Abotoando o casaco, Perrin parou e encarou o machado ainda preso à parede, onde o deixara desde que o arrancara da porta. Não apreciava a ideia de carregar a arma outra vez, mas mesmo assim tirou o cinturão do pino e o afivelou. Prendeu o martelo aos alforjes, já cheios. Com os alforjes cobertos por um pano e o rolo do cobertor nos ombros, recolheu a aljava cheia e o arco longo sem corda que estavam em um canto.
O sol nascente vertia luz e calor pelas janelas estreitas. A cama amarrotada era a única prova de que alguém estivera ali. O quarto já conseguira perder a essência de Perrin, até parecia cheirar a vazio, apesar de ainda ter seu cheiro nos lençóis. O rapaz nunca ficava tempo suficiente em um lugar para deixar que aquela essência se fixasse mais do que a prontidão para partir. Nunca ficava tempo suficiente para criar raízes, para estabelecer qualquer tipo de lar. Bom, agora estou voltando para meu lar.
Virou as costas para o quarto, que já parecia desocupado, e saiu.
Gaul ergueu-se com facilidade de onde estava acocorado, encostado em uma parede sob uma tapeçaria de homens a cavalo caçando leões. Levava todas as suas armas e dois cantis de couro. Também carregava um cobertor enrolado e uma pequena caçarola amarrados ao lado do estojo do arco, trabalhado em couro, às suas costas. Ele estava sozinho.
— E os outros? — perguntou Perrin.
Gaul balançou a cabeça.
— É muito longe da Terra da Trindade. Eu avisei, Perrin. Essa sua terra é muito molhada, respirar o ar é como respirar água. Há muita gente, todos muito perto uns dos outros. Eles já viram mais lugares estranhos do que gostariam.
— Compreendo — disse Perrin, embora o que compreendesse era que não haveria resgate, no fim das contas, nenhuma ajuda dos Aiel para tirar os Mantos-brancos de Dois Rios. Engoliu o desapontamento. Era um golpe duro, depois de pensar que conseguira escapar do próprio destino, mas não tinha como dizer que não estava preparado para a alternativa. Não havia por que chorar por um ferro cindido, era preciso forjá-lo outra vez. — Teve algum problema para fazer o que pedi?
— Nenhum problema. Mandei um taireno levar cada uma das coisas que você pediu até o estábulo do Portão da Muralha do Dragão, sem contar a ninguém. Eles todos se encontrarão por lá, mas vão pensar que é tudo para mim e manterão o silêncio. O Portão da Muralha do Dragão. Dá a impressão de que a Espinha do Mundo fica logo ali no horizonte, em vez de a umas cem léguas ou mais de distância. — O Aiel hesitou. — A garota e o Ogier não estão fazendo segredo sobre os preparativos, Perrin. Ela está indo atrás do menestrel, contando a todos que pretende viajar pelos Caminhos.
Coçando a barba, Perrin soltou um suspiro fundo, bem parecido com um rosnado.
— Se ela me dedurar para Moiraine, juro que vou deixá-la uma semana sem poder sentar.
— A garota é muito habilidosa com aquelas facas — retrucou Gaul, em um tom neutro.
— Não o bastante. Não se me dedurar. — Perrin hesitou. Não teria a companhia dos Aiel. As forcas ainda o aguardavam. — Gaul, se alguma coisa acontecer comigo, se eu der o comando, leve Faile embora. Ela talvez não queira ir, mas leve-a mesmo assim. Tire-a de Dois Rios em segurança. Promete?
— Farei o que for possível, Perrin. Em nome da maldita dívida que tenho com você, farei o que puder. — Gaul soava hesitante, mas Perrin achava que as facas de Faile não seriam suficientes para detê-lo.
Sempre que possível, optavam por atravessar corredores secundários e as escadas estreitas destinadas à circulação discreta dos serviçais. Perrin lamentou que os tairenos também não tivessem corredores para os serviçais. Ainda assim, viram pouca gente, mesmo nos amplos corredores com suportes de iluminação dourados e tapeçarias ornamentadas. Não encontraram um único nobre.
