A Roda do Tempo gira, e as Eras vêm e vão, deixando memórias que se transformam em lendas. As lendas se desvanecem em mitos, e até o mito já está há muito esquecido quando a Era que o viu nascer retorna. Em uma Era, chamada por alguns de a Terceira Era, uma Era ainda por vir, uma Era há muito passada, um vento se ergueu na grande planície chamada Relvado de Caralain. O vento não era o início. O girar da Roda do Tempo não tem inícios nem fins. Mas era um início.
O vento soprava a norte e a leste sob o sol da manhã que nascia, estendendo-se por infindáveis milhas de terreno gramado e arbustos esparsos, ao longo do ligeiro Rio Luan, e para além da presa quebrada do Monte do Dragão — a lendária montanha que se avultava sobre as leves elevações da planície, tão alta que as nuvens a coroavam a menos da metade do pico nebuloso. O Monte do Dragão, onde o Dragão morrera — e com ele, diziam alguns, a Era das Lendas — onde, rezava a profecia, ele renasceria. Ou renascera. A norte e leste, cruzando as aldeias de Jualdhe, Darein e Alindaer, onde pontes de pedra trabalhada se arqueavam até as Muralhas Reluzentes, os gigantescos muros brancos do que muitos chamavam de a maior cidade do mundo. Tar Valon. Uma cidade tocada, todas as noites, pela sombra do Monte do Dragão.
No interior daquelas muralhas, as construções erguidas pelos Ogier havia mais de dois mil anos pareciam ter brotado direto da terra ou sido formadas pela ação do vento e da água, em vez de feitas pelas lendárias mãos dos pedreiros Ogier. Algumas tinham forma de pássaros alçando voo ou de imensas conchas de mares distantes. Torres exorbitantes, largas, finíssimas ou espiraladas ligavam-se umas às outras por pontes de centenas de pés de altura, em geral sem parapeitos. Apenas os que lá viviam havia muito tempo não ficavam boquiabertos, embasbacados com a visão, como interioranos que jamais saíram do campo.
A Torre Branca, a maior de todas, assomava-se sobre a cidade, reluzente como marfim polido sob o sol. A Roda do Tempo gira ao redor de Tar Valon, dizia o povo da cidade, e Tar Valon gira ao redor da Torre. A primeira visão que os viajantes tinham da famosa cidade, antes mesmo de seus cavalos avistarem as pontes ou de os capitães dos navios vislumbrarem a ilha, era a Torre, refletindo o sol como um farol. Não era de se admirar que a grande praça em torno das muralhas que circundavam a Torre parecesse menor sob aquela vista imponente, e que as pessoas passeando por lá fossem reduzidas a minúsculos insetos. Mas mesmo que fosse a menor torre de Tar Valon, a Torre Branca ainda impressionaria o povo da ilha por ser o coração do poder das Aes Sedai.
Apesar de grande, a multidão nem chegava perto de encher a praça. As pessoas mais afastadas se acotovelavam em uma massa fervilhante que seguia com seus afazeres diários, mas pouquíssima gente caminhava perto aos muros da Torre, e ao redor da alta muralha branca havia uma faixa de pavimento vazio de cerca de cinquenta passadas de largura. Aes Sedai eram mais que respeitadas em Tar Valon, naturalmente. Era o Trono de Amyrlin que governava a cidade e as Aes Sedai, mas poucos desejavam se aproximar mais do que o necessário do poder daquelas mulheres. Havia uma diferença entre se envaidecer por causa de uma grande lareira no salão de casa e se jogar no meio das chamas.
Ainda mais raros eram os que chegavam mais perto, indo até a ampla escadaria que conduzia à Torre em si, ou indo até as portas com entalhes intrincados, pelas quais podiam passar mais de dez pessoas lado a lado. Essas portas permaneciam abertas e receptivas. Sempre havia quem precisasse de ajuda ou de alguma resposta que julgasse que apenas as Aes Sedai eram capazes de fornecer, e esses vinham tanto de longe quanto de perto, de Arafel e Ghealdan, Saldaea e Illian. No interior dos muros, muitos obtinham ajuda ou orientação, embora nem sempre ouvissem exatamente o que esperavam ou ansiavam.
Min mantinha o largo capuz do manto sobre o rosto, encobrindo-o sob suas sombras. Apesar do dia quente, a peça era leve o bastante para não atrair comentários, não em uma mulher cuja timidez era tão óbvia. Além disso, muita gente era tomada pela timidez quando ia para a Torre. Nada na jovem chamava a atenção. Os cabelos escuros estavam mais compridos do que da última vez que fora à Torre, embora ainda não tocassem os ombros. O vestido azul e liso, a não ser pelas finas faixas de renda de Jaerecruz nos punhos e pescoço, poderia muito bem ser da filha de algum fazendeiro próspero que pusera sua melhor roupa de festa para ir à Torre, assim como outras mulheres que se aproximavam da ampla escadaria. Min torcia para que essa fosse a impressão passada, pelo menos. Obrigara-se a parar de olhar as outras mulheres para ver se caminhavam ou se portavam de forma similar. Eu consigo, disse a si mesma. Não havia chegado até ali para acabar voltando atrás. O vestido era um bom disfarce. Aqueles que se lembravam dela na Torre tinham a imagem de uma jovem de cabelos cortados bem curtos, sempre de casaco e calças masculinos, nunca de vestido. Tinha que ser um bom disfarce. Ela não tinha escolha quanto ao que estava fazendo. Não muita.
Quanto mais se aproximava da Torre, mais seu estômago se embrulhava. Ela apertou a trouxa que trazia junto ao peito. As roupas de sempre estavam ali, e também as botas boas e todos os seus pertences, exceto o cavalo, que deixara em uma estalagem não muito longe da praça. Com sorte, estaria de volta em poucas horas para recuperar o capão e rumar para a Ponte de Ostrein e para a estrada que levava ao sul.
Não estava muito animada para montar um cavalo tão cedo, não depois de passar semanas em cima de uma sela sem nem um dia de descanso, mas ansiava por deixar aquele lugar. Nunca considerara a Torre Branca acolhedora, e, naquele instante, o lugar parecia quase tão terrível quanto a prisão do Tenebroso em Shayol Ghul. Estremecendo, desejou não ter pensado no Tenebroso. Será que Moiraine acha que vim aqui só porque ela pediu? Que a Luz me ajude, agindo feito uma tonta. Fazendo coisas idiotas só por causa de um homem idiota!
Ela subiu as escadas, desconfortável — precisava dar dois passos para atravessar cada um dos enormes degraus — e, ao contrário da maioria dos recém-chegados, não parou para admirar, boquiaberta, toda a brancura da Torre que se avultava. Queria terminar logo com aquilo.
Do lado de dentro, o salão de entrada, imenso e redondo, era quase todo cercado por arcos. Os visitantes se aglomeravam no centro, arrastando os pés sob um teto em domo sem ornamentos. O chão de pedras claras fora gasto e polido pelos inúmeros pés nervosos que haviam passado por ali ao longo dos séculos. Ninguém pensava em qualquer coisa que não onde estava e por quê. Um fazendeiro e sua mulher em roupas rústicas de lã, segurando a mão calejada um do outro, aguardavam ao lado de uma mercadora em roupas de seda com listras de veludo, com uma serviçal atrás de si, agarrada a uma caixinha trabalhada em prata, sem dúvida presente de sua senhora para a Torre. Em qualquer outro lugar, a mercadora teria olhado com desprezo para os camponeses que passavam tão perto, e eles poderiam muito bem ter batido continência e recuado, desculpando-se. Não naquele momento. Não ali.
Havia poucos homens entre os visitantes que buscavam a ajuda das Aes Sedai, o que não era surpresa para Min. A maioria ficava aflita perto delas. Todos sabiam que os Aes Sedai homens, quando ainda existiam, haviam sido os responsáveis pela Ruptura do Mundo. Três mil anos não haviam esmaecido aquela lembrança, ainda que o tempo tivesse alterado muitos detalhes. As crianças ainda ouviam as histórias de terror sobre homens capazes de canalizar o Poder Único, todos condenados à loucura pela mácula do Tenebroso em saidin, a metade masculina da Fonte Verdadeira. Pior ainda era a história de Lews Therin Thelamon, o Dragão, Lews Therin Fratricida, que dera início à Ruptura. Inclusive, as histórias também assustavam os adultos. A Profecia afirmava que o Dragão renasceria — no momento de maior necessidade da humanidade — para enfrentar o Tenebroso em Tarmon Gai’don, a Última Batalha. Mas isso fazia pouca diferença na forma com que a maioria das pessoas encarava qualquer ligação entre homens e o Poder. Qualquer Aes Sedai caçaria um homem capaz de canalizar. Das sete Ajahs, a Vermelha fazia um pouco mais do que isso.
Naturalmente, nada daquilo tinha a ver com ir pedir ajuda às Aes Sedai, mas poucos homens sentiam-se à vontade em ter qualquer relação com elas e com o Poder. Poucos, exceto os Guardiões. Cada um deles tinha um elo com uma única Aes Sedai, e não eram considerados homens comuns. Havia um ditado: “Os homens preferem cortar a própria mão para se livrar de uma farpa a pedir ajuda a uma Aes Sedai.” As mulheres diziam aquilo como uma crítica à tola teimosia masculina, mas Min ouvira alguns homens afirmarem que perder a mão talvez fosse uma decisão mais sábia.
Ela se perguntou o que aquelas pessoas fariam se soubessem o que ela sabia. Fugiriam aos gritos, talvez. E, se soubessem por que motivo estava ali, havia grandes chances de ela não sobreviver antes de ser levada pelos guardas da Torre e jogada em uma cela. Ela tinha amigas dentro da Torre, mas ninguém com poder ou influência. Se seu objetivo fosse revelado, era muito mais provável que, em vez de ser ajudada pelas amigas, Min acabasse arrastando todas consigo para a forca, ou para o carrasco.
Obrigou-se a parar de pensar daquela forma. Vou conseguir entrar, depois vou conseguir sair. Que a Luz queime Rand al’Thor por me meter nessa!
Três ou quatro Aceitas, mulheres da idade de Min, talvez um pouco mais velhas, andavam pelo salão circular e falavam baixinho com os visitantes. Os vestidos brancos que usavam eram lisos, a não ser por sete faixas coloridas na bainha, uma para cada Ajah. Vez ou outra, uma das noviças — ainda mais jovem e toda de branco — vinha para levar alguém mais para o interior da Torre, e a pessoa sempre acompanhava as noviças com uma estranha mistura de entusiasmo e relutância.
Min apertou ainda mais a trouxa quando uma das Aceitas parou à sua frente.
— Que a Luz a ilumine — disse a mulher de cabelos cacheados, sem muito entusiasmo. — Meu nome é Faolain. Como a Torre pode ajudá-la?
O rosto redondo e escuro de Faolain mostrava a paciência de alguém incumbido de uma tarefa tediosa enquanto preferia estar fazendo qualquer outra coisa. Estudando, provavelmente, pelo que Min sabia das Aceitas. Estudando para ser Aes Sedai. No entanto, o mais importante era a falta do brilho de reconhecimento nos olhos da Aceita. As duas se conheceram quando Min estivera na Torre, mas não muito intimamente.
Mesmo assim, Min baixou a cabeça em timidez fingida. Não era incomum, muitos camponeses não compreendiam muito bem a enorme diferença entre as Aceitas e as Aes Sedai plenas. Escondendo as feições por trás do manto, ela desviou os olhos de Faolain.
— Preciso fazer uma pergunta ao Trono de Amyrlin — começou, mas parou de falar de repente quando três Aes Sedai pararam para observar o saguão, duas abaixo de um dos arcos, uma abaixo de outro.
Aceitas e noviças faziam mesuras quando seus caminhos a levavam perto de uma das Aes Sedai, mas do contrário seguiam com seus afazeres, no máximo com um tantinho mais de vivacidade. Só isso. O mesmo não acontecia com os visitantes, que pareciam passar o tempo todo prendendo a respiração. Longe da Torre Branca e de Tar Valon, teriam apenas o palpite de que as mulheres cuja idade não era possível estimar eram Aes Sedai, mulheres no frescor da plenitude, porém mais maduras do que os rostos suaves sugeriam. Mas na Torre não havia dúvidas. Uma mulher que operasse o Poder Único por um longo período não era tocada pelo tempo da mesma forma que as outras. Dentro da Torre, ninguém precisava ver o anel dourado da Grande Serpente para reconhecer uma Aes Sedai.
