16 Despedidas

Deitado em lençóis encharcados de suor, olhando para o teto, Perrin percebeu que a escuridão já se acinzentava. Em breve o sol despontaria no horizonte. Manhã. Momento de novas esperanças, momento de agir. Novas esperanças. Ele quase riu. Há quanto tempo estava acordado? Uma hora ou mais, com certeza. Coçando a barba encaracolada, Perrin estremeceu. O ombro ferido estava rígido, e ele se sentou devagar. O rosto pingava suor enquanto ele alongava o braço. Mas prosseguiu até conseguir mexer o braço livremente — mesmo que sem conforto — com movimentos metódicos, sufocando ganidos e, vez ou outra, obrigando-se a não praguejar.

O pouco sono que conseguira dormir fora entrecortado e agitado. Quando acordado, vira o rosto de Faile, os olhos negros acusadores, o sofrimento que ele lhes infligira fazendo com que se encolhesse por dentro. Ao dormir, sonhou que subia em uma forca enquanto Faile assistia, ou pior, tentava impedi-lo, tentava enfrentar os Mantos-brancos com as lanças e espadas. E Perrin gritava enquanto os homens passavam a corda por seu pescoço, gritava porque os Mantos-brancos estavam matando Faile. Às vezes, ela assistia ao enforcamento com um sorriso de raiva e satisfação. Não era de se admirar que esses sonhos o fizeram acordar com um sobressalto. Em dado momento, sonhara com lobos saindo em disparada da floresta, tentando salvar tanto Faile quanto ele — e acabando furados pelas lanças dos Mantos-brancos, abatidos pelas flechas. Não fora uma noite tranquila. Perrin lavou-se e vestiu-se o mais depressa que pôde, deixando o quarto para trás como se esperasse deixar também as lembranças dos sonhos.

Lá fora, restavam poucos indícios do ataque da noite anterior. Uma tapeçaria retalhada por espadas ali, um baú com um canto destroçado por um machado acolá, um trecho mais claro no chão de pedras onde antes havia um carpete que ficara manchado de sangue. A majhere seguia com seu exército de serviçais uniformizados, trabalhando à toda, embora muitos estivessem enfaixados enquanto varriam, esfregavam, limpavam e rearrumavam. Ela andava mancando, apoiada em um cajado. Era uma mulher grande, os cabelos grisalhos puxados para cima feito um chapéu redondo sobre a ferida enfaixada na cabeça, emitindo ordens em um tom firme, com clara intenção de remover cada vestígio da segunda violação da Pedra. Viu Perrin e dispensou-lhe uma mesura quase imperceptível. Nem mesmo os Grão-lordes recebiam muita atenção dela, mesmo quando estava tudo bem. Apesar de toda a faxina e esfregação, sob o cheiro de ceras, graxas, verniz e fluidos de limpeza, Perrin ainda podia captar o odor fraco de sangue, sangue humano pungente e metálico, sangue fétido de Trollocs e sangue ácido de Myrddraal — um fedor que queimava as narinas. Seria bom sair dali.

A porta do quarto de Loial tinha uma braça de largura e mais de duas de comprimento, com uma maçaneta gigantesca no formato de vinhas entrelaçadas bem na altura da cabeça de Perrin. A Pedra tinha alguns quartos de hóspedes para Ogier, mas raramente eram utilizados. A Pedra de Tear precedia até mesmo a era dos famosos trabalhos de cantaria dos Ogier, mas era um grande prestígio usar pedreiros daquela raça, pelo menos de vez em quando. Perrin bateu à porta e, ao chamado de “entre” em uma voz que soava como uma pequena avalanche, ergueu a mão e obedeceu.

O quarto tinha a mesma escala da porta, em todas as dimensões. Mas Loial, parado no centro do carpete, vestindo a camisa de manga e carregando um cachimbo comprido nos dentes, reduzia tudo a um tamanho aparentemente normal. O Ogier ficava mais alto que um Trolloc com as botas largas até as coxas, ainda que não fosse tão largo. Já não era estranho aos olhos de Perrin o casaco verde-escuro, abotoado até a cintura, com as barras abertas caídas até o topo das botas, que mais parecia um kilt por sobre as calças largas. Porém bastava um olhar para informar que não se tratava de um homem comum em um quarto comum. O nariz do Ogier era tão grande que parecia um focinho, e sobrancelhas, compridas feito bigodes, pendiam dos lados dos olhos do tamanho de xícaras de chá. As orelhas peludas despontavam dos cabelos negros e desgrenhados, que caíam quase até os ombros. Ao avistar Perrin, a criatura abriu um sorriso de orelha a orelha, ainda com o cachimbo na boca.

