CAPÍTULO III Ruído branco

Melodias ouvidas são doces, mas as não ouvidas são mais doces.

JOHN KIATS «Ode on a Grecian Um» (1820)


As mentiras mais cruéis são muitas vezes ditas em silêncio.

ROBERT LOUIS STEVENSON Virginibus Puerisque (1881)

Os impulsos viajavam havia anos através do grande escuro entre as estrelas. Ocasionalmente, interceptavam uma nuvem irregular de gás e poeira e um pouco da energia era absorvida ou disseminada. Os restantes prosseguiam na direção primitiva. À frente deles havia uma tênue luminosidade amarela, que aumentava lentamente de brilho entre as outras luzes invariáveis. Agora, embora para os olhos humanos continuasse a ser um ponto, era de longe o objeto mais luminoso do céu preto. Os impulsos estavam a encontrar uma horda de gigantes bolas de neve.


Uma mulher esbelta, com trinta e tantos anos, entrava no edifício da administração de Argus. Os seus olhos, grandes e afastados um do outro, suavizavam-lhe a estrutura óssea angulosa do rosto. Uma bandelette de tartaruga prendia-lhe, sem apertar, o cabelo comprido e escuro na base do pescoço. Envergando com despreocupação uma T-shirt de malha e uma saia de caqui, seguiu por um corredor do primeiro andar e transpôs uma porta onde se lia: E. Arroway — diretora. Quando retirou o polegar do fecho acionado por pressão digital, um observador poderia ter reparado num anel que usava na mão direita, com uma pedra vermelha singularmente leitosa que não parecia encastoada por um profissional. A mulher acendeu um candeeiro, procurou numa gaveta e finalmente tirou uns auscultadores. Momentaneamente iluminada na parede ao lado da secretária estava uma citação das Parábolas de Franz Kafka:

Agora as Sereias têm uma arma ainda mais fatal

do que o seu canto, ou seja, o seu silêncio…

Talvez alguém pudesse ter escapado ao seu cantar;

mas ao seu silêncio, certamente nunca.

A mulher apagou a luz com um gesto da mão e dirigiu-se para a porta, na semiobscuridade.

Na sala de controle certificou-se rapidamente de que estava tudo em ordem. Através da janela podia ver alguns dos cento e trinta e um radiotelescópios que se estendiam por dezenas de quilômetros através do deserto restolhoso do Novo México, qual estranha espécie de flor mecânica esticando-se na direção do céu. A tarde estava no princípio e ela estivera levantada até tarde na noite anterior. A radioastronomia pode fazer-se durante o dia, porque o ar não dispersa as ondas de rádio do Sol como dispersa a luz visível normal. Para um radiotelescópio apontando para qualquer lado menos para muito perto do Sol, o céu é negro como breu. Exceto para as ondas de rádio.

Para além da atmosfera da Terra, do outro lado do céu, há um universo fervilhante de radiemissão. Estudando ondas de rádio podemos aprender coisas a respeito de planetas, estrelas e galáxias, acerca da composição de grandes nuvens de moléculas orgânicas que pairam entre as estrelas, acerca da origem, da evolução e do destino do universo. Mas todas estas radiemissões são naturais — causadas por processos físicos, elétrons espiralando no campo magnético galáctico, ou moléculas interestelares colidindo umas com as outras, ou os ecos distantes do vermelho do Big Bang passando dos raios gama na origem do universo para as domesticadas e frias ondas de rádio que enchem todo o espaço da nossa época.

Nas escassas poucas décadas em que os seres humanos se dedicaram ao estudo da radioastronomia nunca houve um verdadeiro sinal vindo dos abismos do espaço, qualquer coisa fabricada, qualquer coisa artificial, qualquer coisa engendrada por uma mente alienígena. Houve falsos alarmes. A variação regular de tempo da radiemissão de quasars e, especialmente, pulsars, tinha ao princípio sido considerada, hesitantemente, tremulamente, uma espécie de sinal anunciador de outro alguém, ou talvez um farol de radionavegação para naves exóticas que cruzassem os espaços entre as estrelas. Mas verificara-se que se tratava de outra coisa — tão exótica, talvez, como um sinal de seres no céu noturno. Os quasars pareciam espantosas fontes de energia, porventura relacionados com buracos negros maciços nos centros de galáxias, alguns deles observados havia já mais de meio caminho, no tempo, em relação à origem do universo. Os pulsars são núcleos atômicos com um movimento giratório rápido e do tamanho de uma cidade. E houvera outras mensagens ricas e misteriosas que tinham acabado por se revelar de certo modo inteligentes, mas não muito extraterrestres. O firmamento estava agora polvilhado de sistemas de radar militares secretos e satélites de radiocomunicação que se encontravam fora do alcance das súplicas de alguns radioastrônomos civis. Algumas vezes eram autênticos foras-da-lei que ignoravam os acordos internacionais de telecomunicações. Não havia nem apelo, nem agravo. Ocasionalmente, todas as nações negavam a responsabilidade. Mas nunca houvera um sinal alienígena inequívoco.

