vê-lo, naturalmente, esperando que ele parasse para entretê-las por um momento. O que era muito gratificante. Sim, uma fazenda tinha seu valor. Era um lugar tranquilo. Ninguém para incomodar. Contanto que houvesse uma cidade por perto.
Empurrou a porta do quarto e parou na mesma hora. Moiraine se aprumou, como se tivesse todo o direito de revirar os papéis espalhados na escrivaninha, e ajeitou as saias com muita calma enquanto se sentava no banquinho. Lá estava uma bela mulher, com toda a elegância que um homem poderia desejar, incluindo as risadas de seus gracejos. Tolo! Velho tolo! Ela é uma Aes Sedai, e você está cansado demais para pensar direito.
— Bom dia, Moiraine Sedai — cumprimentou, pendurando o manto em um gancho. Evitou olhar o baú onde guardava seus escritos, ainda onde o deixara, embaixo da mesa. Não havia por que fazer com que ela percebesse sua importância. Aliás, era provável que não houvesse motivos para conferi-lo depois que ela fosse embora, a mulher poderia ter canalizado para abrir e fechar a tranca, e ele jamais saberia. Cansado como estava, não conseguia nem lembrar se deixara algo incriminatório no baú. Nem em qualquer outro lugar, na verdade. Tudo no quarto estava no lugar exato em que ficava. Thom achava que não era tolo o bastante para deixar algo de fora. As portas dos alojamentos dos serviçais não tinham trancas nem trincos. — Eu ofereceria uma bebida refrescante, mas temo que não tenha nada além de água.
— Não estou com sede — respondeu a Aes Sedai, em uma voz agradável e melodiosa. Então se inclinou para a frente. O quarto era pequeno o bastante para ela pôr a mão no joelho direito de Thom, que sentiu um arrepio frio percorrer o corpo. — Queria que houvesse uma boa Curandeira por perto quando isso aconteceu. Agora já é tarde demais, lamento.
— Uma dúzia de Curandeiras não teria sido suficiente — retrucou. — Foi um Meio-homem que fez.
— Eu sei.
O que mais ela sabe?, perguntou-se Thom. Virando-se para puxar a única cadeira de trás da mesa, abafou um xingamento. Sentia-se como se houvesse tido uma boa-noite de sono, e a dor desaparecera do joelho. A manqueira permanecia, mas a junta estava mais flexível do que quando fora ferido. Ela sequer perguntou se eu queria ser Curado. Que me queime, o que é que ela quer? Recusou-se a dobrar a perna. Já que Moiraine não pedira permissão, ele não agradeceria pelo presente.
— Um dia interessante ontem — comentou a mulher, enquanto ele se sentava.
— Eu não chamaria Trollocs e Meios-homens de interessantes — retrucou Thom, secamente.
— Não estava falando disso. Mais cedo. O Grão-lorde Carleon morto em um acidente de caça. Ao que parece, seu bom amigo Tedosian o confundiu com um javali. Ou talvez com um cervo.
— Não fiquei sabendo. — Thom manteve a voz calma. Mesmo que Moiraine tivesse encontrado o bilhete, não poderia conectá-lo a ele. Até Carleon acreditaria que era sua própria caligrafia. Achava que ela não deveria ter descoberto o bilhete, mas lembrou-se mais uma vez de que Moiraine era uma Aes Sedai. Como se fosse preciso se lembrar disso, com aquele rosto belo e plácido diante dele, os olhos negros e serenos a perscrutá-lo, cheio de tantos segredos. — Os alojamentos dos serviçais fervilham de fofocas, mas eu quase nunca escuto.
— Não escuta? — murmurou a mulher, em voz branda. — Então não ouviu dizer que Tedosian caiu doente menos de uma hora depois de retornar à Pedra, logo depois que sua mulher lhe entregou um cálice de vinho para lavar a poeira da caçada. Dizem que ele chorou ao descobrir que a esposa decidiu ela mesma cuidar dele e alimentá-lo com as próprias mãos. Sem dúvida lágrimas de alegria, diante de tamanho amor. Ouvi falar que ela fez votos de não sair do lado do marido até que ele se levante outra vez. Ou até que morra.
Moiraine sabia. Ele não tinha como dizer de que forma ela descobrira, mas a mulher sabia. Por que estava revelando isso a ele?
— Que tragédia — comentou, em um tom igualmente brando. — Rand vai precisar de todos os Grão-lordes leais que puder encontrar, eu acho.
— Carleon e Tedosian não eram muito leais. Nem um ao outro, ao que parece. Eles lideravam a facção que pretende matar Rand e tentar esquecer que ele um dia viveu.
— Você acha? Eu presto pouquíssima atenção a essas coisas. A vida dos poderosos não é assunto para um simples menestrel.
O sorriso dela era quase uma risada, mas as palavras pareciam recitadas de um livro.
— Thomdril Merrilin. Um dia chamado de Raposa Gris, pelos que o conheciam, ou que ouviam falar dele. Bardo da Corte no Palácio Real de Andor, em Caemlyn. Amante de Morgase por algum tempo, depois da morte de Taringail. Foi uma sorte para Morgase, a morte de Taringail. Não creio que ela algum dia tenha descoberto que o homem queria que ela morresse para se tornar o primeiro rei de Andor. Mas estávamos falando de Thom Merrilin, um homem que, ao que se dizia, era capaz de jogar o Jogo das Casas dormindo. É uma pena que tal homem se considere um simples menestrel. Mas que arrogância manter o mesmo nome.
Thom esforçou-se para mascarar o choque. O quanto ela sabia? Já era demais, ainda que não soubesse mais uma palavra. Porém, Moiraine não era a única que detinha conhecimento.