Uma onda de mesuras se espalhou pelo grupo amontoado, os poucos homens presentes se dobraram em reverências. Duas ou três pessoas chegaram a cair de joelhos. A mercadora rica parecia assustada, e o casal de fazendeiros ao seu lado parecia encarar uma lenda que virava realidade. A maioria apenas ouvira boatos sobre como se portar diante de uma Aes Sedai. Era improvável que qualquer um ali, exceto os que de fato viviam em Tar Valon, tivesse visto uma delas antes, e era provável que nem mesmo os habitantes da cidade já houvessem se aproximado tanto de uma.
Mas não foi a presença das Aes Sedai que fizeram Min perder a fala. Às vezes, não com muita frequência, ela via coisas ao olhar para as pessoas: imagens e auras que se expandiam e esvaneciam em instantes. Às vezes, sabia o que significavam. Era raro ter essa compreensão — muito mais raro do que as visões, na verdade — mas, quando isso ocorria, nunca falhava.
Ao contrário da maioria, as Aes Sedai e seus Guardiões sempre exibiam imagens e auras, às vezes tão agitadas e dançantes que deixavam Min tonta. No entanto, a quantidade não influenciava a interpretação. Ela compreendia o significado das visões nas Aes Sedai com a mesma rara frequência do que nas outras pessoas. Mas dessa vez soube mais do que gostaria, e estremeceu.
Uma mulher esguia de cabelos negros até a cintura, a única das três que ela reconheceu — chamava-se Ananda e era da Ajah Amarela — exibia uma auréola marrom pálida, murcha e cheia de sulcos apodrecidos cujas bordas desabavam e aumentavam enquanto o material se decompunha. Pelo xale de franjas, dava para ver que a pequena Aes Sedai de cabelos claros ao lado de Ananda pertencia à Ajah Verde. A Chama Branca de Tar Valon estampada no tecido ficou à mostra por um instante, quando ela virou as costas. Em seu ombro, como se aninhado entre as videiras e os ramos floridos de macieira bordados no tecido, jazia um crânio humano. Um pequeno crânio feminino, oco e muito branco. A terceira, uma mulher bonita e roliça que já chegava à metade da volta no salão, não usava xale. A maioria das Aes Sedai não usava, exceto em cerimônias. O queixo erguido e os ombros empertigados indicavam sua força e orgulho. Ela parecia olhar os presentes por trás de uma cortina de sangue, os filetes carmesins descendo pelo rosto.
Sangue, crânio e halo esvaneceram na dança de imagens ao redor das três, depois surgiram e desapareceram outra vez. Os visitantes as encaravam, estarrecidos, vendo apenas três mulheres capazes de tocar a Fonte Verdadeira e canalizar o Poder Único. Ninguém além de Min enxergava as outras coisas. Ninguém além de Min sabia que aquelas três mulheres iriam morrer. Todas no mesmo dia.
— A Amyrlin não pode receber a todos — explicou Faolain, mal escondendo a impaciência. — A próxima audiência pública é daqui a dez dias. Diga o que quer, e vou tentar arrumar uma reunião com a irmã que tiver mais condições de ajudar.
Min baixou os olhos para a trouxa em seus braços e os manteve ali, em parte para não precisar ver aquelas imagens outra vez. Todas elas! Luz! Qual era a probabilidade de três Aes Sedai morrerem no mesmo dia? Mas ela sabia. Sabia.
— Tenho o direito de falar com o Trono de Amyrlin. Em pessoa. — Embora existisse, era raro aquele direito ser exigido. Quem se atreveria? — Toda mulher tem esse direito, e eu o requisito.
— Você acha que o Trono de Amyrlin em pessoa pode receber todos que vêm à Torre Branca? Sem dúvida alguma outra Aes Sedai poderá ajudá-la. — Faolain enfatizava os títulos, como se para deixar Min constrangida. — Agora explique qual é a pergunta. E diga o seu nome, para que a noviça saiba por quem chamar.
— Meu nome é… Elmindreda. — Min estremeceu sem querer. Sempre odiara seu nome, mas a Amyrlin era uma das poucas pessoas ainda vivas que o conhecia. Se pelo menos ela se lembrasse. — Tenho o direito de falar com a Amyrlin. E minha pergunta é apenas para ela. Tenho esse direito.
A Aceita arqueou uma sobrancelha.
— Elmindreda? — Ela contorceu a boca em um sorriso divertido. — E você exige seus direitos. Muito bem. Vou avisar à Curadora das Crônicas que você deseja ver a Amyrlin em pessoa, Elmindreda.
Min quis dar um tapa na mulher pela forma como ela enfatizou o nome, mas em vez disso respondeu apenas, em um murmúrio forçado:
— Obrigada.
— Não me agradeça ainda. Não tenho dúvidas de que a Curadora levará horas para responder, e decerto dirá que você pode fazer essa pergunta à Mãe na próxima audiência pública. Aguarde com paciência. Elmindreda.
Ao se virar para sair, ela deu um sorriso falso, quase desdenhoso.
Rangendo os dentes, Min agarrou a trouxa e foi se encostar na parede entre dois arcos, onde tentou se mesclar à parede de pedra clara e ornamentada. Não confie em ninguém e evite ser notada até encontrar a Amyrlin, dissera Moiraine. Moiraine era a única Aes Sedai em quem ela confiava. Na maioria das vezes. De qualquer forma, era um bom conselho. Ela só precisava chegar até a Amyrlin, e tudo estaria terminado. Poderia recolocar as próprias roupas, rever as amigas e partir. Não precisaria se esconder.
Sentiu-se aliviada em notar que as Aes Sedai haviam ido embora. Três daquelas mulheres morrendo no mesmo dia. Era impossível, não havia outra palavra. Ainda assim, iria acontecer. Nada que ela fizesse ou dissesse poderia mudar isso — sempre que sabia o significado de uma das visões, esta acontecia — mas era preciso contar à Amyrlin a respeito. Talvez fosse tão importante quanto as notícias de Moiraine, embora fosse difícil acreditar.
Outra Aceita chegou para substituir Faolain, e Min visualizou barras flutuantes em volta do rosto bochechudo, como uma jaula. Sheriam, a Mestra das Noviças, olhou para o salão. Depois de uma espiadela, Min manteve o olhar fixo à pedra sob seus pés. Sheriam a conhecia bem demais. O rosto da Aes Sedai ruiva lhe apareceu ferido, cheio de escoriações. Era apenas a visão, naturalmente, mas Min precisou morder o lábio para sufocar o ruído de surpresa que quase soltou. Sheriam, com seu ar de autoridade e confiança inabalável, era tão indestrutível quanto a Torre. Nada poderia fazer mal a ela, tinha certeza. Mas algo faria.
Uma Aes Sedai que Min não conhecia, usando o xale da Ajah Marrom, levava à porta uma mulher robusta, vestida em lã vermelha da mais fina urdidura. A mulher caminhava com a leveza de uma garota, o rosto iluminado, quase rindo de satisfação. A irmã Marrom também sorria, mas sua aura era fraca como a chama de uma vela derretida.
Morte. Ferimentos, cativeiro e morte. Para Min, aquilo era tão claro que poderia muito bem estar escrito.
Ela baixou os olhos. Não queria ver mais nada. Que ela se lembre, pensou. Não se desesperara em qualquer momento da longa viagem desde as Montanhas da Névoa, nem mesmo nas duas ocasiões em que tentaram roubar seu cavalo, mas no momento estava desesperada. Luz, permita que ela se lembre do meu maldito nome.
— Senhora Elmindreda?
Min levou um susto. A noviça de cabelos negros parada à sua frente mal tinha idade para estar longe de casa, devia ter quinze ou dezesseis anos, mas se esforçava para manter a dignidade.
— Sim? Sou eu… Esse é o meu nome.
— Sou Sahra. Queira me acompanhar. — A voz aguda da menina adquiriu um tom de assombro. — O Trono de Amyrlin vai recebê-la em seu gabinete.
Min soltou um suspiro aliviado e seguiu a moça, ansiosa.
O capuz fundo do manto ainda cobria seu rosto, mas não a impedia de ver. Quanto mais via, maior a ansiedade por encontrar a Amyrlin. Poucas pessoas percorriam os amplos corredores que subiam em espiral, com o piso de azulejos em cores vivas, tapeçarias nas paredes e castiçais dourados — a Torre fora construída para abrigar um número muito maior de pessoas do que havia atualmente — mas quase todos com quem ela cruzava na subida exibiam uma imagem ou aura que indicava violência e perigo.
Guardiões passaram apressados, sem olhá-las, deslocando-se como lobos caçadores. As espadas que portavam eram apenas uma amostra de quanto eram letais, mas todos pareciam ter rostos ensanguentados e com feridas abertas. Espadas e lanças dançavam sobre suas cabeças, ameaçadoras. As auras lampejavam, tempestuosas, tremeluzindo à beira da morte, afiada como uma lâmina. Ela via homens mortos caminhando, e soube que morreriam no mesmo dia que as Aes Sedai do saguão de entrada, no máximo um dia depois. Até mesmo alguns servos, homens e mulheres ostentando a Chama de Tar Valon no peito, apressados em seus afazeres, exibiam sinais de violência. Uma Aes Sedai que passava por um corredor lateral parecia envolta em correntes suspensas no ar. Outra, que cruzava o corredor à frente de Min e a guia, nas poucas passadas que deu, aparentava usar uma coleira de prata ao redor do pescoço. Aquela visão fez Min prender a respiração. Ela quis gritar.
— A visão pode ser muito impressionante para quem nunca esteve aqui — comentou Sahra, não conseguindo soar como se a Torre já lhe fosse corriqueira como a aldeia onde nascera. — Mas aqui você está em segurança. O Trono de Amyrlin vai cuidar de tudo. — A voz virou um guincho quando ela mencionou a Amyrlin.
— Luz, permita que ela faça isso — murmurou Min.
A noviça lhe lançou o que deveria ser um sorriso consolador.
Quando as duas chegaram ao corredor do gabinete da Amyrlin, o estômago de Min se revirava, e ela estava quase chutando Sahra nos calcanhares, de tão depressa que ia. Apenas a necessidade de fingir que era uma estranha a impedia de avançar o restante do caminho em uma carreira.
Uma das portas para os aposentos da Amyrlin se abriu, e um jovem de cabelos louro-acobreados saiu andando a passos largos, quase atropelando Min e sua acompanhante. Ele era alto, forte e empertigado, usando um casaco azul com grossos bordados dourados na manga e na gola. Gawyn da Casa Trakand, filho da Rainha Morgase, de Andor, era o retrato de um jovem lorde orgulhoso. Um jovem lorde furioso. Min não teve tempo de baixar a cabeça, o rapaz já encarava seu rosto por baixo do capuz.
Ele arregalou os olhos, surpreso, depois apertou-os em dois filetes de azul gélido.
— Então você voltou. Sabe aonde foram minha irmã e Egwene?
— Elas não estão aqui? — Com uma onda de pânico, Min esqueceu-se de manter a compostura. Antes que percebesse o que fazia, tinha puxado as mangas de Gawyn e o encarava com um olhar premente, forçando-o a dar um passo para trás. — Gawyn, elas vieram para a Torre meses atrás! Elayne, Egwene e Nynaeve. Com Verin Sedai e… Gawyn, eu… eu…
— Fique calma — respondeu ele, soltando com delicadeza a mão que prendia seu casaco. — Luz! Não queria ter lhe assustado tanto. Elas chegaram em segurança. E não disseram uma palavra sobre onde estavam, ou por quê. Não para mim. Será que existe alguma mísera chance de você dizer? — Ela pensou que tinha mantido a expressão impassível, mas ele deu uma olhada e continuou: — Imaginei que não. Este lugar tem mais segredos que… Elas desapareceram outra vez. E Nynaeve também. — O nome da antiga Sabedoria veio como uma lembrança atrasada. Podia até ser amiga de Min, mas não significava nada para ele. A voz do rapaz começou a ficar outra vez ácida, mais severa a cada segundo. — E também sem dizer uma palavra. Nem uma palavra! Elas supostamente estão em alguma fazenda como castigo por terem fugido, mas não consigo descobrir onde. A Amyrlin não faz o favor de dar uma resposta direta.
