CAPÍTULO XXIII Reprogramação

Não obedecemos a fábulas astuciosamente imaginadas…

mas fomos testemunhas oculares.

II Pedro t:16


Olhai e recordai. Olhai para este céu;

Olhai profunda, profundamente para o limpo ar marinho,

O ilimitado, o término da prece.

Falai agora e falai para a sagrada abóbada.

Que ouvis? Que responde o céu?

Os céus estão ocupados; esta não é a vossa casa.

KARL JAY SHAPIRO. Travelogue for Exiles

As linhas telefônicas tinham sido reparadas, as estradas limpas e desimpedidas e foi permitida a representantes cuidadosamente selecionados da imprensa mundial uma vista de olhos às instalações. Alguns repórteres e fotógrafos foram conduzidos através das três aberturas iguais dos benzels, atravessaram a câmara de vácuo e penetraram no interior do dodecaedro. Foram registrados comentários para a televisão, os repórteres sentaram-se nas cadeiras que os Cinco tinham ocupado e falaram ao mundo do malogro daquela primeira tentativa corajosa para ativar a Máquina. Ellie e os seus colegas foram fotografados de longe, para mostrar que estavam vivos e bem, mas por enquanto não seriam concedidas entrevistas nenhumas. O Projeto da Máquina estava a fazer o balanço da situação e a estudar as suas opções futuras. O túnel de Honshu a Hokkaido estava de novo aberto, mas a passagem da Terra para Vega encontrava-se fechada. Eles não tinham testado realmente essa proposição. Ellie perguntava-se se, quando os Cinco abandonassem finalmente o local, o projeto não tentaria pôr de novo os benzels a girar; mas acreditava no que lhe fora dito: a Máquina não voltaria a funcionar, os seres da Terra não voltariam a ter acesso aos túneis. Podíamos fazer pequenas mossas no espaço-tempo, tantas quantas nos apetecesse; não nos serviria de nada se ninguém puxasse do outro lado. Fora-nos dada a possibilidade de um vislumbre, e depois tinham-nos deixado sós, para nos salvarmos a nós próprios. Se fôssemos capazes.

No fim, os Cinco foram autorizados a falar uns com os outros.

Ellie despediu-se sistematicamente deles, um por um. Nenhum a censurou pelas cassettes em branco.

— As imagens das cassettes são gravadas em domínio magnético, em fita — recordou-lhe Vaygay. — Acumulou-se nos benzels um forte campo elétrico e, claro, eles estavam em movimento. Um campo elétrico tempo-variável faz um campo magnético. As equações de Maxwell. Parece-me que foi assim que as suas gravações se apagaram. A culpa não foi sua.

O interrogatório do Vaygay intrigara-o. Não o tinham acusado exatamente, mas sugerido apenas que ele fazia parte de uma conspiração anti-soviética envolvendo cientistas do Ocidente.

— Digo-lhe, Ellie, que a única questão em aberto é a existência de vida inteligente no Politburo.

— E na Casa Branca. Não posso acreditar que a presidente permita que o Kitz leve a sua avante nisto. Ela entregou-se ao Projeto, comprometeu-se nele.

— Este planeta é governado por gente doida. Lembre-se do que têm de fazer para chegar onde estão. A sua perspectiva é tão estreita, tão… breve! Alguns anos. Para os melhores deles, a umas décadas. Só lhes importa o tempo que estão no Poder.

Ellie pensou na Cygnus A.

— Mas eles não têm a certeza de que a nossa história é uma mentira. Não podem prová-lo. Portanto, temos de os convencer. No fundo do seu coração, interrogam-se. «Poderia ser verdade?» Alguns, poucos, até querem que seja verdade. Mas é uma verdade arriscada. Precisam de qualquer coisa vizinha da certeza… E talvez nós possamos fornecê-la. Podemos refinar a teoria gravitacional. Podemos fazer novas observações astronômicas para confirmar o que nos disseram — especialmente quanto ao centro galáctico e a Cygnus A. Eles não vão parar a investigação astronômica. Também podemos estudar o dodecaedro, se nos derem acesso a ele. Nós modificaremos a mente deles, Ellie.

Será difícil fazê-lo se forem todos doidos, pensou ela.

— Não vejo como os governos poderiam convencer as pessoas de que isto foi uma impostura — observou.

— Deveras? Pense nas outras coisas em que eles fizeram as pessoas acreditar. Persuadiram-nos de que só estaremos em segurança se gastarmos toda a nossa riqueza para que toda a gente da Terra possa ser morta num momento quando os governos decidirem que chegou a altura. Parece-me que é difícil fazer as pessoas acreditarem numa coisa tão estúpida. Não, Ellie, eles têm muita habilidade para convencer. Basta-lhes dizer que a Máquina não funciona e que nós enlouquecemos um pouco.