Comentou sobre essa ausência, e Gaul explicou:
— Rand al’Thor os convocou para o Coração da Pedra.
Perrin apenas grunhiu, mas torcia para que Moiraine estivesse entre os convocados. Ele se perguntou se era aquele o jeito de Rand de ajudá-lo a escapar da Aes Sedai. Qualquer que fosse a razão, estava bastante satisfeito por tirar alguma vantagem.
Eles desceram a última escadaria apertada até o piso térreo da Pedra, onde corredores cavernosos, largos como estradas, levavam a todos os portões externos. Não havia tapeçarias por ali. Lampiões de ferro pendiam de suportes triangulares do mesmo material escuro, iluminando as passagens sem janelas, e o chão era revestido de pedras grandes e brutas, que não se desgastavam com os cascos dos cavalos. Perrin apertou o passo. Os estábulos ficavam logo adiante, no fim do grande túnel. Depois, dava para ver o imenso Portão da Muralha do Dragão aberto, com apenas um punhado de Defensores montando guarda. Moiraine não podia mais interceptá-los, a não ser que tivesse a sorte do próprio Tenebroso.
A porta aberta do estábulo era um arco de quinze passadas de largura. Perrin deu um passo para dentro e parou.
O ar estava pesado, com o cheiro de palha e feno se misturando ao de grãos e aveia, couro e esterco de cavalo. Estrebarias cheias dos melhores animais tairenos, valorizados em qualquer lugar, alinhavam-se ao longo das paredes, e outras fileiras ocupavam o centro do amplo aposento. Havia dezenas de cavalariços trabalhando, esfregando e escovando, limpando estrume, amarrando rédeas. Sem parar o que faziam, um ou outro às vezes olhava para onde estavam Faile e Loial, já de botas calçadas e prontos para viajar. Ao lado deles estavam Bain e Chiad, que, como Gaul, carregavam armas e cobertores, cantis e caçarolas.
— É por causa delas que você só disse que iria tentar? — perguntou Perrin, baixinho.
Gaul deu de ombros.
— Vou fazer o possível, mas elas vão tomar o lado de Faile. Chiad é Goshien.
— O clã dela faz diferença?
— O clã dela e o meu têm rixas de sangue, Perrin, e não sou irmã de lança dela. Mas talvez os juramentos de água a impeçam. Não dançarei lanças com ela, a não ser que ela ofereça.
Perrin balançou a cabeça. Que povo estranho. O que era um juramento de água? Porém, o que disse foi:
— Por que elas estão com Faile?
— Bain diz que desejam ver mais das suas terras, mas acho que estão fascinadas é pela briga entre você e a garota. Gostam de Faile, e, quando ouviram falar da viagem, decidiram ir com ela, não com você.
— Bem, desde que a deixem fora de confusão.
Perrin ficou surpreso quando Gaul jogou a cabeça para trás e gargalhou. Aquilo o fez coçar a barba, preocupado.
Loial foi andando na direção deles, as sobrancelhas compridas vergadas de ansiedade. Os bolsos do casaco estavam salientes, como era comum quando ele viajava, quase todos marcados com os formatos dos livros. Pelo menos a manqueira parecia melhor.
— Faile está ficando impaciente, Perrin. Acho que ela pode querer partir a qualquer momento. Por favor, apresse-se. Você não vai conseguir nem encontrar o Portal dos Caminhos sem mim. Não que deva tentar, claro que não. Vocês humanos me deixam tão agitado que mal consigo manter a cabeça no lugar. Por favor, apresse-se.
— Eu não vou sair sem ele — gritou Faile. — Por mais que seja teimoso e estúpido demais para pedir um simples favor. Por causa disso, Perrin vai me seguir feito um cachorrinho perdido. Prometo afagar as orelhas e tomar conta dele.
As Aiel se contorceram de rir.
Gaul levantou-se de um salto, chutando alto, duas passadas ou mais acima do chão, enquanto girava uma das lanças.
— Vamos seguir feito gatos-bravos — gritou — feito lobos de caça.
O homem pousou com leveza e graciosidade. Loial o encarou, estupefato.