E, no entanto, a origem da vida parecia agora ser tão fácil — e havia tantos sistemas planetários, tantos mundos e tantos milhares de milhões de anos disponíveis para evolução biológica que custava a crer que a Galáxia não estivesse fervilhante de vida e inteligência. O Projeto Argus era a maior instituição do mundo dedicada à busca pela rádio de inteligência extraterrestre. Ondas de rádio viajavam à velocidade da luz, mais rapidamente do que a qual, parecia, nada podia avançar. Eram fáceis de gerar e fáceis de detectar. Até mesmo civilizações tecnológicas muito atrasadas, como a da Terra, descobriram a rádio no princípio da sua exploração do mundo físico. Até mesmo com a rudimentar radiotecnologia disponível — agora, apenas algumas décadas após a invenção do radiotelescópio — é quase possível comunicar com uma civilização idêntica no centro da Galáxia. Mas havia tantos lugares no céu para explorar e tantas freqüências nas quais uma civilização alienígena podia transmitir, que se impunha um programa de observação sistemático e freqüente, paciente. Argus funcionava em pleno havia mais de quatro anos. Houvera glitches, boggeys, indícios, alarmes falsos. Mas nenhuma mensagem.

— Boa tarde, doutora Arroway.

O engenheiro solitário sorriu-lhe agradavelmente e ela retribuiu com um aceno de cabeça. Todos os cento e trinta e um telescópios do Projeto Argus eram controlados por computadores. O sistema varria lentamente o céu, sozinho, certificando-se de que não havia avarias mecânicas ou eletrônicas e comparando os dados de diferentes elementos do exército de telescópios. Ela lançou uma vista de olhos ao analisador de mil milhões de canais, uma bancada eletrônica que cobria uma parede inteira, e à exposição visual do espectrômetro.

Não restava, na realidade, muito para os astrônomos e os técnicos fazerem enquanto o dispositivo de telescópios varria lentamente o céu, ao longo dos anos. Se detectava alguma coisa de interesse, fazia soar automaticamente um alarme que alertava os cientistas do projeto, se necessário fosse na cama, à noite. Depois, a Dra. Arroway começava a funcionar em pleno para determinar se, no caso em questão, se tratava de uma falha instrumental ou de algum boggey espacial americano ou soviético. Juntamente com o pessoal de engenharia, estudava meios de melhorar a sensibilidade do equipamento. Havia algum padrão, alguma regularidade na emissão? Destinava alguns dos radiotelescópios ao exame de objetos astronômicos exóticos que tinham sido recentemente detectados por outros observatórios. Ajudava membros do pessoal e visitantes em projetos sem relação com a SETI. Voava para Washington a fim de manter vivo o interesse da agência de financiamento, a National Science Foundation. Proferia algumas conferências públicas sobre o Projeto Argus — no Rotary Club, em Socorro, ou na Universidade do Novo México, em Albuquerque — e, ocasionalmente, saudava um repórter empreendedor que chegava, por vezes sem ser anunciado, ao mais remoto Novo México.

Ellie tinha de se acautelar para que o tédio não se apoderasse dela. Os seus colegas de trabalho eram simpáticos, mas — mesmo independentemente da impropriedade de um relacionamento pessoal estreito com um subordinado nominal — ela não se sentia tentada a quaisquer verdadeiras intimidades. Houvera alguns relacionamentos breves, escaldantes, mas fundamentalmente casuais, com homens locais sem qualquer ligação com o Projeto Argus. Também nessa área, a sua vida descera sobre ela um tédio, uma lassidão.

Sentou-se diante de uma das consolas e ligou os auscultadores. Sabia que era inútil, pedante, pensar que ela, à escuta num ou dois canais, detectaria um padrão, quando o imenso sistema de computadores que monitorizavam mil milhões de canais não detectara. Mas dava-lhe uma modesta ilusão de utilidade. Recostou-se, de olhos semicerrados, com uma expressão quase sonhadora a envolver os contornos do seu rosto. É realmente encantadora, permitiu-se pensar o técnico.

Ouviu, como sempre, uma espécie de estática, um ruído contínuo, repetitivo, sem método. Uma vez, quando escutava uma parte do céu que incluía a estrela AC+73888, na Cassiopéia, parecera-lhe ouvir uma espécie de canto, a esbater-se e a renascer tantalicamente, situado imediatamente além da sua capacidade de se convencer de que havia ali, de fato, alguma coisa. Aquela era a estrela em cuja direção a nave espacial Voyager 1, agora nas imediações da órbita de Netuno, acabaria por viajar. A nave transportava um registro fonográfico de ouro, no qual estavam gravadas saudações, imagens e canções da Terra. Será possível que eles nos estejam a enviar a sua música à velocidade da luz, enquanto nós lhes enviamos a nossa apenas a um décimo-milésimo dessa velocidade? Noutras ocasiões, como agora, quando a estática era claramente isenta de padrão, Ellie recordava a si mesma a famosa máxima de Shannon a respeito da teoria da informação, segundo a qual a mensagem mais eficientemente codificada era indistinguível do ruído, a não ser que se possuísse de antemão a chave da codificação. Premiu rapidamente alguns botões da consola à sua frente e ligou duas das freqüências de banda estreita uma contra a outra, uma em cada auscultador. Nada. Escutou os dois planos de polarização das ondas de rádio e depois o contraste entre polarização linear e circular. Havia mil milhões de canais por onde escolher. Podia-se passar a vida a tentar levar a palma ao computador, a escutar com ouvidos e cérebros humanos pateticamente limitados a procurar um padrão.

