CAPÍTULO V Algoritmo descriptografador

Oh, falai de novo, anjo luminoso!…

WILLIAM SHAKESPEARE. Romeu e Julieta

As instalações dos cientistas visitantes estavam agora todas ocupadas, melhor dizendo, sobreocupadas, por luminares selecionados da comunidade SETI. Quando a delegação oficial começou a chegar de Washington, os seus membros não encontraram acomodações adequadas nas instalações de Argus e tiveram de se aboletar em motéis da vizinha Socorro. Kenneth der Heer, o conselheiro científico da presidente, foi a única exceção. Chegara no dia a seguir à descoberta, em resposta a um apelo urgente de Eleanor Arroway. Funcionários da National Science Foundation, da National Aeronautics and Space Administration, do Departamento da Defesa, do President’s Science Advisory Committee, do National Security Council e da National Security Agency foram chegando durante os dias seguintes. Havia alguns funcionários governamentais cuja filiação institucional precisa permanecia obscura.

Na noite anterior, alguns deles tinham-se reunido na base do Telescópio 101 e Vega fora-lhes mostrada pela primeira vez.

Cortesmente, a sua luz azul-branca tremeluzira maravilhosamente.

— Quero dizer, já a tinha visto antes, mas nunca soube como se chamava — observou um deles.

Vega parecia mais brilhante do que as outras estrelas do firmamento, mas não se tornava notória em nenhum outro aspecto. Era apenas uma dos poucos milhares de estrelas visíveis a olho nu.

Os cientistas efetuavam um seminário de investigação contínua sobre a natureza, a origem e o possível significado dos rádio-impulsos. O gabinete de relações públicas do projeto — maior do que na maioria dos observatórios em virtude do grande interesse existente na procura de inteligência extraterrestre — recebeu o encargo de esclarecer os funcionários das categorias mais baixas. Cada recém-chegado necessitava de um extenso esclarecimento pessoal. Ellie, que tinha de informar os funcionários superiores, superintender na investigação em curso e responder à curiosidade cética, perfeitamente compreensível, demonstrada com algum vigor por colegas seus, sentia-se exausta. O luxo de uma noite inteira de sono tinha-lhe sido recusado desde a descoberta.

Ao princípio haviam tentado guardar silêncio sobre o caso. No fim de contas, não tinham a certeza absoluta de que se tratava de uma mensagem extraterrestre. Um anúncio prematuro ou errado seria um desastre no capítulo de relações públicas. E, pior ainda, interferiria na análise dos dados. Se a imprensa avançasse, a ciência sofreria com certeza. Tanto Washington como Argus estavam interessados em manter a história abafada. Mas os cientistas tinham dito às suas famílias, o telegrama da União Astronômica Internacional fora enviado a todo o mundo, e sistemas ainda rudimentares de bancos de dados astronômicos da Europa, da América do Norte e do Japão estavam todos a transportar notícias da descoberta.

Embora tivesse havido uma série de planos de contingência para a divulgação pública de quaisquer descobertas, as circunstâncias reais tinham-nos surpreendido em grande parte mal preparados. Redigiam uma declaração tão inócua quanto possível e só a divulgavam quando tinha de ser.

O assunto causou, claro, sensação.

Tinham pedido aos media que fossem pacientes, mas sabiam que dispunham apenas de um breve período antes de a imprensa atacar em força. Tinham tentado desencorajar os repórteres de visitar o local, explicando que não havia nenhuma informação real nos sinais que estavam a receber, que se tratava apenas de números primos enfadonhos e repetitivos. A imprensa sentia-se impaciente com a falta de notícias concretas. «Podemos apenas escrever algumas linhas sobre ‘Que é um número primo?’«, perguntou um repórter a Ellie pelo telefone.

Equipes de filmagem de televisão, em táxis aéreos de asa fixa e helicópteros alugados, começaram a sobrevoar baixo as instalações, ocasionando por vezes uma forte radiointerferência facilmente detectada pelos telescópios. Alguns repórteres seguiam os funcionários de Washington quando eles regressavam aos motéis, à noite. Um pequeno número dos mais empreendedores tentara entrar nas instalações sem ser notado — de carro de praia, motocicleta e, num caso, a cavalo. Ellie vira-se obrigada a informar-se do preço para uma grande quantidade de cerca anticiclônica.