Bain, por sua vez, passou os dedos pelos cabelos curtos cor de fogo.
— Tenho uma bela pele de lobo cobrindo minha cama — contou a Chiad, em voz entediada. — É fácil abater lobos.
Um grunhido surgiu na garganta de Perrin, fazendo com que os olhos das duas Aiel se fixassem nele. Por um instante, Bain pareceu estar a ponto de dizer algo mais, mas franziu a testa para os olhos amarelos e manteve a paz. Não parecia com medo, e sim subitamente alerta.
— Esse filhote ainda não está muito bem treinado — confidenciou Faile às outras mulheres.
Perrin recusou-se a olhá-la. Em vez disso, foi até a baia onde estava o garanhão castanho, tão alto quanto os animais tairenos, porém mais robusto nos ombros e no lombo. Dispensando um cavalariço, pôs a rédea em Galope e o levou sozinho para fora. Os criados haviam passeado com o cavalo, sem dúvida, mas o animal estava confinado havia tempo o bastante para começar a cabriolar ainda naqueles poucos passos, fazendo jus ao nome que recebera de Perrin. O rapaz afagou o animal com a confiança firme de um homem que já ferrara muitos cavalos. Não foi problema encaixar a sela de patilho alto e amarrar os alforjes e o cobertor atrás.
Gaul assistia, impassível. Não montaria em um cavalo a menos que precisasse, e, se o fizesse, não avançaria um passo a mais do que fosse absolutamente necessário. Aiel algum faria isso. Perrin não entendia por quê. Talvez por orgulho da habilidade de correr longas distâncias. Os Aiel faziam parecer que era mais do que isso, mas ele suspeitava que nenhum deles fosse capaz de explicar.
O cavalo de carga também teria de ser aprontado, naturalmente, mas isso era fácil, pois tudo o que Gaul solicitara estava aguardando em uma pilha organizada. Comida e cantis. Aveia e grãos para os cavalos. Nada daquilo estaria disponível nos Caminhos. Algumas outras coisinhas, como correntes, medicamentos para cavalos, por garantia, acendedores reserva e coisas do tipo. A maioria do espaço das cestas de vime estava ocupada por cantis de couro como os que os Aiel usavam para carregar água, porém maiores e cheias de óleo de lampião. Quando as lanternas, em varetas compridas, foram amarradas acima de tudo, os dois estavam prontos.
Perrin enfiou o arco sem cordas sob a cilha e montou na sela de Galope com a guia do animal de carga na mão. Depois teve de esperar, fervendo de raiva.
Loial já estava montado em um cavalo imenso de boletos peludos — muitas mãos mais alto que qualquer outro no estábulo, mas que parecia um pônei quando montado pelo Ogier. Houve uma época em que Loial era quase tão resistente à montaria quanto os Aiel, mas com o tempo ficara à vontade em cima de um cavalo. Era Faile quem demorava, examinando a montaria como se nunca tivesse visto a égua negra e brilhosa, embora Perrin soubesse que ela testara o animal antes de comprá-lo, logo que chegaram à Pedra. A égua, chamada Andorinha, era um belo exemplar de cria tairena, com tornozelos delgados e pescoço arqueado, um cavalo de andar afetado e aparência ligeira e resistente, mas com ferraduras leves demais para o gosto de Perrin. Aquele metal não ia durar. Era só mais um esforço para colocá-lo no seu devido lugar, fosse qual fosse esse lugar que Faile achava ser o dele.
Quando a jovem enfim montou, com as saias justas divididas, tomou as rédeas da égua e aproximou-se de Perrin. Ela cavalgava bem, mulher e cavalo moviam-se como um só.
— Por que não pede, Perrin? — perguntou, baixinho. — Tentou me afastar do meu lugar, por isso agora precisa pedir. Por que dificultar uma coisa tão simples?