— Falando de nomes — retrucou, muito calmo — é impressionante o quanto pode se descobrir a partir de um nome. Moiraine Damodred. Lady Moiraine da Casa Damodred, em Cairhien. Meia-irmã mais nova de Taringail. Sobrinha do Rei Laman. E Aes Sedai, não podemos esquecer. Uma Aes Sedai que está auxiliando o Dragão Renascido desde antes de saber que ele era algo além de um pobre infeliz capaz de canalizar. Uma Aes Sedai com altas conexões na Torre Branca, eu diria, ou não arriscaria o que tem. Alguém no Salão da Torre? Mais de uma pessoa, eu diria. Só pode ser. Uma notícia assim abalaria o mundo. Mas por que causar problemas? Talvez seja melhor deixar um velho menestrel enfiado em sua toca nos alojamentos dos serviçais. Só um velho menestrel, tocador de harpa e contador de histórias. Histórias que não fazem mal a ninguém.
Se conseguira fazê-la hesitar uma fração que fosse, a mulher não demonstrara.
— Especulações sem fatos são sempre perigosas — respondeu, serena. — Eu não uso o nome de minha Casa por opção. A Casa Damodred já tinha má reputação, e merecida, antes de Laman cortar Avendoraldera e perder o trono e a vida por isso. Desde a Guerra dos Aiel a coisa apenas piorou, também merecidamente.
Será que nada abalava aquela mulher?
— O que é que você quer de mim? — inquiriu Thom, irritado.
Moiraine apenas piscou.
— Elayne e Nynaeve embarcam num navio para Tanchico hoje. Uma cidade perigosa, Tanchico. Seus conhecimentos e habilidades talvez salvem a vida delas.
Então era isso. A mulher queria afastá-lo de Rand, deixar o rapaz exposto às suas manipulações.
— Concordo, Tanchico está perigosa, mas sempre foi assim. Desejo o melhor às duas moças, mas não tenho vontade alguma de meter a cabeça em um ninho de víboras. Estou velho demais para este tipo de coisa. Andei pensando em virar fazendeiro. Uma vida tranquila. Segura.
— Acho que uma vida tranquila mataria você. — Visivelmente bem-humorada, Moiraine se ocupou em rearrumar as dobras da saia com as mãos pequenas e delgadas. Thom tinha a impressão de que ela escondia um sorriso. — Mas Tanchico, não. Eu garanto, e pelo Primeiro Juramento, que você sabe que é verdadeiro.
Thom franziu o cenho para ela, apesar do enorme esforço em manter o rosto impassível. Moiraine não era capaz de mentir, mas como ela poderia saber? Tinha certeza de que ela não podia Prever, tinha certeza de que a ouvira negar ter tal Talento. Mas a mulher dissera aquilo. Que se queime, mulher!
— Por que eu deveria ir para Tanchico? — Moiraine podia passar sem o vocativo respeitoso.
— Para proteger Elayne? A filha de Morgase?
— Não vejo Morgase há quinze anos. Elayne era uma menina quando saí de Caemlyn.
A Aes Sedai hesitou, mas, quando falou, a voz estava firme e implacável.
— E seus motivos para deixar Andor? Um sobrinho chamado Owyn, eu presumo. Um desses pobres coitados de quem você falou que são capazes de canalizar. As irmãs Vermelhas deveriam levá-lo a Tar Valon, como acontece com qualquer homem desse tipo, mas em vez disso o amansaram onde ele estava e o abandonaram à… mercê de seus vizinhos.
Thom derrubou a cadeira ao se levantar, depois precisou se apoiar na mesa, pois os joelhos tremiam. Owyn não vivera por muito tempo depois de ser amansado, levado de casa pelos supostos amigos, que não foram capazes de suportar ter entre si nem ao menos um homem que já não podia mais canalizar. Nada que Thom fizesse poderia impedir Owyn de não querer viver, nem evitar que sua jovem esposa o seguisse para o túmulo em menos de um mês.
— Por que…? — Pigarreou de repente, tentando fazer a voz soar menos áspera. — Por que está me dizendo isso?
Havia compaixão no rosto de Moiraine. Quem sabe até arrependimento? Com certeza não. Não vindo de uma Aes Sedai. A compaixão também deveria ser falsa.
— Eu não teria feito isso se você estivesse disposto a ir apenas para ajudar Elayne e Nynaeve.
— Por quê, que se queime! Por quê?
— Se você for com Elayne e Nynaeve, revelarei os nomes das irmãs Vermelhas da próxima vez que nos virmos, além do nome de quem emitiu as ordens. Elas não agiram sozinhas. E nos veremos outra vez. Você vai sobreviver a Tarabon.
Ele soltou um suspiro irregular.
— De que me vai adiantar saber os nomes delas? — perguntou, com a voz inexpressiva. — Nomes de Aes Sedai, rodeadas pelo poder da Torre Branca.
— Um jogador habilidoso e perigoso do Jogo das Casas pode encontrar utilidade para eles — respondeu a mulher, baixinho. — Elas não deviam ter feito o que fizeram. Não deviam ter sido perdoadas por isso.
— Você pode ir embora, por favor?
— Mostrarei a você que nem todas as Aes Sedai são como aquelas Vermelhas, Thom. Você precisa aprender isso.
— Por favor?
Ele continuou apoiado na mesa depois que ela se foi, sem querer deixar que Moiraine o visse desabar de joelhos, desajeitado, ou notasse as lágrimas correndo pelo velho rosto. Ah, Luz. Owyn. Enterrara aquilo o mais fundo que pudera. Não consegui chegar lá a tempo. Estava muito ocupado. Muito ocupado com o maldito Jogo das Casas. Esfregou o rosto, irritado. Moiraine era uma das melhores no Jogo. Mexendo com ele daquele jeito, puxando cada corda que ele pensava estar perfeitamente escondida. Owyn, Elayne. A filha de Morgase. Sentia apenas afeição por Morgase, talvez um pouco mais, porém era difícil alguém se desligar de uma criança que carregara no colo. Aquela garota, em Tanchico? Ela não é páreo para a cidade, mesmo que não houvesse guerra. Agora deve estar um covil de lobos raivosos. E Moiraine vai revelar os nomes. Tudo o que tinha de fazer era deixar Rand nas mãos da Aes Sedai. Assim como deixara Owyn. Ela o encurralara, Thom mais parecia uma serpente com um graveto cravado no corpo, condenado, por mais que se contorcesse para escapar. Que se queime, essa mulher.