Os humanos são bons, pensou, no discernimento de padrões sutis que realmente existem, mas são-no igualmente a imaginá-los quando estão por completo ausentes. Devia haver alguma seqüência de impulsos, alguma configuração da estática, capazes de produzir por um instante um ritmo sincopado ou uma breve melodia. Mudou a ligação para um par de radiotelescópios que escutavam uma conhecida fonte de rádio galáctica. Ouviu um glissando pelas radiofreqüências abaixo, um whistler devido à dispersão de ondas de rádio por elétrons no tênue gás interestelar entre a fonte de rádio e a Terra. Quanto mais pronunciado o glissando, maior o número de elétrons que se encontravam no caminho e mais distante a fonte estava da Terra. Fizera aquilo tantas vezes que lhe bastava ouvir um whistler de rádio pela primeira vez para ficar com uma idéia exata da sua distância. Este, calculou, encontrava-se a mil anos-luz de distância — muito para lá da vizinhança local de estrelas, mas ainda bem no interior da grande Galáxia da Via Láctea.

Ellie voltou a prestar atenção ao modo de exploração celeste do Projeto Argus. Voltou a não encontrar nenhum padrão. Era como um músico a escutar o ribombar de uma trovoada distante. As ocasionais pequenas extensões de padrão perseguiam-na e introduziam-se-lhe na memória com tal insistência que por vezes se via forçada a voltar atrás, às gravações de determinado período de observação, para ver se havia alguma coisa que a sua mente tivesse captado e houvesse escapado aos computadores.

Toda a sua vida, os sonhos tinham sido seus amigos. Os seus sonhos eram invulgarmente pormenorizados, bem estruturados, coloridos. Conseguia perscrutar atentamente o rosto do pai, digamos, ou a parte de trás de uma velha telefonia, e o sonho fazia-lhe a vontade com pormenores visuais completos. Conseguira sempre recordar-se dos seus sonhos, até às mais pequenas minúcias — exceto nas ocasiões em que se encontrara sob grande pressão, como antes da prova oral do seu doutorado, ou quando ela e Jesse estavam a afastar-se. Mas agora estava a ter dificuldade em recordar as imagens dos seus sonhos. E, desconcertantemente, começara a sonhar sons — como sucede às pessoas cegas de nascença. Nas primeiras horas da manhã, a sua mente inconsciente criava algum tema ou alguma cantilena que nunca ouvira antes. Ellie acordava, dava uma ordem audível à luz da sua mesa-de-cabeceira, pegava na caneta que ali deixara para esse fim, riscava uma pauta e transpunha a música para o papel. Às vezes, após um longo dia, passava-a no seu gravador e perguntava a si mesma se a ouvira em Ofitico ou Capricórnio. Estava, admitia-o relutantemente, a ser atormentada pelos elétrons e pelos buracos móveis que habitam receptores e amplificadores e pelas partículas carregadas e pelos campos magnéticos do gás frio e rarefeito entre as tremeluzentes estrelas distantes.

Era uma única nota repetida, aguda e rouca nas margens. Precisou de um momento para a reconhecer. Depois teve a certeza de que não a ouvia havia trinta e cinco anos. Tratava-se da roldana metálica da corda da roupa que protestava todas as vezes que a mãe puxava e punha outra bata acabada de lavar a secar ao sol. Quando era garotinha, adorara o exército de molas de roupa em ordem de marcha; e, quando não estava ninguém perto, afundava o rosto nos lençóis acabados de secar. O cheiro, simultaneamente doce e acre, encantava-a. Seria aquilo agora uma baforada dele? Lembrava-se de si mesma a rir e a afastar-se, em passos ainda pouco firmes, dos lençóis, quando a mãe, num dos seus movimentos graciosos, a levantava no ar — parecia erguê-la para o céu — e a levava no côncavo do braço, como se ela fosse apenas uma trouxinha de roupa para ser bem arrumada na cômoda do quarto dos pais.

— Doutora Arroway? Doutora Arroway?

O técnico olhou-lhe para as pálpebras trêmulas e reparou na sua respiração superficial. E a pestanejou duas vezes, tirou os auscultadores e lançou-lhe um pequeno sorriso apologético. Às vezes, os seus colegas tinham de falar muito alto se queriam ser ouvidos acima do ruído de rádio cósmico amplificado. Por sua vez, ela dava desconto ao volume do ruído — detestava tirar os auscultadores para conversas breves —, gritando também. Quando estava suficientemente preocupada, uma troca de gracejos casual ou até jovial podia parecer a um observador inexperiente um fragmento de uma discussão violenta e não provocada, inesperadamente desencadeada no meio do silêncio da vasta instalação de rádio. Mas desta vez ela disse apenas:

— Desculpe. Devo ter passado pelas brasas.