— Bom dia, Perrin — disse, retumbante, tirando o cachimbo da boca. — Dormiu bem? Nada fácil, depois de uma noite dessas. Eu mesmo passei metade da noite acordado, escrevendo sobre o ocorrido. — Ele tinha uma caneta na outra mão e manchas de tinta nos dedos grandes como salsichas.

Havia livros por toda parte, espalhados nas cadeiras próprias para Ogier, na imensa cama e na mesa que batia no peito de Perrin. Aquilo não era surpresa, mas o mais espantoso foram as flores. Flores de todo tipo, de todas as cores. Vasos, cestas, buquês amarrados com fitas ou barbantes, grandes montes de flores entrelaçadas dispostas como um muro de jardim. Perrin nunca vira algo parecido dentro de um quarto. O aroma preenchia o ar. Mas o que realmente chamou a atenção foi o inchaço na cabeça de Loial, do tamanho do punho de um homem, e a forma coxa com que caminhava. Loial estava machucado demais para viajar… Perrin sentiu vergonha em pensar dessa forma — o Ogier era seu amigo — mas era necessário.

— Você se machucou, Loial? Moiraine pode Curar você. Tenho certeza de que ela vai fazer isso.

— Ah, eu consigo caminhar sem problemas. E tinha tanta gente precisando da ajuda dela de verdade. Eu não queria atrapalhar. Claro que não é isso que vai atrapalhar meu trabalho. — Loial olhou para a mesa, onde um grande livro com encadernação em tecido estava aberto ao lado de um frasco de tinta desarrolhado. O objeto parecia grande para Perrin, mas caberia em um dos bolsos do casaco do Ogier. — Espero ter escrito tudo direitinho. Não vi muita coisa ontem, só depois de terminar.

— Loial — disse Faile, surgindo por detrás de um dos montes de flores com um livro nas mãos — é um herói.

Perrin deu um salto. As flores haviam mascarado o perfume dela. Loial fez “shhh”, pedindo à jovem que se calasse, e abanou as mãos enormes, as orelhas tremelicando de vergonha. No entanto, Faile prosseguiu, com a voz fria e os olhos, cálidos, fixos no rosto de Perrin:

— Ele levou todas as crianças que conseguiu, e também algumas mães, para um salão enorme e ficou protegendo a porta sozinho contra Trollocs e Myrddraal. A batalha toda. Essas flores são das mulheres da Pedra, como símbolo de respeito à sua coragem inabalável, à sua lealdade. — Faile fez as palavras “inabalável” e “lealdade” estalarem como açoites.

Perrin quase não conseguiu evitar o corpo de se encolher. Fizera a coisa certa, mas não dava para esperar que ela entendesse. Mesmo que Faile soubesse o motivo, não entenderia. Foi a coisa certa. Foi sim. Só queria se sentir melhor em relação à coisa toda. Não era justo que estivesse certo mas se sentisse mal.

— Não foi nada. — As orelhas de Loial tremelicaram. — Foi só porque as crianças não podiam se defender sozinhas. Só isso. Nada de heroísmo. Nada.

— Bobagem. — Faile marcou a página do livro com o dedo e aproximou-se do Ogier. A jovem não batia nem no peitoral de Loial. — Não existe uma mulher na Torre que não se casaria com você se fosse um humano, e algumas se casariam mesmo não sendo. Sabe, Loial você é mesmo muito leal, nem a rima fraca abala essa sua qualidade. Qualquer mulher amaria isso.

As orelhas do Ogier se enrijeceram de surpresa, e Perrin abriu um sorriso. Faile obviamente passara a manhã inteira derramando doce para cima de Loial, na esperança de que o Ogier concordasse em levá-la com eles, a despeito da vontade de Perrin. Mas, ao tentar bajulá-lo, a moça, sem saber, acabara de tocar em um ponto sensível.

— Tem notícias de sua mãe, Loial? — perguntou Perrin.