— Não creio que parecêssemos assim tão loucos se contássemos todos a nossa história juntos. Mas talvez você tenha razão. Talvez devamos tentar obter algumas provas primeiro. Vaygay, não haverá problemas consigo quando… regressar?

— Que me podem fazer? Exilar-me em Gorky? Poderia sobreviver a isso; tive o meu dia na praia… Não, estarei em segurança. Você e eu temos um tratado de segurança mútua, Ellie. Enquanto você estiver viva, eles precisarão de mim. E vice-versa, claro. Se a história é verdadeira, gostarão de ter uma testemunha soviética; eventualmente, ainda a contarão, aos gritos, de cima dos telhados. E, como a sua gente, interrogar-se-ão acerca da utilidade militar e econômica de que nós vimos.

— Não importa o que nos digam que façamos. Só importa que permaneçamos vivos. Então contaremos a nossa história — todos os Cinco; discretamente, claro. Ao princípio só àqueles em quem confiamos. Mas essas pessoas contarão a outras. A história propagar-se-á. Não haverá nenhuma maneira de a deter. Mais cedo ou mais tarde, os governos reconhecerão o que nos aconteceu no dodecaedro. E até lá somos apólices de seguro uns dos outros. Ellie, sinto-me muito feliz com tudo isto. Foi a coisa mais formidável que me aconteceu.

— Dê um beijo a Nina, da minha parte — disse ela, momentos antes de ele partir no avião noturno para Moscovo.


Durante o pequeno-almoço perguntou a Xi se estava decepcionado.

— Decepcionado? Ter ido lá — ergueu os olhos na direção do céu —, tê-los visto e estar decepcionado? Sou um órfão da Longa Marcha. Sobrevivi à Revolução Cultural. Tentei cultivar batatas e beterraba sacarina, durante seis anos, à sombra da Grande Muralha. A minha vida inteira tem sido sublevação. Conheço a decepção. Fomos a um banquete e, quando regressamos a casa, à nossa aldeia faminta, sentimo-nos decepcionados por eles não festejarem o nosso regresso? Isso não é decepção. Perdemos uma pequena escaramuça. Estude a… disposição das forças.

Regressaria em breve à China, onde acedera a não fazer quaisquer declarações públicas a respeito do que acontecera na Máquina. Mas voltaria a dirigir a escavação em Xian. O túmulo de Qin esperava por ele. Queria saber até que ponto o imperador se parecia com aquela simulação do outro lado dos túneis.

— Desculpe, sei que isto é impertinente — disse ela, passados momentos —, mas o fato de, de todos nós, só o senhor ter encontrado alguém que… Enfim, em toda a sua vida não houve ninguém que tivesse amado?

Desejou ter formulado a pergunta melhor.

— Todos aqueles a quem amei me foram tirados. Obliterados. Vi os imperadores do século XX chegarem e partirem — respondeu Xi. — Ansiei por conhecer alguém que não pudesse ser revisto, reabilitado, ou censurado. Há somente algumas figuras históricas, poucas, que não podem ser apagadas.

Estava a olhar para o tampo da mesa, a tocar na colher de chá.

— Dediquei a minha vida à Revolução e não estou arrependido. Mas não sei quase nada da minha mãe e do meu pai. Não tenho nenhumas recordações deles. A sua mãe ainda está viva. Você lembra-se do seu pai e voltou a encontrá-lo. Não esqueça quanto é afortunada.


Em Devi, Ellie adivinhou uma mágoa que nunca antes notara. Presumiu que se tratava de uma reação ao ceticismo com que a Diretoria do Projeto e os governos tinham acolhido a sua história. Mas Devi abanou a cabeça.

— Não é muito importante para mim que acreditem ou não em nós. O fundamental é a experiência em si. Transformadora. Ellie, aquilo aconteceu-nos de fato. Foi real. Na primeira noite depois de regressarmos a Hokkaido sonhei que a nossa experiência era um sonho, sabe? Mas não foi, não foi.

«Sim, estou triste. A minha tristeza é… Sabe, lá em cima satisfiz um desejo da vida inteira quando reencontrei Surindar ao fim de tantos anos. Ele era exatamente como eu o recordava, exatamente como sonhava com ele. Mas, quando o vi, quando vi uma simulação tão perfeita, compreendi, soube: este amor era precioso porque me fora roubado, porque eu desistira de tantas coisas para casar com ele. Mais nada. O homem era um pateta. Dez anos com ele, e ter-nos-íamos divorciado. Talvez apenas cinco chegassem. Eu era tão jovem e tola!

— Lamento sinceramente — disse Ellie. — Sei um pouco acerca de chorar um amor perdido.

— Ellie, não compreendeu. Pela primeira vez na minha vida, não choro Surindar. O que choro é a família a que renunciei por amor dele.

Sukhavati iria passar alguns dias a Bombaim e depois visitaria a sua aldeia ancestral, em Tamil Nadu.