— O doutor Drumlin está ao telefone. Está no gabinete do Jack e diz que tem um encontro marcado consigo.

— Com a breca, esqueci-me!

Com o passar dos anos, o brilho de Drumlin permanecera intacto, mas tinham surgido diversas idiossincrasias pessoais adicionais que não eram evidentes quando ela trabalhara brevemente como sua aluna graduada no Cal Tech. Por exemplo, agora tinha o hábito desconcertante de verificar, quando julgava que ninguém estava a observar, se tinha a braguilha aberta. Ao longo dos anos aumentara a sua convicção de que não existiam extraterrestres, ou, pelo menos, se existiam, eram tão raros e tão distantes que não seria possível detectá-los. Fora a Argus para o colóquio científico semanal. Mas ela descobriu que também ali o levara outro propósito.

Drumlin escrevera uma carta à National Science-Foundation insistindo em que Argus terminasse a sua procura de inteligência extraterrestre e se dedicasse em tempo inteiro a radioastronomia mais convencional. Tirou-a de uma algibeira interior e insistiu com ela para que a lesse.

— Nós só trabalhamos no projeto há quatro anos e meio! Exploramos menos de um terço do céu setentrional. Esta é a primeira investigação que está a detectar todo o ruído rádio no mínimo em bandas e freqüência ótimas. Por que quereria você parar agora?

— Não, Ellie, isto é interminável. Ao fim de doze anos não encontrará nenhum sinal de nada. Argumentará que tem de ser construída outra instalação Argus pelo custo de centenas de milhões de dólares na Austrália ou na Argentina, para explorar o céu meridional. E, quando isso falhar, falará da construção de alguma parabolóide com antena de vôo livre em órbita terrestre, para poder obter ondas milimétricas.

«Conseguirá sempre imaginar qualquer espécie de exploração que não foi feita. Inventará sempre qualquer explicação para o fato de os extraterrestres gostarem de emitir precisamente onde não procuramos.

— Oh, Dave, já discutimos isto cem vezes! Se falharmos, aprenderemos alguma coisa acerca da raridade da vida inteligente — ou, pelo menos, da vida inteligente que pensa como nós e quer comunicar com civilizações atrasadas como a nossa! E, se tivermos êxito, ganharemos o jackpot cósmico! Não é possível imaginar maior descoberta.

— Há projetos de primeira categoria que não dispõem de tempo de utilização de telescópio. Há trabalhos sobre evolução de quasars, pulsars binários, as cromosferas de estrelas próximas e até aquelas loucas proteínas interestelares. Estes projetos aguardam em bicha, porque esta instalação — de longe a distribuição melhor faseada do mundo — está a ser utilizada quase inteiramente para a SETI.

— Setenta e cinco por cento para a SETI, Dave, vinte e cinco por cento para radioastronomia rotineira.

— Não lhe chame rotineira. Temos a oportunidade de olhar para trás, para o tempo em que as galáxias estavam a ser formadas, ou talvez mesmo antes disso. Podemos examinar os núcleos de nuvens moleculares gigantes e os buracos negros do centro de galáxias. Está prestes a dar-se uma revolução na astronomia e você está a atravessar-se no caminho.

— Dave, tente não pessoalizar isto. Argus nunca teria sido construída se não houvesse apoio público à SETI. A idéia da Argus não é minha. Sabe que me escolheram para diretora quando os últimos quarenta discos ainda estavam a ser construídos. A NSA apóia inteiramente…

— Não inteiramente, e não se eu tiver alguma palavra a dizer. Isto é exibicionismo. Isto é fazer tagatés a chalados dos OVNis e da banda desenhada e a adolescentes de espírito fraco.

Nesta altura, Drumlin estava praticamente a gritar e Ellie sentiu uma tentação irresistível de lhe reduzir o volume de som. Devido à natureza do seu trabalho e à sua relativa eminência, encontrava-se constantemente em situações em que era a única mulher presente, tirando as que serviam café ou trabalhavam com as máquinas de estenografar. Apesar do que parecia uma vida inteira de esforço da sua parte, ainda havia uma hoste de cientistas do sexo masculino que só falavam uns com os outros, teimavam em interrompê-la e ignoravam, quando podiam, o que ela tinha a dizer. Ocasionalmente, haviam aqueles que, como Drumlin, demonstravam uma franca antipatia. Mas, pelo menos, ele tratava-a como tratava muitos homens. Era imparcial nas suas explosões, que distribuía igualmente por cientistas de ambos os sexos. Havia um pequeno punhado de colegas seus do sexo masculino que não revelavam modificações de personalidade constrangedoras na sua presença. Precisava de passar mais tempo com eles, pensou. Pessoas como Kenneth der Heer, o biólogo molecular do Instituto Salk, que fora nomeado recentemente conselheiro científico presidencial. E Peter Valerian, claro.

