CAPÍTULO XIX Singularidade nua

… subir ao paraíso

Pela escada da surpresa.

RALPH WALDO EMERSON Merlin H., Poemas (1847)

Não é impossível que para algum ser infinitamente superior todo o universo possa ser como uma planície, sendo a distância entre planeta e planeta apenas como os poros de um grão de areia, e não sendo os espaços entre sistema e sistema maiores do que os intervalos entre um grão e o grão adjacente.

SAMUEL TAYLOR COLERIDGE. Omniania

Estavam a cair. Os painéis pentagonais do dodecaedro tinham-se tornado transparentes. O mesmo acontecera ao teto e ao chão. Em cima e em baixo, Ellie conseguia distinguir a passamanaria do organossilicato e os tubos de érbio implantados, que pareciam movimentar-se. Os benzels tinham desaparecido, os três. O dodecaedro mergulhava, descia velozmente um comprido túnel escuro apenas com a largura suficiente para permitir a sua passagem. A aceleração parecia situar-se algures à volta de um g. Em conseqüência disso, Ellie, voltada para a frente, era empurrada para trás na cadeira, enquanto Devi, defronte dela, se inclinava ligeiramente a partir da cintura. Talvez devessem ter colocado cintos de segurança.

Era difícil não encarar o pensamento de que tinham penetrado no manto da Terra, sido projetados para o seu núcleo de ferro em fusão. Ou talvez fossem direitos a… Tentou imaginar aquele singular meio de transporte como um ferry-boat no rio Estige.

As paredes do túnel possuíam uma textura que lhe permitia ter uma noção da velocidade a que seguiam. Os padrões eram conjuntos heterogêneos irregulares de arestas suaves, sem nenhuma forma bem definida. As paredes não ficavam na memória pela sua aparência, mas apenas pela sua função. Até mesmo a poucas centenas de quilômetros abaixo da superfície da Terra, as rochas deveriam estar incandescentes de calor vermelho. Ali não havia nenhuma indicação disso. Nenhuns demônios de categoria subalterna orientavam o trânsito e não se encontravam em evidência armários com boiões de compota.

De vez em quando, um vértice dianteiro do dodecaedro roçava na parede e soltavam-se flocos de um material desconhecido. O dodecaedro propriamente dito não parecia afetado por esses contatos. Em breve os seguia uma nuvem de partículas pequenas. Todas as vezes que o dodecaedro tocava na parede, Ellie sentia uma ondulação, como se qualquer coisa mole se tivesse afastado para minimizar o impacto. A tênue iluminação amarela era difusa, uniforme. Ocasionalmente, o túnel virava devagarinho e o dodecaedro acompanhava, obediente, a curvatura. Nada, que ela pudesse ver, vinha na sua direção. A velocidades daquelas, até uma colisão com um pardal ocasionaria uma explosão devastadora. E se aquilo fosse uma queda infinita num poço sem fundo? Sentia uma ansiedade física constante na boca do estômago. Mesmo assim, não teve segundos pensamentos.

Buraco negro, pensou. Buraco negro. Estou a cair através do horizonte coincidente de um buraco negro na direção da singularidade temível. Ou talvez isto não seja um buraco negro e eu vá na direção de uma singularidade nua. É isso que os físicos lhe chamam, uma singularidade nua. Perto de uma singularidade, a causalidade podia ser violada, os efeitos podiam preceder as causas, o tempo podia fluir para trás e era improvável que uma pessoa sobrevivesse, quanto mais que se recordasse da experiência. Para um buraco negro em rotação, foi a sua memória buscar aos estudos que fizera anos atrás, não havia que evitar um ponto, mas sim uma singularidade anelar ou qualquer outra coisa ainda mais complexa. Os buracos negros eram terríveis. As forças de corrente gravitacional eram tão grandes que uma pessoa seria esticada até se transformar num fio fino comprido se cometesse o descuido de lá cair. Seria também literalmente esmagada. Felizmente, não havia ali nenhum sinal disso. Através das superfícies cinzentas transparentes que eram agora o teto e o chão, ela via um grande alvoroço de atividade. A matriz de organossilicato estava a ruir sobre si mesma nalguns lugares e a desdobrar-se noutros; os tubos de érbio embutidos giravam e rolavam. Tudo quanto se encontrava dentro do dodecaedro — incluindo ela própria e os seus companheiros — parecia muito natural. Bem, talvez um pouco agitado. Mas, por enquanto, ainda não eram finos fios compridos.