Carregando uma cesta bordada no braço, Min juntou as saias com a outra mão e saiu do salão de jantar, logo após o café da manhã, em um passo suave, empertigada. Poderia equilibrar um cálice cheio de vinho na cabeça sem derrubar uma gota sequer. Em parte, porque não conseguia dar um passo decente dentro daquele vestido, todo de seda azul-clara, de corpete apertado, mangas e uma saia cheia cuja bainha bordada arrastava no chão se não fosse erguida. Em parte, também, porque tinha certeza de que sentia os olhos de Laras em suas costas.
Uma olhadela para trás comprovou que estava certa. A Mestra das Cozinhas, um barril de vinho com pernas, a encarava da porta do salão de jantar com um sorriso. Quem diria que a mulher fora uma beldade na juventude, ou que teria um lugar em seu coração para mocinhas belas e sedutoras? “Vivazes”, como as chamava. Quem suspeitaria que ela decidiria acolher “Elmindreda” sob as asas robustas? Não era uma posição confortável. Laras mantinha o olho atento e protetor em Min, um olho que parecia encontrá-la em qualquer lugar dentro dos muros da Torre. Min sorriu de volta e passou as mãos nos cabelos, um capacete redondo de cachos negros. Que a queime, mulher! Será que ela não tem alguma coisa para cozinhar, ou algum ajudante de cozinha com quem berrar?
Laras acenou para ela, que acenou de volta. Não podia dar-se ao luxo de ofender alguém que a observava tão de perto, pois não fazia ideia de quantos erros podia acabar cometendo. Laras sabia todos os truques das mulheres “vivazes” e ensinava a Min os que a garota não conhecia.
Um dos maiores erros, refletiu a jovem, enquanto se sentava no banco de mármore debaixo de um salgueiro alto, foi o bordado. Não do ponto de vista de Laras, mas do dela própria. Puxando da cesta o aro de bordado, examinou com pesar o trabalho do dia anterior, vários malmequeres amarelos inclinados e algo que era para ser um botão de rosa amarelo-claro, embora ninguém fosse capaz de adivinhar sem a devida explicação. Com um suspiro, começou a desfazer os pontos. Leane tinha razão, supôs. Uma mulher poderia passar horas sentada com um aro de bordado, observando a tudo e a todos, e ninguém acharia estranho. Porém, ajudaria bastante se Min tivesse um mínimo de talento para a coisa.
Pelo menos era uma manhã perfeita para ficar ao ar livre. O sol dourado acabara de despontar no horizonte, em um céu com poucas nuvens, brancas e fofas, que pareciam ordenadas para enfatizar a perfeição. Uma brisa leve captava o aroma de rosas e revolvia os altos arbustos com grandes flores vermelhas e brancas. Em breve, os caminhos de cascalho perto da árvore estariam repletos de gente absorta em suas tarefas, de Aes Sedai a cavalariços. Uma manhã perfeita, e um local perfeito para observar sem ser vista. Talvez hoje notasse algo de útil.
— Elmindreda?
Min deu um salto e enfiou o dedo furado na boca. Deu um giro no banco, preparada para xingar Gawyn por aparecer sorrateiro, mas as palavras congelaram em sua boca. Galad estava com ele. O rapaz era mais alto que Gawyn, tinha pernas compridas e se movia com a graça de um dançarino e com uma força esguia e musculosa. As mãos também eram compridas e elegantes, porém fortes. E o rosto… Ele era, simplesmente, o homem mais bonito que Min já vira.
— Pare de chupar o dedo — disse Gawyn, sorrindo. — Sabemos que é uma menininha bonita, não precisa provar.
Enrubescida, Min puxou a mão depressa, quase disparando um olhar furioso, o que seria totalmente inadequado para Elmindreda. Gawyn não precisara de ameaças ou ordens da Amyrlin para manter o segredo dela, bastou pedir, mas o rapaz aproveitava todas as oportunidades que tinha para provocá-la.
— Não é certo zombar, Gawyn — disse Galad — Ele não quis ofender, Srta. Elmindreda. Perdoe-me a confusão, mas será que já nos vimos antes? Quando franziu a testa para Gawyn, agora há pouco, de maneira tão feroz, quase tive a sensação de que já a conhecia.
Min baixou os olhos, recatada.
— Ah, eu jamais esqueceria que conheci o senhor, milorde Galad — disse, com a melhor voz de garotinha tonta.
O tom tímido e a raiva por conta do próprio deslize enviaram uma onda de calor que enrubesceu seu rosto, deixando o disfarce ainda melhor.
Não parecia em nada consigo mesma, e o vestido e o cabelo eram apenas parte do disfarce. Leane comprara cremes, talcos e toda sorte de coisas incríveis com perfumes misteriosos na cidade, depois a treinara até que Min fosse capaz de usar tudo aquilo de olhos fechados. Agora, a jovem tinha maçãs do rosto, além de mais cor nos lábios do que a natureza concedera. Um creme escuro delineava as pálpebras e um pó fino enfatizava os cílios e fazia os olhos parecerem maiores. Bem diferente do que era de fato. Algumas das noviças haviam elogiado sua beleza, admiradas, e até umas poucas Aes Sedai a chamaram de “uma criança muito bonita”. Odiava aquilo. Admitia que o vestido era bem bonito, mas de resto odiava tudo o mais. No entanto, não faria sentido usar um disfarce se não o sustentasse.
— Tenho certeza de que você se lembraria — disse Gawyn, com a voz seca. — Eu não queria ter atrapalhado seu bordado… São andorinhas, não são? Andorinhas amarelas? — Min enfiou o aro de volta na cesta. — Mas eu queria pedir sua opinião a respeito disso aqui. — Ele enfiou nas mãos dela um pequeno livro com capa de couro, velho e surrado, e de súbito sua voz pareceu mais séria. — Diga ao meu irmão que isso é uma bobagem. Talvez ele escute você.
Min examinou o livro. O Caminho da Luz, de Lothair Mantelar. Abriu em uma página ao acaso e leu.