— Eventualmente — disse —, será fácil convencermo-nos a nós próprios de que isto foi apenas uma ilusão. Todas as manhãs, quando acordarmos, a nossa experiência estará mais distante, mais delida, será mais como um sonho. Seria melhor para todos nós permanecermos juntos para reforçarmos as nossas recordações. Eles compreenderam esse perigo. Foi por isso que nos levaram para a beira-mar, para um lugar como o nosso próprio planeta, uma realidade que podemos apreender. Não consentirei que ninguém banalize essa experiência. Lembre-se: aconteceu realmente. Não foi um sonho. Ellie, não esqueça.


Tendo em consideração as circunstâncias, Eda estava muito descontraído. Ellie não tardou a compreender porquê. Enquanto ela e Vaygay tinham estado a ser submetidos a prolongados interrogatórios, ele estivera a fazer cálculos.

— Penso que os túneis são pontes Einstein-Rosen — disse. — A relatividade geral admite um tipo de soluções, chamadas buracos de vermes, semelhantes a buracos negros, mas sem nenhuma relação evolutiva — não podem ser gerados, como os buracos negros, pelo colapso gravitacional de uma estrela. Mas o tipo usual de buraco de verme, uma vez feito, expande-se e contrai-se antes de por ele poder passar alguma coisa; exerce correntes de forças desastrosas e exige também — pelo menos do ponto de vista de alguém que ficou atrás — uma infinita quantidade de tempo para ser atravessado.

Ellie não compreendeu como isso poderia constituir grande progresso e pediu-lhe que clarificasse. O problema-chave consistia em manter o buraco de verme aberto. Eda descobrira um tipo de soluções para as suas equações de campo que sugeriam um novo campo macroscópico, uma espécie de tensão que podia ser usada para impedir que um buraco de verme se contraísse completamente. Um buraco assim não apresentaria nenhum dos outros problemas dos buracos negros; teria tensões de correntes muito mais pequenas, acesso em dois sentidos, tempos de trânsito rápidos pelos padrões de medição de um observador exterior e nenhum campo de radiação interior devastador.

— Não sei se o túnel é estável contra pequenas perturbações — esclareceu. — Se não é, eles teriam de construir um sistema de feedback muito complicado para monitorizar e corrigir as instabilidades. Ainda não tenho a certeza de nada disto. Mas, pelo menos, se os túneis podem ser pontes Einstein-Rosen, podemos dar alguma resposta quando nos disserem que tivemos alucinações.

Eda estava ansioso por regressar a Lagos e Ellie via o bilhete verde das Linhas Aéreas Nigerianas a espreitar da algibeira do casaco. Ele perguntava-se se conseguiria interpretar completamente a nova física que a experiência por que tinham passado implicava. Mas confessava-se inseguro, receava não estar à altura da tarefa, sobretudo em virtude daquilo que descrevia como a sua idade avançada para física teórica. Tinha trinta e oito anos. Acima de tudo, disse-lhe, estava desesperado por se reunir à mulher e aos filhos.

Ela abraçou-o e disse-lhe que se sentia orgulhosa por tê-lo conhecido.

— Por quê o pretérito? Voltará a ver-me, com certeza. Ellie — acrescentou, como se fosse uma coisa de que quase se tivesse esquecido, — faz-me um favor? Recorde tudo quanto aconteceu, todos os pormenores, e escreva-o. E depois mande-mo. A nossa experiência representa dados experimentais. Um de nós pode ter visto qualquer coisa que escapou aos outros, qualquer coisa essencial para uma compreensão profunda do que aconteceu. Mande-me o que escrever. Pedi o mesmo aos outros.

Acenou, pegou na pasta velha e entrou no carro do Projeto que esperava.

Estavam a partir, cada um para o seu país, e isso dava a Ellie a impressão de que a sua própria família estava a ser separada, fraturada, dispersa. Ela também achara a experiência transformadora. Como poderia não achar? Fora exorcizado um demônio. Vários demônios. E, precisamente quando se sentia mais capaz de amar do que nunca, descobria-se sozinha.


Levaram-na das instalações de helicóptero. No longo vôo para Washington no avião governamental dormiu tão profundamente que tiveram de a sacudir, para a acordar, quando a gente da Casa Branca entrou a bordo — logo após o aparelho ter aterrado por breves momentos numa pista isolada de Hickam Field, no Havai.

Tinham chegado a um acordo. Ela podia voltar para Argus, embora já não como diretora, e dedicar-se a qualquer problema científico que desejasse. Teria lá, se quisesse, um lugar vitalício.