Imediatamente após a sua chegada, Der Heer ouvira uma primeira versão do que entretanto se tornara a informação-padrão de Ellie: a surpreendente intensidade do sinal, a sua localização muito aproximadamente na parte do céu onde se encontrava a estrela Vega é a natureza dos impulsos.

— Posso ser o conselheiro científico da presidente — dissera ele —, mas sou apenas um biólogo. Por isso, queira explicar-me tudo devagar. Compreendo que, se a fonte de rádio se encontra a vinte e seis anos-luz de distância, então a mensagem teve de ser enviada há vinte e seis anos. Na década de sessenta, algumas pessoas de aspecto esquisito e orelhas pontiagudas pensaram que quereríamos saber que gostam de números primos. Mas números primos não são coisa difícil. Não dá a impressão de que estão a fanfarronar. Parece mais que estão a enviar-nos aritmética corretiva. Talvez devêssemos sentir-nos insultados.

— Não. Veja as coisas deste modo — pediu ela, a sorrir: — isto é um farol. É um sinal de comunicação. Destina-se a atrair a nossa atenção. Recebemos padrões estranhos de impulsos de quasars, pulsars, radiogaláxias e sabe Deus que mais. Mas números primos são muito específicos, muito artificiais. Nenhum número par é primo, por exemplo. É difícil imaginar algum plasma irradiante ou alguma galáxia em explosão a transmitir um conjunto regular de sinais matemáticos como este. Os números primos destinam-se a atrair a nossa atenção.

— Mas para quê? — perguntou ele, sinceramente intrigado.

— Não sei. Neste trabalho temos, porém, de ser muito pacientes. Talvez daqui a pouco tempo os números primos desapareçam e sejam substituídos por outra coisa qualquer, por qualquer coisa muito rica, a verdadeira mensagem. Temos apenas de continuar à escuta.

Esta era a parte mais difícil de explicar à imprensa, que os sinais não tinham essencialmente conteúdo algum, nenhum significado: tratava-se apenas das primeiras centenas de números primos por ordem, um retrocesso ao princípio e depois novamente as simples representações binárias aritméticas: 1, 2, 3, 5, 7, 11, 13, 17, 19, 23, 29, 31… nove não era um número primo, explicara ela, porque era divisível por três (assim como por nove e um, claro). Dez não era um número primo porque era divisível por cinco e dois (assim como por dez e um). Onze era um número primo porque era divisível somente por um e por si mesmo. Mas para quê transmitir números primos? Aquilo recordava-lhe um sábio idiota, uma daquelas pessoas que podem ser grosseiramente deficientes em aptidões sociais ou verbais, mas são capazes de proezas espantosas de aritmética mental — como calcular, por exemplo, depois de pensar um momento, em que dia da semana calharia 1 de Junho de 1977. Não faziam isso para nada; faziam-no porque gostavam, porque eram capazes de fazê-lo.

Ela sabia que a mensagem começara a chegar havia poucos dias apenas, mas sentia-se ao mesmo tempo eufórica e profundamente decepcionada. Ao fim de todos aqueles anos tinham finalmente recebido um sinal — uma espécie de sinal, enfim. Mas o seu conteúdo era superficial, oco, vazio. Imaginara que receberia a Enciclopédia Galáctica.

Só alcançamos a capacidade de utilizar a radioastronomia nas últimas décadas, recordava a si mesma, numa galáxia onde a idade média das estrelas é de milhares de milhões de anos. A possibilidade de receber um sinal de uma civilização exatamente tão avançada como a nossa é, naturalmente, ínfima. Se eles estivessem um bocadinho que fosse atrás de nós, faltar-lhes-ia a capacidade tecnológica de comunicar sequer conosco. Portanto, o sinal mais provável deveria vir de uma civilização muito mais avançada. Talvez fossem capazes de compor fugas-espelho completas e melódicas: o contraponto seria o tema escrito de trás para a frente. Não, concluiu. Embora isso fosse sem dúvida uma espécie de gênio e certamente além das suas aptidões, era uma pequena extrapolação daquilo que os seres humanos eram capazes de fazer. Bach e Mozart tinham pelo menos feito tentativas respeitáveis.