A Pedra estremeceu, soando como um sino monstruoso, o chão do estábulo saltou, o teto estremeceu quase a ponto de desabar. Galope também deu um salto, relinchando e sacudindo a cabeça, e Perrin teve dificuldade de se manter na sela. Cavalariços se levantaram desajeitados e correram, desesperados para acalmar os animais, que empinavam, guinchavam e tentavam pular a grade das baias. Loial agarrou-se ao pescoço do cavalo imenso, mas Faile permaneceu sentada em Andorinha, rígida, enquanto a égua dançava e trinia loucamente.
Rand. Perrin sabia que era ele. A força de ta’veren o atraía, dois redemoinhos em um córrego, cada um puxando o outro. Tossindo em meio à poeira, sacudiu a cabeça o mais forte que pôde, dando tudo de si para não descer do cavalo e correr de volta para a Pedra.
— Vamos cavalgar! — gritou, enquanto o tremor ainda abalava a fortaleza. — Vamos cavalgar, Loial! Agora.
Faile parecia não ver mais motivo para adiar a partida. Bateu os calcanhares na égua e saiu do estábulo logo atrás do cavalo alto do Ogier puxando os dois animais de carga, todos galopando até alcançar o Portão da Muralha do Dragão. Os Defensores deram uma olhada e se dispersaram, alguns ainda agachados ou de joelhos. Sua obrigação era manter o povo fora da Pedra, e não tinham ordens para impedir aquelas pessoas de saírem. Não que estivessem em condições de pensar com clareza, caso houvesse recebido tal ordem. Não depois dos tremores, que começavam a diminuir, a Pedra ainda urrando sobre suas cabeças.
Perrin vinha logo atrás, puxando o próprio cavalo de carga, desejando que o animal do Ogier fosse capaz de avançar mais depressa, desejando poder deixar para trás a montaria lenta de Loial e fugir da força que tentava arrastá-lo de volta, aquele empuxo de ta’veren para ta’veren. Galoparam juntos pelas ruas de Tear, em direção ao sol nascente, quase sem reduzir a marcha para evitar carroças e carruagens. Homens de casacos justos e mulheres com aventais em camadas, todos ainda abalados pela reviravolta, encaravam os passantes, atordoados, às vezes mal tendo tempo de desviar.
Nos muros da cidade interior, as pedras das calçadas davam lugar à terra, e os sapatos e casacos, aos pés descalços, peitos desnudos e calças largas presas por grandes cinturões. Mas o povo desviava deles com a mesma ligeireza, pois Perrin só deixou Galope reduzir a marcha depois que haviam ultrapassado os muros da cidade, as casas simplórias de pedra e as lojas que se amontoavam do lado de fora da cidade propriamente dita, adentrando uma área campestre de fazendas isoladas e matos trançados, fora a influência de ta’veren. Foi só então, respirando quase com tanta dificuldade quanto o cavalo agitado, que puxou a rédea e reduziu o passo de Galope a um caminhar.
As orelhas de Loial estavam rígidas de choque. Faile umedeceu os lábios e encarou o Ogier, depois Perrin, pálida.
— O que aconteceu? Isso foi… ele?
— Eu não sei — mentiu Perrin. Eu preciso ir, Rand. Você sabe disso. Olhou nos meus olhos quando eu avisei que ia e falou que eu tinha de fazer o que fosse preciso.
— Onde estão Bain e Chiad? — perguntou Faile. — Vão levar uma hora para nos alcançar. Queria que elas concordassem em cavalgar. Eu me ofereci para comprar cavalos, mas as duas pareceram ofendidas. Bem, teremos de reduzir o passo dos cavalos de todo modo, depois disso, para acalmá-los um pouco.
Perrin conteve-se para não dizer que a mulher não sabia tanto sobre os Aiel quanto imaginava. Podia ver as muralhas da cidade atrás deles e a Pedra erguida acima, feito uma montanha. Distinguia até o contorno sinuoso do estandarte que drapejava no alto da fortaleza e os pássaros solitários voejando ao redor, algo que ninguém mais conseguia. Não era difícil ver três pessoas correndo na direção deles, devorando o chão em passos largos, cujo ritmo era desmentido pela facilidade com que deslizavam. Sabia que não poderia correr tão depressa, não por muito tempo, mas os Aiel deviam ter mantido a velocidade desde a Pedra, para estarem tão perto.