Sabia que estava a fazer conjecturas ociosas. A física dos buracos negros não era o seu campo. Aliás, não compreendia como aquilo podia ter alguma coisa a ver com buracos negros, que eram ou primordiais — feitos durante a origem do universo — ou produzidos numa época posterior pelo colapso de uma estrela de maior massa do que a do Sol.

Neste caso, a gravidade seria tão forte que — excetuando efeitos quantum — nem a luz podia escapar, embora o campo gravitacional permanecesse com certeza. Daí «buraco», daí «negro». Mas eles não tinham colapsado uma estrela, e ela não conseguia imaginar nenhuma maneira pela qual tivessem capturado um buraco negro primordial. De resto, ninguém sabia onde poderia estar escondido o buraco negro primordial mais próximo. Tinham apenas construído a Máquina e posto os benzels a girar.

Olhou para Eda, que estava a calcular qualquer coisa num pequeno computador. Por condução óssea, conseguia sentir, assim como ouvir, um rugido de tom baixo todas as vezes que o dodecaedro roçava na parede, e por isso levantou a voz para ser ouvida:

— Compreende o que se está a passar?

— De maneira nenhuma — gritou ele em resposta. Quase posso provar que isto não está a acontecer. Conhece as coordenadas Boyer-Lindquist?

— Não, lamento.

— Eu depois explico-lhe.

Sentiu-se grata por ele pensar que haveria um «depois».

Ellie sentiu a desaceleração antes de poder vê-la, como se tivessem estado na vertente descendente de uma montanha-russa, tivessem nivelado e agora começassem a subir devagar. Imediatamente antes de a desaceleração se estabelecer, o túnel apresentara uma seqüência complexa de ondulações e saltos. Não havia nenhuma mudança perceptível quer na cor quer no brilho da luz circundante. Ela pegou na câmara, mudou para a objetiva de grande profundidade de foco e olhou para o mais longe que pôde à sua frente. Só conseguiu ver até à primeira saliência do tortuoso caminho. Ampliada, a textura da parede parecia complexa, irregular e, apenas momentaneamente, auto-luminosa.

O dodecaedro reduzira a velocidade para um relativo passo de caracol. Não se avistava nenhum fim para o túnel. Perguntou a si mesma se chegariam aonde quer que fosse do seu destino. Talvez os desenhistas tivessem errado os cálculos. Talvez a Máquina tivesse sido imperfeitamente construída, apenas um nadinha fora das normas; talvez o que em Hokkaido parecera uma imperfeição tecnológica aceitável condenasse a missão ao malogro ali em… onde quer que era. Ou, pensou olhando para a nuvem de pequenas partículas que os seguia e ocasionalmente ultrapassava, talvez tivessem chocado com a parede uma vez mais do que a conta e houvessem perdido mais momentum do que aquele que fora tomado em consideração na concepção. O espaço entre o dodecaedro e as paredes parecia agora muito estreito. Talvez acabassem por encalhar irremediavelmente naqueles confins imensos e fossem enfraquecendo até o oxigênio se esgotar. Seria possível que os Veganianos se tivessem dado a todo aquele trabalho e esquecessem que precisamos de oxigênio? Não teriam reparado em toda aquela berraria dos nazis?

Vaygay e Eda estavam profundamente mergulhados nos arcanos da física gravitacional — deformadores, renormalização de propagadores espectrais, vetores Killing tempo-similares, invariância de medição não abeliana, refocalização geodésica, tratamentos de supergravidade undécimodimensionais Kaluza-Klein e, claro, a própria e completamente diferente superunificação de Eda. Compreendia-se à primeira vista não estar uma explicação prontamente ao seu alcance. Ellie calculou que, dali a mais algumas horas, os dois físicos fariam alguns progressos a respeito do problema. A superunificação abarcava virtualmente todas as escalas e todos os aspectos da física conhecida na Terra. Era difícil acreditar que aquele… túnel não era, ele próprio, alguma solução até então não apercebida das equações de campo de Eda.

— Alguém viu uma singularidade nua? — perguntou Vaygay.

— Não sei qual é o seu aspecto — respondeu Devi.