Tentou dar um salto maior para a mente de alguém que fosse enormemente, ordens de magnitude, mais inteligente do que ela, mais esperto do que Drumlin, digamos, ou Eda, o jovem físico nigeriano que acabara de ganhar o Prêmio Nobel. Mas era impossível. Conseguia apenas cismar com a demonstração do último teorema de Ferma ou a conjectura de Goldbach nalgumas linhas de equações. Conseguia imaginar problemas que ficavam enormemente além da nossa capacidade, mas que seriam canja para eles. Mas não conseguia meter-se na sua mente; não conseguia imaginar o que seria pensar se uma pessoa fosse muito mais apta do que um ser humano. Naturalmente. Não era surpresa nenhuma. Que esperava? Era como tentar visualizar uma nova cor primária ou um mundo no qual fosse possível reconhecer individualmente várias centenas de conhecidos apenas pelo seu cheiro… Era capaz de falar dessas coisas, mas não de as experimentar. Por definição, tem de ser tremendamente fácil compreender o comportamento de um ser muito mais inteligente do que nós. Mas mesmo assim, mesmo assim… por quê apenas números primos?


Os radioastrônomos de Argus tinham feito progressos nos últimos dias. Vega tinha um movimento conhecido — uma componente conhecida da sua velocidade na direção da Terra ou afastando-se dela, uma componente conhecida lateralmente, através do céu, contra o fundo de estrelas mais distantes. Os telescópios de Argus, a trabalhar juntamente com radiobservatórios da Virgínia Ocidental e da Austrália, tinham determinado que a fonte se movia com Vega. Não só o sinal vinha, tão exatamente quanto podiam medir, do lugar onde Vega se situava no céu, como também compartilhava os movimentos peculiares e característicos de Vega. A não ser que se tratasse de uma brincadeira de proporções heróicas, a fonte dos impulsos dos números primos encontrava-se realmente no sistema de Vega. Não havia nenhum efeito Doppler adicional devido ao movimento do emissor, talvez preso a um planeta nas imediações de Vega. Os extraterrestres tinham efetuado a compensação necessária para o movimento orbital. Talvez fosse uma espécie de cortesia interestelar.

— «A maldita coisa mais maravilhosa de que jamais ouvi falar. E não tem nada a ver com a nossa instituição» — disse um funcionário da Defense Advanced Research Projects Agency ao preparar-se para regressar a Washington.

Assim que se fizera a descoberta, Ellie destinara um certo número dos telescópios para a observação de Vega numa faixa de outras freqüências. Inequivocamente, eles tinham encontrado o mesmo sinal, a mesma monótona sucessão de números primos, a «bipar» na linha de hidrogênio de mil quatrocentos e vinte megahertz, na linha de oxidrilo de mil seiscentos e sessenta e sete megahertz e em muitas outras freqüências. Em todo o espectro-rádio, com uma orquestra eletromagnética, Vega debitava números primos.

— Não faz sentido — disse Drumlin, a tocar distraidamente na fivela do cinto. — Não nos podia ter escapado antes. Toda a gente tem observado Vega. Há anos. A Arroway observou-a de Arecibo há uma década. Subitamente, na terça-feira passada, Vega começa a transmitir números primos? Por que agora? Que há de tão especial neste momento? Como se explica que tenham começado a transmitir apenas alguns anos depois de Argus ter começado a escutar?

— Talvez o seu emissor tenha estado parado para reparações durante dois séculos — sugeriu Valerian — e tenham acabado de o recolocar em linha. Talvez o seu ciclo de serviço seja transmitir para nós apenas um ano em cada milhão. Há todos os outros planetas candidatos que podem abrigar vida, bem sabe. Nós não somos provavelmente o único miúdo do quarteirão. — Mas Drumlin, visivelmente descontente, limitou-se a abanar a cabeça.

Embora a sua natureza fosse o oposto da conspirativa, Valerian pensou ter captado uma insinuação disfarçada na última pergunta de Drumlin: não seria tudo aquilo uma tentativa temerária e desesperada dos cientistas de Argus para impedir um encerramento prematuro do projeto? Não era possível. Valerian abanou a cabeça. Ao passar, Der Heer viu-se confrontado com dois peritos de categoria superior do problema SETI a abanar silenciosamente a cabeça um ao outro.