— Por conseguinte, abjure todo o prazer, pois a bondade é pura abstração, um ideal perfeito e cristalino, turvado por emoções vis. Não dê prazer à carne. A carne é fraca, mas o espírito é forte. A carne é inútil quando é forte o espírito. O pensamento correto é afogado em sensações, e as ações corretas, estorvadas pelas paixões. Busque toda a alegria na retidão, apenas nela. — Parecia mesmo pura bobagem.
Min sorriu para Gawyn e até conseguiu soltar um risinho nervoso.
— Quantas palavras. Receio saber pouco sobre livros, milorde Gawyn. Sempre tive intenção de ler algum… Tenho mesmo. — Suspirou. — Mas tenho tão pouco tempo. Ora, levo horas só para arrumar o cabelo a contento. Os senhores acham que está bonito?
O espanto indignado no rosto do rapaz quase a fez gargalhar, mas ela conseguiu transformar a reação em uma risadinha. Era um prazer virar a mesa, para variar. Precisava fazer isso mais vezes. O disfarce guardava possibilidades que não considerara. A estadia na Torre se tornara completamente tediosa e irritante. Min merecia alguma diversão.
— Lothair Mantelar — explicou Gawyn, com a voz tensa — fundou os Mantos-brancos. Os Mantos-brancos!
— Ele foi um grande homem — retrucou Galad, com firmeza. — Um filósofo de ideais nobres. Mesmo que os Filhos da Luz às vezes sejam… desmedidos… desde a época dele, isso não muda o fato.
— Minha nossa. Mantos-brancos — disse Min, arquejante, acrescentando um leve arrepio. — São homens muito brutos, pelo que ouvi dizer. Não consigo imaginar um Manto-branco dançando. Acham que há alguma chance de termos dança por aqui? As Aes Sedai também não parecem ligar muito para festas, e gosto tanto de dançar…
A frustração nos olhos de Gawyn era um deleite.
— Acho que não — respondeu Galad, tomando o livro das mãos dela. — As Aes Sedai estão muito ocupadas com… Seus próprios negócios. Se eu ouvir falar em alguma boa dança na cidade, posso levar a senhorita, se desejar. Não precisa ter medo de ser incomodada por aqueles dois grosseirões.
O rapaz sorriu para ela, sem perceber o que fazia, e Min de repente ficou sem ar de verdade. Os homens não deveriam ter permissão para sorrir desse jeito.
Precisou de um instante para se lembrar a que dois grosseirões ele se referia. Os dois homens que supostamente haviam pedido a mão de Elmindreda em casamento, que quase duelaram entre si porque a garota não conseguia tomar uma decisão e a pressionaram a ponto de ela precisar buscar abrigo na Torre. Era apenas toda a justificativa pela qual estava ali. É esse vestido, disse a si mesma. Eu conseguiria pensar direito se estivesse usando minhas roupas.
— Percebi que a Amyrlin fala com a senhorita todos os dias — comentou Gawyn, de repente. — Ela mencionou nossa irmã, Elayne? Ou Egwene al’Vere? Disse alguma coisa a respeito de onde estão?
Min desejou socar Gawyn bem no olho. O rapaz não sabia por que ela estava disfarçada, é claro, mas concordara em ajudá-la a ser aceita como Elmindreda, e agora a estava ligando a mulheres que muita gente na Torre sabia serem amigas de Min.
— Ah, o Trono de Amyrlin é uma mulher tão bonita — respondeu, com doçura, abrindo os dentes em um sorriso. — Ela sempre pergunta como tenho passado o tempo, e sempre elogia meu vestido. Acho que torce para que eu tome logo uma decisão em relação a Darvan e Goemal, mas eu simplesmente não consigo. — Arregalou os olhos, tentando parecer confusa e desamparada. — Os dois são tão doces. De quem foi que o senhor falou? De sua irmã, Lorde Gawyn? A Filha-herdeira em pessoa? Acho que nunca ouvi o Trono de Amyrlin mencioná-la. Qual foi o outro nome?
Dava para ouvir o ranger dos dentes de Gawyn.
— Não deveríamos incomodar a Senhorita Elmindreda com isso — disse Galad. — Isso é problema nosso, Gawyn. Cabe a nós descobrirmos a mentira e lidarmos com ela.
Min mal escutou o rapaz, pois de súbito voltou o olhar para um homem corpulento, de cabelos compridos e cacheados por cima dos ombros curvados, vagando sem rumo por um dos caminhos de cascalho em meio às árvores, sob o olhar atento de uma Aceita. Já vira Logain antes, um homem de rosto triste, que um dia fora alegre e animado, sempre em companhia de uma Aceita. O papel da mulher era impedi-lo de se matar, bem como evitar sua fuga. Apesar de seu tamanho, Logain não parecia tramar fuga alguma. Mas era a primeira vez que Min via um halo flamejante em volta da cabeça do homem, radiante, dourado e azul. Aparecera apenas por um instante, mas fora o suficiente.
Logain se proclamara o Dragão Renascido, então fora capturado e amansado. Qualquer glória que obtivera como falso Dragão já estava havia muito perdida. Tudo o que restava para ele era o desespero do amansamento — como um homem de quem foram roubados a visão, a audição e o paladar — e o desejo de morrer, esperando a morte que inevitavelmente chegaria em poucos anos, como sempre acontecia com esses homens. Ele a encarou, talvez sem vê-la. Seus olhos pareciam desconsolados e introspectivos. Então por que ostentava um halo que prenunciava glória e poder? Min precisava contar aquilo à Amyrlin.
— Pobre sujeito — murmurou Gawyn. — Não consigo deixar de sentir pena. Luz, seria um gesto de misericórdia deixar que ele acabasse com tudo. Por que o obrigam a continuar vivendo?
— Ele não é digno de pena — retrucou Galad. — Você se esqueceu do que ele foi, do que fez? Quantos milhares morreram antes de ele ser capturado? Quantas cidades foram incendiadas? Mantê-lo vivo serve de aviso para os outros.
Gawyn assentiu, mas com relutância.
— E mesmo assim houve homens que o seguiram. Algumas dessas cidades foram incendiadas, depois que se declararam a favor dele.
— Eu preciso ir — disse Min, levantando-se, e Galad na mesma hora se mostrou solícito e preocupado.