— Peço perdão. Provavelmente não estaria nua. Pressentiram alguma inversão de causalidade, alguma coisa bizarra — verdadeiramente louca—, porventura acerca do modo como estavam a pensar, alguma coisa como, por exemplo, ovos mexidos que se reconstituíam e voltavam a apresentar-se como claras e gemas?

Devi olhou para Vaygay de pálpebras semicerradas.

— Não há novidade — interveio Ellie, muito depressa, a pensar para consigo que Vaygay estava um pouco excitado.

— São perguntas genuínas a respeito de buracos negros. Parecem apenas loucas, mas não são.

— Não — respondeu Devi, devagar —, a não ser a própria pergunta. — Depois animou-se e acrescentou: — Na realidade, tem sido uma viagem maravilhosa.

Concordaram todos. Vaygay estava eufórico.

— Isto é uma versão muito forte de censura cósmica — dizia. — As singularidades são invisíveis mesmo dentro de buracos negros.

— Ele está a brincar — observou Eda. — Uma vez dentro do horizonte coincidente, não há maneira nenhuma de escapar à singularidade do buraco negro.

Apesar das palavras tranqüilizantes de Ellie, Devi olhava desconfiadamente tanto para Vaygay como para Eda. Os físicos tinham de inventar palavras e frases para conceitos muito afastados da experiência quotidiana. Era a sua maneira de evitar neologismos puros e, em vez disso, evocar, ainda que debilmente, qualquer lugar-comum análogo. A alternativa consistia em dar os nomes uns dos outros às descobertas e equações. O que também faziam. Mas, quando não sabíamos que estavam a falar de física, era muito natural ficarmos preocupados a respeito deles.

Ellie levantou-se para se aproximar de Devi, mas, no mesmo momento, Xi chamou-lhes a atenção com um grito. As paredes do túnel estavam a ondular, a apertarem-se sobre o dodecaedro, a «espremê-lo» para a frente. Estava a estabelecer-se um ritmo agradável. Todas as vezes que o dodecaedro abrandava quase até parar, recebia outro apertão das paredes. Ellie experimentou um ligeiro enjôo resultante do movimento.

Nalguns pontos, a passagem era difícil, as paredes trabalhavam esforçadamente, ondas de contração e expansão espraiavam-se túnel abaixo. Noutros pontos, em especial nas retas, saltavam, praticamente.

Ellie distinguiu, a uma grande distância, um vago ponto luminoso, cuja intensidade crescia lentamente. Uma radiância azul-branca começou a inundar o interior do dodecaedro. Via-a refletir-se dos cilindros pretos de érbio, agora quase estacionários. Embora a viagem parecesse ter demorado apenas dez ou quinze minutos, o contraste entre a luz ambiente controlada, velada, da maior parte da viagem e o brilho que crescia em frente era impressionante. Corriam na sua direção, disparados túnel fora e acabando por irromper no que parecia espaço normal. Diante deles encontrava-se um imenso sol azul-branco, desconcertantemente próximo. Ellie compreendeu ato contínuo que era Vega.

Sentiu relutância em olhá-lo diretamente através da objetiva de grande profundidade de foco; isso constituía uma temeridade até mesmo em relação ao Sol, uma estrela mais fria e mais baça. Mas pegou num bocado de papel branco e colocou-o de modo a ficar no plano focal da objetiva e projetar uma imagem luminosa da estrela. Viu dois grandes grupos de manchas solares e uma sugestão, pensou, uma sombra de algum do material do plano anelar. Pousou a câmara, estendeu o braço com a palma da mão para fora, de modo a cobrir apenas o disco de Vega, e foi recompensada com a visão de uma coroa brilhante alongando-se à volta da estrela; antes estivera invisível, detida no clarão de Vega.

Ainda de palma aberta, observou o anel de resíduos que circundava a estrela. A natureza do sistema de Vega fora objeto de debate mundial desde a recepção da Mensagem de números primos. Atuando como atuava em representação da comunidade astronômica do planeta Terra, esperou não estar a cometer quaisquer erros graves. Videogravou numa grande variedade de flstops e velocidades de imagens. Tinham emergido quase no plano anelar, numa brecha circum-estelar livre de resíduos. O anel era extremamente delgado em contraste com as suas vastas dimensões laterais. Ellie conseguia distinguir leves gradações cromáticas dentro dos anéis, mas nenhuma das suas partículas individuais. Se tivessem alguma semelhança com os anéis de Saturno, uma partícula com poucos metros de diâmetro seria gigantesca. Talvez os anéis veganianos fossem inteiramente compostos por grãos de poeira, pedaços de rocha e estilhaços de gelo.