Min fez uma careta. Por um instante, filetes de sangue seco transformaram o rosto do rapaz em uma máscara sombria. Ele parecia ter levado um golpe duplo de martelo. Suas amigas tinham ido embora — saber que estariam lá fora era um alento em relação a sua ida à Torre — e Gawyn seria ferido no dia da morte das Aes Sedai.
Apesar de tudo o que vira desde que adentrara a Torre e apesar do medo, nada daquilo a afetara pessoalmente, até então. O desastre que se abateria sobre a Torre se alastraria, chegando até bem longe de Tar Valon. Mas ela não pertencia à Torre, jamais pertenceria. Gawyn, no entanto, era alguém que ela conhecia, alguém de quem gostava. E ele seria mais ferido do que a visão de sangue professava, seus ferimentos iriam além da carne. Foi então que Min se deu conta de que, se uma catástrofe assolasse a Torre, não seriam apenas as Aes Sedai desconhecidas, mulheres de quem ela nunca se sentira próxima, que seriam feridas. Suas amigas também entrariam no meio. Elas pertenciam à Torre.
De certa forma, Min se sentia feliz por Egwene e as outras não estarem lá, feliz por não poder olhar para elas e ver possíveis sinais de morte. Mas queria ver seus rostos, só para ter certeza, olhar para as amigas e não ver nada, ou ver que viveriam. Pela Luz, onde elas estavam? Por que haviam partido? Conhecendo aquelas três, achava que, se Gawyn não sabia onde estavam, era possível que elas não quisessem que ele soubesse. Poderia ser isso.
De súbito, ela lembrou onde estava e por quê, e também que não estava sozinha com Gawyn. Sahra parecia ter se esquecido de que estava levando Min à Amyrlin. Só tinha olhos para o jovem lorde, para quem lançava olhares apaixonados que não eram notados. Ainda assim, não havia motivo para Min continuar fingindo ser uma estranha na Torre. Estava diante da porta da Amyrlin, nada mais poderia impedi-la.
— Gawyn, não sei onde elas estão, mas, se estiverem mesmo cumprindo pena em uma fazenda, devem estar suadas e cobertas de lama até os quadris. Nesse caso, você vai ser a última pessoa que elas vão querer que as veja. — Na verdade, não se sentia muito mais confortável do que Gawyn em relação à ausência das três. Muita coisa acontecera, muita coisa estava acontecendo, e muitas delas pareciam ligadas às três. Mas não era impossível que suas amigas estivessem sendo castigadas. — E você não vai ajudá-las se deixar a Amyrlin irritada.
— Não sei se elas estão em uma fazenda. Não sei nem mesmo se estão vivas. Por que tanto disfarce e dissimulação se elas estiverem apenas colhendo ervas? Se acontecer alguma coisa com a minha irmã… Ou com Egwene… — Ele franziu o rosto, olhando para as botas. — É meu dever cuidar de Elayne. Como vou protegê-la se nem sei onde ela está?
Min suspirou.
— Você acha que ela precisa de proteção? Acha que alguma delas precisa? — Se a Amyrlin as tivesse enviado em alguma missão, talvez precisassem. A Amyrlin era capaz de mandar uma mulher ao covil de um urso armada apenas de uma vareta, se isso servisse a seus propósitos. E ainda esperaria que a mulher retornasse com o couro do urso, ou o próprio animal acorrentado, conforme suas instruções. No entanto, dizer isso a Gawyn só o deixaria mais exaltado e preocupado. — Gawyn, elas têm um compromisso com a Torre. Não vão gostar se você se intrometer.
— Sei que Elayne não é mais criança — respondeu ele, com paciência. — Apesar de ela não se decidir se quer fugir como se ainda fosse ou se prefere brincar de ser Aes Sedai. Mas ela é minha irmã e, mais do que isso, é a Filha-herdeira de Andor. Depois da minha mãe, será Rainha. Andor precisa dela sã e salva para subir ao trono, não de outra Sucessão.
Brincar de ser Aes Sedai? Parecia que ele não tinha percebido o talento da irmã. Desde os primórdios da criação de Andor, as Filhas-herdeiras eram enviadas para receber treinamento na Torre, mas Elayne era a primeira com potencial suficiente para ser elevada a Aes Sedai, e uma Aes Sedai poderosa. Era provável que ele não soubesse que Egwene tinha a mesma força.
— Então quer dizer que você vai protegê-la, queira ela ou não? — Min fez a pergunta com uma voz impassível, tentando indicar que o rapaz estava cometendo um erro, mas ele assentiu, sem perceber a advertência.
— Esse é o meu dever desde o dia que ela nasceu. Meu sangue deve ser derramado antes do dela, minha vida deve ser entregue antes da dela. Fiz esse juramento quando ainda não tinha tamanho nem para enxergá-la no berço. Gareth Bryne teve que explicar o que as palavras significavam. Não vou quebrá-lo agora. Andor precisa dela mais do que de mim.
Ele falava com uma certeza tranquila, com a aceitação de algo correto e natural, o que provocou arrepios em Min. Sempre tinha considerado Gawyn um pouco infantil, risonho e implicante, mas ele parecia diferente. Ela achou que o Criador devia estar cansado quando chegara a hora de fazer os homens. Às vezes eles mal pareciam humanos.
— E Egwene? Qual foi o juramento que você fez em relação a ela?
Ele não alterou a expressão, mas remexeu os pés, receoso.
— Estou preocupado com Egwene, é claro. E com Nynaeve. Elayne pode sofrer o mesmo que suas companheiras. Imagino que as três ainda estejam juntas. Quando ainda estavam aqui, era raro ver uma sem as outras.
— Minha mãe sempre disse para me casar com um péssimo mentiroso, e você se qualifica para o posto. Só que eu acho que alguém já tem a preferência.
— Algumas coisas já foram traçadas — respondeu ele, muito calmo — outras não tem muita chance de acontecer. Galad está arrasado com a partida de Egwene.
Galad era meio-irmão de Gawyn. Os dois haviam sido enviados a Tar Valon para treinar com os Guardiões. Era outra tradição andoriana. Na opinião de Min, Galadedrid Damodred era um homem tão correto que isso chegava a ser um defeito, mas Gawyn não via nada de errado com o meio-irmão. E não revelaria seus sentimentos a uma mulher por quem Galad estivesse apaixonado.
Ela queria sacudi-lo e enfiar algum juízo em sua cabeça, mas não havia tempo. Não quando a Amyrlin esperava, não com o que ela tinha para dizer à Amyrlin. E certamente não com Sahra parada ali, independentemente de ela estar babando por ele.
— Gawyn, fui chamada pela Amyrlin. Onde posso lhe encontrar, depois que ela terminar de falar comigo?
— Estarei no pátio de treinamento. A única coisa capaz de me desviar das preocupações é dar uns golpes de espada com Hammar. — Hammar era um mestre espadachim, o Guardião instrutor. — Fico lá até o pôr do sol, quase todos os dias.
— Muito bem. Vou para lá assim que der. E tente tomar cuidado com o que diz. Se a Amyrlin ficar irritada com você, Elayne e Egwene também vão ficar.
— Isso eu já não posso prometer — retrucou ele, com firmeza. — Tem algo errado no mundo. Uma guerra civil em Cairhien. O mesmo, ou até pior, em Tarabon e Arad Doman. Falsos Dragões. Problemas e rumores de problemas por toda a parte. Não digo que a Torre está por trás disso tudo, mas nem mesmo aqui as coisas estão como deveriam. Ou como parecem. O sumiço de Elayne e Egwene não é tudo. Mesmo assim, é a parte que me preocupa. Vou descobrir onde elas estão. E, se estiverem machucadas… se estiverem mortas…
Ele fechou a cara, e, por um instante, seu rosto se transformou outra vez naquela máscara de sangue. E mais: uma espada flutuava por cima de sua cabeça, um estandarte tremulando ao fundo. A espada tinha o cabo longo, como a maioria das que eram usadas pelos Guardiões, além de uma garça gravada na lâmina ligeiramente curva. Min não sabia se ela pertencia a Gawyn, ou se era uma ameaça. O estandarte ostentava o símbolo de Gawyn, o Javali Branco em disparada, só que em um campo verde, em vez do vermelho de Andor. A espada e o estandarte sumiram junto com o sangue.
— Tome cuidado, Gawyn. — O que ela falava tinha um duplo sentido: o rapaz devia tomar cuidado com o que dizia, mas também precisava tomar cuidado com algo que Min não conseguia explicar nem a si mesma. — Você precisa tomar muito cuidado.
Os olhos do rapaz a perscrutaram, como se ele tivesse captado um pouco do significado mais profundo.
— Eu… vou tentar — disse, por fim. Então escancarou um sorriso, quase igual ao que ela se lembrava de ver em seu rosto, mas o esforço para mantê-lo era evidente. — Acho melhor eu voltar para o pátio de treinamento, se quiser me manter à altura de Galad. Consegui ganhar duas vezes de Hammar nas cinco disputas de hoje de manhã, mas Galad ganhou três da última vez que se deu ao trabalho de aparecer por lá. — De súbito, ele pareceu vê-la pela primeira vez, e o largo sorriso tornou-se genuíno. — Você deveria usar vestidos mais vezes. Fica muito bem assim. Não esqueça: vou ficar lá até o sol se pôr.
Enquanto ele se afastava, quase com a graça mortal de um Guardião, Min percebeu que alisava o vestido por cima dos quadris. Parou na mesma hora. Que a Luz queime todos os homens!
Sahra soltou um suspiro, como se tivesse passado o tempo todo prendendo a respiração.
— Ele é muito bonito, não é? — perguntou, imersa em devaneios. — Não tão bonito quanto Lorde Galad, é claro. E vocês se conhecem bem. — A frase saíra quase como pergunta, mas era metade afirmação.
Min reproduziu o suspiro da jovem. A garota falaria com as amigas no alojamento das noviças. O filho de uma rainha era assunto comum no mundo das fofocas, ainda mais se fosse bonito e se portasse como um herói dos contos dos menestréis. Uma mulher estranha só abria espaço para especulações interessantes. Mas ela não podia fazer nada. De qualquer modo, a essa altura, especulações não causariam mal algum.
— O Trono de Amyrlin deve estar se perguntando por que ainda não chegamos — comentou.
Sahra voltou a si com um olhar assustado e engoliu em seco. Agarrou a manga de Min e deu um pulo para abrir uma das portas, puxando a visitante atrás de si. No instante em que as duas entraram, a noviça se curvou em uma rápida mesura e gritou, em pânico:
— Trouxe a moça, Leane Sedai. A senhora Elmindreda? O Trono de Amyrlin queria vê-la?
A mulher alta de pele morena que ocupava a antessala usava a estola da Curadora das Crônicas, cujo tecido de um palmo de largura era azul, para mostrar de que Ajah ela fora elevada. Com as mãos na cintura, a mulher esperou a noviça terminar de falar e a dispensou em um tom áspero:
— Já demorou demais, criança. Retorne às suas tarefas.
Sahra fez outra mesura e saiu com a mesma ligeireza com que entrara.
Min continuava encarando o chão, o capuz ainda puxado sobre o rosto. O descuido diante de Sahra já fora terrível — pelo menos a noviça não sabia seu nome — mas Leane a conhecia melhor do que qualquer um na Torre, exceto pela Amyrlin. Min tinha certeza de que já não fazia diferença, mas, depois do que acontecera no corredor, pretendia seguir as instruções de Moiraine até ficar sozinha com a Amyrlin.
Dessa vez, suas precauções não adiantaram. Leane deu dois passos, puxou o capuz para trás e soltou um grunhido, como se tivesse acabado de levar um soco na boca do estômago. A jovem ergueu a cabeça e a encarou de volta com uma expressão desafiadora, tentando fingir que não tentara passar despercebida. A Curadora tinha cabelos lisos e escuros, apenas um pouco mais compridos que os da própria Min, e a expressão da Aes Sedai era um misto de surpresa e desgosto pela própria surpresa.
— Então você é Elmindreda, não é? — inquiriu Leane, com a voz ácida. Ela sempre falava assim. — Devo dizer que fica melhor nesse vestido do que nos… trajes… habituais.
— É só Min, Leane Sedai, por gentileza.