— Perdoe-nos, Senhorita Elmindreda. Não tivemos a intenção de assustá-la. Logain não pode fazer mal à senhorita. Eu lhe dou minha garantia.
— Eu… É, ele me deixou um pouco tonta. Me desculpem. Preciso mesmo me deitar.
A expressão de Gawyn era extremamente cética, mas ele pegou a cesta antes que ela pudesse tocá-la.
— Deixe-me pelo menos acompanhá-la em um trecho do caminho — disse, com uma voz que transbordava falsa preocupação. — Esta cesta deve estar muito pesada, tonta como a senhorita está. Não quero que acabe desmaiando.
Min queria agarrar a cesta e dar na cara dele, mas Elmindreda jamais reagiria assim.
— Ah, obrigada, milorde Gawyn. O senhor é tão gentil. Tão gentil. Não, não, milorde Galad. Não permitam que eu seja um estorvo. Sente-se aí e leia seu livro. Diga que o fará. Não admito que seja de outra forma. — Ela até bateu os cílios.
Deu um jeito de empurrar Galad no banco de mármore e ir embora, mas com Gawyn em seus calcanhares. As saias a deixavam irritada, tinha vontade de puxá-las até o joelho e sair correndo, mas Elmindreda jamais sairia correndo, nem exporia uma parte tão grande das pernas, a não ser que estivesse dançando. Laras a instruíra com muito rigor sobre isso. Uma só corrida, e destruiria completamente a imagem de Elmindreda. E Gawyn…!
— Passe essa cesta para cá, seu cretino desmiolado — rosnou, assim que os dois saíram da vista de Galad, puxando-a dos braços do jovem antes que ele pudesse acatar a ordem. — Que história é essa de perguntar por Elayne e Egwene na frente dele? Elmindreda não conhece essas duas. Elmindreda não se importa com elas. Elmindreda não quer ser mencionada na mesma frase que elas! Será que não dá para você entender?
— Não — respondeu o jovem. — Não, já que você não me explica nada. Mas lamento muito. — Min não sentiu arrependimento suficiente na voz dele. — Só estou preocupado. Onde é que elas estão? Essa notícia que veio do norte do rio sobre um falso Dragão em Tear não me deixa nem um pouco tranquilo. Elas estão por aí, em algum lugar, sabe a Luz onde, e fico me perguntando… E se estiverem no meio da fogueira em que Logain transformou Ghealdan?
— E se ele não for um falso Dragão? — perguntou Min, com cautela.
— Está dizendo isso por causa das histórias que afirmam que ele tomou a Pedra de Tear? Os boatos sempre dão um jeito de aumentar as coisas. Só vou acreditar quando vir com meus próprios olhos, e mesmo assim será preciso mais do que isso para me convencer. Até a Pedra poderia ruir. Luz, não acredito que Elayne e Egwene estejam mesmo em Tear, mas essa incerteza corrói meu estômago feito ácido. Se ela estiver ferida…
Min não soube dizer a qual “ela” o rapaz se referia, e suspeitava que ele também não soubesse. Apesar das provocações, sentia pena dele, mas nada podia fazer.
— Se você pelo menos pudesse fazer o que eu digo e…
— Eu sei. Confiar na Amyrlin. Confiar! — Ele exalou um longo suspiro. — Está sabendo que Galad tem ido às tavernas beber com os Mantos-brancos? Qualquer um pode cruzar as pontes se vier em paz, até os Filhos da maldita Luz.
— Galad? — perguntou, incrédula. — Nas tavernas? Bebendo?
— Não passa de um ou dois canecos, tenho certeza. Ele não consegue sair da linha mais do que isso, nem na festa do dia do seu nome. — Gawyn franziu a testa, como se não soubesse ao certo se aquilo era uma crítica a Galad. — A questão é que ele anda falando com Mantos-brancos. E agora esse livro. Segundo a dedicatória, foi Eamon Valda em pessoa quem deu o livro a ele. “Espero que você encontre o caminho.” Valda, Min. O comandante dos Mantos-brancos do outro lado das pontes. Essa incerteza também está corroendo Galad. Dando ouvidos a Mantos-brancos… Se alguma coisa acontecer à nossa irmã, ou a Egwene… — Ele balançou a cabeça. — Você sabe onde elas estão, Min? Me contaria se soubesse? Por que está escondendo isso?
— Porque levei dois homens à loucura com a minha beleza e sou incapaz de me decidir — respondeu, ácida.
Galad soltou uma meia risada amarga, depois disfarçou-a, abrindo um sorriso.
— Bem, pelo menos nisso eu posso acreditar. — Deu uma risadinha e passou um dedo pelo queixo dela. — Você é uma garota muito linda, Elmindreda. Uma garotinha linda e sagaz.
Min cerrou o punho e tentou socá-lo no olho, mas o rapaz desviou, e ela tropeçou nas próprias saias e quase caiu.
— Seu touro descerebrado desgraçado de um homem! — rosnou.
— Que movimento gracioso, Elmindreda — comentou ele, rindo. — Que voz mais doce, parece até um rouxinol, ou uma pombinha arrulhando à noite. Que homem não seria arrebatado pela visão de Elmindreda? — A alegria foi-se embora, e ele a encarou com sobriedade. — Se descobrir algo, por favor me conte. Por favor? Vou implorar de joelhos, Min.
— Eu conto — respondeu. Se puder. Se for seguro para elas. Luz, como odeio este lugar. Por que não posso simplesmente voltar para Rand?
Saiu de perto de Gawyn e adentrou a Torre sozinha, como era apropriado, os olhos atentos a Aes Sedai ou Aceitas que pudessem questionar por que ela não estava no térreo e aonde ia. A notícia de Logain era importante demais para aguardar até que a Amyrlin a encontrasse, aparentemente por acidente, em algum momento no fim da tarde, como de costume. Pelo menos, foi o que disse a si mesma. A impaciência era demais.
Viu poucas Aes Sedai dobrando qualquer corredor à frente ou adentrando algum aposento a distância, o que era excelente. Ninguém chegava sem avisar para ver o Trono de Amyrlin. Os poucos serviçais por quem passou, todos alvoroçados com suas tarefas, não a questionaram, naturalmente, sequer a olharam duas vezes, exceto para curvar-se em rápidas mesuras, quase sem parar.