— Não estamos a ser desrazoáveis — dissera finalmente Kitz ao aceitar o compromisso. — Volte com uma prova sólida, concreta, qualquer coisa verdadeiramente convincente, e juntar-nos-emos a si para fazer o anúncio. Diremos que lhe pedimos que guardasse segredo da sua história até podermos ter a certeza absoluta. Dentro dos limites do razoável, apoiaremos qualquer investigação que queira fazer. Pelo contrário, se anunciássemos a história agora, haveria uma onda inicial de entusiasmo e depois os céticos começariam a criticar. Seria um embaraço para si e um embaraço para nós. É muito melhor reunir as provas, se conseguir.

Talvez a presidente tivesse contribuído para ele mudar de idéias. Não parecia nada crível que Kitz estivesse a gostar do compromisso. Mas, em troca, ela não deveria dizer nada acerca do que acontecera a bordo da Máquina. Os Cinco tinham-se sentado no dodecaedro, conversado uns com os outros e depois saído. Se ela dissesse uma palavra sequer de mais alguma coisa, o perfil psiquiátrico forjado iria parar aos media e, relutantemente, ela seria demitida.


Ellie perguntava a si mesma se eles teriam tentado comprar o silêncio de Peter Valerian, ou de Vaygay, ou de Abonneba. Não via como — a não ser que fuzilassem as equipes de interrogatório de cinco nações e os membros do Consórcio Mundial da Máquina — esperavam conseguir manter aquilo secreto para sempre. Era só uma questão de tempo. Portanto, concluiu, eles estavam a comprar tempo.

Surpreendia-a a brandura dos castigos com que a tinham ameaçado, mas as violações do acordo, se viessem a acontecer, não se verificariam no tempo de Kitz. Ele afastar-se-ia em breve; dentro de um ano, a Administração Lasker deixaria o poder, depois do máximo de dois mandatos constitucionalmente admitido. Ele aceitara sociedade numa firma de advogados de Washington, conhecida pela sua clientela de empreiteiros da Defesa.

Ellie pensava que Kitz tentaria mais qualquer coisa. Não parecia nada preocupado fosse com o que fosse que ela pudesse alegar ter acontecido no Centro Galáctico. O que o angustiava, tinha a certeza, era a possibilidade de o túnel ainda estar aberto para a, ainda que não da, Terra. Ela calculava que as instalações de Hokkaido seriam em breve desmanteladas e que os técnicos regressariam à suas indústrias e universidades. Que histórias contariam? Talvez o dodecaedro fosse colocado em exposição na cidade científica de Tsukuba. Depois, após um intervalo decente de tempo, durante o qual a atenção mundial seria em certa medida atraída por outros assuntos, talvez houvesse uma explosão no estaleiro da Máquina — nuclear, se Kitz conseguisse engendrar uma explicação plausível para ela. Se fosse uma explosão nuclear, a contaminação radiativa seria uma excelente razão para declarar toda a área zona proibida. Pelo menos isolaria o local de observadores casuais e talvez pudesse soltar o bocal, com o safanão. Provavelmente, as suscetibilidades japonesas quanto a armas nucleares, mesmo que deflagradas subterraneamente, obrigariam Kitz a contentar-se com explosivos convencionais. Poderiam disfarçar a coisa como uma das séries contínuas de desastres nas minas de carvão de Hokkaido. Mas ela duvidava que alguma explosão nuclear ou convencional — conseguisse desprender a Terra do túnel.

No entanto, talvez Kitz não estivesse a imaginar nenhuma dessas coisas, talvez ela estivesse a menosprezá-lo. No fim de contas, ele também devia ter sido influenciado pelo Machindo. Devia ter família, amigos, alguém que amasse. Devia ter captado pelo menos um bafejo de quanto se passara.


No dia seguinte, a presidente condecorou-a com a Medalha Nacional da Liberdade, numa cerimônia pública na Casa Branca. Ardiam toras de lenha numa lareira aberta numa parede de mármore branco. A presidente empatara uma grande quantidade de capital político, assim como da espécie mais corrente de capital, no Projeto da Máquina e estava decidida a tirar o melhor partido possível disso, perante a nação e perante o mundo. Os investimentos feitos na Máquina pelos Estados Unidos e por outras nações, dizia-se, tinham dado resultados muito compensadores. Estavam a desabrochar novas tecnologias e indústrias, que prometiam, pelo menos, tanto benefício para a gente comum como as invenções de Thomas Edison. Descobríramos que não estávamos sós, que existiam no espaço inteligências mais avançadas do que a nossa. Isso mudava para sempre, disse a presidente, o conceito de quem somos. Falando por si própria — mas achava que também pela maioria dos Americanos —, a descoberta fortalecera a sua crença em Deus, que se demonstrara agora estar a criar vida e inteligência em muitos mundos, uma conclusão que a presidente tinha a certeza de estar de harmonia com todas as religiões. Mas o maior bem que nos fora concedido pela Máquina, afirmou, foi o espírito que insuflou na Terra: a crescente compreensão mútua entre a comunidade humana, a noção de que somos todos companheiros numa viagem perigosa no espaço e no tempo, o objetivo de uma unidade de propósito global agora conhecido em todo o planeta como Machindo.