Entre os cientistas e os burocratas havia uma espécie de mal-estar, um desconforto mútuo, um choque de conjecturas fundamentais. Um dos engenheiros eletrotécnicos chamava-lhe uma impedância mal combinada. Os cientistas, do ponto de vista de muitos dos burocratas, eram excessivamente especulativos, excessivamente quantitativos e excessivamente vagos no modo como falavam às outras pessoas. Do ponto de vista de muitos dos cientistas, os burocratas eram excessivamente inimaginativos, excessivamente qualitativos e excessivamente incomunicativos. Ellie, e em especial Der Heer, esforçavam-se muito por construir uma ponte sobre essa brecha, mas os pontões estavam constantemente a ser arrastados pela corrente abaixo.

Naquela noite havia pontas de cigarros e chávenas de café por toda a parte. Cientistas despreocupadamente vestidos, funcionários de Washington e fatos leves e um ou outro militar de alta patente enchiam a sala de controle, a sala dos seminários e o pequeno auditório e extravasavam para o exterior, onde, à luz das brasas dos cigarros e das estrelas, algumas das discussões continuavam. Mas os ânimos estavam esfrangalhados. A tensão começava a notar-se.


— Doutora Arroway, este é Michael Kitz, secretário-adjunto da Defesa do C3i.

Ao introduzir Kitz e colocar-se a si próprio apenas um passo atrás dele, Der Heer estava a comunicar… o quê? Alguma inverossímil mistura de emoções. A confusão nos braços da prudência? Parecia apelar para a contenção. Julgá-la-ia assim tão estouvada? «C3i» — que proferiam «cê ao cubo 3i» — queria dizer Command, Control, Communications and Intelligence[3], responsabilidades importantes numa altura em que os Estados Unidos e a União Soviética estavam resolutamente a efetuar grandes reduções faseadas nos seus arsenais nucleares estratégicos. Era trabalho para um homem cauteloso.

Kitz instalou-se numa das duas cadeiras do outro lado da secretária de Ellie, inclinou-se para a frente e leu a citação de Kafka. Não ficou impressionado.

— Doutora Arroway, permita que vá direito ao assunto. Estamos preocupados quanto a se é no melhor interesse dos Estados Unidos que esta informação seja geralmente conhecida. Não ficamos loucos de alegria quando soubemos que enviara aquele telegrama a todo o mundo.

— Refere-se à China? À União Soviética? À Índia? — A sua voz, não obstante os esforços que fazia para o evitar, tinha uma certa contundência detectável. — Queria conservar secretos os primeiros duzentos e sessenta e um números primos? Supõe, Mister Kitz, que os extraterrestres pretendiam comunicar apenas com americanos? Não acha que uma mensagem de outra civilização pertence ao mundo inteiro?

— Podia ter pedido a nossa opinião.

— E correr o risco de perder o sinal? Escute, por tudo quanto sabemos, algo de essencial, algo de único, pode ter sido transmitido depois de Vega se ter posto aqui, no Novo México, mas quando ainda estava alta, no céu, sobre Beijing. Estes sinais não são exatamente um telefonema pessoa a pessoa para os EUA. Não são sequer um telefonema pessoa a pessoa para a Terra. São de estação para estação de qualquer planeta do sistema solar. Sucedeu apenas que tivemos a sorte de levantar o auscultador do telefone.

Der Heer estava de novo a «transmitir» qualquer coisa.

Que tentava ele dizer-lhe? Que gostava daquela analogia elementar, mas que tivesse calma com Kitz?

— De qualquer modo — continuou Ellie —, é tarde demais. Agora já toda a gente sabe que existe uma espécie qualquer de vida inteligente no sistema Vega.

— Não tenho a certeza de que seja tarde demais, doutora Arroway. A senhora parece pensar que ainda está para chegar qualquer transmissão rica de informação, uma mensagem. Aqui, o doutor Der Heer — fez uma pausa, a escutar a assonância inesperada —, o doutor Der Heer diz que a doutora pensa que os números primos são um anúncio, qualquer coisa para nos levar a prestar atenção. Se há uma mensagem e é sutil — algo que esses outros países não detectariam imediatamente —, quero que seja mantida em segredo até podermos falar a seu respeito.