A garota tentou manter o rosto firme, mas era difícil não olhar feio. A voz da Curadora traía seu divertimento. Por que sua mãe tivera de dar à Min justo o nome de uma personagem histórica que passava a maior parte do tempo suspirando pelos homens, ou então os inspirando a compor músicas sobre seus olhos ou sorriso?
— Muito bem. Min. Não vou perguntar onde você esteve, nem por que voltou usando um vestido e, pelo que parece, querendo falar com a Amyrlin. Não agora, pelo menos. — Mas sua expressão indicava que ela pretendia perguntar tudo isso mais tarde e obter respostas. — Suponho que a Mãe saiba quem é Elmindreda? É claro. Eu devia ter percebido isso quando ela mandou que você entrasse logo e sozinha. Só a Luz sabe por que é que ela aguenta você. — Ela se obrigou a parar, fazendo uma careta de preocupação. — Qual é o problema, garota? Está doente?
Cautelosa, Min deixou o rosto inexpressivo.
— Não. Não, estou bem. — Por um momento, a Curadora a encarara através de uma máscara transparente de seu próprio rosto, uma máscara que parecia gritar. — Posso entrar agora, Leane Sedai?
Leane analisou a moça por mais um instante, depois inclinou a cabeça de um jeito brusco, indicando a câmara interna.
— Entre logo.
O pulo que Min deu para obedecê-la teria satisfeito até a capataz mais rígida.
O gabinete do Trono de Amyrlin fora ocupado por muitas mulheres importantes e poderosas ao longo dos séculos, e lembretes disso preenchiam o cômodo, desde a comprida lareira de Kandor, no momento apagada, toda de mármore dourado, até as paredes com painéis de madeira clara raiadas, duras como ferro, entalhadas com imagens de bestas magníficas e pássaros plumados. Os painéis haviam sido trazidos das misteriosas terras para além do Deserto Aiel havia mais de mil anos, e a lareira tinha o dobro da idade. A pedra vermelha polida no piso viera das Montanhas da Névoa. Compridas janelas em arco levavam a uma varanda. A pedra iridescente que as emoldurava brilhava como pérola, recuperada dos resquícios de uma cidade naufragada no Mar das Tempestades com a Ruptura do Mundo, e ninguém jamais vira qualquer coisa parecida.
No entanto, Siuan Sanche, a ocupante atual, era filha de pescadores de Tear, e a mobília que escolhera era simples, ainda que bem-acabada e muito lustrosa. A mulher estava sentada em uma cadeira robusta atrás de uma mesa tão simples que não se destacaria em uma casa de fazenda. A única outra cadeira do recinto, tão humilde quanto a primeira, ficava sempre em um dos cantos, mas no momento diante da mesa, por cima de um tapete taireno pequeno e simples, todo em tons de azul, marrom e dourado. Meia dúzia de livros jaziam abertos nos altos suportes de leitura pela sala. Isso era tudo. Um desenho fora pendurado acima da lareira: pequeninos barcos de pesca navegando por entre juncos nas Garras do Dragão, como o barco de seu pai.
À primeira vista, apesar das feições plácidas de Aes Sedai, a própria Siuan Sanche parecia tão simples quanto a mobília. Também era robusta, tinha uma beleza mais masculina e o único ornamento que usava era a larga estola do Trono de Amyrlin, com uma faixa colorida para cada uma das sete Ajahs. Sua idade era indefinida, assim como a de qualquer Aes Sedai: não havia sequer a sombra de um fio grisalho em seus cabelos negros. Mas os penetrantes olhos azuis pareciam não tolerar tolices, e o maxilar firme revelava a determinação da mulher mais jovem a ser escolhida Trono de Amyrlin. Por mais de dez anos, Siuan Sanche fora capaz de convocar governantes e outras pessoas de poder, e todos sempre vinham, por mais que odiassem a Torre Branca e temessem as Aes Sedai.
Enquanto a Amyrlin dava a volta na mesa, Min depositou a trouxa e começou a fazer uma estranha mesura, resmungando entre dentes, irritada por ter de fazê-lo. Não que desejasse faltar com o respeito — isso sequer passava pela cabeça de alguém diante de uma mulher como Siuan Sanche — mas sua reverência costumeira pareceria tola em um vestido, e ela tinha apenas uma leve ideia de como fazer uma mesura.
Meio agachada, com as saias abertas entre as mãos, ela congelou como um sapo de cócoras. Siuan Sanche estava ali parada, majestosa como qualquer rainha, mas por um instante também jazia no chão, nua. Além da ausência de roupas, havia algo de estranho na imagem, que desapareceu antes de Min conseguir entender o quê. Uma das visões mais fortes que já tivera, e ela não fazia ideia de seu significado.
— Tendo mais visões, é? — perguntou a Amyrlin. — Bem, eu com certeza posso fazer bom uso dessa sua habilidade. Poderia ter me valido dela todos os meses em que você esteve longe. Mas não vamos falar disso. O que está feito está feito. Há de ser o que a Roda tecer. — Ela deu um sorriso tenso. — Mas, se fugir de novo, arranco seu couro para fazer luvas. Levante-se, garota. Em um único mês, Leane já me impõe formalidades o bastante para durar um ano inteiro de qualquer mulher sensata. Não tenho tempo para isso. Não hoje em dia. Agora, o que foi que você acabou de ver?
Min se endireitou devagar. Era um alívio estar outra vez diante de alguém que sabia sobre seu dom, mesmo que fosse o Trono de Amyrlin em pessoa. Ela não precisava esconder o que via daquela mulher. Longe disso.
— A senhora estava… A senhora não estava usando roupas. Eu… Eu não sei o que isso significa, Mãe.
Siuan soltou uma risada curta e desconsolada.
— Com certeza quer dizer que vou arranjar um amante. Mas também não tenho tempo para isso. Não há tempo para paquerar homens quando se está ocupada tirando água do barco com um balde.
— Pode ser — respondeu Min devagar. Poderia significar aquilo, mas ela duvidava. — Eu simplesmente não sei. Mas, Mãe, ando vendo coisas desde que cheguei à Torre. Algo ruim vai acontecer, algo terrível.
Ela começou a falar com a Aes Sedai no hall de entrada e contou tudo o que vira, bem como o que cada coisa significava, pelo menos quando sabia. Entretanto, omitiu o que Gawyn dissera, ou pelo menos a maior parte: não faria sentido mandá-lo não irritar a Amyrlin se ela fizesse isso por ele. O restante, revelou da forma sombria como havia visto. Ao trazer tudo à tona e se deparar com as visões outra vez, um pouco de seu medo retornou. Antes mesmo de terminar, sua voz falhava.
A expressão da Amyrlin não se alterou.
— Então você falou com o jovem Gawyn — comentou, quando Min terminou o relato. — Bem, acho que posso convencê-lo a ficar de boca fechada. E, se bem me lembro de Sahra, a garota poderia fazer bom uso de um tempo de trabalho no campo. Ela não vai espalhar fofocas enquanto trabalha pesado em uma plantação.
— Eu não entendo — retrucou Min. — Por que é que Gawyn tem que ficar de boca fechada? A respeito de quê? Não contei nada a ele. E Sahra…? Mãe, talvez eu não esteja sendo muito clara. Aes Sedai e Guardiões vão morrer. Isso só pode significar uma batalha. E, a não ser que a senhora envie um monte de Aes Sedai e Guardiões… e servos, também vi servos mortos e feridos… A menos que a senhora faça isso, a batalha acontecerá aqui! Em Tar Valon!
— Você viu isso? — inquiriu a Amyrlin. — Uma batalha? Enxergou isso com esse seu… dom, ou é apenas suposição?
— O que mais poderia ser? Pelo menos quatro Aes Sedai estão à beira da morte. Mãe, vi apenas nove de vocês desde que voltei, e quatro vão morrer! E os Guardiões… o que mais poderia ser?
— Mais coisas do que eu gostaria de imaginar — respondeu Siuan, taciturna. — Quando? Quanto tempo temos antes que… isso… aconteça?
Min balançou a cabeça.
— Eu não sei. A maior parte ocorrerá em um período de um dia, talvez dois, mas pode ser amanhã, ou daqui a um ano. Ou dez.
— Vamos rezar para que sejam daqui a dez. Se acontecer amanhã, não há muito que eu possa fazer para impedir.
Min fez uma careta. Apenas duas Aes Sedai além de Siuan Sanche sabiam sobre o que ela era capaz de fazer: Moiraine e Verin Mathwin, que tentara estudar seu dom. Ninguém entendia mais do que ela como a coisa funcionava, só sabiam que nada tinha a ver com o Poder. Talvez fosse por isso que apenas Moiraine parecia capaz de aceitar o fato de que, quando Min sabia o que uma visão significava, a visão acontecia.
— Talvez sejam os Mantos-brancos, Mãe. Eles estavam por toda Alindaer, quando cruzei a ponte. — Não acreditava que os Filhos da Luz tivessem qualquer coisa a ver com o que estava por vir, mas sentia-se relutante em afirmar no que de fato acreditava. Acreditava, mas não sabia. Mesmo assim, era ruim o bastante.
No entanto, a Amyrlin já começara a balançar a cabeça antes mesmo de ela terminar.
— Eles tentariam algo se pudessem, não tenho dúvidas. Adorariam atacar a Torre. Mas Eamon Valda não vai agir sem ordens claras do Senhor Capitão Comandante, e Pedron Niall não vai atacar sem ter certeza de que estamos fragilizadas. Ele conhece nossa força bem demais para dar uma de bobo. Os Mantos-brancos agiram dessa forma por mil anos. São como lúcios à espreita nos juncos, ansiando por sangue Aes Sedai na água. Mas nós ainda não deixamos cair uma gota sequer, nem deixaremos, se eu puder evitar.
— Mas, se Valda tentasse algo por conta própria…
Siuan a interrompeu.
— Ele não tem mais de quinhentos homens perto de Tar Valon, garota. Mandou o restante embora semanas atrás para arrumar problemas em outro canto. As Muralhas Reluzentes resistiram aos Aiel. E a Artur Asa-de-gavião. Valda nunca invadiria Tar Valon, a não ser que a cidade já estivesse ruindo por dentro. — Ela prosseguiu, sem alterar o tom: — Você quer que eu acredite que o problema partirá dos Mantos-brancos. Por quê? — Não havia delicadeza em sua voz.
— Porque eu quero acreditar nisso — resmungou Min. Ela umedeceu os lábios e proferiu as palavras que não queria dizer. — A coleira prateada que eu vi numa das Aes Sedai. Mãe, parecia… Parecia uma das coleiras que… os Seanchan usam para… controlar as mulheres capazes de canalizar. — Sua voz foi morrendo enquanto a boca de Siuan se contorcia de desgosto.
— Imundícies — rosnou a Amyrlin. — Além disso, a maioria das pessoas não acredita em um quarto do que se diz sobre os Seanchan. Mas há mais riscos com os Mantos-brancos. Se os Seanchan atracarem outra vez por aqui, um pombo virá me avisar em poucos dias, e Tar Valon fica muito distante do mar. Se eles reaparecerem, receberei muitos avisos. Não, acho que você viu algo muito pior que os Seanchan. Temo que só possa ser a Ajah Negra. São poucas de nós que sabem a respeito delas, e não gosto de pensar no que acontecerá quando a história se espalhar, mas elas são a maior ameaça à Torre, no momento.
Min percebeu que apertava a saia com tanta força que sentia dor na mão. A boca estava completamente seca. A Torre Branca sempre negara a existência de uma Ajah oculta, dedicada ao Tenebroso. A melhor maneira de irritar uma Aes Sedai era mencionar uma coisa dessas. O fato de a própria Amyrlin falar sobre a Ajah Negra de forma tão natural fez Min gelar.
A Amyrlin prosseguiu, como se não tivesse falado nada demais:
— Bem, você não viajou até aqui só para revelar essas visões. Trouxe algum recado de Moiraine? Fiquei sabendo do caos, para dizer o mínimo, que se espalha de Arad Doman a Tarabon. — De fato, aquilo era o mínimo: os homens que apoiavam o Dragão Renascido lutavam contra os que se opunham a ele, e os dois países haviam entrado em guerra civil ao mesmo tempo em que lutavam entre si pelo domínio da Planície de Almoth. O tom de Siuan reduzia tudo aquilo a um detalhe. — Mas já faz meses que não ouço notícias de Rand al’Thor. Ele é o foco disso tudo. Onde é que ele está? O que é que Moiraine o mandou fazer? Sente-se, garota. Sente-se.