A presidente apresentou Ellie à imprensa e às câmaras da televisão, falou da perseverança por ela demonstrada durante doze longos anos, do gênio com que detectara e decodificara a Mensagem e da coragem que revelara ao embarcar na Máquina. Ninguém sabia o que a Máquina faria. A Dra. Arroway arriscara conscientemente a sua vida. Não era culpa da Dra. Arroway o fato de não ter acontecido nada quando a Máquina fora ativada. Ela tinha feito o máximo que qualquer ser humano poderia fazer. Merecia a gratidão de todos os americanos e de toda a gente de todos os cantos da Terra. Ellie era uma pessoa muito reservada. Apesar da sua reticência pessoal, arcara, quando se tornara necessário, com o fardo de explicar a Mensagem e a Máquina. Na verdade, demonstrara para com a imprensa uma paciência que ela, presidente, admirava muito particularmente. A Dra. Arroway poderia agora desfrutar de alguma verdadeira privacidade, a fim de reatar a sua carreira científica. Houvera comunicados para a imprensa, reuniões de instruções, entrevistas com o secretário Kitz e o conselheiro científico Der Heer. A presidente esperava que a imprensa respeitasse o desejo da Dra. Arroway de não conceder nenhuma conferência de imprensa. Foi, no entanto, concedida uma oportunidade para tirar fotografias. Ellie partiu de Washington sem ter conseguido avaliar quanto a presidente sabia.


Transportaram-na de regresso num reluzente pequeno jato do Comando de Transporte Militar Aéreo Conjunto e acederam em parar em Janesville, no caminho. A mãe vestia o velho robe acolchoado. Alguém lhe pusera um pouco de cor nas faces. Ellie deitou o próprio rosto na almofada, ao lado do da mãe. Além de ter recuperado uma hesitante capacidade de falar, a idosa mulher recuperara também o uso suficiente do braço direito para poder dar umas leves palmadinhas no ombro da filha.

— Mãe, tenho uma coisa para lhe dizer. É uma coisa importante. Mas tente ficar calma, não quero transtorná-la. Mãe… vi o paizinho. Vi-o. Ele manda-lhe saudades.

— Sim — A velha acenou devagar com a cabeça. — Esteve cá ontem.

Ellie sabia que John Staughton estivera no lar no dia anterior. Escusara-se a acompanhá-la agora, alegando excesso de trabalho, mas parecia plausível que não desejasse apenas intrometer-se naquele momento. Apesar disso, Ellie ouviu-se dizer, com alguma irritação:

— Não, não. Estou a falar do paizinho.

— Diz-lhe… — A idosa mulher falava com dificuldade. — Diz-lhe, vestido de chiffon. Passe pela tinturaria… quando for da loja para casa.

Era evidente que, no universo da mãe, o pai dela ainda dirigia a loja de ferragens. E no de Ellie também.


A vasta extensão de cerca anticiclone estendia-se agora inutilmente de horizonte a horizonte, a macular a paisagem de deserto de restolho. Ela sentia-se grata por ter regressado, contente por estar a organizar um programa de investigação novo, ainda que em muito menor escala.

Jack Hibbert tinha sido nomeado diretor interino das instalações Argus e ela estava liberta de responsabilidades administrativas. Em virtude de tanto tempo de uso de telescópio ter ficado livre quando o sinal de Vega cessara, respirava-se uma atmosfera inebriante de progresso numa dúzia de sub-disciplinas de radioastronomia havia muito em declínio. Os que com ela tinham trabalhado não demonstraram um resquício sequer de apoio à idéia de Kitz de que a Mensagem era uma impostura. Ellie perguntou a si mesma o que Der Heer e Valerian andariam a dizer aos amigos e colegas acerca da Mensagem e da Máquina.

Duvidava que Kitz tivesse proferido uma única palavra a tal respeito fora do segredo do seu gabinete — que em breve abandonaria — no Pentágono. Ela estivera lá uma vez. Um soldado da Armada — de baioneta numa bainha de couro e mãos apertadas atrás das costas — guardava rigidamente a entrada, não fosse o caso de, no labirinto de corredores concêntricos, alguém de passagem sucumbir a um impulso irracional.

Willie fora pessoalmente buscar o Thunderbird a Wyoming, para que estivesse à sua espera. Nos termos do acordo, ela só o podia conduzir no recinto das instalações, que era suficientemente grande para um normal passeio recreativo de automóvel. Mas não mais paisagens do Texas Ocidental, não mais guardas de honra de coelhos, não mais idas de automóvel às montanhas para vislumbrar uma estrela do hemisfério sul. Esse era o único pesar que a reclusão lhe causava. De qualquer modo, as leiras de coelhos em parada não apareciam no Inverno.