— Não precisaremos esperar tanto assim — disse.
Faile franziu a testa em direção à cidade.
— São eles? Tem certeza? — De repente, a testa franzida voltou-se para ele, desafiando-o a responder. Perguntar era quase admitir que ele era parte do grupo, naturalmente. — Ele se gaba muito da visão — explicou a Loial — mas a memória não é muito boa. Tem horas que acho que ele se esqueceria de acender uma vela à noite, se eu não o lembrasse. Acho que Perrin viu alguma pobre família correndo do que pensam ter sido um terremoto, você não acha?
Loial se remexeu sobre a sela, incomodado, suspirando pesado, e resmungou algo sobre os humanos que Perrin duvidou que fosse um elogio. É claro que Faile não percebeu.
Poucos minutos depois, ela começou a encarar Perrin com estranheza — isso foi logo que os três Aiel se aproximavam o bastante para que ela os distinguisse — mas não disse nada. Com aquele humor, não admitiria que ele tivesse razão a respeito de coisa alguma, nem mesmo sobre o céu ser azul. Os Aiel sequer arfavam quando reduziram o passo e pararam junto aos cavalos.
— Pena que a corrida não foi maior.
Bain e Chiad compartilharam um sorriso, e ambas lançaram a Gaul um olhar dissimulado.
— Ou deixaríamos este Cão de Pedra na poeira — explicou Chiad, como se estivesse concluindo a frase da outra mulher. — É por isso que os Cães de Pedra fazem o juramento de não retroceder. Ossos de pedra e cabeças de pedra os deixam pesados demais para correr.
Gaul não se ofendeu, porém Perrin percebeu que o Aiel permaneceu em uma posição de onde conseguia observar Chiad.
— Sabe por que as Donzelas atuam tanto como batedoras, Perrin? Porque correm distâncias muito longas. Correm assim porque têm medo de que algum homem vá querer se casar com elas. As Donzelas conseguem correr cem milhas só para evitar um casamento.
— Muito sábio da parte delas — retrucou Faile, em um tom ácido. — Precisam descansar? — Perguntou às mulheres Aiel, surpreendendo-se com a negativa. Então se virou para O Ogier. — Está pronto para ir? Que bom. Encontre esse Portal dos Caminhos, Loial. Já ficamos tempo demais aqui. Se deixamos um filhote desgarrado ficar muito perto, ele logo começa a pensar que vamos cuidar dele, o que não vai acontecer.
— Faile — interveio Loial — será que você não está levando isso longe demais?
— Vou levar isso até onde for preciso, Loial. O Portal dos Caminhos?
De orelhas murchas, o Ogier soltou um suspiro pesado e girou o cavalo outra vez para o leste. Perrin deixou que ele e Faile se distanciassem umas doze passadas antes de começar a segui-los com Gaul. Jogaria de acordo com as regras dela, mas seria tão bom jogador quanto ela.
As fazendas, trechinhos de terra apertados com casas de pedra bruta que Perrin não usaria nem para abrigar animais, ficavam mais escassas à medida que avançavam para leste, e a vegetação, cada vez mais esparsa. Até que não havia mais fazendas nem árvores, apenas um pasto ondulante e montanhoso. A grama ia até onde os olhos podiam ver, exceto por trechos de arbustos aqui e ali em uma encosta.
Cavalos também pontilhavam as encostas verdes, em grupos de dez ou bandos de cem, o famoso rebanho taireno. Grandes ou pequenos, cada grupo estava sob a vigia de um ou dois garotos descalços, montando um cavalo em pelo. Os garotos usavam chicotes de cabo comprido para manter os cavalos juntos ou manobrá-los, estalando-os com habilidade sem sequer aproximar as pontas do couro dos animais. Mantinham os bichos longe do grupo de viajantes, recuando quando necessário, mas vigiavam, com a ousada curiosidade característica da infância, a passagem da estranha comitiva — dois humanos e um Ogier a cavalo, mais três dos ferozes Aiel que, de acordo com as histórias, tomaram a Pedra.