Ela apontou para a cadeira diante da mesa.
Min se aproximou da cadeira com as pernas bambas e quase desabou nela. A Ajah Negra! Ah, Luz! Aes Sedai deveriam ser representantes da Luz. Ainda que não confiasse muito nelas, isso era verdade. As Aes Sedai e todo o poder que tinham eram empenhados em defesa da Luz, combatendo a Sombra. No entanto, isso já não era verdade. Ela mal ouviu a si mesma dizendo:
— Ele está indo para Tear.
— Tear! É Callandor, então. Moiraine quer que ele tire a Espada Que Não Pode Ser Tocada da Pedra de Tear. Juro que vou pendurar essa mulher no sol e fazer carne-seca com o couro dela! Vou fazê-la desejar ser noviça outra vez! Ele ainda não está pronto para isso!
— Não foi… — Min fez uma pausa para limpar a garganta. — Não foi Moiraine quem mandou. Rand saiu sozinho no meio da noite. Os outros foram atrás dele, e Moiraine me enviou para avisar à senhora. Pode ser que, a essa altura, eles já estejam em Tear. Até onde sei, pode ser que ele já esteja com Callandor nas mãos.
— Que o queime! — vociferou Siuan. — Ele pode estar morto, a essa altura! Queria que ele jamais tivesse ouvido sequer uma palavra das Profecias do Dragão. Se eu pudesse impedi-lo de ouvir mais alguma, impediria.
— Mas ele não precisa cumprir as Profecias? Não estou entendendo.
A Amyrlin inclinou-se na mesa, exaurida.
— Como se alguém entendesse a maioria delas! Não são as Profecias que fazem dele o Dragão Renascido, basta que ele próprio reconheça isso. E, se ele foi atrás de Callandor, deve ter reconhecido. As Profecias servem para anunciar ao mundo quem ele é, para prepará-lo para o que está por vir, e também preparar o mundo. Se Moiraine conseguir manter algum controle sobre ele, vai guiá-lo em direção às Profecias das quais temos certeza, mas só quando ele estiver pronto para enfrentá-las! No mais, confiamos que o que ele faz seja suficiente. Esperamos. Até onde eu sei, ele já cumpriu Profecias que nenhum de nós é capaz de compreender. Queira a Luz que isso seja o bastante.
— Então você quer mesmo controlá-lo. Ele disse que vocês duas tentariam usá-lo, mas é a primeira vez que a ouço admitir. — Min sentiu um calafrio. Irritada, acrescentou: — Vocês não têm feito um bom trabalho em relação a isso.
O cansaço de Siuan pareceu desaparecer de seus ombros. Ela se endireitou e continuou olhando para Min.
— Seria sábio da sua parte desejar que conseguíssemos. Você acha que poderíamos simplesmente deixar Rand à solta? Teimoso, cabeça-dura, destreinado, despreparado, talvez até começando a enlouquecer. Acha que poderíamos confiar a vida dele ao Padrão, ao seu próprio destino, como em alguma história? Isso não é uma história, e ele não é nenhum herói invencível. Se sua trama for removida do Padrão, a Roda do Tempo não dará por falta dele, e o Criador não fará nenhum milagre para nos salvar. Se Moiraine não for capaz de içar velas e freá-lo, ele pode acabar se matando, e o que será de nós? O que será do mundo? A prisão do Tenebroso está enfraquecendo. Ele vai tocar o mundo outra vez, é apenas questão de tempo. Se Rand al’Thor não estiver aqui para enfrentá-lo na Última Batalha, se esse rapaz tolo e teimoso acabar se matando primeiro, o mundo estará condenado. A Guerra do Poder acontecerá outra vez, mas sem Lews Therin e seus Cem Companheiros. Depois, fogo e sombras, para sempre. — Ela parou de falar de repente, olhando para o rosto de Min. — Então é assim que o vento sopra, não é? Você e Rand. Não esperava por isso.
Min balançou a cabeça vigorosamente, sentindo as bochechas ficarem vermelhas.
— É claro que não! Eu estava… É a Última Batalha. E o Tenebroso. Luz, só pensar no Tenebroso à solta deve ser o bastante para gelar um Guardião. E a Ajah Negra…
— Não tente disfarçar — interrompeu a Amyrlin com rispidez. — Acha que é a primeira vez que eu vejo uma mulher temendo pela vida de seu homem? É melhor você admitir logo.
Min se remexeu na cadeira. Os olhos de Siuan a encaravam, mordazes, astutos e impacientes.
— Está bem — murmurou, por fim. — Vou contar tudo à senhora, o que fará muito bem a nós duas. Da primeira vez que vi Rand, pude enxergar os rostos de três mulheres, e um deles era o meu. Eu nunca vira nada a meu respeito antes, e isso não se repetiu, mas na mesma hora soube o significado. Eu me apaixonaria por ele. Nós três nos apaixonaríamos.
— Três. As outras duas. Quem são?
Min abriu um sorriso amargo.
— Os rostos estavam embaçados. Não sei quem são.
— E nada indica que ele vai corresponder a esse amor?
— Nada! Ele nunca olhou para mim direito. Acho que me vê como… Como uma irmã. Então não pense que pode me usar para segurar as rédeas dele, porque não vai funcionar!
— Mas você o ama.
— Eu não tenho escolha. — Min tentou suavizar o tom emburrado da voz. — Tentei tratar essa história como uma brincadeira, mas já não consigo rir. A senhora pode não acreditar em mim, mas quando sei o que uma coisa significa, essa coisa acontece.
A Amyrlin tamborilou os dedos nos lábios e observou Min, contemplativa.
Aquele olhar era preocupante. Min não tivera a intenção de se expor ao ridículo ou de revelar tanto. Não contara tudo, mas sabia que, àquela altura, já deveria ter aprendido a não dar qualquer vantagem a uma Aes Sedai, ainda que não fosse capaz de entender como ela a usaria. Aes Sedai eram peritas em encontrar usos para as informações que tinham.
— Mãe, dei o recado de Moiraine e contei tudo o que sei sobre o significado das minhas visões. Não há motivo para eu não poder vestir minhas roupas e ir embora.
— Vai para onde?
— Tear. — Depois de falar com Gawyn, de tentar garantir que ele não faria nada estúpido. Desejou ter a coragem de perguntar aonde Egwene e as outras duas tinham ido, mas, se a Amyrlin não contara ao irmão de Elayne, era pouco provável que contasse a ela. E Siuan Sanche ainda tinha aquele peso no olhar. — Ou aonde Rand estiver. Posso estar agindo como uma idiota, mas não sou a primeira a fazer isso por um homem.
— Mas é a primeira a agir como idiota por causa do Dragão Renascido. Será perigoso ficar perto de Rand al’Thor depois que o mundo descobrir quem e o que ele é. E, se ele estiver de posse de Callandor, o mundo muito em breve descobrirá. Metade vai querer matá-lo de qualquer modo, como se isso pudesse impedir a Última Batalha, impedir a libertação do Tenebroso. Muitos morrerão ao lado dele. Pode ser melhor que você fique aqui.
A Amyrlin soava solidária, mas Min achou que fosse falso. Não acreditava que Siuan Sanche fosse capaz de solidariedade.
— Vou correr o risco, talvez eu possa ajudá-lo. Com as minhas visões. Não é como se a Torre fosse assim tão mais segura, não enquanto ainda houver irmãs Vermelhas por aqui. Quando virem um homem capaz de canalizar, esquecerão a Última Batalha e as Profecias do Dragão.
— Muitos outros farão o mesmo — interrompeu Siuan, calma. — É difícil abandonar antigos pontos de vista, para todo mundo, inclusive para as Aes Sedai.
Min lançou um olhar intrigado à mulher. Ela parecia estar tomando seu lado.
— Não é segredo que sou amiga de Egwene e Nynaeve, e também não é segredo que elas são da mesma aldeia de Rand. Para a Ajah Vermelha, isso já será suficiente. Quando a Torre descobrir o que ele é, provavelmente serei presa no mesmo dia. Assim como Egwene e Nynaeve, se a senhora não as tiver escondido em algum lugar.
— Então você não pode ser reconhecida. Não se pega um peixe capaz de ver a rede. Sugiro que deixe de usar os casacos e calças por um tempo. — A Amyrlin deu um sorriso que parecia o de um gato para um rato.
— E qual é o peixe que a senhora espera capturar comigo de isca? — perguntou Min, a voz fraca.
Achava que sabia e desejou desesperadamente estar errada.
Seu desejo não impediu as palavras da Amyrlin:
— A Ajah Negra. Treze delas fugiram, mas temo que algumas tenham ficado. Não sei em quem posso confiar. Por um tempo, não confiei em ninguém. Você não é Amiga das Trevas, sei disso, e esse seu dom pode ser de alguma ajuda. Na pior das hipóteses, você seria apenas mais um par de olhos confiáveis.
— A senhora estava planejando isso desde a hora em que eu entrei, não é mesmo? É por isso que quer manter Gawyn e Sahra quietos. — A raiva crescia dentro de Min como vapor em uma chaleira. A mulher dizia “sapo” e esperava que os outros saíssem pulando. E o fato de isso geralmente acontecer só piorava as coisas. Ela não era um sapo, não era uma marionete dançante. — Foi isso o que a senhora fez com Egwene, Elayne e Nynaeve? Mandou as três atrás da Ajah Negra? Não duvido nada!
— Cuide das suas próprias redes, criança, e deixe as garotas cuidarem das delas. No que lhe diz respeito, elas estão cumprindo pena numa fazenda. Fui clara?
Aquele olhar inabalável fez Min se remexer na cadeira. Era fácil desafiar a Amyrlin — até ela começar a encarar com aqueles olhos azuis, frios e penetrantes.
— Sim, Mãe. — A submissão em seu tom de voz lhe causou um certo rancor, mas bastou um olhar para a Amyrlin se convencer a não levar aquilo adiante. Ela puxou a lã delicada do vestido. — Acho que não vou morrer se usar isso aqui por mais algum tempo.
De súbito, Siuan pareceu bem contente. Min sentiu os pelos do pescoço se eriçarem.
— Temo que não seja suficiente. Min de vestido ainda é Min de vestido, para quem observar com atenção. Não dá para você passar o tempo todo com o capuz levantado. Não, é preciso mudar tudo o que for possível. Em primeiro lugar, você continuará a atender por Elmindreda. Afinal de contas, esse é o seu nome. — Min estremeceu. — Seus cabelos estão quase do tamanho dos de Leane, o que é um bom comprimento para fazer cachos. Quanto ao resto… Eu nunca gostei de rouge, pó e pintura, mas Leane ainda se lembra de como usá-los.
Os olhos de Min se arregalavam a cada palavra, desde a menção dos cachos.
— Ah, não — soltou, espantada.
— Ninguém vai confundi-la com a Min que usa calças depois que Leane transformá-la em uma perfeita Elmindreda.
— Ah, NÃO!
— Quanto ao motivo pelo qual você permanecerá na Torre… precisamos de algo adequado a uma mocinha tola que em nada se parece ou age como Min. — A Amyrlin franziu a testa, pensativa, ignorando os esforços de Min para interrompê-la. — Sim. Vou deixar correr a notícia de que a Senhorita Elmindreda conseguiu encorajar os avanços de dois pretendentes a tal ponto que precisará se esconder dos rapazes aqui na Torre até conseguir decidir qual prefere. Algumas poucas mulheres ainda pedem abrigo todos os anos, e às vezes por razões tão bobas quanto essa. — Seu rosto ficou sério, e os olhos se aguçaram. — Se ainda estiver pensando em Tear, reconsidere. Considere se será mais útil a Rand lá, ou aqui. Se a Ajah Negra destruir a Torre, ou pior, tomar o controle, ele perderá até a pouca ajuda que posso dar. Você é uma mulher, ou uma garotinha apaixonada?
Sem escapatória. Min podia ver claramente a corrente em sua perna.
— A senhora sempre consegue convencer os outros, Mãe?
Dessa vez, o sorriso da Amyrlin saiu ainda mais frio.
— Quase sempre, criança. Quase sempre.