Abriu a porta do gabinete da Amyrlin. Tinha na ponta da língua uma historinha boba, caso houvesse alguém com Leane, mas a antessala estava vazia. Correu até a porta interna e meteu a cabeça para dentro. A Amyrlin e a Curadora estavam sentadas uma de cada lado da mesa de Siuan, abarrotada de pequenas tiras de papel fino. As duas viraram as cabeças bem depressa em sua direção e cravaram os olhos nela feito quatro pregos.
— O que está fazendo aqui? — inquiriu a Amyrlin, bruscamente. — Você deveria ser uma garotinha boba em busca de proteção, não minha amiga de infância. Não deve existir qualquer tipo de contato entre nós, exceto pelo mais fortuito e casual. Se for necessário, vou mandar que Laras a vigie como uma ama vigia as crianças. Ela adoraria, eu acho, mas duvido que você fosse gostar.
Min estremeceu só de pensar. De súbito, Logain não parecia tão urgente. Era muito pouco provável que o homem fosse conquistar qualquer glória nos próximos dias. Não era ele o motivo real de sua visita. Na realidade, era apenas uma desculpa, mas não voltaria mais atrás. Fechando a porta atrás de si, relatou, aos tropeços, o que vira e o que a visão significava. Ainda se sentia desconfortável em fazê-lo na frente Leane.
Siuan balançou a cabeça, cansada.
— Mais uma coisa com que me preocupar. Fome em Cairhien. Uma irmã desaparecida em Tarabon. Ataques de Trollocs aumentando de novo nas Terras da Fronteira. Esse idiota que se intitula o Profeta provocando motins em Ghealdan. Ao que parece, ele anda pregando que o Dragão Renasceu como lorde shienarano — disse, incrédula. — Até as menores coisas são terríveis. A guerra em Arad Doman acabou com os negócios com Saldaea, e esse aperto está criando agitação em Maradon. Pode até ser que Tenobia seja deposta do trono. A única boa notícia que ouvi foi que a Praga encolheu, por algum motivo. Duas milhas ou mais de campos para além das pedras da fronteira sem qualquer traço de corrupção ou pestilência, de Saldaea até Shienar. É a primeira vez que algo assim acontece. Mas creio que as boas notícias tenham que ser equilibradas pelas más. Quando um barco tem um furo, é certo que não é o único. Eu só gostaria que houvesse equilíbrio. Leane, reforce a vigilância sobre Logain. Não imagino que tipo de problemas ele poderia causar, mas também não quero descobrir. — Ela voltou o olhar penetrante para Min. — Por que veio correndo para cá feito uma gaivota assustada batendo as asas? Logain poderia ter esperado. É pouco provável que o homem alcance poder e glória antes de o dia nascer.
O eco de seus pensamentos fez Min se remexer, incomodada.
— Eu sei — disse. Leane ergueu as sobrancelhas em advertência, e ela acrescentou apressada: — Mãe.
A Curadora assentiu em aprovação.
— Isso não esclarece o motivo, criança — retrucou Siuan.
Min se preparou.
— Mãe, nada do que eu vi desde o primeiro dia foi muito importante. Sem dúvida não vi nada que aponte para a Ajah Negra. — O nome ainda lhe causava calafrios. — Já contei tudo o que sei sobre qualquer tipo de desastre que vocês Aes Sedai virão a enfrentar, e o resto é simplesmente inútil. — Precisou parar e engolir em seco, com aquele olhar penetrante a encará-la. — Mãe, não há motivo para eu não partir. E há motivo para eu ir. Talvez Rand possa aproveitar de verdade as minhas habilidades. Se tiver tomado a Pedra… Mãe, pode ser que ele precise de mim. — Pelo menos eu preciso dele, que me queime por ser tão idiota!
Deu para ver o tremor da Curadora à menção do nome de Rand. Siuan, por outro lado, soltou uma bufada alta.
— Suas visões têm sido muito úteis. É importante saber a respeito de Logain. Você encontrou o criado que estava roubando antes que as suspeitas recaíssem sobre qualquer outro. E aquela noviça de cabelos vermelhos que ia acabar carregando uma criança no ventre…! Sheriam a impediu… a garota não vai sequer pensar em homens até concluir o treinamento. Mas, sem você, não saberíamos até que fosse tarde demais. Não, você não pode ir. Mais cedo ou mais tarde, suas visões traçarão um mapa até a Ajah Negra e, enquanto isso não acontece, ainda compensam bastante.
Min suspirou, e não apenas porque a Amyrlin pretendia mantê-la ali. Da última vez que vira aquela noviça de cabelos vermelhos, a garota estava saindo sorrateira com um guarda musculoso para um matagal próximo à Torre. Os dois iriam se casar, talvez antes do fim do verão. Min soube disso assim que os viu sozinhos, mas a Torre jamais deixaria uma noviça ir embora até que estivesse pronta para soltá-la ao mundo, mesmo se a moça não fosse mais capaz de avançar no treinamento. Havia uma fazenda no futuro daquele casal, e um bando de crianças, mas era inútil discutir com a Amyrlin.
— Será que a senhora poderia pelo menos mandar informar a Galad e Gawyn que a irmã deles está bem, Mãe? — A pergunta a aborrecia, e seu tom de voz também. Parecia uma criança a quem tinham negado uma fatia de bolo e pedia um biscoitinho para compensar. — Pelo menos conte a eles alguma coisa além daquela história ridícula de cumprir penitência em uma fazenda.
— Eu já disse que isso não é da sua conta. Não me obrigue a dizer outra vez.
— Eles sabem tanto quanto eu que não é verdade — deixou escapar Min, antes que o sorriso seco da Amyrlin pudesse calá-la. Não era um sorriso bem-humorado.