Era uma visão agradável para Perrin. Ele gostava de cavalos. Parte da razão pela qual quisera ser aprendiz de Mestre Luhhan fora a oportunidade de trabalhar com cavalos, ainda que não houvesse tantos em Campo de Emond, nem tão belos.
Loial, porém, não parecia concordar. O Ogier começou a resmungar sozinho, subindo o tom conforme avançavam pelas colinas cobertas de grama, até que irrompeu em um rugido profundo e retumbante.
— Acabou! Acabou tudo, e para quê? Grama. Isso aqui já foi um bosque Ogier. Não fizemos grandes trabalhos aqui, não comparados aos de Manetheren ou da cidade que vocês chamam de Caemlyn, mas o suficiente para que um bosque fosse plantado. Árvores de todos os tipos, de todas as terras, de todos os lugares. As Grandes Árvores se elevavam centenas de braças para o céu. Tudo muito bem cuidado, para lembrar meu povo do pouso de onde haviam partido para construir coisas para os homens. Os homens acham que gostamos é do trabalho de cantaria, mas isso é uma coisa superficial que aprendemos durante o Longo Exílio, depois da Ruptura. São as árvores que amamos. Os homens acham que o Manetheren é o maior triunfo do meu povo, mas sabíamos que era o bosque que havia lá. Agora está tudo acabado. Como esse. Acabado, e não vai voltar a existir.
Loial encarou as colinas, vazias exceto pela grama e os cavalos, com uma expressão rígida, as orelhas para trás, coladas na cabeça. Cheirava a… fúria. A maioria das histórias descrevia os Ogier como pacíficos, quase tanto quanto o Povo Errante, mas algumas poucas os denominavam inimigos implacáveis. Perrin só vira Loial furioso uma vez. Talvez o amigo tivesse ficado furioso na noite anterior, defendendo aquelas crianças. Olhando para o rosto de Loial, um antigo ditado lhe veio à memória.
“Irritar um Ogier e provocar a ira das montanhas.” Todos interpretavam a frase como se falasse de tentar fazer algo impossível. Perrin pensou que talvez o significado tivesse mudado com os anos. Talvez, no início, fosse “Irritar um Ogier é como provocar a ira das montanhas”. Algo difícil de fazer, porém mortal. Pensou que nunca gostaria de ver Loial — seu amigo gentil e atrapalhado, com o enorme nariz sempre enfiado em um livro — irritado com ele.
Foi Loial quem assumiu a liderança quando chegaram ao local do bosque desaparecido dos Ogier, dobrando o caminho um pouco para o sul. Não havia pontos de referência, mas ele tinha certeza da direção, e ficava mais confiante a cada passo dos cavalos. Os Ogier pressentiam um Portal dos Caminhos, sentiam-no de alguma forma, encontravam-no com a mesma certeza de que uma abelha era capaz de encontrar a colmeia. Quando Loial enfim desceu do cavalo, a grama batia um pouco acima de seus joelhos. Havia apenas um montinho de arbustos frondosos à volta, mais altos que a maioria, amontoados folhosos da altura do Ogier. Ele arrancou tudo quase sem remorso, empilhando-os do outro lado.
— Talvez os meninos dos cavalos possam usar como lenha, depois que secarem.
E lá estava o Portal dos Caminhos.
Enfiado na lateral da colina, parecia mais um paredão cinza do que um portão, a parede de um palácio, melhor dizendo, coberta de entalhes de folhas e vinhas tão refinados que pareciam tão vivos quanto os arbustos. Estavam ali havia pelo menos três mil anos, mas nem um traço de desgaste danificava a superfície. Aquelas folhas pareciam poder ondear com a próxima brisa.
Por um instante, todos encararam o Portal dos Caminhos em silêncio, até que Loial respirou fundo e pousou a mão sobre uma das folhas, diferente de todas as outras. A folha de três pontas de Avendesora, a lendária Árvore da Vida. Parecia entalhada como as outras até a mão enorme tocá-la. Então saiu sem dificuldade.