Mexendo no xale de franjas vermelhas, Elaida encarava, pensativa, a porta do gabinete da Amyrlin, pelo qual as duas jovens haviam desparecido. A noviça reapareceu quase no mesmo instante, olhou para a Aes Sedai e baliu como uma ovelha assustada. Elaida pensou tê-la reconhecido, embora não conseguisse lembrar o nome da garota. Tinha coisas mais importantes a fazer do que ensinar crianças imprestáveis.
— Seu nome?
— Sahra, Elaida Sedai. — A resposta da garota saiu em um guincho aflito. Elaida podia não ter interesse nas noviças, mas as garotas conheciam a Aes Sedai e sua reputação.
Então ela se lembrou da garota. Uma avoada com habilidade medíocre que jamais teria poder real. Era difícil que ela soubesse qualquer coisa além do que Elaida já vira e ouvira — ou que se lembrasse de algo além do sorriso de Gawyn, para dizer a verdade. Uma tola. Elaida a dispensou com um gesto.
A garota se curvou em uma mesura tão profunda que seu rosto quase tocou os azulejos do chão, depois saiu em disparada.
Elaida não a viu partir. A irmã Vermelha já dera as costas, esquecendo a noviça. Enquanto seguia pelo corredor, o rosto plácido não exibia uma linha sequer, mas os pensamentos fervilhavam. Ela sequer notara as serviçais, noviças e Aceitas que desviavam de seu caminho, inclinando-se em mesuras ao vê-la passar. Em dado momento, quase trombou com uma irmã Marrom que andava com a cara enfiada em um monte de anotações. A Marrom roliça deu um pulo para trás, soltando um ganido assustado que Elaida mal ouviu.
Com ou sem vestido, ela conhecia a jovem que entrara para ver a Amyrlin. Era Min, que, por alguma razão misteriosa, passara muito tempo com a Amyrlin na primeira visita que fizera à Torre. Min, muito amiga de Elayne, Egwene e Nynaeve. A Amyrlin estava escondendo o paradeiro daquelas três. Elaida tinha certeza. Todas as informações de que estavam cumprindo pena em uma fazenda haviam passado por três ou quatro bocas desde Siuan Sanche, distância mais do que suficiente para encobrir qualquer mentira. Sem mencionar o fato de que todos os seus consideráveis esforços para encontrar essa fazenda haviam sido em vão.
— Que a Luz a queime!
Por um instante, a raiva estampou seu rosto. Ela não sabia ao certo se falava de Siuan Sanche ou da Filha-herdeira. Qualquer uma serviria. Uma Aceita esguia ouviu suas palavras e a encarou, tão branca quanto o vestido que usava. Elaida continuou avançando a passos largos, sem nem reparar na jovem.
Além de tudo, estava furiosa por não conseguir encontrar Elayne. Ela às vezes tinha a capacidade de prever eventos futuros. Apesar de fracas e eventuais, as Previsões ainda eram mais do que qualquer Aes Sedai fizera nesse quesito desde Gitara Moroso, que morrera havia vinte anos. A primeira Previsão de Elaida — quando ainda era Aceita e já sabia o bastante para manter a discrição — fora que a Linhagem Real de Andor seria a chave para derrotar o Tenebroso na Última Batalha. Procurara uma posição próxima de Morgase assim que ficou claro que ela subiria ao Trono, e construíra sua influência com muita paciência, ano após ano. Agora, tanto esforço e sacrifício — poderia ter sido Amyrlin, se não tivesse concentrado todas as energias em Andor — talvez acabassem em nada, pois Elayne estava desparecida.
Com dificuldade, voltou a pensar no que era importante naquele momento. Egwene e Nynaeve pertenciam à mesma aldeia que aquele rapaz estranho, Rand al’Thor. E Min também o conhecia, por mais que tivesse tentado esconder o fato. Rand al’Thor estava no centro de tudo.
Elaida só vira uma vez o suposto pastor de Dois Rios, distrito de Andor, que tinha feições idênticas às de um Aiel. A Previsão viera logo que pusera os olhos no rapaz. Ele era ta’veren, um dos raros indivíduos que, em vez de serem tecidos no Padrão conforme a escolha da Roda do Tempo, forçavam o Padrão a se moldar em torno deles, pelo menos por um tempo. Elaida vira, ao redor de Rand, um turbilhão de caos, que incluía briga e cisão em Andor e talvez em outros pontos do mundo. Andor precisava ser mantida intacta, não importava o que acontecesse. Sua primeira Previsão a convencera disso.
Havia mais tramas, o suficiente para capturar Siuan em sua própria rede. Se os rumores fossem verdadeiros, havia três ta’veren, não um. Todos da mesma aldeia, o tal Campo de Emond, e todos da mesma idade, o que era estranho o bastante para gerar falatório dentro da Torre. Na viagem de Siuan até Shienar, quase um ano antes, vira a todos e até falara com eles. Rand al’Thor. Perrin Aybara. Matrim Cauthon. Diziam que era mera coincidência. Apenas um acaso fortuito. Era o que diziam. Os que afirmavam isso não sabiam tanto quanto Elaida.
Quando Elaida viu o jovem, al’Thor estava acompanhado de Moiraine, que o levara embora de sua aldeia. Moiraine o escoltara, junto com os outros dois ta’veren, até Shienar. Moiraine Damodred, que fora melhor amiga de Siuan Sanche quando as duas eram noviças. Se Elaida fosse o tipo de pessoa que faz apostas, teria apostado que mais ninguém na Torre se lembrava daquela amizade. No dia em que as duas foram elevadas a Aes Sedai, no fim da Guerra dos Aiel, Siuan e Moiraine se afastaram e começaram a se comportar quase como estranhas. Porém, Elaida fora uma das Aceitas acima delas, quando noviças. Como bem lembrava, ensinara lições e punira as duas pela indolência com as tarefas. Mal podia acreditar que a trama das duas tivesse começado tanto tempo antes — al’Thor não devia ter nascido muito antes disso — mas esse era o último elo que ligava a todos. Para ela, era o bastante.
Fosse lá o que Siuan estivesse aprontando, precisava ser impedido. Desordem e caos se multiplicavam por todos os cantos. Era certo que o Tenebroso se libertaria — só de pensar, Elaida estremeceu e fechou um pouco mais o xale que a envolvia — e a Torre teria de manter distância das contendas mundanas para conseguir enfrentá-lo. A Torre teria de estar livre para puxar os cordéis que manteriam as nações unidas, livre dos problemas que Rand al’Thor pudesse causar. De alguma forma, era preciso impedi-lo de destruir Andor.
Ela não contara a ninguém o que sabia sobre al’Thor. Pretendia lidar com ele sem alarde, se fosse possível. O Salão da Torre já se manifestara a respeito de observar e até guiar esses ta’veren. Ninguém concordaria em se livrar deles, nem desse em particular, como era preciso fazer. Pelo bem da Torre. Pelo bem do mundo.
Ela fez um som com a garganta que soou muito próximo de um rosnado. Siuan sempre fora teimosa, mesmo quando noviça, sempre se considerara muito importante para a filha de um humilde pescador, mas como ela poderia ser tola a ponto de envolver a Torre naquilo sem informar ao Salão? A Amyrlin sabia, tanto quanto qualquer um, o que estava por vir. A única forma de tudo piorar seria se…
Elaida parou de repente, encarando o nada. Seria possível que esse Rand al’Thor fosse capaz de canalizar? Ou que algum dos outros o fizesse? Era mais provável que fosse al’Thor. Não. Com certeza não era isso. Nem mesmo Siuan tocaria um homem desses. Ela não poderia.
— E quem é que sabe o que essa mulher é capaz de fazer? — resmungou. — Ela nunca foi digna de ser Trono de Amyrlin.
— Falando sozinha, Elaida? Sei que vocês, Vermelhas, não têm amigos fora da própria Ajah, mas deve haver alguém de lá com quem você possa conversar.
Elaida virou a cabeça para responder a Alviarin. A Aes Sedai com pescoço de cisne a encarou com a frieza insuportável que era marca da Ajah Branca. Não havia muito amor entre Vermelhas e Brancas, havia mil anos as Ajahs ocupavam lados opostos do Salão da Torre. As Brancas apoiavam as Azuis, e Siuan fora uma Azul. Mas as Brancas se orgulhavam de sua impassível sensatez.
— Me acompanhe — pediu Elaida.
Alviarin hesitou antes de se pôr ao lado dela.
A princípio, a irmã Branca arqueou a sobrancelha afrontosa ao que Elaida tinha a dizer em relação a Siuan, mas, antes do fim da conversa, já ostentava o cenho franzido em concentração.
— Você não tem como provar qualquer coisa… imprópria — disse, quando Elaida enfim se calou.
— Por enquanto, não — respondeu Elaida, com firmeza.
Quando Alviarin assentiu, ela se permitiu abrir um sorriso tenso. Era um começo. De um jeito ou de outro, Siuan seria detida antes de conseguir destruir a Torre.
Bem escondido entre um grupo de folhas-de-couro acima da margem norte do Rio Taren, Dain Bornhald jogou o manto branco para trás, o sol dourado e flamejante estampado no peito, e ergueu o rígido tubo de couro da luneta até o olho. Uma nuvem de pequenos picadinhas zuniu ao seu redor, mas ele os ignorou. Na aldeia de Barca do Taren, do outro lado do rio, era possível ver as compridas casas de pedra erguidas sobre fundações altas, como proteção contra as cheias que ocorriam toda primavera. Os aldeões, debruçados nas janelas ou parados no pé das escadas, observavam os trinta cavaleiros de mantos brancos em seus cavalos, em reluzentes placas e malhas. Uma delegação de homens e mulheres da aldeia estava se reunindo com os cavaleiros. Ou melhor, estavam escutando Jaret Byar, pelo que Bornhald podia ver, o que era muito melhor.
Bornhald quase podia ouvir a voz do pai. Deixe que eles pensem que há uma chance, e algum tolo tentará arriscar. Então haverá mortes, outro tolo tentará vingar o primeiro e haverá mais mortes. Incuta neles, desde o primeiro momento, o temor à Luz, deixe que saibam que ninguém será ferido se todos seguirem as ordens, então não terá problemas.
Enrijeceu o maxilar ao lembrar do pai, já morto. Ele faria algo a respeito, e em breve. Estava certo de que apenas Byar sabia por que ele não hesitara em aceitar o comando, por que concentrara os esforços em um distrito quase esquecido no interior de Andor, e Byar seguraria a língua. O homem se dedicara ao pai de Dain como um sabujo e transferira toda aquela lealdade a ele. Bornhald não hesitara em nomear Byar seu segundo em comando quando Eamon Valda lhe concedera a autoridade.
Byar virou o cavalo e seguiu de volta até a barca. Na mesma hora, os barqueiros a jogaram no rio e começaram a puxá-la por pesadas cordas lançadas sobre a água, que fluía depressa. Byar olhou de relance para os homens na corda. Eles lhe lançaram um olhar nervoso enquanto cruzavam a barca a passos pesados, depois trotaram de volta para pegar o cabo outra vez. Tudo parecia bem.
— Lorde Bornhald?
Bornhald baixou a luneta e virou a cabeça. O homem de rosto solene que surgira ao seu lado permanecia rígido, olhando à frente por baixo de um elmo cônico. Mesmo depois da difícil viagem desde Tar Valon — e Bornhald avançara cada milha com vigor — a armadura dele brilhava com a mesma intensidade do manto alvo com o raio de sol dourado.
— Sim, Filho Ivon?
— O Centurião Farran foi quem me enviou, meu senhor. São os latoeiros. Ordeith estava falando com três deles, meu senhor, e agora os três desapareceram.
— Sangue e cinzas! — Bornhald deu meia-volta e retornou para o meio das árvores a passos pesados, com Ivon atrás de si.
Fora do alcance do rio, cavaleiros de mantos brancos aguardavam entre as folhas-de-couro e os pinheiros, as lanças erguidas com familiaridade displicente, ou descansando os arcos sobre os cepilhos das selas. Os cavalos batiam os cascos e remexiam os rabos com impaciência. Os cavaleiros esperavam de forma um pouco mais impassível. Não seria a primeira vez que cruzariam um rio para adentrar território estrangeiro, e dessa vez não haveria ninguém para impedi-los.