— Está sugerindo que eu mude o local onde elas supostamente estão? Depois de deixar todos pensarem que estão em uma fazenda? Acha que isso não vai levantar suspeitas? Todo mundo aceita, a não ser esses rapazes. E você. Bem, Coulin Gaidin terá de fazê-los trabalhar com mais afinco. Músculos doloridos e bastante suor desviam a atenção da maioria dos homens de outras perturbações. E das mulheres também. Se continuar fazendo perguntas demais, vou acabar descobrindo o que alguns dias esfregando panelas podem fazer por você. Melhor perder seus préstimos por dois ou três dias do que vê-la enfiando o nariz onde não é chamada.
— A senhora sequer sabe se elas estão correndo perigo, não é? Ou Moiraine.
Não era de Moiraine que estava falando.
— Garota — começou Leane, em tom de advertência, mas Min não seria detida.
— Por que não escutamos nada? Os boatos começaram dois dias atrás. Dois dias! Por que é que um desses papéis na sua mesa não contém uma mensagem dela? Ela não tem pombos? Pensei que vocês, Aes Sedai, tivessem gente com pombos-correios o tempo todo. Se não tem nenhuma mensagem dela em Tear, deveria ter. Um homem a cavalo já poderia ter chegado a Tar Valon. Por que…
O baque seco da palma de Siuan na mesa a interrompeu.
— Você é muitíssimo obediente — disse, irônica. — Criança, até escutarmos o contrário, presuma que o rapaz está bem. Reze para que esteja. — Leane estremeceu outra vez. — Existe um ditado no Maule, criança — prosseguiu a Amyrlin. — “Não dê problemas aos problemas até que os problemas lhe deem problemas.” Guarde bem essas palavras, criança.
Ouviu-se uma tímida batida na porta.
A Amyrlin e a Curadora se entreolharam, depois se voltaram para Min. A presença dela era um problema. Decerto não havia onde se esconder. Dava para ver até a varanda com muita clareza de todo o aposento.
— Uma razão para sua presença aqui — murmurou Siuan — que não a faça parecer outra coisa que não a garota tola que deveria ser. Leane, fique a postos na porta. — Ela e a Curadora estavam de pé, juntas, Siuan dando a volta na mesa enquanto Leane se encaminhava para a porta. — Sente-se na cadeira de Leane, garota. Ande logo, criança. Ande logo. Agora faça uma cara emburrada. Não irritada, emburrada! Faça beicinho e fique encarando o chão. Vou fazer você usar fitas no cabelo, arcos enormes, vermelhos. Isso mesmo. Leane. — A Amyrlin pôs as mãos na cintura e ergueu a voz. — E se você entrar aqui sem ser anunciada mais uma vez, criança, eu vou…
Leane abriu a porta e revelou uma noviça escura que se encolheu ao ouvir a bronca da Amyrlin e curvou-se em uma mesura profunda.
— Mensagens para a Amyrlin, Aes Sedai — ganiu a mocinha. — Dois pombos chegaram no celeiro. — Era uma das moças que haviam elogiado a beleza de Min. De olhos arregalados, ela tentava identificar o que ocorria atrás da Curadora.
— Isso não é da sua conta, criança — disse Leane, rude, tomando os pequenos cilindros de osso das mãos da garota. — De volta para o celeiro. — Antes que a noviça terminasse de se levantar, Leane fechou a porta, depois se apoiou nela e suspirou. — Dou um pulo a cada som inesperado desde que você me disse… — Ela se aprumou e retornou à mesa. — Mais duas mensagens, Mãe. Devo…?
— Sim, pode abrir — respondeu a Amyrlin. — Morgase sem dúvida decidiu invadir Cairhien, afinal. Ou os Trollocs invadiram as Terras da Fronteira. Seria condizente com todo o resto. — Min permaneceu sentada. Siuan tinha feito algumas ameaças parecerem bastante realistas.
Leane examinou o selo de cera vermelha no canto de um dos pequenos cilindros, não maior do que a junta do próprio dedo. Ao convencer-se de que não fora adulterado, quebrou-o com a unha do polegar. Extraiu o papel enrolado dentro do tubo com um palito de marfim.
— Quase tão ruins quanto os Trollocs, Mãe — disse, praticamente no instante em que começou a ler. — Mazrim Taim fugiu.
— Luz! — vociferou Siuan. — Como?
— Aqui só diz que ele foi levado em uma ação furtiva no meio da noite, Mãe. Duas irmãs estão mortas.
— Que a Luz ilumine suas almas. Mas temos pouco tempo para prantear os mortos quando criaturas como Taim estão vivas e não amansadas. Onde, Leane?
— Em Denhuir, Mãe. Uma aldeia a leste das Montanhas Negras, na Estrada de Maradon, acima das nascentes do Antaeo e do Luan.
— Só podem ter sido alguns de seus seguidores. Idiotas. Por que não admitem a derrota? Escolha uma dúzia de irmãs confiáveis, Leane… — A Amyrlin fez uma careta. — Confiáveis — resmungou. — Se eu soubesse quem é mais confiável do que um lúcio, não teria os problemas que tenho. Faça o melhor, Leane. Doze irmãs. E quinhentos guardas. Não, mil.
— Mãe — começou a Curadora, em um tom preocupado — os Mantos-brancos…
— Não tentariam cruzar as pontes nem se eu as deixasse totalmente sem vigia. Teriam medo de uma armadilha. Não há como dizer o que está acontecendo por lá, Leane. Quero que meus enviados estejam prontos para qualquer coisa. E Leane… Mazrim Taim deve ser amansado assim que for capturado, dessa vez.
Leane arregalou os olhos, chocada.
— A lei.
— Conheço a lei tão bem quanto você, mas não vou arriscar que ele seja solto de novo sem ter sido amansado. Não arriscarei outro Guaire Amalasan, não com tudo o que está acontecendo.
— Sim, Mãe — respondeu Leane, com a voz fraca.
A Amyrlin pegou o segundo cilindro de osso, rompeu-o em dois com um estalido e tirou a mensagem de dentro.
— Até que enfim uma boa notícia! — Ela suspirou, com um sorriso no rosto. — Uma boa notícia. “A lança foi usada. O pastor detém a espada.”
— Rand? — perguntou Min, e Siuan assentiu.
— É claro, garota. A Pedra caiu. Rand al’Thor, o pastor, detém Callandor. Agora posso avançar. Leane, quero o Salão da Torre reunido hoje à tarde. Não, agora de manhã.