— Muitos de nós temos quereres, Mister Kitz — deu consigo a dizer suavemente, ignorando as sobrancelhas arqueadas de Der Heer. Havia algo de irritante, quase de provocante, na atitude de Kitz e provavelmente também na dela. Eu, por exemplo, quero compreender qual é o significado do sinal, e o que está a acontecer em Vega, e o que isso significa para a Terra. É possível que cientistas de outras nações sejam a chave para essa compreensão. Talvez nós precisemos dos dados recolhidos por eles. Talvez precisemos dos seus cérebros. Eu fui capaz de imaginar que isto poderia ser um problema demasiado grande para ser resolvido por um só país.

Der Heer parecia ligeiramente alarmado.

— Bem, doutora Arroway, a sugestão do secretário Kitz não é assim tão desrazoável. É muito possível que colaboremos com outras nações. Tudo quanto ele pede é que converse primeiro conosco acerca do assunto. E isso apenas se houver uma nova mensagem.

O seu tom era tranqüilizador, mas não untuoso. Ela olhou-o de novo com atenção. Der Heer não era um homem claramente bonito, mas tinha um rosto bondoso e inteligente. Vestia fato azul e camisa impecável. O calor do seu sorriso moderava a sua seriedade e o seu ar de autodomínio. Por que motivo estava ele, então, a manifestar-se a favor daquele imbecil? Fazia parte do seu trabalho? Seria possível que Kitz estivesse a falar com lógica?

— De qualquer modo, trata-se de uma contingência remota. — Kitz suspirou enquanto se levantava. — O secretário da Defesa apreciaria a sua cooperação. — Estava a tentar mostrar-se cativante. — Combinado?

— Deixe-me pensar no assunto — respondeu ela, e apertou-lhe a mão estendida como se fosse um peixe morto.

— Eu vou já, daqui a poucos minutos, Mike — disse Der Heer, sorridente.

Com a mão na ombreira da porta, Kitz deu a impressão de que lhe acudia um pensamento novo, tirou um documento da algibeira interior do peito, voltou para trás e colocou-o desajeitadamente no canto da secretária dela.

— Ah, sim, já me esquecia! Está aqui uma cópia da Decisão Hadden. Provavelmente conhece-a. É acerca do direito do Governo de considerar secreto material vital para a segurança dos Estados Unidos. Mesmo que a sua origem não tenha ocorrido numa instituição secreta.

— Quer tornar secretos os números primos? — perguntou ela, de olhos muito abertos, numa incredulidade irônica.

— Espero por si lá fora, Ken.

Ellie começou a falar logo que Kitz saiu do seu gabinete:

— Que fareja ele? Raios letais de Vega? Alguma coisa que faça ir o mundo pelos ares? De que se trata, na realidade?

— Ele está apenas a ser prudente, Ellie. Percebo que você não ache que seja só isso. Muito bem. Suponha que há alguma mensagem — com verdadeiro conteúdo, compreende? E nela existe alguma coisa ofensiva para muçulmanos, por exemplo, ou para metodistas. Não deveríamos divulgá-la cuidadosamente, para que os Estados Unidos não ficassem com um olho negro?

— Ken, não me venha com tretas. Aquele homem é um assistente do secretário da Defesa. Se eles estivessem preocupados com muçulmanos ou metodistas, ter-me-iam enviado um assistente do secretário de Estado, ou — não sei — um desses fanáticos religiosos que presidem a pequenos-almoços presidenciais de orações. Você é o conselheiro científico da presidente. Que lhe aconselhou?

— Não lhe aconselhei nada. Desde que estou aqui, só falei com ele uma vez, brevemente, pelo telefone. E serei franco consigo: ele não me deu instruções nenhumas a respeito de sigilo. Na minha opinião, o que Kitz disse não tem fundamento. Ele está a agir por sua conta.

— Quem é ele?

— Tanto quanto sei, é um advogado. Foi um importante executivo na indústria eletrônica antes de entrar para a administração. Conhece realmente o C3i, mas isso não o torna entendido em mais nada.

— Ken, confio em si. Acredito que não me tenha exposto a esta ameaça com a Decisão Hadden. — Apontou para o documento à sua frente e fez uma pausa, a procurar os olhos dele. — Sabe que Drumlin pensa que existe outra mensagem na polarização?

— Não compreendo.

— Há poucas horas, o Dave concluiu uma primeira análise estatística da polarização. Representou os parâmetros de Stokes por esferas de Poincaré; há um belo movie delas com variações no tempo.