Em uma grande clareira depois dos homens montados havia uma caravana dos Tuatha’an, o Povo Errante. Latoeiros. Quase cem carroções puxados por cavalos, mais casinhas quadradas sobre rodas, formavam uma grotesca mistura de cores em vermelho, verde, amarelo e todos os matizes imagináveis que apenas os olhos de um latoeiro poderiam apreciar. As roupas daquela gente faziam os carroções parecerem apagados. Eles permaneciam sentados no chão, em grupos, observando os cavaleiros de forma inquieta e ao mesmo tempo estranhamente serena. O choro de uma criança logo foi silenciado pela mãe. Ali perto, havia uma pilha de mastins mortos já rodeada de moscas zunindo. Latoeiros não erguiam a mão nem para defender a si próprios, e os cães não eram realmente ferozes, mas Bornhald não estava disposto a correr o risco.
Seis homens era tudo o que julgara necessário para vigiar os latoeiros. Mesmo de rostos rígidos, pareciam acanhados. Ninguém notara o sétimo homem a cavalo, parado perto dos carroções. Um homenzinho ossudo e de nariz pronunciado, vestido em um casaco cinza-escuro que, apesar de ser de corte fino, parecia grande demais para ele. Farran, um homem barbado que mais parecia um rochedo, mas de pés leves, apesar da altura e largura do dono, mantinha os olhos cravados em todos os sete. O centurião levou ao peito a mão protegida por uma manopla, mas deixou que Bornhald falasse.
— Uma palavra com o senhor, Mestre Ordeith — chamou Bornhald, baixinho. O homem ossudo inclinou a cabeça, encarando Bornhald por um longo instante antes de descer do cavalo. Farran grunhiu, mas Bornhald manteve a voz baixa. — Três dos latoeiros estão desaparecidos, Mestre Ordeith. Por acaso o senhor pôs sua própria sugestão em prática?
As primeiras palavras que saíram da boca de Ordeith, quando viu os latoeiros, haviam sido: “Matem todos. Não servem para nada.” Bornhald já matara sua cota de homens, mas jamais com a displicência que o homenzinho demonstrara.
Ordeith esfregou um dedo no largo nariz.
— Ora, por que eu os mataria? Ainda mais depois da sua reação à mera sugestão que fiz. — O sotaque de Lugard estava bem forte. Ele ia e vinha sem que o homem parecesse perceber, outra coisa a respeito do sujeito que inquietava Bornhald.
— Então o senhor permitiu que fugissem, não foi?
— Bem, quanto a isso, levei alguns deles para onde pudesse descobrir o que sabiam. Sem ser interrompido, compreende?
— E o que eles sabiam? O que de útil, sob a Luz, os latoeiros podem saber?
— Não há como sabermos sem perguntar, não é mesmo? — retrucou Ordeith. — Não machuquei muito nenhum deles. Depois mandei que retornassem aos carroções. Quem poderia pensar que os três teriam coragem de fugir com tantos dos seus homens por aí?
Bornhald percebeu que rangia os dentes. A ordem que recebera fora de fazer o melhor tempo possível para chegar até esse sujeitinho estranho, que teria mais ordens para ele. Bornhald não apreciava nenhuma delas, embora as ordens portassem o selo e a assinatura de Pedron Niall, Senhor Capitão Comandante dos Filhos da Luz.
Muita coisa ficara sem explicação, inclusive a posição de Ordeith. O homenzinho estava ali para aconselhar Bornhald, e Bornhald deveria cooperar com ele. Porém, era pouco claro se Ordeith estava sob seu comando, e ele não apreciava a insinuação de que deveria seguir os conselhos do sujeito. Até mesmo o motivo de enviar tantos Filhos àquele fim de mundo era vago. Descobrir Amigos das Trevas, naturalmente, e espalhar a Luz. Isso não era necessário dizer. No entanto, havia quase meia legião em solo andoriano sem permissão — o comando correria um risco enorme se a informação chegasse à Rainha, em Caemlyn. Era coisa demais para valer a pena, considerando as poucas respostas que Bornhald recebera.
Tudo sempre voltava a Ordeith. Bornhald não entendia como o Senhor Capitão Comandante podia confiar naquele sujeito cheio de sorrisos dissimulados, mau humor e encaradas arrogantes, que nunca deixavam claro com que tipo de homem se estava lidando. Sem mencionar o sotaque, que mudava bem no meio da frase. Os cinquenta Filhos que acompanhavam Ordeith eram os mais rabugentos e carrancudos que Bornhald já vira. Imaginou que o homenzinho devia tê-los escolhido a dedo, e a seleção de tipos tão soturnos revelava algo sobre o próprio homem. Até seu nome era amargo: Ordeith significava “amargura”, na Língua Antiga. Ainda assim, Bornhald tinha as próprias razões para querer estar onde estava. Cooperaria com o homem, já que era obrigado. Mas apenas o mínimo necessário.
— Mestre Ordeith — disse, com uma firmeza cautelosa — esta barca é o único meio de entrada e saída do distrito de Dois Rios. — Aquilo não era bem verdade. Segundo o mapa que trazia, não havia outra forma de cruzar o Taren, e os limites superiores do Manetherendrelle, que margeavam a região ao sul, não tinham vaus. A leste, havia lamaçais e pântanos. Mesmo assim, deveria haver uma saída a oeste, cruzando as Montanhas da Névoa, embora o mapa terminasse na borda do trajeto. Só que seria uma travessia difícil, na melhor das hipóteses, e muitos de seus homens talvez não sobrevivessem, e ele não queria que Ordeith soubesse que havia essa possibilidade, mesmo que pequena. — Quando for a hora de partir, o senhor seguirá com os primeiros a cruzarem se eu vir algum soldado andoriano guardando esta margem. O senhor vai achar bem interessante ver em primeira mão a dificuldade de abrir caminho por um rio dessa largura, não é mesmo?
— Este é seu primeiro comando, não é? — A voz de Ordeith tinha um tom de zombaria. — Isto aqui pode fazer parte de Andor no mapa, mas há gerações que Caemlyn não manda um coletor de impostos tão longe a oeste. Mesmo que abram o bico, quem é que acreditará em três latoeiros? Se o senhor pensa que o risco é muito grande, lembre-se do selo que está sob suas ordens.
Farran olhou para Bornhald, a mão já indo em direção à espada. Bornhald balançou a cabeça de leve, e Farran deixou a mão cair.
— Quero cruzar o rio, Mestre Ordeith. E cruzarei, mesmo que a próxima notícia que receber for a de que Gareth Bryne e a Guarda da Rainha chegarão aqui ao pôr do sol.
— É claro — retrucou Ordeith, parecendo tranquilo de repente. — Haverá tanta glória aqui quanto em Tar Valon, eu garanto. — Os olhos profundos e escuros do homem encararam a algo a distância, vitrificados. — Também há coisas que eu quero, em Tar Valon.
Bornhald balançou a cabeça. E eu ainda tenho que cooperar com ele.
Jaret Byar se aprumou e desceu de sua sela ao lado de Farran. Tão alto quanto o centurião, Byar era um homem de rosto comprido e olhos fundos e escuros. Parecia não haver um grama de gordura em seu corpo.
— A aldeia está segura, meu senhor. Lucellin está tomando precauções para que ninguém escape. Os aldeões quase borraram nas calças quando mencionei Amigos das Trevas. Não há nenhum na aldeia, pelo que disseram. E contaram que o povo mais ao sul simpatizava com eles.
— Mais ao sul, é? — retrucou Bornhald, bruscamente. — Veremos. Ponha trezentos para cruzar o rio, Byar. Farran vai primeiro. O resto segue depois que os latoeiros cruzarem. E certifique-se de que ninguém mais fuja, está bem?
— Vamos esquadrinhar Dois Rios — interrompeu Ordeith. O rosto estreito estava franzido, e bolhas de saliva saltavam dos lábios. — Vamos fustigá-los, açoitá-los e queimar suas almas! Eu prometi a ele! Ele virá a mim, agora! Virá!
Bornhald assentiu para que Byar e Farran executassem suas ordens. É um louco, pensou. O Senhor Capitão Comandante me juntou a um homem louco. Mas pelo menos encontrarei o caminho até Perrin de Dois Rios. Vingarei meu pai, custe o que custar!
De um terraço em colunata no topo de uma colina, a Grã-lady Suroth observava o vale da Enseada de Cantorin, amplo e irregular vale da Enseada de Cantorin. As laterais raspadas de sua cabeça formavam uma grande crista de cabelos negros, que caía por suas costas. Ela repousava as mãos com delicadeza em uma balaustrada de pedras lisas, tão brancas quanto o vestido imaculado com centenas de pregas. O tamborilar distraído de seus dedos de unhas compridas — as duas primeiras de cada mão pintadas de azul — produziam leves cliques ritmados.
Uma leve brisa soprou no Oceano de Aryth, carregando em seu frescor mais do que um traço de sal. Duas moças ajoelhadas, encostadas na parede atrás da Grã-lady, mantinham a postos leques de plumas brancas, caso a brisa falhasse. Duas outras mulheres e quatro rapazes completavam a fileira de figuras acocoradas, prontas para servi-la. Descalços, todos os oito usavam robes finos, para agradar os sentidos estéticos da Grã-lady com os contornos harmoniosos de seus membros e a graça de seus movimentos. No momento, Suroth reparava tanto nos servos quanto alguém era capaz de reparar em mobílias.
Entretanto, observava os seis Guardas da Morte em cada um dos cantos da colunata, rijos como estátuas, as lanças ornadas com borlas negras e os escudos esmaltados de preto. Simbolizavam o triunfo e o perigo dela. A Guarda da Morte servia apenas à Imperatriz e a seus representantes escolhidos, e mataria ou morreria com o mesmo fervor, caso fosse necessário. Havia um ditado: “Nas alturas, os caminhos são pavimentados de adagas.”
Ela tamborilava as unhas na balaustrada de pedra. Como era fino o fio da navalha por que caminhava.
Embarcações dos Atha’an Miere, o Povo do Mar, enchiam a enseada interna atrás do quebra-mar. Até a mais larga delas parecia estreita em relação ao comprimento. A posição dos anéis para cordames fazia as vergas e retrancas parecerem se inclinar em ângulos estranhos. Os deques estavam vazios, e as tripulações na costa montando guarda, assim como qualquer um daquelas ilhas que tivesse habilidade para velejar em alto mar. Havia inúmeros navios Seanchan, imensos e de proa larga, ancorados na entrada da enseada exterior. Um, com as velas estriadas infladas ao vento, escoltava um grupo de barquinhos de pesca de volta ao porto da ilha. Se a menor embarcação se dispersasse, alguns poderiam fugir, mas o navio Seanchan transportava uma damane, e a demonstração do poder de uma damane sufocava qualquer pensamento desse tipo. O navio do Povo do Mar ainda jazia em um atoleiro perto da entrada da enseada, mais parecendo um trambolho chamuscado.
Suroth não sabia por quanto tempo conseguiria evitar que o Povo do Mar dos outros cantos — e os malditos homens do continente — soubesse que possuía aquelas ilhas. Terei tempo suficiente, disse a si mesma. Preciso ter tempo suficiente.
Operara um milagre ao reunir a maioria das forças Seanchan depois do fracasso a que o Grão-lorde Turak as conduzira. Apenas algumas das embarcações que escaparam de Falme estava sob seu controle, e nenhuma questionava seu direito de comandar Hailene, os Predecessores. Se o milagre se mantivesse, ninguém no continente suspeitaria de que estavam ali. Esperando para recuperar as terras que a Imperatriz os enviara para reivindicar, esperando Corenne, o Retorno. Seus agentes já haviam explorado o caminho. Não havia necessidade de retornar à Corte das Nove Luas e pedir desculpas à Imperatriz por uma falha que sequer fora dela.
A ideia de ter que pedir desculpas à Imperatriz a fez estremecer. Esse tipo de coisa era sempre humilhante, e costumava ser bem dolorosa, mas o que a fez estremecer foi a possibilidade de a morte lhe ser negada no fim, de ser forçada a seguir em frente como se nada tivesse acontecido, enquanto todos, plebeus ou do Sangue, saberiam de sua degradação. Um belo jovem serviçal surgiu a seu lado, trazendo um robe verde-claro trabalhado em brilhantes plumagens de pássaros-deleite. Ela estendeu os braços para pegar a vestimenta, dando ao homem a mesma atenção que daria a uma sujeirinha em sua sapatilha de veludo.
Para escapar daquelas desculpas, teria de tomar de volta o que fora perdido mil anos antes. E, para isso, teria de lidar com aquele homem que, segundo informações de seus agentes do continente, alegava ser o Dragão Renascido. Se eu não encontrar uma forma de lidar com ele, o descontentamento da Imperatriz será o menor dos meus problemas.