Voltou-se para olhar para trás, para o lugar de onde tinham emergido, e viu um campo negro — um negrume circular, mais negro do que veludo, mais negro do que o céu noturno. Eclipsava a porção protegida do sistema anelar de Vega, que, tirando isso — onde não a obscurecia aquela sombria aparição —, era claramente visível. Enquanto observava mais atentamente através da objetiva, pareceu-lhe distinguir tênues clarões irregulares de luz vindos do seu próprio centro. Radiação hawking? Não, o seu comprimento de onda seria excessivamente longo. Ou luz do planeta Terra que ainda esguichava pelo tubo abaixo? Do outro lado daquele negrume ficava Hokkaido.

Planetas. Onde estavam os planetas? Percorreu o plano anelar com a objetiva de grande profundidade de foco em busca de planetas nele embebidos — ou, pelo menos, da «terra» dos seres que tinham emitido a Mensagem. Em cada brecha nos anéis procurava um mundo-pastor cuja influência gravitacional tivesse limpado as alamedas de poeira. Mas não conseguiu encontrar nada.

— Não encontra nenhuns planetas? — perguntou Xi.

— Nada. Há alguns grandes cometas perto. Consigo ver-lhes a cauda. Mas nada que se pareça com um planeta. Deve haver milhares de anéis separados. Tanto quanto me parece, são constituídos por resíduos. Tenho a impressão de que o buraco negro abriu uma grande brecha nos anéis. É aí que estamos agora, a orbitar lentamente Vega. O sistema é muito jovem — apenas alguns centos de milhões de anos — e vários astrônomos foram de opinião de que era demasiado cedo para haver planetas. Mas, nesse caso, de onde veio a transmissão?

— Talvez isto não seja Vega — sugeriu Vaygay. — Talvez o nosso sinal de rádio venha de Vega, mas o túnel conduza a outro sistema estelar.

— Talvez, mas não deixa de ser uma coincidência divertida que a sua outra estrela tenha aproximadamente a mesma temperatura cromática que Vega — repare, vê-se que é azulada — e a mesma espécie de sistema de resíduos. É verdade que não posso conferir isso em comparação com as constelações, por causa da intensidade do brilho. Mas, mesmo assim, apostava dez contra um em como isto é Vega.

— Mas então onde estão eles? — perguntou Devi.

Xi, possuidor de uma visão aguda, estava a olhar fixamente para cima — através da matriz de organossilicato, para o exterior dos painéis pentagonais transparentes, para o céu que ficava muito acima do plano anelar. Não disse nada e Ellie seguiu o seu olhar. Havia realmente qualquer coisa ali, a brilhar ao sol e com um tamanho angular perceptível. Olhou através da objetiva de grande profundidade de foco. Tratava-se de um imenso poliedro irregular, com cada uma das faces coberta por… uma espécie de círculo? Disco? Prato? Taça?

— Qiaomu, espreite por aqui e diga-nos o que vê!

— Sim, estou a ver. Os seus correlativos… radiotelescópios. Milhares deles, parece-me, a apontar para muitas direções. Não é um mundo. É apenas um engenho.

Observaram à vez através da objetiva. Ellie dominava a impaciência para olhar de novo. A natureza fundamental de um radiotelescópio era mais ou menos especificada pela física das ondas de rádio, mas ela sentia-se decepcionada com o fato de uma civilização capaz de fazer, ou até mesmo apenas de utilizar, buracos negros para uma espécie de transporte hiper-relativístico ainda utilizar radiotelescópios de concepção reconhecível, por muito maciça que fosse a escala. Parecia-lhe atrasado para os Veganianos… carecido de imaginação. Compreendia a vantagem de colocar os telescópios em órbita polar circum-estelar, segura, exceto duas vezes em cada revolução, no tocante a colisão com os resíduos do plano anelar. Mas radiotelescópios a apontar para todo o firmamento — milhares deles — davam a sugestão de uma exploração abrangente do espaço sideral, um Argus em força. Inúmeros mundos candidatos estavam a ser observados para captação de transmissão televisiva, radar militar e talvez outras variedades mais primitivas de radiodifusão desconhecidas na Terra. Detectariam tais sinais com freqüência — perguntou-se —, ou seria a Terra o seu primeiro êxito num milhão de anos de observação? Não se vislumbrava qualquer vestígio de comissão de boas-vindas. Uma delegação vinda das províncias seria tão comum que ninguém fora sequer encarregado de estar atento à sua chegada?