Ao princípio, um corpo razoável de gente da imprensa percorria a área na esperança de lhe gritar uma pergunta ou de a fotografar através de uma teleobjetiva. Mas ela permanecia resolutamente isolada. O recém-importado pessoal de relações públicas era eficiente, até mesmo um pouco implacável, no tocante a desencorajar perguntas. No fim de contas, a presidente pedira que respeitassem a privacidade da doutora Arroway.

Ao longo das semanas e dos meses seguintes, o batalhão de repórteres reduziu-se a uma companhia e depois a um pelotão. Agora restava apenas uma brigada dos mais persistentes, principalmente de The World Hologram e de outros semanários sensacionalistas, de revistas quiliastas, e um único representante de uma publicação que se auto-intitulava Science and God. Ninguém sabia a que seita pertencia e o seu repórter não o dizia.

Quando as histórias foram escritas, falaram de doze anos de trabalho devotado, culminando na importante e triunfante decriptogravação da Mensagem e seguidos pela construção da Máquina. No auge das expectativas mundiais, esta, infelizmente, falhara. A máquina não fora a parte alguma. Naturalmente, a Dra. Arroway estava decepcionada, talvez mesmo, especulavam, um pouco deprimida.

Muitos editorialistas comentaram que esta pausa era bem-vinda. O ritmo de novas descobertas e a necessidade evidente de importantes reavaliações filosóficas e religiosas constituíam uma mistura tão embriagante que se impunha um período de tempo para entrincheiramento e estudo sereno da situação. Talvez a Terra ainda não estivesse preparada para estabelecer contato com civilizações alienígenas. Sociólogos e alguns educadores afirmavam que a mera existência de inteligências extraterrestres mais avançadas do que a nossa exigiria diversas gerações para ser convenientemente assimilada. Era uma agressão física ao amor-próprio humano, diziam. Já tínhamos muito com que nos preocupar. Dentro de algumas décadas compreenderíamos muito melhor os princípios subjacentes à Máquina. Veríamos que erro cometêramos e rir-nos-íamos do descuido, da omissão insignificante que a impedira de funcionar na sua primeira experiência completa, em 1999.

Alguns comentadores religiosos argumentavam que o não funcionamento da Máquina era um castigo do pecado do orgulho, da arrogância humana. Billy Jo Rankin, numa alocução televisiva para toda a nação, opinou que a Mensagem viera de fato diretamente de um inferno chamado Vega, consolidando assim, com fundamento, a sua posição prévia em relação ao assunto. A Mensagem e a Máquina, disse, eram uma Torre de Babel moderna. Estupidamente, tragicamente, os seres humanos tinham aspirado a alcançar o Trono de Deus. Houvera uma cidade de fornicação e blasfêmia, construída havia milhares de anos e chamada Babilônia, que Deus destruíra. No nosso tempo houvera outra cidade assim, com o mesmo nome. Aqueles que amavam a Palavra de Deus tinham cumprido lá, igualmente, o Seu propósito. A Mensagem e a Máquina representavam novo ataque de Perversidade aos justos e tementes a Deus. Mais uma vez, as iniciativas demoníacas tinham sido travadas — no Wyoming, por um acidente divinamente inspirado; na Rússia ímpia, pela confusão dos cientistas comunistas pela Graça Divina.

Mas, apesar dessas advertências claras da vontade de Deus, continuara Rankin, os humanos tinham tentado uma terceira vez construir a Máquina. Deus deixou-os. Depois, docemente, sutilmente, fez com que a Máquina falhasse, defletiu o intento demoníaco e demonstrou novamente o Seu amor e a Sua preocupação pelos Seus desobedientes e pecadores — e, para dizer toda a verdade, pelos Seus indignos — filhos da Terra. Era altura de aprender as lições da nossa tendência para o pecado, das nossas abominações e, antes da chegada do Milênio, do verdadeiro Milênio, que começaria em 1 de Janeiro de 2001, de nos rededicarmos, a nós e ao nosso planeta, a Deus.

As Máquinas deveriam ser destruídas. Todas elas e todas as suas componentes.

A pretensão de que construindo uma máquina, em vez de purificarem o coração, os seres humanos se poderiam sentar à mão direita de Deus deveria ser arrancada, raiz e ramo, antes que fosse demasiado tarde.

No seu pequeno apartamento, Ellie ouviu Rankin até ao fim, desligou o televisor e voltou a concentrar-se na sua programação.

Os únicos telefonemas para o exterior que lhe permitiam fazer eram para o lar de idosos em Janesville, Wisconsin. Todos os telefonemas do exterior, exceto os de Janesville, eram recusados e apresentadas desculpas corteses. Cartas de Der Heer, Valerian e da sua velha amiga do colégio Becky Ellenbogen arquivava-as ela sem as abrir. Chegaram diversas mensagens de Palmer Joss por correio expresso, e depois por mensageiro, da Carolina do Sul. Ela sentia-se muito mais tentada a ler essas do que as outras, mas não lia. Escreveu-lhe um bilhete que dizia apenas: «Meu caro Palmer: Ainda não. Ellie» e mandou-o para o correio sem remetente. Não tinha maneira nenhuma de saber se seria entregue.