Der Heer olhava-a inexpressivamente. Não usariam os biólogos luz polarizada nos seus microscópios? — perguntou Ellie a si mesma.

— Quando uma onda de luz se dirige para nós — luz visível, luz-rádio, qualquer espécie de luz —, vem a vibrar em ângulo reto em relação à nossa linha de visão. Se essa vibração gira, diz-se que a onda é «elipticamente polarizada». Se gira no sentido dos ponteiros do relógio, chama-se «polarização de sentido direito»; se gira no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio, chama-se «polarização de sentido esquerdo». Bem sei que é uma designação estúpida. Seja como for, variando entre as duas espécies de polarização, podemos transmitir informação. Um pouco de polarização de sentido direito, e é um zero; um pouco de sentido esquerdo, e é um um. Está a perceber? É perfeitamente possível. Temos modulação de amplitude e modulação de freqüência, mas a nossa civilização, por convenção, geralmente não faz modulação de polarização.

«Bem, o sinal de Vega dá a impressão de ter modulação de polarização. Neste preciso momento estamos empenhados em verificar isso. Mas o Dave descobriu que não havia uma quantidade igual das duas espécies de polarização. Não era tão levopolarizada quanto dextropolarizada. É simplesmente possível que exista outra mensagem na polarização que até agora nos escapou. É por isso que desconfio do seu amigo. Kitz não veio apenas dar-me conselhos gratuitos generalizados. Sabe que podemos ter tropeçado em mais qualquer coisa.

— Tenha calma, Ellie. Há quatro dias que quase não dorme. Tem andado a fazer malabarismos com a ciência, a administração e a imprensa. Já fez uma das grandes descobertas do século e, se bem a entendi, pode estar na iminência de algo ainda mais importante. Tem todo o direito de estar um pouco impaciente. E ameaçar militarizar o projeto foi desastroso da parte de Kitz. Não tenho dificuldade nenhuma em compreender que desconfie dele. Mas há uma certa lógica no que ele diz.

— Você conhece o indivíduo?

— Tenho estado nalgumas reuniões com ele. Não posso dizer verdadeiramente que o conheço. Ellie, se existe a possibilidade de chegar uma autêntica mensagem, não seria boa idéia tornar a multidão menos densa?

— Com certeza. Dê-me uma ajuda no caso dos tipos inúteis de Washington.

— Muito bem. E se deixar esse documento em cima da sua secretária, pode entrar aqui alguém e tirar as conclusões erradas. Por que não o guarda em qualquer lado?

— Você vai ajudar?

— Se a situação permanecer semelhante ao que é agora, ajudarei. Não faremos os nossos melhores esforços se esta coisa for declarada secreta.

Sorrindo, Ellie ajoelhou diante do pequeno cofre do seu gabinete e carregou na combinação de seis dígitos: 314159, lançou um último olhar ao documento, que tinha por título, em grandes letras pretas, OS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA VS. HADDEN CYBERNETICS, e fechou-o no cofre.


Era um grupo de cerca de trinta pessoas — técnicos e cientistas ligados ao Projeto Argus e alguns funcionários governamentais superiores, incluindo o diretor-adjunto da Defence Intelligence Agency, vestido à paisana. Entre eles contavam-se Valerian, Drumlin, Kitz e Der Heer. Ellie era a única mulher. Tinham instalado um grande sistema de projeção de televisão, focado num écran de dois por dois metros, perfeitamente encostado à parede do fundo. Ellie dirigia-se simultaneamente ao grupo e ao programa descriptografador, com os dedos no teclado à sua frente.

— Ao longo dos anos preparamo-nos para descriptografar por computador muitas espécies de possíveis mensagens. Acabamos de saber pela análise do doutor Drumlin que há informação na modulação de polarização. Todo aquele frenético desvio entre esquerda e direita significa qualquer coisa. Não é ruído ao acaso. É como se atirássemos uma moeda ao ar. Claro que esperamos que calhem tantas caras como cunhos, mas, em vez disso, obtemos o dobro das caras em relação aos cunhos. Concluímos por isso que a moeda está viciada ou, no nosso caso, que a modulação de polarização não é acidental; tem conteúdo… Oh, vejam isto! O que o computador acaba de nos dizer é ainda mais interessante. A seqüência exata de caras e cunhos repete-se. É uma longa seqüência e, por isso, é uma mensagem muito complexa e a civilização emissora deve querer que nos asseguremos de que a entendemos corretamente.