Quando a objetiva voltou às suas mãos, teve grande cuidado com o enfoque, o flstop e o tempo de exposição. Queria um registro permanente, para mostrar à National Science Foundation como era a radioastronomia verdadeiramente a sério. Gostaria que houvesse uma maneira de determinar o tamanho do mundo poliédrico. Os telescópios cobriam-no como lapas numa baia. Um radiotelescópio em g zero podia ser essencialmente de qualquer tamanho. Depois de reveladas as fotografias poderia determinar o tamanho angular (talvez alguns minutos de arco), mas o tamanho linear, as dimensões reais, isso era impossível de determinar, a não ser que se soubesse a que distância se encontrava o objeto. Não obstante, ela pressentia que era imenso.

— Se não há aqui mundos — dizia Xi —, então não há Veganianos. Ninguém aqui vive. Vega é apenas uma casa da guarda, um lugar para a patrulha da fronteira aquecer as mãos.

«Aqueles radiotelescópios — acrescentou, e lançou uma olhadela para cima — são as torres de vigia da Grande Muralha. Quando se está limitado pela velocidade da luz, é difícil manter coeso um império galáctico. Ordena-se à guarnição que sufoque uma rebelião. Dez mil anos depois sabe-se o que aconteceu. Não serve. Demasiado lento. Por isso se dá autonomia aos comandantes da guarnição. Logo, adeus império. Mas aquelas — e agora apontou na direção da mancha que recuava e cobria o céu atrás deles —, aquelas são estradas imperiais. A Pérsia teve-as. Roma teve-as. A China teve-as. Conseqüentemente, não se está restrito à velocidade da luz. Com estradas pode manter-se um império coeso.

Mas Eda, absorto em pensamentos, abanava a cabeça. Preocupava-o qualquer coisa relacionada com a física.

Buraco negro, se disso se tratava realmente, podia agora ver-se a orbitar Vega numa faixa larga completamente livre de resíduos; tanto os anéis interiores como os exteriores lhe deixavam o caminho bem desimpedido. Custava a crer quanto era negro.

Enquanto registrava videopanoramas curtos do anel de resíduos à sua frente, Ellie perguntava a si mesma se, um dia, ele formaria o seu próprio sistema planetário, com as partículas colidindo, aglutinando-se, tornando-se cada vez maiores, e com a ocorrência de condensações gravitacionais até, finalmente, apenas alguns mundos grandes orbitarem a estrela. Era muito semelhante à imagem que os astrônomos tinham da origem dos planetas que circundavam o Sol havia 4,5 mil milhões de anos. Não conseguia distinguir inomogeneidades nos anéis, lugares com uma protuberância discernível onde alguns dos resíduos se tivessem aparentemente concrecionado.

O movimento do buraco negro à volta de Vega criava uma ondulação visível nas faixas de resíduos imediatamente adjacentes. O dodecaedro estava com certeza a deixar uma esteira mais modesta. Perguntou-se se aquelas perturbações gravitacionais, aquelas rarefações e condensações alastrantes, teriam algumas conseqüências a longo prazo, modificariam o padrão da subseqüente formação planetária. A ser assim, então a própria existência de algum planeta, dali a milhares de milhões de anos, poderia ser devida ao buraco negro e à Máquina… e, logo, à Mensagem, e, logo, ao Projeto Argus. Sabia que estava a sobrepessoalizar; se ela nunca tivesse vivido, qualquer outro radioastrônomo teria com certeza recebido a Mensagem, mas mais cedo, ou mais tarde. A Máquina teria sido ativada num momento diferente e o dodecaedro teria encontrado o seu caminho para ali noutra altura qualquer. Por isso, algum futuro planeta naquele sistema poderia dever-lhe a existência a ela. E, por simetria, ela impossibilitara a existência de algum outro mundo que poderia ter estado destinado a formar-se se ela nunca tivesse vivido. Era vagamente incômodo ser responsável, devido a ações inocentes, pelo destino de mundos desconhecidos.