Um programa especial de televisão sobre a sua vida, feito sem seu consentimento, descrevia-a como mais reclusa, agora, do que Neil Armstrong; ou mesmo Greta Garbo. Ellie aceitava tudo isso com animosa equanimidade. Estava ocupada noutras coisas. Na realidade, trabalhava noite e dia.

As proibições quanto a comunicação com o mundo exterior não se estendiam a colaboração puramente científica e, através de telerrede assíncrona de canal aberto, ela e Vaygay organizaram um programa de investigação a longo prazo. Entre os objetos a examinar encontravam-se as imediações de Sagitário A no centro da Galáxia e a grande fonte de rádio extragaláctica Cygnus A. Os telescópios Argus eram utilizados como parte de um sistema faseado, ligado aos telescópios soviéticos de Samarcanda. Em conjunto, o sistema americano-soviético atuava como se fizesse parte de um único radiotelescópio do tamanho da Terra. Operando num comprimento de onda de poucos centímetros, podiam analisar fontes de emissão de rádio tão pequenas como o sistema solar interior se estivessem tão distantes como o centro da Galáxia.

Preocupava-a o fato de isso não ser suficientemente bom, de os dois buracos negros em órbitas serem consideravelmente mais pequenos do que isso. No entanto, um programa de monitorização contínua poderia desvendar alguma coisa. Do que realmente precisavam, na sua opinião, era de um radiotelescópio lançado por veículo espacial para o outro lado do Sol e que trabalhasse conjugado com radiotelescópios na Terra. Os seres humanos poderiam criar assim um telescópio tendo efetivamente as dimensões da órbita da Terra. Com ele, calculava, conseguiriam analisar qualquer coisa do tamanho da Terra no centro da Galáxia. Ou talvez do tamanho da estação.

Passava a maior parte do seu tempo a escrever, a modificar programas existentes para o Cray 21 e a redigir um relato, tão minucioso quanto possível, dos acontecimentos proeminentes que tinham sido comprimidos nos vinte minutos de tempo terrestre após terem ativado a Máquina. A meio do trabalho apercebeu-se de que estava a escrever samizdat: tecnologia da máquina de escrever e do papel químico. Fechou o original e duas cópias no seu cofre — ao lado de uma cópia já amarelecida da Decisão Hadden —, escondeu a terceira cópia atrás de um painel solto do compartimento eletrônico do telescópio 49 e queimou o papel químico, o que produziu um fumo preto e acre. Ao fim de seis semanas tinham acabado a reprogramação e, precisamente quando os seus pensamentos voltavam a fixar-se em Palmer Joss, ele apresentou-se pessoalmente no portão principal de Argus.

O seu caminho tinha sido aberto mediante alguns telefonemas de um assistente especial da presidente, o qual, claro, Joss conhecia havia vários anos. Mesmo ali no Sudoeste, onde reinavam códigos de vestuário prático, ele apareceu, como sempre, de casaco, camisa branca e gravata. Ela deu-lhe a fronde de palmeira, agradeceu-lhe o medalhão e, apesar das recomendações de Kitz para manter secreta a sua experiência ilusória, contou-lhe imediatamente tudo.

Adotaram a prática dos colegas soviéticos de Ellie, que, sempre que era necessário dizer qualquer coisa politicamente heterodoxa, descobriam a necessidade urgente de um passeio higiênico. De vez em quando ele parava e, como veria um observador distante, inclinava-se para ela. De todas as vezes, Ellie dava-lhe o braço e continuavam a andar.

Ele escutava compreensivamente, inteligentemente, na verdade generosamente — sobretudo tratando-se de alguém cujas doutrinas deviam, pensava ela, estar a ser abaladas nos próprios alicerces pelo relato de Ellie… se lhes dava algum crédito. Depois de toda a relutância de Joss, na altura em que a Mensagem começara a ser recebida, ela estava finalmente a mostrar-lhe Argus. Ele era uma companhia agradável e Ellie sentia-se feliz por vê-lo. Teve pena de não ter estado menos preocupada quando o vira a última vez, em Washington.

Aparentemente ao acaso, subiram a estreita escada exterior de metal que atravessava a base do telescópio 49. O espetáculo proporcionado por cento e trinta radiotelescópios — muitos deles material rolante no seu próprio sistema de vias férreas — não tinha nada que se lhe assemelhasse na Terra. No compartimento eletrônico, ela afastou o painel e retirou um sobrescrito volumoso com o nome de Joss. Ele meteu-o na algibeira interior do casaco, onde fez uma saliência discernível.