— Não. — Loial conseguia soar aliviado e preocupado ao mesmo tempo. — Mas vi Laefar na cidade, ontem. Ele ficou tão surpreso em me ver quanto eu fiquei em vê-lo, não somos figuras comuns em Tear. Ele veio do Pouso Shangtai para negociar uns reparos em algum trabalho de cantaria Ogier em um dos palácios. Tenho certeza de que as primeiras palavras que sairão de sua boca quando ele voltar para o pouso serão “Loial está em Tear”.

— Isso é preocupante — comentou Perrin, e o Ogier assentiu, desconsolado.

— Laefar contou que os Anciões disseram que sou um fugitivo, e que minha mãe prometeu me casar e me acalmar. Ela já até escolheu uma esposa. Laefar não sabia quem. Pelo menos disse que não sabia. Ele acha isso tudo muito engraçado. Minha mãe pode chegar em menos de um mês.

O rosto de Faile era o retrato da confusão, o que quase fez Perrin abrir outro sorriso. Ela achava que sabia muito mais do que ele a respeito do mundo — bem, na verdade sabia — mas não conhecia Loial. O Pouso Shangtai era a casa de Loial, na Espinha do Mundo, e, como o Ogier estava com pouco mais de noventa anos, ainda não tinha idade para sair de lá sozinho. Seu povo vivia por muito tempo. Para os padrões deles, Loial devia ser da idade de Perrin, talvez mais moço. Porém, o Ogier partira mesmo assim, queria ver o mundo, mas seu maior medo era que a mãe o encontrasse e o arrastasse de volta para o pouso, para se casar e nunca mais sair de lá.

Enquanto Faile tentava entender o que estava acontecendo, Perrin quebrou o silêncio.

— Preciso voltar a Dois Rios, Loial. Sua mãe não vai encontrar você lá.

— Sim. Isso é verdade. — O Ogier deu de ombros, constrangido. — Mas meu livro. A história de Rand. E sua, e de Mat. Eu já tenho tantas anotações, mas… — Loial foi para trás da mesa, espiou o livro aberto, as páginas preenchidas com a caligrafia caprichada. — Serei o autor da verdadeira história do Dragão Renascido, Perrin. O único livro escrito por alguém que viajou com ele, que de fato viu tudo se desenrolar. O Dragão Renascido, de Loial, filho de Arent, filho de Halan, do Pouso Shangtai. — Franzindo a testa, ele se inclinou por cima do livro e mergulhou a pena no frasco de tinta. — Isso aqui não está certo. Foi mais…

Perrin pôs a mão sobre a página onde Loial iria escrever.

— Você não vai escrever livro nenhum se sua mãe encontrá-lo. Pelo menos, não sobre Rand. E eu preciso de você, Loial.

— Precisa, Perrin? Não estou entendendo.

— Há Mantos-brancos em Dois Rios. Atrás de mim.

— Atrás de você? Mas por quê? — Loial parecia quase tão confuso quanto Faile estivera. A jovem, por outro lado, revestira-se de uma soberba complacente e perturbadora. Perrin prosseguiu mesmo assim.

— O motivo não importa. O fato é que estão atrás de mim. Podem machucar alguém, minha família, procurando por mim. Conhecendo os Mantos-brancos, sei que vão fazer isso. Posso impedir, se conseguir chegar depressa, mas ser logo. Só a Luz sabe o que é que eles já fizeram. Preciso que me leve até lá, Loial, pelos Caminhos. Você um dia me disse que havia um Portal dos Caminhos por aqui, e sei que havia um em Manetheren. Ainda deve existir, nas montanhas acima de Campo de Emond. Nada é capaz de destruir um Portal dos Caminhos, você mesmo disse. Preciso de você, Loial.

— Bom, é claro que vou ajudar — respondeu o Ogier. — Os Caminhos. — Ele soltou uma bufada ruidosa, e as orelhas esmoreceram um pouco. — Quero escrever sobre aventuras, não vivê-las. Mas acho que uma vezinha não vai doer. Queira a Luz — concluiu, com fervor.

Faile pigarreou com delicadeza.

— Não está se esquecendo de nada, Loial? Você me prometeu levar aos Caminhos quando eu pedisse, e prometeu que o faria antes de levar qualquer outra pessoa.

— Eu prometi mesmo que a levaria para ver o Portal dos Caminhos — disse Loial — e como é tudo lá por dentro. Você pode fazer isso quando Perrin e eu formos. Acho que poderia vir com a gente, mas a viagem pelos Caminhos não é nada fácil, Faile. Eu mesmo não entraria lá se Perrin não estivesse precisando.