Tentou uma fotografia panorâmica, começando dentro do dodecaedro, saindo depois para os suportes que uniam os painéis pentagonais transparentes e avançando em seguida para a brecha nos anéis de resíduos em que eles, juntamente com o buraco negro, orbitavam. Acompanhou a brecha, flanqueada por dois anéis azulados, até uma distância cada vez maior. Havia qualquer coisa um pouco singular lá em cima, uma espécie de arqueamento no anel interior adjacente.

— Qiaomu — pediu, estendendo-lhe a objetiva —, olhe para ali. Diga-me o que vê.

— Onde?

Ela apontou de novo. Passado um momento, ele localizou o lugar. Ellie percebeu-o por causa da sua ligeira, mas inequívoca, retenção da respiração.

— Outro buraco negro — disse ele. — Muito maior.

Estavam outra vez a cair. Agora o túnel era mais amplo e eles faziam melhor tempo.

— Será isto? — Ellie deu consigo a gritar a Devi. Trazem-nos a Vega para nos exibirem os seus buracos negros. Deixam-nos dar uma olhadela aos seus radiotelescópios de um milhar de quilômetros de distância. Demoramo-nos aí dez minutos, atiram-nos para outro buraco negro e recambiam-nos para a Terra. Foi por isso que gastamos dois bilhões de dólares?

— Talvez nós não contemos — dizia Lunacharsky. Talvez o verdadeiro objetivo fosse infiltrarem-se eles próprios na Terra.

Ellie imaginou escavações noturnas sob as portas de Tróia.

Eda, com os dedos das duas mãos esticados, recomendava calma.

— Aguardemos, para ver — disse. — Este túnel é diferente. Por que haveria de pensar que regressa à Terra?

— Não é Vega o nosso destino previsto? — perguntou Devi.

— O método experimental. Vejamos onde emergimos a seguir.

Neste túnel havia menos atrito com as paredes e menos ondulações. Eda e Vaygay discutiam um diagrama espaço-tempo que tinham desenhado nas coordenadas krusksl-Szekeres. Ellie não fazia idéia nenhuma daquilo de que falavam. O estágio de desaceleração, a parte da passagem que dava a sensação de subir, ainda era desconcertante.

Desta vez, a luz ao fundo do túnel era cor de laranja. Emergiram a uma velocidade considerável no sistema de um contato binário, dois sóis tocando-se. As camadas exteriores de uma estrela gigante vermelha, velha e dilatada emanavam para a fotosfera de uma estrela anã amarela, de meia-idade e vigorosa, uma coisa parecida com o Sol. A zona de contato entre as duas estrelas era brilhante. Ela olhou à procura de anéis de resíduos, ou planetas, ou radiobservatórios em órbita, mas não encontrou nada. Isso não queria dizer grande coisa, pensou. Estes sistemas poderiam ter um número razoável de planetas que eu nunca o conheceria com esta insignificante objetiva de grande profundidade de foco. Projetou o sol duplo no bocado de papel e fotografou a imagem com uma objetiva de pequena profundidade de foco.

Como não havia anéis, havia menos luz disseminada naquele sistema do que à volta de Vega; com a objetiva de ângulo largo conseguiu, depois de explorar um bocado, reconhecer uma constelação que se assemelhava suficientemente à Ursa Maior. Mas teve dificuldade em identificar as outras constelações. Como as estrelas brilhantes da Ursa Maior estão a algumas centenas de anos-luz da Terra, chegou à conclusão de que não tinham saltado mais de algumas centenas de anos-luz.

Disse-o a Eda e perguntou-lhe o que pensava.

— Que penso? Penso que isto é um metropolitano.

— Um metropolitano?

Lembrou-se da sensação de cair por momentos, parecera que nas profundas do Inferno — logo após a Máquina ter sido ativada.

— Um metrô. Um comboio subterrâneo. Estas são as estações. As paragens. Vega, e este sistema, e outros. Embarcam e desembarcam passageiros nas paragens. Aqui mudamos de comboio.