«Estão a ver aqui? É a mensagem a repetir-se. Estamos agora na primeira repetição. Cada bit de informação, cada ponto e traço — se quiserem imaginá-los assim —, é idêntico aos do último bloco de dados. Agora analisamos o número total de bits. É um número na escala das dezenas de milhares de milhões. Muito bem, bingo! É o produto de três números primos.

Embora Drumlin e Valerian estivessem ambos a sorrir, pareceu a Ellie que experimentavam emoções completamente diferentes.

— E depois? Que significam mais alguns números primos? — perguntou um visitante de Washington.

— Significam, talvez, que nos está a ser enviada uma imagem. Compreendem, esta mensagem é constituída por um grande número de bits de informação. Supondo que aquele número grande é o produto de três números mais pequenos: é um número vezes um número vezes um número. Portanto, a mensagem tem três dimensões. Imagino que se trata ou de uma simples imagem estática tridimensional como um holograma fixo, ou de uma imagem bidimensional que muda com o tempo — um movie. Presumamos que é um movie. Se é holograma, levar-nos-á mais tempo a desenvolver. Temos um algoritmo descriptografador ideal para esta.

Distinguiram no écran um padrão móvel indistinto composto de brancos e pretos perfeitos.

— Willie, introduza um programa de interpolação cinzento qualquer, sim? Qualquer coisa razoável. E tente girá-lo cerca de noventa graus no sentido contrário ao dos ponteiros de um relógio.

— Doutora Arroway, parece haver um canal de banda lateral auxiliar. Talvez seja o áudio para acompanhar o movie.

— Carregue.

A outra única aplicação prática de números primos de que conseguia lembrar-se era a criptografia de chave pública, agora largamente utilizada em contextos de segurança comercial e nacional. Uma aplicação consistia em tornar uma mensagem clara para patetas; a outra era manter uma mensagem oculta dos toleravelmente inteligentes.

Ellie observou os rostos à sua frente. Kitz parecia pouco à vontade. Talvez estivesse a prever o aparecimento de algum invasor alienígena ou, pior ainda, o desenho de uma arma demasiado secreta para ser confiada ao pessoal dela. Willie parecia muito ansioso e engolia constantemente em seco. Uma imagem é diferente de meros números. A possibilidade de uma mensagem visual estava claramente a despertar receios e fantasias não aprofundadas nos corações de muitos dos espectadores. Der Heer tinha uma expressão maravilhada no rosto; naquele momento parecia muito menos o funcionário, o burocrata, o conselheiro presidencial, e muito mais o cientista.

À imagem ainda ininteligível juntou-se um estrondoso glissando de sons, deslizando primeiro para cima e depois para baixo no áudio-espectro, até gravitar e ir repousar algures à volta da oitava abaixo do dó médio.

Lentamente, o grupo tomou consciência de música tênue, mas em crescendo. A imagem girou, retificou-se e focalizou-se.

Ellie deu consigo a fitar uma imagem granulosa a preto e branco de… uma enorme bancada adornada com uma imensa águia art deco. Presa nos esporões de cimento armado da águia…

— Brincadeira! É uma brincadeira! — Houve gritos de espanto, incredulidade, riso, leve histeria.

— Não está a ver? Foi levada à certa — dizia-lhe Drumlin, em tom quase de conversa social. Sorria. — É uma partida complicada. Esteve a fazer perder tempo a toda a gente que se encontra aqui.

Presa nos esporões de cimento armado da águia, via-o agora claramente, estava uma suástica. A câmara zoomou acima da cabeça da águia e foi encontrar o rosto sorridente de Adolf Hitler a acenar a uma multidão que gritava ritmadamente. O seu uniforme, despido de condecorações militares, dava uma impressão de simplicidade modesta. A profunda voz de barítono de um locutor, áspera, mas a falar inequivocamente alemão, encheu a sala. Der Heer aproximou-se de Ellie.

— Sabe alemão? — perguntou-lhe ela baixinho. — Que está ele a dizer?

— O Fuehrer — traduziu ele, devagar — dá as boas-vindas ao mundo que veio à pátria alemã para a abertura dos Jogos Olímpicos de 1936.

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