— Faile não pode ir — rebateu Perrin, com firmeza. — Só você e eu, Loial.

Ignorando-o, a mulher sorriu para o Ogier, como se ele estivesse brincando com ela.

— Você me prometeu mais do que olhar, Loial. Prometeu que me levaria para onde eu quisesse, quando eu quisesse, e antes de qualquer outra pessoa. Você jurou.

— Foi mesmo, mas só porque você se recusou a acreditar que eu o faria — protestou Loial. — Você disse que só acreditaria se eu jurasse. Cumprirei minha promessa, mas tenho certeza de que você não vai querer passar na frente de Perrin, já que ele precisa tanto.

— Você jurou — retrucou Faile, com a voz tranquila. — Pela sua mãe, e pela mãe da sua mãe, e pela mãe da mãe da sua mãe.

— Sim, Faile, eu jurei, mas Perrin…

— Você jurou, Loial. Vai quebrar o juramento?

A expressão do Ogier era só desgraça. Os ombros curvaram, as orelhas caíram, os cantos da enorme boca desabaram, e as pontas das compridas sobrancelhas foram parar nas bochechas.

— Ela fez você de trouxa, Loial. — Perrin se perguntou se dava para os dois ouvirem o ranger de seus dentes. — Ela fez você de trouxa de propósito.

Uma placa vermelha se formou as bochechas de Faile, mas a jovem ainda teve o descaramento de dizer:

— Só porque foi preciso, Loial. Só porque um idiota de um homem acha que pode ordenar minha vida como bem entender. Se não fosse isso, eu não teria agido assim. Você precisa acreditar em mim.

— O fato de que ela ludibriou você não muda nada? — inquiriu Perrin, e Loial balançou tristemente a cabeça enorme.

— Os Ogier mantêm a palavra — disse Faile. — E Loial vai me levar para Dois Rios. Ou para o Portal dos Caminhos no Manetheren, pelo menos. Estou com vontade de conhecer Dois Rios.

Loial se aprumou.

— Então isso significa que posso ajudar Perrin, no fim das contas. Faile, por que enrolou tanto? Nem Laefar acharia isso engraçado. — Havia um toque de irritação em sua voz, e precisava de muito para deixar um Ogier irritado.

— Se ele pedir — retrucou ela, determinada. — Isso fazia parte da promessa, Loial. Ninguém além de nós dois, a menos que me pedissem. Ele tem que pedir.

— Não — disse Perrin, enquanto Loial ainda estava abrindo a boca. — Não, eu não vou pedir. Prefiro ir para Campo de Emond a cavalo. Vou a pé! Pode ir desistindo dessa palhaçada. Enganar Loial. Tentar forçar sua presença onde… onde não é bem-vinda.

A calma da moça deu lugar à raiva.

— E, quando você chegar lá, Loial e eu já teremos acabado com os Mantos-brancos. Tudo vai estar acabado. Peça, seu ferreiro cabeça-de-bigorna. Basta pedir, e poderá vir com a gente.

Perrin se segurou. Não havia maneira de convencê-la de seu ponto de vista, mas ele não ia pedir. Faile tinha razão — levaria semanas para chegar a Dois Rios a cavalo, e eles poderiam estar lá em dois dias, quem sabe, pelos Caminhos — mas não ia pedir. Não depois de ela fazer Loial de bobo e tentar me intimidar!

— Então vou viajar sozinho pelos Caminhos até Manetheren. Vou atrás de vocês dois. Se mantiver distância suficiente para seguir afastado, não estarei quebrando o juramento de Loial. Vocês não podem me impedir de segui-los.

— Isso é perigoso, Perrin — disse Loial, preocupado. — Os Caminhos são escuros. Se você perder uma curva ou pegar a ponte errada por acidente, pode acabar se perdendo para sempre. Ou até Machin Shin apanhá-lo. Peça a ela, Perrin. Faile disse que você pode vir se pedir. Peça.

A voz retumbante do Ogier estremeceu ao mencionar o nome Machin Shin, e um arrepio percorreu as costas de Perrin. O Vento Negro. Nem mesmo as Aes Sedai sabiam se era uma criatura da Sombra ou algo que se desenvolvera a partir da corrupção dos Caminhos. Machin Shin era o motivo pelo qual a viagem que fariam podia ser um risco de vida, era o que as Aes Sedai diziam. O Vento Negro devorava almas, e isso Perrin sabia que era verdade. Porém, manteve a voz firme e a expressão impassível. Que me queime se vou deixar que ela perceba minha fraqueza.