Eda apontou para o contato binário e ela reparou que a sua mão projetava duas sombras, uma antiamarela e outra antivermelha, como — foi a única imagem que lhe veio à cabeça — numa discoteca.

— Mas nós, nós não nos podemos apear — continuou Eda. — Nós estamos numa carruagem fechada. Seguimos para o término, para o fim da linha.

Drumlin apodara tais especulações de Fantasilândia e aquela era — tanto quanto ela podia saber — a primeira vez que Eda cedia à tentação.

Dos Cinco, Ellie era a única astrônoma observacional, embora a sua especialidade não fosse o espectro óptico. Considerava sua obrigação acumular o máximo de dados possível nos túneis e no espaço-tempo quadrimensional comum em que periodicamente emergiam. O presumível buraco negro do qual saíam encontrava-se sempre em órbita à volta de uma estrela ou de um sistema de estrelas múltiplas. Eram sempre aos pares, sempre dois compartilhando a mesma órbita similar — um do qual eram ejetados e outro no qual iam cair. Não havia dois sistemas estreitamente semelhantes. Nenhum era muito parecido com o sistema solar.

Todos forneciam percepções astronômicas instrutivas. Em nenhum deles se via nada parecido com um artefato — um segundo dodecaedro ou qualquer imenso projeto de engenharia para dividir um mundo e reconstituí-lo naquilo a que Xi chamara um engenho.

Desta vez emergiram perto de uma estrela que mudava visivelmente a sua luminosidade (pôde deduzi-lo pela progressão de flstops necessários). Talvez fosse uma das estrelas Lyrae RR. Perto havia um sistema quíntuplo e depois uma anã castanha fracamente luminosa. Algumas encontravam-se no espaço aberto e outras embebidas em nebulosidade, cercadas por incandescentes nuvens moleculares.

Ellie recordou a advertência. «Isto será deduzido da sua parte no Paraíso.»

Nada tinha sido deduzido da parte dela. Apesar de um esforço consciente para manter uma calma profissional, o seu coração estava eufórico com aquela profusão de sóis. Desejou que cada um deles fosse a casa de alguém. Ou viesse a ser um dia.

Mas depois do quarto salto começou a preocupar-se. Subjetivamente, e pelo seu relógio de pulso, parecia ter decorrido cerca de uma hora desde que tinham «deixado» Hokkaido. Se demorasse muito mais tempo, a ausência de certas instalações far-se-ia sentir. Provavelmente havia aspectos da fisiologia humana que não podiam ser deduzidos, mesmo depois de atenta observação televisiva, por uma civilização muito avançada.

E, se os extraterrestres eram tão espertos, por que nos faziam dar tantos pequenos saltos? Enfim, talvez o salto para fora da Terra utilizasse equipamento rudimentar em virtude de apenas primitivos estarem a trabalhar de um lado do túnel. Mas depois de Vega? Por que não nos lançavam diretamente para onde quer que o dodecaedro ia?

Todas as vezes que saía disparada de um túnel, Ellie sentia-se na expectativa. Que maravilhas a esperavam a seguir? Aquilo fazia-lhe lembrar um parque de diversões em escala muito grande, e deu consigo a imaginar Hadden a espreitar pelo seu telescópio para Hokkaido, no momento em que a Máquina fora ativada.

Por muito gloriosas que fossem as vistas oferecidas pelos autores da Mensagem, e por muito que lhe agradasse a sensação de domínio possessivo do assunto quando explicava aos outros algum aspecto da evolução estelar, ao fim de certo tempo sentiu-se decepcionada. Teve de se esforçar para compreender a que se devia tal sentimento. Não tardou a consegui-lo: os extraterrestres estavam a fanfarronar. Parecia incrível. Denunciava qualquer deficiência de caráter.

Enquanto mergulhavam por outro túnel abaixo, este mais largo e tortuoso do que os anteriores, Lunacharsky pediu a Eda uma opinião acerca do motivo por que as paragens do metropolitano se encontravam em sistemas estelares tão pouco prometedores:

— Por que não à volta de uma única estrela, uma estrela jovem, de boa saúde e sem resíduos?

— Porque — respondeu Eda —… claro que se trata apenas de uma opinião, como pediu… porque todos esses sistemas são habitados…

— E eles não querem que os turistas assustem os nativos — comentou Sukhavati.