Virando-se com delicadeza, ela adentrou o amplo salão que fronteava o terraço, a parede externa toda de portas e janelas altas, para captar a brisa. A madeira pálida das paredes, macia e brilhosa como cetim a agradava. Mas ela removera as mobílias do antigo dono, o Atha’an Miere ex-governador de Cantorin, e as substituiu por algumas telas compridas, a maioria com retratos de pássaros ou flores. Duas eram diferentes. Uma exibia um grande gato malhado do Sen T’jore, uma fera do tamanho de um pônei. A outra, uma águia negra da montanha, o topete ereto como uma coroa clara, as asas de pontas brancas abertas em toda a extensão de sete pés. Tais telas eram consideradas vulgares, mas Suroth gostava de animais. Incapaz de transportar os seus pelo Oceano de Aryth, mandara fazer as telas para representar os dois favoritos. Nunca aceitara muito bem que algo lhe fosse recusado.
Três mulheres a aguardavam da mesma forma que as deixara: duas ajoelhadas e uma prostrada no chão vazio e polido, revestido com tacos de madeira clara e escura. As mulheres ajoelhadas usavam os vestidos azul-escuros de sul’dam, painéis vermelhos com raios bifurcados cor de prata bordados no peito e nas laterais das saias. Uma das duas, Alwhin, uma mulher de rosto fino e olhos azuis que emanava um brilho contínuo, tinha o lado esquerdo da cabeça raspado. O restante dos cabelos pendia por sobre o ombro em uma trança castanho-clara.
Suroth contraiu os lábios por um breve instante ao notar a presença de Alwhin. Nunca houvera uma sul’dam elevada a so’jhin, os serviçais superiores hereditários do Sangue, muito menos a uma Voz do Sangue. Ainda assim, no caso de Alwhin, havia motivos. Alwhin sabia demais.
De todo modo, a atenção de Suroth estava voltada para a mulher prostrada com o rosto virado para o chão, toda vestida de cinza-escuro. O largo colar de metal prateado que circundava seu pescoço era unido por uma corrente a um bracelete do mesmo material no pulso da segunda sul’dam, Taisa. Com a coleira e a corrente, o a’dam, Taisa controlava a mulher de vestido cinza. E ela tinha de ser controlada. Era damane, uma mulher capaz de canalizar, o que quer dizer que era perigosa demais para andar à solta. As lembranças dos Exércitos da Noite ainda eram fortes na memória dos Seanchan, mesmo mil anos depois de sua destruição.
Os olhos de Suroth passaram, desconfortáveis, para as duas outras mulheres. Não confiava em nenhuma sul’dam, mas não tinha escolha. Ninguém mais era capaz de controlar as damane, e, sem as damane… a ideia era inconcebível. O poder dos Seanchan, todo o poder do Trono de Cristal, era decorrente do controle das damane. Para Suroth, havia coisas demais sobre as quais ela não tinha escolha. Como Alwhin, que a observava como se tivesse sido so’jhin a vida inteira. Não. Como se ela fosse do Sangue e estivesse ajoelhada por vontade própria.
— Pura. — A damane tivera outro nome quando era uma das odiosas Aes Sedai, antes de cair nas mãos dos Seanchan, mas Suroth não sabia que nome era, nem se importava. A mulher de vestido cinza ficou tensa, mas não ergueu a cabeça. Treiná-la fora especialmente difícil. — Vou perguntar outra vez, Pura. Como a Torre Branca controla este homem que se denomina o Dragão Renascido?
A damane moveu a cabeça um milímetro, o bastante para olhar assustada para Taisa. Se a resposta fosse desagradável, a sul’dam poderia fazê-la sentir dor sem sequer levantar um dedo, por meio do a’dam.
— A Torre não tentaria controlar um falso Dragão, Grã-lady — respondeu Pura, ofegante. — Iria capturá-lo e amansá-lo.
Taisa lançou um olhar indagativo e ultrajado à Grã-lady. A resposta desviara-se do inquérito de Suroth, talvez até insinuara que alguém do Sangue dissera uma mentira. Suroth balançou a cabeça de leve, um simples movimento de esguelha — não queria esperar a damane se recuperar da punição — e Taisa inclinou a cabeça, aquiescendo.
— Vou repetir, Pura, o que é que você sabe sobre essas Aes Sedai… — Suroth contorceu a boca ao poluí-la com aquele nome. Alwhin soltou um grunhido de nojo. — Essas Aes Sedai estarem ajudando este homem? Estou avisando. Em Falme, nossos soldados enfrentaram mulheres da Torre, mulheres capazes de canalizar o Poder, então não tente negar.
— Pura… Pura não sabe, Grã-lady. — Havia urgência e incerteza na voz da damane. Ela lançou à Taisa outro olhar arregalado. Era claro o seu desespero para que acreditassem no que dizia. — Talvez… Talvez a Amyrlin, ou o Salão da Torre… Não, eles não fariam isso. Pura não sabe, Grã-lady.
— O homem pode canalizar — retrucou Suroth, asperamente. A mulher no chão soltou um gemido, embora já tivesse ouvido aquelas mesmas palavras da Grã-lady. Repeti-las fez o estômago de Suroth se revirar, mas ela não permitiu que o rosto revelasse como se sentia. Pouco do que acontecera em Falme fora obra de mulheres capazes de canalizar. Damane sentiam isso, e as sul’dam que usavam o bracelete sempre sabiam o que suas damane sentiam. O que significava que só podia ter sido obra daquele homem. Também significava que ele era incrivelmente poderoso. Tão poderoso que Suroth já se pegara imaginando, uma ou duas vezes, sempre com enjoo crescente, se ele de fato seria o Dragão Renascido. Não pode ser, disse a si mesma, com firmeza. De qualquer forma, não fazia diferença para seus planos. — É impossível acreditar que até mesmo a Torre Branca permitiria que um homem desses andasse à solta. Como é que elas o controlam?
A damane permaneceu ali, em silêncio, o rosto voltado para o chão, os ombros trêmulos, soluçante.
— Responda à Grã-lady! — ordenou Taisa, com rispidez.
A sul’dam não se mexeu, mas Pura ofegou e se encolheu, como se tivesse recebido uma pancada no quadril. Um golpe dado por meio do a’dam.
— P-Pura não s-sabe. — A damane estendeu a mão, hesitante, como se quisesse tocar o pé de Suroth. — Por favor. Pura aprendeu a obedecer. Pura fala somente a verdade. Por favor, não castigue Pura.
Suroth deu um passo atrás, plácida, sem deixar transparecer a irritação por ser forçada por uma damane a se deslocar, por quase ser tocada por uma mulher capaz de canalizar. Sentia necessidade de tomar banho, como se o toque de fato tivesse acontecido.
Taisa arregalou os olhos escuros, indignada com a afronta da damane. Suas bochechas estavam vermelhas de vergonha por ver aquilo acontecer enquanto portava o bracelete da mulher. Parecia dividida entre jogar-se ao lado da damane para implorar por perdão e punir a mulher ali mesmo, naquele instante. Alwhin a encarou com desprezo, os lábios apertados, cada linha do rosto afirmando que tais coisas não ocorriam quando ela portava o bracelete.
Suroth ergueu um dedo apenas um milímetro e fez um pequeno gesto que toda so’jhin conhecia desde a infância, um gesto simples de dispensa.
Alwhin hesitou ao interpretar o gesto, então tentou cobrir seu lapso voltando-se duramente contra Taisa.
— Tire essa… Essa criatura da frente da Grã-lady. E, depois que a punir, vá até Surela e diga a ela que controla seus fardos como se nunca tivesse usado o bracelete. Diga a ela que deverá ser…
Suroth calou a voz de Alwhin em sua mente. Não dera qualquer ordem além da dispensa, mas a briga entre sul’dam era insignificante. Desejou saber se Pura estava tentando esconder alguma coisa. Seus agentes haviam informado que as mulheres da Torre Branca não podiam mentir. Não fora possível forçar Pura a contar uma mentira sequer, como dizer que um cachecol branco era preto, mas isso ainda não era o bastante para tirar qualquer conclusão. Alguns poderiam aceitar as lágrimas da damane, os protestos de inaptidão, independente do que a sul’dam fizesse, mas nenhum desses seria escolhido para comandar o Retorno. Talvez ainda restasse alguma reserva de vontade àquela mulher, talvez ela fosse esperta o suficiente para tentar se valer da crença de ser incapaz de mentir. Nenhuma encolarada no continente era confiável e obediente, não como as damane trazidas pelos Seanchan. Nenhuma de fato aceitava o que era, como as damane dos Seanchan. Quem saberia dizer que segredos uma mulher que se denominava Aes Sedai seria capaz de guardar?
Não pela primeira vez, Suroth desejou possuir a outra Aes Sedai capturada na Ponta de Toman. Com duas para interrogar, teria mais chances de pescar mentiras e evasivas. Era um desejo inútil. A outra poderia muito bem estar morta, afogada no mar, ou exposta na Corte das Nove Luas. Alguns dos navios que Suroth falhara em reunir decerto haviam conseguido retornar pelo oceano, e um deles poderia muito bem estar levando a mulher.
Ela mesma enviara um navio com relatórios produzidos com muito cuidado, quase meio ano antes, assim que se estabilizara no comando dos Predecessores. O capitão e a tripulação vinham de famílias que serviam à dela desde que Luthair Paendrag se proclamara Imperador, quase mil anos antes. Despachar o navio fora uma aposta que Suroth fizera, pois a Imperatriz poderia mandar alguém de volta para tomar seu lugar. No entanto, não despachá-lo teria sido uma aposta ainda maior: apenas uma vitória completa e esmagadora poderia tê-la salvado. Talvez nem isso. Então a Imperatriz sabia sobre Falme, sobre o desastre de Turak e a intenção de Suroth de seguir adiante. Mas qual seria sua opinião, e o que ela estaria fazendo a respeito? Essa era uma preocupação maior do que qualquer damane, fosse lá o que a mulher tivesse sido antes de ser encolarada.
Ainda assim, o relatório não falava de tudo. O pior não podia ser confiado a mensageiro algum, por mais leal que fosse. Sairia dos lábios de Suroth direto para os ouvidos da Imperatriz, e Suroth penara para que assim fosse. Apenas quatro dos que conheciam o segredo ainda viviam, e dois deles não falariam com ninguém a respeito, não por vontade própria. Apenas três mortes podem tornar esse segredo mais seguro.
Suroth não percebeu que dissera a última frase em voz alta até Alwhin retrucar:
— E, mesmo assim, a Grã-lady precisa dos três vivos. — A mulher tinha uma postura apropriadamente servil, enganadora até nos olhos que tentavam vigiar qualquer movimento de Suroth. A voz também era servil. — Quem é que pode dizer, Grã-lady, o que a Imperatriz, que ela viva para sempre!, fará se descobrir que tentam omitir essa informação dela?
Em vez de responder, Suroth repetiu o pequeno gesto de dispensa. De novo, Alwhin hesitou — dessa vez só podia ser simples relutância em sair, aquela mulher se superava a cada instante! — então curvou-se em uma mesura profunda e retirou-se da presença de Suroth.
Com dificuldade, Suroth se acalmou. A sul’dam e as outras duas eram um problema que não poderia resolver naquele momento, mas a paciência era uma necessidade para o Sangue. Havia grandes chances de que aqueles que não a possuíam acabassem na Torre dos Corvos.
No terraço, serviçais ajoelhados inclinaram-se um milímetro, todos de prontidão quando ela reapareceu. Os soldados mantiveram a vigília para que ela não fosse perturbada. Suroth tomou seu lugar na balaustrada, olhando para o mar em direção ao continente, a centenas de milhas a leste.
Ser a bem-sucedida comandante dos Predecessores, aquela que daria início ao Retorno, traria muita honra. Talvez até fosse adotada pela família da Imperatriz, embora essa fosse uma honra que viria acompanhada de complicações. Ser também a captora daquele Dragão, falso ou verdadeiro, e saber como controlar aquele incrível poder…
Mas e se… Quando eu capturá-lo, devo entregá-lo nas mãos da Imperatriz? Essa é a questão.
No amplo parapeito de pedra, as longas unhas começaram a tamborilar outra vez.