— Não posso, Loial. Seja como for, não vou fazer isso.

O Ogier fez uma careta.

— Faile, será perigoso para ele, se tentar nos seguir. Por favor, ceda um pouco e deixe que ele…

— Não. — A jovem o interrompeu bruscamente. — Se ele é cabeça-dura demais para pedir, por que eu deveria? Por que é que eu deveria sequer me preocupar, caso ele se perca? — Ela se virou para Perrin. — Pode viajar perto da gente. O quanto precisar, desde que fique claro que está nos seguindo. Até pedir, vai ficar me seguindo feito um cachorrinho. Por que simplesmente não pede?

— Humanos teimosos — resmungou o Ogier. — Afobados e teimosos, mesmo quando a afobação acaba levando a um ninho de vespas.

— Gostaria de partir hoje mesmo, Loial — disse Perrin, sem olhar para Faile.

— É melhor irmos logo — concordou Loial, encarando pesaroso o livro na mesa. — Acho que posso organizar minhas anotações durante a viagem. Sabe a Luz o que vou perder ficando longe de Rand.

— Você ouviu o que eu disse, Perrin? — inquiriu Faile.

— Vou recolher meu cavalo e pegar alguns suprimentos. Podemos partir no meio da manhã.

— Que se queime, Perrin Aybara, me responda!

Loial olhou para ela, apreensivo.

— Perrin, tem certeza de que não pode…

— Não — interrompeu Perrin, com educação. — Ela é turrona e gosta de joguinhos. Não vou bancar o palhaço para ela. — O rapaz ignorou o som que saía das profundezas da garganta de Faile, que mais parecia um gato encarando um cão estranho, a postos para o ataque. — Aviso assim que estiver pronto.

Começou a se dirigir à porta, e Faile gritou, furiosa:

— “Quando” sou eu quem decide, Perrin Aybara. Eu e Loial. Está ouvindo? É melhor que esteja pronto em duas horas, ou vamos deixar você para trás. Pode nos encontrar no estábulo do Portão da Muralha do Dragão, se for. Está me ouvindo?

Perrin sentiu-a se aproximando e bateu a porta atrás de si no mesmo instante que algo se chocou com força contra a madeira. Um livro, pensou. Loial daria um ataque por causa disso. Era melhor bater na cabeça do Ogier do que estragar algum de seus livros.

Por um instante, ficou apoiado na porta, desesperado. Tudo o que fizera, tudo por que passara, ter que fazer Faile odiá-lo, e, no fim das contas, ela estaria lá para vê-lo morrer. A parte boa é que agora talvez Faile ficasse contente com isso. Mulher teimosa, turrona!

Ao se virar, viu um Aiel se aproximando, um homem alto, de cabelos ruivos e olhos verdes, que poderia ser um primo mais velho de Rand, ou um tio jovem. Conhecia o homem e gostava dele, ainda que fosse porque Gaul jamais tivesse feito qualquer menção de ter notado seus olhos amarelos.

— Que a manhã lhe traga boa sombra, Perrin. A majhere disse que você tinha vindo para estes lados, mas acho que ficou se coçando para enfiar uma vassoura nas minhas mãos. Dura como uma Sábia, aquela mulher.

— Que a manhã lhe traga boa sombra, Gaul. As mulheres são todas umas cabeças-duras, se quer saber.

— Talvez, se não soubermos como contorná-las. Ouvi dizer que você está indo para Dois Rios.

— Luz! — grunhiu Perrin, antes que o Aiel pudesse dizer outra coisa. — Será que a Pedra inteira está sabendo? Se Moiraine souber…

Gaul balançou a cabeça.

— Rand al’Thor falou comigo em particular e pediu que eu não contasse a ninguém. Acho que ele também falou com outros, mas não sei quantos vão querer ir com você. Passamos muito tempo deste lado da Muralha do Dragão, e muitos estão ansiando pela Terra da Trindade.

— Ir comigo? — Perrin ficou espantado. Se tivesse a companhia dos Aiel… Era uma possibilidade que jamais ousara considerar. — Rand pediu que fossem comigo? Para Dois Rios?

Gaul balançou a cabeça outra vez.

— Ele só disse que você estava indo e que alguns homens talvez tentassem matá-lo. Mas quero ir junto, se você aceitar minha companhia.