Ela sabia que a impaciência de Drumlin com Argus era partilhada por muitos astrônomos. Ao fim dos primeiros dois anos, uma espécie de melancolia infiltrara-se na instalação. Na messe, ou durante os longos e pouco exigentes períodos de vigilância, havia debates apaixonados acerca das intenções dos putativos extraterrestres. Não era possível imaginar como seriam diferentes de nós. Para dificuldade, bastava a de imaginar as intenções dos nossos representantes eleitos em Washington. Quais seriam as intenções de tipos de seres fundamentalmente diferentes de mundos fisicamente diferentes a centenas ou milhares de anos-luz de distância? Alguns estavam convencidos de que o sinal não seria transmitido no espectro de rádio, mas sim no infravermelho, ou no visível, ou algures entre os raios gama. Ou talvez os extraterrestres estivessem a transmitir avidamente, mas com uma tecnologia que não inventaríamos ainda durante mil anos.

Astrônomos de outras instituições estavam a fazer descobertas extraordinárias entre as estrelas e as galáxias, a localizar aqueles objetos que, fosse por que mecanismo fosse, geravam ondas de rádio intensas. Outros radioastrônomos publicavam ensaios científicos, assistiam a encontros, eram encorajados por uma sensação de progresso e propósito. Os astrônomos de Argus tinham tendência para não publicar e eram geralmente ignorados quando se fazia apelo à apresentação de ensaios na reunião anual da American Astronomical Society ou nos simpósios trienais e nas sessões plenárias da International Astronomical Union. Por isso, consultada a National Science Foundation, a diretoria de Argus reservara vinte e cinco por cento do tempo de observação para projetos não relacionados com a busca de inteligência extraterrestre. Tinham sido feitas algumas descobertas importantes sobre os objetos extra galácticos que pareciam, paradoxalmente, mover-se mais depressa do que a luz; sobre a temperatura da superfície da grande lua de Netuno, Tritão; e sobre a matéria escura dos espaços exteriores das galáxias próximas onde não se podiam ver estrelas nenhumas. O moral começava a melhorar. O pessoal de Argus sentia que estava a contribuir para aguçar o gume da descoberta astronômica. É verdade que o tempo para completar uma exploração total do céu tinha sido aumentado. Mas, agora, as suas carreiras profissionais tinham uma certa rede de segurança. Podiam não ser bem sucedidos no objetivo de encontrar sinais de outros seres inteligentes, mas tinham a possibilidade de colher outros segredos do tesouro da natureza.

A procura de inteligência extraterrestre — referida em toda a parte pela abreviatura SETI, exceto por aqueles que falavam um tanto ou quanto mais otimistamente de comunicação com inteligência extraterrestre (CETI) — era essencialmente uma rotina de observação, o enfadonho objetivo principal para o qual a maior parte da instalação tinha sido construída. Mas durante uma quarta parte do tempo podia-se ter a certeza de utilizar o mais potente conjunto de radiotelescópios da Terra para outros projetos. Bastava apenas suportar a parte enfadonha. Uma pequena porção de tempo fora também reservada a astrônomos de outras instituições. Embora o moral tivesse melhorado notoriamente, havia muitos que concordavam com Drumlin; olhavam cobiçosamente o milagre tecnológico que os cento e trinta e um radiotelescópios de Argus representavam e imaginavam utilizá-los para os seus próprios e indubitavelmente meritórios programas. Ela mostrou-se alternadamente conciliadora e contestadora com Dave, mas nem uma coisa nem outra produziu qualquer efeito. Ele não estava com disposição amigável.

O colóquio de Drumlin foi em parte uma tentativa para demonstrar que não havia extraterrestres em parte alguma. Se nós realizáramos tanto apenas nuns poucos milhares de anos de alta tecnologia, de que seria capaz — perguntou — uma espécie verdadeiramente avançada? Seriam capazes de deslocar estrelas, de reconfigurar galáxias. E, no entanto, não existia em toda a astronomia nenhum sinal de um fenômeno que não pudesse ser compreendido por processos naturais, sem que fosse necessário fazer qualquer apelo a inteligência extraterrestre. Por que não detectara já Argus um sinal de rádio? Imaginavam a existência de apenas um radiemissor em todo o firmamento? Faziam idéia de quantos milhares de milhões de estrelas já tinham observado? A experiência era meritória, mas agora acabara. Não tinham de explorar o resto do céu. A resposta era evidente. Nem no espaço mais profundo nem perto da Terra havia qualquer sinal de extraterrestres. Eles não existiam.

No período destinado a perguntas, um dos astrônomos de Argus interrogou-o acerca da Hipótese Zôo, o argumento de que os extraterrestres existiam, de fato, mas preferiam não tornar a sua presença conhecida, a fim de ocultarem aos humanos o fato de haver outros seres inteligentes no cosmo — no mesmo sentido em que um especialista no comportamento de primatas poderia desejar observar um bando de chimpanzés na selva, mas não interferir nas suas atividades. Em resposta, Drumlin fez uma pergunta diferente: É provável que, com um milhão de civilizações na Galáxia o gênero de número, disse, que era «propalado» em Argus, não haja um único «caçador furtivo»? Como se explica que todas as civilizações da Galáxia respeitem uma ética de não interferência? É provável que nem uma delas ande a bisbilhotar a Terra?