Eda sorriu e acrescentou:

— Ou o contrário.

— Mas é isso que quer dizer, não é? Há uma espécie qualquer de ética e não interferência em planetas primitivos. Eles sabem que de vez em quando alguns dos primitivos poderiam utilizar o metropolitano…

— E eles estão muito seguros dos primitivos — disse Ellie, a continuar o pensamento —, mas não podem estar absolutamente seguros. Por isso, deixam-nos viajar apenas nos metropolitanos que vão para os lugarejos no meio do mato. Os construtores devem ser uma malta muito cautelosa. Mas, sendo assim, por que motivo nos mandaram um comboio suburbano, e não um expresso?

— Provavelmente é muito difícil construir um túnel expresso — opinou Xi, baseado em anos de experiência de escavações, e Ellie pensou no Túnel Honshu-Hokkaido, um dos orgulhos da engenharia civil da Terra, com os seus cinqüenta e um quilômetros de comprimento.

Algumas das curvas eram agora muito acentuadas. Ela lembrou-se do seu Thunderbird e depois receou agoniar-se. Decidiu lutar o mais tempo que pudesse contra esse mal estar. O dodecaedro não dispunha dos tradicionais saquinhos para o enjôo aéreo.

De repente encontraram-se numa reta e depois o céu apresentou-se coberto de estrelas. Para onde quer que olhasse havia estrelas, não a ninharia de alguns milhares ainda ocasionalmente reconhecidas a olho nu por observadores da Terra, mas uma imensa multitude — algumas, parecia, quase a tocarem as suas vizinhas mais próximas — a cercá-la em todas as direções, muitas delas coloridas de amarelo, azul ou vermelho — em especial de vermelho. O céu fulgurava com sóis vizinhos. Ellie conseguiu distinguir uma imensa nuvem espiralada de poeira, um disco de acreção a fluir aparentemente para um buraco negro de proporções espantosas, do qual saíam clarões de radiação, como relâmpagos de calor numa noite de Verão. Se aquilo era o centro da Galáxia, como ela suspeitava, devia estar banhado de radiação sincrotrônica. Desejou que os extraterrestres se tivessem lembrado quanto os humanos eram frágeis.

E, como se nadasse para o seu campo de visão, à medida que o dodecaedro rotacionava, aproximava-se… um prodígio, uma maravilha, um milagre. Alcançaram-no quase antes de se aperceberem. Enchia metade do céu. Voavam já por cima dele. Na sua superfície havia centenas, talvez milhares, de portais iluminados, cada um de forma diferente. Muitos eram poligonais, ou circulares, ou com um corte transversal elíptico; alguns tinham apêndices salientes ou uma seqüência de círculos excêntricos sobrepostos. Ela percebeu que eram portos de atracação, milhares de diferentes portos de atracação — uns tendo apenas, talvez, metros de tamanho, enquanto outros tinham inequivocamente quilômetros de diâmetro, ou mais. Cada um eles, concluiu, era a réplica, o molde de uma máquina interestelar como aquela. Grandes criaturas em grandes máquinas tinham imponentes portos de entrada. Pequenas criaturas, como nós, tinham pequenos portos. Era um critério democrático, sem qualquer indício de civilizações particularmente privilegiadas. A diversidade dos portos sugeria poucas distinções sociais entre as diversas civilizações, mas implicava uma diversidade de seres e culturas de tirar o fôlego. Falassem da Grand Central Station! — pensou.

A visão de uma Galáxia povoada, de um universo transbordante de vida e inteligência, deu-lhe vontade de chorar de alegria.

Aproximavam-se de um porto iluminado de amarelo que, como Ellie conseguiu ver, tinha a forma exata do dodecaedro em que viajavam. Observou um porto de atracação próximo, onde uma coisa do tamanho do dodecaedro e com a forma aproximada de uma estrela-do-mar estava a encaixar-se suavemente no seu molde. Olhou para a esquerda e para a direita, para cima e para baixo, para a curvatura quase imperceptível daquela grande estação situada no que calculava ser o centro da Via Láctea. Que orgulho para a espécie humana ser finalmente convidada para ali! Há esperança para nós, pensou. Há esperança!

— Bem, não é Bridgeport.

Disse as palavras em voz alta, quando a manobra de atracação se completou num silêncio perfeito.

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