— Se eu aceitar? — Perrin quase deu uma risada. — Eu aceito. Entraremos nos Caminhos em algumas horas.

— Nos Caminhos? — A expressão de Gaul não se alterou, mas ele piscou.

— Faz alguma diferença?

— A morte chega para todos, Perrin. — Não era uma resposta reconfortante.


— Não posso acreditar que Rand seja tão cruel — disse Egwene.

— Pelo menos ele não tentou impedir você — acrescentou Nynaeve. Sentadas na cama da Sabedoria, elas terminavam a divisão do ouro que Moiraine providenciara. Quatro bolsas gordas seriam transportadas nos bolsos cerzidos sob as saias de Elayne, e quatro nos de Nynaeve, além de uma menor para cada, para não chamar a atenção, que seria levada no cinto. Egwene ficara com uma quantia menor, já que no Deserto havia menos necessidade de ouro.

Elayne franziu o cenho para as duas trouxas cuidadosamente amarradas e o alforje de couro ao lado da porta. Ali estavam todas as suas roupas e algumas outras coisas. Faca e garfo embalados em um estojo, escova e pente de cabelos, agulhas, alfinetes, linha, dedal, tesouras. Um acendedor e uma segunda faca, melhor que a que ela levava no cinto. Sabão, talco e… Era ridículo repassar a lista outra vez. O anel de pedra de Egwene estava enfiado no bolso. Estava pronta para partir. Não havia nada a detê-la.

— Não, ele não tentou.

Elayne estava orgulhosa de como soava calma e serena. Ele pareceu quase aliviado! Aliviado! E tive que entregar aquela carta, deixar meu coração aberto, feito uma tonta, completamente cega. Pelo menos ele não vai abri-la antes que eu vá embora. Pulou ao sentir a mão de Nynaeve tocar seu ombro.

— Queria que ele pedisse a você para ficar? Sabe qual teria sido a resposta. Não sabe?

Elayne apertou os lábios.

— É claro que sei. Mas ele não precisava parecer feliz com minha partida. — Não tivera intenção de dizer isso.

Nynaeve lançou um olhar compreensivo.

— Os homens são difíceis, na melhor das hipóteses.

— Ainda assim, não consigo acreditar que ele seria tão… tão… — começou Egwene, em um resmungo irritado.

Elayne nunca soube o que ela pretendia dizer, pois naquele momento a porta se abriu com tanta força, que quicou na parede.

Elayne abraçou saidar antes de a surpresa passar, depois sentiu um instante de vergonha quando a porta ricocheteou, batendo forte na palma da mão de Lan. Mais um instante, e decidiu agarrar-se à Fonte um pouco mais. O Guardião preenchia o batente com os ombros largos, o rosto parecia uma tempestade. Se aqueles olhos azuis pudessem disparar os raios que ameaçavam, teriam explodido Nynaeve. O brilho tênue de saidar também envolvia Egwene, sem esvanecer.

Lan parecia não ver ninguém além de Nynaeve.

— Você me fez acreditar que estava voltando para Tar Valon — disse, com a voz áspera.

— Você pode ter pensado isso — respondeu ela, muito calma — mas eu não falei nada.

— Não falou? Não falou! Você falava que iria embora hoje, e sempre sugeria uma relação com a partida daquelas Amigas das Trevas que seriam levadas a Tar Valon. Sempre! O que achou que eu fosse pensar?

— Mas eu não disse…

— Luz, mulher! — vociferou ele. — Não discuta comigo!

Elayne trocou olhares aflitos com Egwene. Aquele homem tinha autocontrole de ferro, mas estava a ponto de explodir. Era Nynaeve quem sempre se deixava levar pelas emoções, mas a mulher o encarou com frieza, a cabeça erguida e os olhos serenos, as mãos firmes nas saias de seda verde.

Lan se recompôs com esforço evidente. Parecia mais impassível do que nunca, com total controle sobre si mesmo — e Elayne tinha certeza de que era tudo superficial.

— Eu não teria descoberto para onde você ia se não tivesse ouvido falar que mandou chamar uma carruagem. Para levá-la a um navio rumo a Tanchico. Não sei por que a Amyrlin permitiu que vocês deixassem a Torre, para início de conversa, nem por que Moiraine envolveu as três no interrogatório das irmãs Negras, mas vocês são Aceitas. Aceitas, não Aes Sedai. Tanchico hoje em dia não é lugar para alguém que não seja uma Aes Sedai completa, com um Guardião para ajudá-la. Eu não vou deixar você se meter nisso!