— Mas, na Terra — respondeu Ellie —, caçadores furtivos e guardas de caça possuem níveis de tecnologia mais ou menos iguais. Se o guarda de caça está um passo importante à frente — com radar e helicópteros, digamos —, os caçadores furtivos têm o negócio estragado.

A observação foi calorosamente acolhida por alguns dos membros do pessoal do Projeto Argus, mas Drumlin limitou-se a dizer:

— Está às apalpadelas, Ellie. Está às apalpadelas.


A fim de desanuviar o cérebro, tinha o hábito de percorrer longas distâncias sozinha na sua única extravagância, um Thunderbird de 1958 cuidadosamente conservado, com tejadilho duro amovível e pequenas vigias de vidro a flanquear o banco da retaguarda. Freqüentemente, deixava o tejadilho em casa e conduzia velozmente através do deserto restolhoso, à noite, com as janelas descidas e o cabelo escuro a esvoaçar atrás dela. Tinha a impressão de que, ao longo dos anos, acabara por conhecer todas as pequenas vilas empobrecidas, todos os montes íngremes e mesas e todos os policiais de trânsito estaduais da parte sudoeste do Novo México. Depois de um turno de observação noturna adorava passar velozmente pelo posto de guarda de Argus (isto antes da colocação da cerca anticiclone), mudar rapidamente de velocidade e conduzir para norte. À volta de Santa Fé podia vislumbrar-se a luminosidade tenuíssima do alvorecer, acima das montanhas Sangue de Cristo. (Por que seria que uma religião, perguntava-se, usava o sangue e o corpo, o coração e o pâncreas, da sua figura mais reverenciada para batizar as suas localidades? E por que não se encontrava o cérebro entre outros órgãos proeminentes, mas não celebrados?)

Desta vez conduziu para sudeste, na direção das montanhas Sacramento. Teria Dave razão? Poderiam a SETI e Argus ser uma espécie de ilusão coletiva de um punhado de astrônomos insuficientemente realistas? Seria verdade que, fossem quantos fossem os anos que passassem sem a recepção de uma mensagem, o projeto continuaria, inventando sempre uma nova estratégia para a civilização emissora, concebendo incessantemente novos e dispendiosos instrumentos? Que seria um sinal convincente de malogro? Quando estaria ela disposta a desistir e a dedicar-se a qualquer outra coisa mais segura, qualquer outra coisa com mais garantias de resultados? O Observatório Nobeyama, no Japão, acabara de anunciar a descoberta da adenosina, uma molécula orgânica complexa, um tijolo de construção do ADN, instalada no espaço, numa densa nuvem molecular. Poderia, com certeza, ocupar-se utilmente a procurar no espaço moléculas relacionadas com a vida, mesmo que desistisse da procura de inteligência extraterrestre.

Na alta estrada da montanha olhou para o horizonte meridional e captou um vislumbre da constelação Centauro. Na disposição daquelas estrelas, os antigos Gregos tinham visto uma criatura quimérica, meio homem, meio cavalo, que ensinara sageza a Zeus. Mas Ellie nunca conseguia distinguir nenhum padrão que se parecesse, ainda que remotamente, com um centauro. Era Alpha Centauro, a estrela mais brilhante da constelação, que a encantava. Era a estrela mais próxima, apenas a 4,25 anos-luz de distância. Na realidade, Alpha Centauro era um sistema triplo, dois sóis a orbitar-se apertada e mutuamente e um terceiro, mais distante, orbitando ambos. Vistas da Terra, as três estrelas amalgamavam-se e formavam um ponto de luz solitário. Em noites especialmente claras, como aquela, conseguia por vezes vê-lo a pairar algures sobre o México. De vez em quando, em ocasiões em que o ar estivera carregado de poeira do deserto após diversos dias consecutivos de tempestades de areia, ia de carro para as montanhas, a fim de conseguir um pouco de altitude e transparência atmosférica, saía do automóvel e observava o sistema estelar mais próximo. Os planetas eram ali possíveis, embora muito difíceis de detectar. Algum podia estar a orbitar de perto qualquer dos sóis triplos. Uma órbita mais interessante, com alguma estabilidade mecânica celeste razoável, era a figura de um oito, que se desenhava à volta dos dois sóis interiores. Como seria, perguntava-se, viver num mundo com três sóis no céu? Provavelmente ainda mais quente do que o Novo México.

Ellie reparou, com um agradável pequeno estremecimento, que a auto-estrada alcatroada de duas vias estava ladeada de coelhos. Já os vira antes, especialmente quando os seus passeios de carro a tinham levado até ao Texas Ocidental. Estavam com as quatro patas assentes no chão, nas lombas da estrada; mas, à medida que cada um era momentaneamente iluminado pelos novos faróis de quartzo do Thunderbird, erguia-se nas patas traseiras, paralisado, com as dianteiras frouxamente pendentes. Era como se ao longo de quilômetros houvesse uma guarda de honra de coelhos a saudá-la, enquanto ela cortava ruidosamente a noite. Olhavam para cima, mil narizes rosados a estremecer, dois mil olhos brilhantes a luzir no escuro, enquanto aquela aparição se lançava velozmente direita a eles.