Faile soltou um ruído de assombro, e até os Aiel murmuraram. O ar cheirava a desconforto, e não havia como dizer de quem vinha. De todos eles, talvez.
As folhas de pedra pareciam se mexer com uma brisa inexistente, e adquiriram um tom verde de vida. Aos poucos, uma rachadura apareceu bem no centro, e as metades do Portal dos Caminhos se abriram, revelando não a colina por detrás, mas um reflexo embaçado e bruxuleante da imagem do grupo.
— Dizem que antigamente — murmurou Loial — os Portais brilhavam como espelhos, e os que adentravam os Caminhos andavam pelo sol e pelo céu. Nada disso existe hoje em dia. Como o bosque.
Puxando depressa um dos lampiões já repletos de óleo transportados pelo cavalo de carga, Perrin iluminou o local.
— Está muito abafado aqui — disse. — Uma sombrinha seria bom.
Conduziu Galope em direção ao Portal dos Caminhos. Pensou ter ouvido Faile soltar uma exclamação.
O garanhão castanho empacou, aproximando-se do próprio reflexo turvo, mas Perrin cravou os calcanhares para que ele prosseguisse. Devagar, lembrou. A coisa tinha que ser feita devagar. O nariz do cavalo encostou na própria imagem, hesitante, depois se fundiu com ela, como se adentrasse um espelho. Perrin aproximou-se de si mesmo, tocou… Um frio gélido percorreu a pele, envolvendo-o até os cabelos, o tempo se espichou.
O frio desapareceu como uma bolha estourada, e ele se viu em meio à escuridão sem-fim. A luz do lampião era uma poça chapada à sua volta. Galope e o cavalo de carga relincharam, nervosos.
Gaul adentrou com muita calma e começou a preparar outro lampião. Atrás dele, havia algo que parecia uma lâmina de vidro enfumaçado. Era possível ver os outros do lado de lá, Loial montando outra vez no cavalo, Faile segurando as rédeas, todos deslizando furtivos, quase sem se mover. O tempo nos Caminhos era muito diferente.
— Faile está aborrecida com você — comentou Gaul, depois de acender a lanterna. Não acrescentou muita iluminação. A escuridão sorvia a luz, engolia. — Está pensando que você quebrou algum tipo de acordo. Bain e Chiad… Não fique sozinho com elas. As duas estão querendo lhe dar uma lição, por causa de Faile, e você não vai conseguir se sentar nesse animal com tanta facilidade se elas conseguirem fazer o que estão planejando.
— Eu não concordei com nada, Gaul. Estou fazendo o que Faile está me forçando a fazer, e tudo por causa de um truque dela. Logo teremos que voltar a seguir Loial, como ela quer que aconteça, mas pretendo tomar a liderança pelo máximo de tempo que puder. — Ele apontou para uma linha grossa e branca sob os cascos de Galope. Intermitente e bastante esburacada, ela seguia adiante e desaparecia na escuridão, algumas passadas à frente. — Isso leva ao primeiro poste de sinalização. Teremos que esperar Loial por lá, para que ele o interprete e decida qual ponte tomar, mas é Faile quem vai nos seguir até esse primeiro poste.
— Ponte — murmurou Gaul, pensativo. — Conheço essa palavra. Tem água lá?
— Não. Não é bem esse tipo de ponte. Parece igual, mais ou menos, mas… Talvez Loial consiga explicar melhor.
O Aiel coçou a cabeça.
— Você sabe o que está fazendo, Perrin?
— Não — admitiu o rapaz — mas não tem por que Faile ficar sabendo disso.
Gaul deu uma risada.
— É divertido ser tão jovem, não é, Perrin?
Franzindo a testa, sem saber ao certo se o homem estava caçoando dele, Perrin cravou os calcanhares em Galope, arrastando o cavalo de carga atrás de si. A luz do lampião não seria mais visível em vinte ou trinta passadas. Queria já estar fora de vista quando Faile passasse pelo Portal. Queria deixá-la pensar que decidira prosseguir sem ela. Ficar preocupada por alguns minutos, pelo menos até encontrá-lo no poste de sinalização, era o mínimo que ela merecia.