— Então — respondeu Nynaeve, em um tom suave — você está questionando as decisões de Moiraine, e também as do Trono de Amyrlin. Talvez esse tempo todo eu estivesse entendendo mal os Guardiões. Achei que vocês juravam aceitar e obedecer, entre outras coisas. Lan, entendo a sua preocupação, e sou muito grata, mais do que grata, mas todas nós temos tarefas a cumprir. Estamos indo, e você precisa se conformar.

— Por quê? Pelo amor da Luz, pelo menos me diga por quê! Tanchico!

— Se Moiraine não contou — respondeu Nynaeve, gentil — talvez ela tenha suas razões. Temos que cumprir nossas tarefas, assim como você tem que cumprir as suas.

Lan tremeu — de verdade! — e apertou a mandíbula com força. Ao falar, revelou uma estranha hesitação.

— Vocês vão precisar de alguém para ajudá-las em Tanchico. Alguém que possa evitar que um ladrão de rua taraboniano crave uma faca em suas costas para roubar as bolsas. Tanchico tinha dessas coisas antes de a guerra começar, e deve estar ainda pior, de acordo com tudo o que ouvi. Eu poderia… Poderia proteger você, Nynaeve.

As sobrancelhas de Elayne se ergueram. Ele não poderia estar sugerindo… simplesmente não poderia.

Nynaeve reagiu como se o homem não tivesse dito nada de extraordinário.

— Seu lugar é com Moiraine.

— Moiraine. — O rosto rígido do Guardião estava coberto de suor, e ele lutava com as palavras. — Eu posso… Eu preciso… Nynaeve, eu… Eu…

— Você vai ficar com Moiraine — disse a mulher, com firmeza — até que ela o libere do elo. Vai fazer o que estou dizendo. — Ela puxou da bolsa um papel cuidadosamente dobrado e empurrou-o na mão do homem. Lan franziu o rosto, leu, depois piscou e leu outra vez.

Elayne sabia o que estava escrito.

O que o portador fizer é sob meu comando e autoridade. Obedeça e mantenha o silêncio, por ordem minha.

Siuan Sanche

Vigia dos Selos

Chama de Tar Valon

O Trono de Amyrlin

O outro papel igual estava na bolsa de Egwene, mas nenhuma delas tinha certeza de que adiantaria muito em seu destino.

— Mas isso permite que você faça o que bem entender — protestou Lan. — Você pode falar em nome da Amyrlin. Por que ela entregaria isso a uma Aceita?

— Não faça perguntas que eu não posso responder — retrucou Nynaeve, depois acrescentou, com um leve sorriso: — Só considere sorte sua eu não mandar você dançar para mim.

Elayne abafou um sorriso. Egwene emitiu um som sufocado, que parecia uma risada contida. Fora isso o que Nynaeve dissera quando a Amyrlin lhes entregara as cartas pela primeira vez. Eu poderia fazer um Guardião dançar, com isso aqui. Nenhuma delas tivera dúvida de qual Guardião a antiga Sabedoria tinha em mente.

— E não manda? Está me descartando como se não fosse nada demais. Meu elo, meus juramentos. Esta carta.

Lan exibia um brilho perigoso nos olhos, que Nynaeve pareceu não notar ao tomar a carta de volta e guardá-la na bolsa do cinto.

— Você é muito cheio de si, al’Lan Mandragoran. Fazemos o que é preciso, assim como você.

— Cheio de mim, Nynaeve al’Meara? Eu sou cheio de mim? — Lan avançou tão depressa em direção à mulher que Elayne quase cedeu ao impulso de envolvê-lo em fluxos de Ar. Em um instante a antiga Sabedoria estava parada, apenas olhando, embasbacada, para o homem alto que deslizava em sua direção, e no instante seguinte estava a um pé de distância do chão, envolta em um beijo profundo. A princípio ela chutou as canelas de Lan e o socou, com protestos frenéticos e furiosos, mas os chutes diminuíram, depois pararam, e logo Nynaeve ficou enroscada nos ombros dele, sem o menor protesto.

Egwene baixou os olhos, encabulada, mas Elayne observou a cena com interesse. Será que era assim que ela ficava quando Rand… Não! Não vou pensar nele. Ela se perguntou se haveria tempo de escrever mais uma carta ao rapaz, retirando tudo o que dissera na primeira, deixando bem claro que não se contentaria com ninharias. Mas será que queria isso?