Talvez fosse uma espécie de experiência religiosa, pensou. Pareciam ser, na sua maioria, coelhos jovens. Talvez nunca tivessem visto faróis de automóveis. Pensando bem, os dois intensos feixes de luz a deslocar-se a uma velocidade de duzentos e trinta quilômetros por hora constituíam um espetáculo muito interessante. Apesar dos milhares de coelhos que ladeavam a estrada, parecia nunca haver nenhum no meio, perto da linha divisora das duas vias, nunca se verificava uma corridinha atrapalhada para fora do caminho, nunca um triste corpo morto, de orelhas estendidas no pavimento. Mas por que motivo se alinhavam eles ao longo da estrada? Talvez isso tivesse alguma coisa a ver com a temperatura do asfalto, pensou. Ou talvez eles andassem apenas a forragear na vegetação rasteira próxima e sentissem curiosidade a respeito das luzes brilhantes que se aproximavam. Mas seria razoável que nunca nenhum deles desse uns saltitos curtos para visitar os seus primos do outro lado da estrada? Que imaginariam que a auto-estrada era? Uma presença estranha no seu meio, uma presença de função insondável, construída por criaturas que a maior parte deles nunca vira? Duvidava que algum sentisse sequer curiosidade a tal respeito…

O silvo dos pneus na auto-estrada era uma espécie de ruído branco, e ela descobriu que estava involuntariamente — também ali — atenta a um padrão sonoro. Adquirira o hábito de escutar atentamente muitas fontes de ruído branco: o motor do frigorífico, que ligava automaticamente no meio da noite; a água a correr para o seu banho; a máquina de lavar quando lavava a roupa no pequeno compartimento-lavandaria adjacente à cozinha; o rugir do oceano durante uma breve viagem para natação subaquática autônoma que fizera à ilha de Cozumel, à saída do Iucatão, viagem que encurtara devido à sua impaciência em voltar para o trabalho. Escutava essas fontes quotidianas de ruído fortuito e tentava determinar se havia nelas menos padrões aparentes do que na estática interestelar.

Estivera na cidade de Nova Iorque no mês de Agosto anterior, para uma reunião da URSI (a abreviatura francesa da União de Rádio Científica Internacional). Os metropolitanos eram perigosos, tinham-lhe dito, mas o ruído branco era irresistível. No claca-claca daquela via férrea subterrânea parecera-lhe ouvir uma pista e fizera resolutamente gazeta a meio dia de reuniões, viajando da Rua 34 para Coney Island, voltando ao centro de Manhattam e seguindo depois, por uma linha diferente, para a mais remota Queens. Mudara de comboio numa estação em Jamaica e depois regressara, um pouco ruborizada e ofegante — no fim de contas, era um quente dia de agosto, recordara a si mesma — a assinatura da convenção. Às vezes, quando o comboio subterrâneo se inclinava ao descrever uma curva acentuada, as lâmpadas interiores apagavam-se e ela via uma sucessão regular de luzes, a brilhar num fundo azul-elétrico, a desfilar velozmente, como se se encontrasse nalguma impossível nave espacial interestelar hiper-relativista, lançada através de um aglomerado de jovens estrelas azuis supergigantes. Depois, quando o comboio entrava numa reta, as luzes interiores reacendiam-se e ela voltava a tomar consciência do cheiro acre, do balançar de passageiros vizinhos agarrados às alças suspensas do teto, das miniaturais câmaras de televisão de vigilância (fechadas à chave em caixas protetoras e subseqüentemente tornadas «cegas» com sprays de tinta), do estilizado mapa multicor representando o sistema completo de transporte subterrâneo da cidade de Nova Iorque e do guincho de alta freqüência dos travões quando paravam nas estações.

Sabia que tudo aquilo era um pouco excêntrico. Mas ela sempre tivera uma vida de fantasia ativa. Muito bem, era um pouco compulsiva no tocante a escutar ruído. Não via que isso pudesse fazer algum mal. Ninguém parecia aperceber-se muito do fato. De qualquer modo, estava relacionado com o seu trabalho. Se tivesse propensão para tais coisas, talvez tivesse podido deduzir a despesa da sua viagem a Cozumel do seu imposto de rendimento, a pretexto do som das vagas. Enfim, talvez estivesse a tornar-se obsessiva.

Apercebeu-se, com um sobressalto, que chegara à estação o Rockefeller Center. Ao passar apressadamente através de uma acumulação de jornais diários abandonados no chão da carruagem do metropolitano, um cabeçalho do News-Post prendera-lhe o olhar: GUERRILHEIROS OCUPAM KALIL JOSURC. Se gostamos deles, são combatentes da liberdade, pensou. Se não gostamos deles, são terroristas. No caso improvável de não sermos capazes de formar uma opinião, são temporariamente apenas guerrilheiros. Num outro bocado de papel próximo via-se uma grande fotografia de um homem de aspecto saudável e confiante sob o cabeçalho: COMO O MUNDO TERMINARÁ. EXCERTOS DO NOVO LIVRO DE REV. BILY JO RANKIN. EXCLUSIVO DESTA SEMANA NO NEWS-POST. Lera os títulos de raspão e tentara imediatamente esquecê-los. Ao dirigir-se, através das multidões azafamadas, para o hotel da reunião, desejava chegar a tempo de ouvir a exposição de Fujita sobre design de radiotelescópio homormófico.