— Não estou entendendo — disse Min. — A senhora sabia que os rumores eram sobre Rand. Por que está convocando o Salão agora? O que pode fazer agora que não podia antes?
Siuan riu feito uma garotinha.
— O que posso fazer agora é contar a eles que recebi notícias de uma Aes Sedai de que a Pedra de Tear caiu e um homem empunhou Callandor. Profecia cumprida. O suficiente para o meu objetivo, pelo menos. O Dragão Renasceu. Elas vão vacilar, vão discutir, mas ninguém pode se opor à minha declaração oficial de que a Torre deve guiar este homem. Enfim poderei me ocupar dele abertamente. Pelo menos em grande parte.
— Estamos fazendo a coisa certa, Mãe? — perguntou Leane, de repente. — Eu sei… Se ele detém Callandor, deve ser o Dragão Renascido. Mas ele é capaz de canalizar, Mãe. Um homem capaz de canalizar. Eu só o vi uma vez, mas mesmo naquela época já havia algo de diferente nele. Algo mais do que ta’veren. Mãe, no fim das contas, será que ele é tão diferente assim de Taim?
— A diferença é que ele é o Dragão Renascido, filha — respondeu a Amyrlin, baixinho. — Taim é um lobo, e decerto raivoso. Rand al’Thor é o sabujo que usaremos para derrotar a Sombra. Guarde este nome com você, Leane. É melhor não revelar tanto tão cedo.
— Como a senhora quiser, Mãe — disse a Curadora, ainda desconfortável.
— Agora vá. Quero o Salão reunido em uma hora. — Siuan observou a mulher mais alta sair, pensativa. — Pode haver mais resistência do que eu gostaria — disse, quando a porta se fechou.
Min lançou a ela um olhar penetrante.
— A senhora não quer dizer…
— Ah, nada sério, criança. Não enquanto não souberem há quanto tempo estou envolvida com esse rapaz, al’Thor. — Ela encarou outra vez a folha de papel, depois largou-a na mesa. — Queria que Moiraine tivesse dito mais.
— Por que foi que ela não disse mais? E por que não ouvimos notícias antes?
— Lá vem você com mais perguntas. Esta você deve fazer a Moiraine. Ela sempre seguiu os próprios caminhos. Pergunte a Moiraine, criança.
Sahra Covenry carpia com a enxada sem muita habilidade, franzindo a testa para os minúsculos brotos de margaridinhas-amarelas e pés-de-galinha, começando a sair da terra entre as fileiras de repolhos e beterrabas. Não que a Senhora Elward fosse uma capataz severa — não era pior do que a mãe de Sahra, e era sem dúvida mais branda do que Sheriam — mas a menina não fora até a Torre Branca para acabar em uma fazenda carpindo legumes antes de o sol nascer completamente. Os vestidos brancos de noviça estavam guardados, ela usava uma lã marrom que podia muito bem ter sido cerzida pela própria mãe, a saia amarrada na altura dos joelhos para ficar longe da lama. E não fizera nada para merecer aquilo.
Remexendo os dedos dos pés no solo revirado, cravou os olhos em um pé-de-galinha teimoso e canalizou, tentando queimá-lo para removê-lo da terra. Faíscas cintilaram ao redor do broto folhoso, que murchou. Mais do que depressa, removeu a coisa do solo e da mente. Se houvesse alguma justiça no mundo, Lorde Galad viria até a fazenda durante alguma caçada.
Apoiada na enxada, ela se perdeu em um devaneio em que Curava as feridas de Galad, decorrentes de uma queda de cavalo — não causada por ele, é claro, o rapaz era um exímio cavaleiro. O Lorde, então, a erguia na sela, frente a frente, e declarava que seria seu Guardião — ela seria da Ajah Verde, sem dúvida — e…
— Sahra Covenry?
Sahra deu um salto ao ouvir a voz severa, mas não era a Senhora Elward. A menina fez a melhor reverência que conseguiu improvisar com as saias erguidas.
— Saudações, Aes Sedai. A senhora veio me levar de volta para a Torre?
A mulher se aproximou, sem se importar com as saias arrastando pela terra da horta. Apesar do calor da manhã, usava um manto, o capuz puxado para encobrir a face.
— Pouco antes de deixar a Torre, você levou uma mulher ao Trono de Amyrlin. Uma mulher chamada Elmindreda.
— Sim, Aes Sedai — respondeu Sahra, em um leve tom interrogativo. Não apreciava a forma com que a mulher falara, como se ela tivesse ido embora da Torre para sempre.
— Conte tudo o que viu e ouviu, garota, desde o instante em que a cumprimentou. Tudo.
— Mas eu não ouvi nada, Aes Sedai. A Curadora me mandou embora assim que a… — Foi tomada pela dor e cravou os pés na terra, arqueando as costas. O espasmo durou apenas alguns instantes, mas pareceu infinito. Esforçando-se para respirar, percebeu que o rosto estava colado no chão e que os dedos, ainda trêmulos, escavavam o solo. Não se lembrava da queda. Podia ver a cesta de roupas limpa da Senhora Elward caída de lado perto da casa, toda de pedra. Peças de linho úmidas espalhadas pelo chão. Atordoada, pensou na estranheza daquilo. Moria Elward nunca deixaria as roupas limpas no chão daquele jeito.
— Tudo, garota — mandou a Aes Sedai, com frieza. Estava de pé bem perto de Sahra, mas não fazia menção de ajudá-la a se levantar. A mulher a machucara, e não era para ser assim. — Cada pessoa com quem essa Elmindreda falou, cada palavra que disse, cada entretom e expressão.
— Ela falou com Lorde Gawyn, Aes Sedai — choramingou Sahra, com a cara na terra. — Isso é tudo o que eu sei, Aes Sedai. Tudo.
A menina começou a soluçar de verdade, certa de que aquilo não seria o suficiente para satisfazer a mulher. Estava certa. Não parou de gritar por um bom tempo, e, quando a Aes Sedai partiu, já não havia som algum na fazenda além do das galinhas. Nem mesmo os ruídos de respiração.