Depois de um tempo, Lan pôs Nynaeve de volta no chão. A mulher cambaleou um pouco enquanto ajeitava o vestido e o cabelo, furiosa.

— Você não tem o direito… — começou, com a voz ofegante, depois parou e engoliu. — Você não pode fazer uma coisa dessas comigo diante de todos. Ah, não!

— Não são todos — retrucou Lan. — Mas, se podem ver, também podem ouvir. Você ocupou um lugar no meu coração onde eu achava que já não cabia mais nada. Fez brotar flores onde cultivei poeira e pedras. Lembre-se disso durante essa viagem que insiste em fazer. Se você morrer, eu não sobreviverei por muito mais tempo. — Ele abriu um de seus raros sorrisos para a mulher. Se não suavizou seu rosto, pelo menos o deixou com aparência um pouco menos rígida. — E também lembre-se de que não sou sempre tão fácil de comandar, nem mesmo por cartas da Amyrlin. — Ele fez uma mesura elegante. Por um instante, Elayne pensou que o homem de fato pretendia se ajoelhar e beijar o anel da Grande Serpente de Nynaeve. — Como a senhora ordenar — murmurou — assim farei. — Era difícil dizer se o homem estava ou não sendo debochado.

Assim que a porta se fechou atrás dele, Nynaeve afundou na beirada da cama, como se finalmente deixasse os joelhos cederem. Encarou a porta com uma carranca pensativa.

— “Insista em cutucar o cachorro mais manso” — citou Elayne — “e ele morderá.” Não que Lan seja muito manso.

Ela arrancou um olhar penetrante e uma fungada de Nynaeve.

— Ele é inacreditável — disse Egwene. — Às vezes é. Nynaeve, por que fez isso? Ele estava quase indo com você. Sei que o que mais quer é libertar esse homem de Moiraine. Não tente negar.

Nynaeve não tentou. Em vez disso, remexeu no vestido e alisou a manta sobre a cama.

— Não assim — respondeu, por fim. — Quero que ele seja meu. Por inteiro. Não quero que fique do meu lado lembrando-se de que quebrou o juramento feito a Moiraine. Não aceitarei isso entre nós dois. Tanto por ele, quanto por mim.

— Mas vai fazer alguma diferença se você persuadi-lo a pedir que Moiraine o libere do elo? — perguntou Egwene. — Lan é o tipo de homem que não veria diferença nisso. Só resta dar um jeito de fazer com que ela o libere por vontade própria. Como é que você vai conseguir fazer isso?

— Eu não sei. — Nynaeve firmou a voz. — Mas o que precisa ser feito pode ser feito. Sempre existe uma forma. Isso é para outra hora. Temos trabalho a fazer, e ficamos aqui neste tormento por causa de homens. Tem certeza de que já pegou tudo o que precisa para o Deserto, Egwene?

— Aviendha está aprontando tudo — respondeu a jovem. — Ela ainda parece infeliz, mas disse que conseguiremos chegar em Rhuidean em pouco mais de um mês, se tivermos sorte. A essa altura, vocês já vão estar em Tanchico.

— Talvez antes — disse Elayne — se o que dizem sobre os forcadores do Povo do Mar for verdade. Você vai tomar cuidado, Egwene? Mesmo com Aviendha de guia, o Deserto não é muito seguro.

— Eu vou. Vocês também tomem cuidado. As duas. Tanchico já não é muito mais segura do que o Deserto.

De repente, as três estavam se abraçando, repetindo os alertas de cuidado, conferindo se todas se lembravam do calendário dos encontros na Pedra de Tel’aran’rhiod.

Elayne enxugou as lágrimas do rosto.

— Ainda bem que Lan foi embora — disse, com uma risada trêmula. — Ele acharia que somos umas bobas.

— Não, não acharia — retrucou Nynaeve, puxando as saias para ajeitar uma bolsa de ouro no bolso. — Ele pode ser homem, mas não é tão tolo.

Devia haver tempo dali até a carruagem para encontrar papel e pena, decidiu Elayne. Encontraria tempo. Nynaeve tinha razão. Os homens precisavam de rédea firme. Rand saberia que não poderia se livrar dela com tanta facilidade. E que não seria tão fácil rastejar o caminho de volta às suas boas graças.

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