Sobreposto ao chiar dos pneus havia um som surdo nas costuras de remendos de pavimento, que tinham sido revestidos por diferentes brigadas de cantoneiros do Novo México em épocas diferentes. E, se uma mensagem interestelar estivesse a ser recebida pelo Projeto Argus, mas muito lentamente — um bit de informação em cada ora, digamos, ou em cada semana, ou em cada década? E se houvesse murmúrios muito antigos, muito pacientes, de alguma civilização emissora que não tinha nenhuma maneira de saber que nos cansamos de reconhecimento de padrões ao fim de segundos ou minutos? Supondo que eles viviam dezenas de milhares de anos. E faalaavaam muiiito devaaagaar. Argus nunca o saberia. Poderiam existir criaturas com uma vida tão longa? Haveria na história do universo tempo suficiente para criaturas que se reproduziam muito devagar evoluírem para um estádio de alta inteligência? A decomposição estatística de elos químicos, a deterioração dos seus corpos de acordo com a segunda lei da termodinâmica, não os forçaria a reproduzirem-se com uma freqüência mais ou menos igual à dos seres humanos? E a ter períodos de duração de vida como o nosso? Ou poderiam eles habitar nalgum mundo velho e frígido onde até as colisões moleculares ocorressem com uma lentidão extrema, talvez apenas de uma seqüência por dia? Imaginou ociosamente um radiemissor de concepção reconhecível e familiar colocado num penhasco de gelo metânico, fracamente iluminado por um distante e enfezado Sol vermelho, enquanto, cá muito em baixo, ondas de um oceano de amônia batiam implacavelmente na costa — gerando incidentalmente um ruído branco indistinguível do da rebentação de Cozumel.

O oposto era igualmente possível: faladores rápidos, porventura criaturinhas maníacas, mexendo-se com movimentos rápidos e convulsivos, que transmitiam uma mensagem rádio completa — o equivalente a centenas de páginas de texto inglês — num nanossegundo. Claro que, se o nosso receptor tinha um passa-banda muito estreito, que só permitia escutar uma minúscula faixa de freqüências, éramos obrigados a aceitar a constante têmpora longa. Nunca conseguiríamos detectar uma modulação rápida. Era uma conseqüência simples do teorema integral de Fourrier e estreitamente relacionada com o princípio da incerteza de Heisenber. Assim, por exemplo, se tivéssemos um passa-banda de um kilohertz, não poderíamos compreender um sinal modulado a uma velocidade maior do que um milissegundo. Seria uma espécie de borrão sônico. Os passa-bandas de Argus eram mais estreitos do que um hertz, por isso, para serem detectados, os emissores tinham de estar a modular muito lentamente, mais lentamente do que um bit de informação por segundo. Modulações ainda mais lentas — mais longas do que horas, digamos — podiam ser detectadas facilmente, desde que estivéssemos dispostos a apontar um telescópio à fonte durante esse espaço de tempo e que fôssemos excepcionalmente pacientes. Havia tantos bocados do céu para explorar, tantas centenas de milhares de milhões de estrelas para investigar! Não era possível passar o tempo todo concentrado apenas nalgumas delas. Perturbava-a a idéia de que, na sua pressa de efetuarem uma exploração completa o céu em menos do que a duração de uma vida humana, de escutarem todo o céu em mil milhões de freqüências, tivessem abandonado tanto os faladores frenéticos como os lacônicos laboriosos.

Mas certamente, pensou, eles saberiam melhor do que nós as modulações de freqüências que eram aceitáveis. Deviam ter tido experiência prévia de comunicação interestelar e civilizações recém-emergentes. Se havia uma larga faixa de prováveis ritmos de impulsos que a civilização receptora adotaria, a civilização emissora utilizaria essa faixa. Modulação a microssegundos ou modulação a horas, que lhes custaria isso? Deveriam, quase todos eles, possuir engenharia superior e recursos energéticos enormes pelos padrões da Terra. Se quisessem comunicar conosco, facilitar-nos-iam as coisas. Enviariam sinais em muitas freqüências diferentes. Utilizariam muitas escalas diferentes de tempo de modulação. Saberiam como somos atrasados e teriam compaixão.

Assim sendo, por que motivo não recebêramos nenhum sinal? Seria possível que Dave tivesse razão? Nenhuma civilização extraterrestre em parte alguma? Todos aqueles milhares de milhões de mundos a deteriorar-se, sem vida, estéreis? Seres inteligentes apenas neste obscuro canto de um universo incompreensivelmente vasto? Por muito esforçadamente que tentasse, Ellie não conseguia tomar a sério semelhante possibilidade. Emalhetava-se perfeitamente com temores e pretensões humanas, com doutrinas não provadas acerca de vida depois da morte, com pseudociências como a astrologia. Era a encarnação moderna do solipsismo geocêntrico,

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