Ellie falou-lhe dos protocolos de observação de Sag A e Cyg A e do seu programa para o computador.

— É muito demorado, mesmo com o Cray, calcular pi até qualquer coisa como dez à décima… e nós não sabemos se o que procuramos está em pi. Eles disseram mais ou menos que não estava. Pode estar em e. Pode tratar-se de um dos membros da família de números transcendentes de que falaram a Vaygay. Pode ser um outro número qualquer completamente diferente. Por isso, uma abordagem de força bruta ignorante — como calcular eternamente números transcendentais exeqüíveis — é uma perda de tempo. Mas aqui em Argus temos algoritmos de decriptogravação muito sofisticados, concebidos para descobrir padrões num sinal, concebidos para extrair e mostrar qualquer coisa que pareça não casual. Por isso, reescrevi os programas…

Pela expressão do rosto dele, receou não estar a ser clara. Fez um pequeno desvio no monólogo:

— … mas não para calcular os dígitos de um número como pi, imprimi-los e apresentá-los para inspeção. Não há tempo suficiente para tal. Em lugar disso, o programa corre através dos dígitos em pi e só pára para pensar quando surge alguma seqüência anômala de zeros e uns. Compreende o que estou a dizer? Qualquer coisa não ao acaso. Por probabilidade, haverá alguns zeros e uns, claro. Dez por cento dos dígitos serão zeros e outros dez por cento serão uns. Em média. Quanto mais dígitos percorrermos de enfiada, tanto maiores serão as seqüências de zeros e uns puros que obteremos por acaso. O programa sabe o que estatisticamente se espera, e só presta atenção a seqüências inesperadamente longas de zeros e uns. E não procura apenas na base dez.

— Não compreendo. Se observarem ao acaso números suficientes, não obterão qualquer padrão que queiram simplesmente por acaso?

— Com certeza. Mas pode-se calcular em que medida isso é provável. Se obtemos uma mensagem muito completa logo ao princípio, sabemos que não pode ser por acaso. Por isso, todos os dias, nas primeiras horas da manhã, o computador trabalha neste problema. Não entram nenhuns dados do mundo exterior. E por enquanto não saem nenhuns dados do mundo interior. Limita-se a percorrer as séries ótimas de expansão para pi e observa os dígitos a voar. Mete-se só na sua vida, digamos. A não ser que descubra alguma coisa, não fala se lhe não falarem. É assim como se estivesse a contemplar o umbigo.

— Deus sabe que não sou nada matemático. Mas pode dar-me um exemplo?

— Com certeza.

Procurou um bocado de papel nas algibeiras do fato-macaco e não encontrou nenhum. Pensou meter a mão na algibeira interior do casaco dele, retirar o sobrescrito que acabara de lhe dar e escrever nele, mas achou que era muito arriscado, ali, em campo aberto. Passados momentos, ele compreendeu e estendeu-lhe um livrinho de apontamentos.

— Obrigada. Pi começa por 3,1415926… Como pode ver, os dígitos variam muito ao acaso. Certo, um aparece duas vezes nos primeiros quatro dígitos, mas, depois de prosseguirmos durante um bocado, estabelece-se a média. Cada dígito — 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 — aparece quase exatamente dez por cento das vezes depois de termos acumulado dígitos suficientes. Ocasionalmente, obtemos alguns dígitos consecutivos que são os mesmos — 4444, por exemplo —, mas não mais do que seria estatisticamente de esperar. Agora imagine que estava a percorrer alegremente estes dígitos e, de súbito, só encontrava quatros. Centenas de quatros todos de enfiada. Isso não podia transmitir nenhuma informação, mas também não podia ser um bambúrrio estatístico. Podiam-se calcular os dígitos de pi durante toda a idade do universo e, se os dígitos fossem ocasionais, nunca se chegaria suficientemente fundo para obter uma centena de quatros consecutivos.

— É como a exploração que fez para a Mensagem. Com estes radiotelescópios.

— Sim. Em ambos os casos procurávamos um sinal que se encontrava bem fora do ruído, qualquer coisa que não pode ser apenas um bambúrrio estatístico.

— Mas não tem de ser uma centena de quatros… pois não? Podia falar-nos?

— Certo. Imagine que passado algum tempo obtemos uma longa seqüência apenas de zeros e uns. Assim, tal como fizemos com a Mensagem, podíamos extrair um desenho, se lá houvesse algum. Compreenda, podia ser qualquer coisa.

— Quer dizer que podia decodificar um desenho escondido em pi e poderia ser uma salada de letras hebraicas?

— Com certeza. Grandes letras pretas talhadas em pedra.

Ele olhou-a ironicamente.

— Desculpe, Eleanor, mas não acha que está a ser um bocadinho… indireta demais? Não pertence a nenhuma ordem silenciosa de monjas budistas. Por que não me conta simplesmente a sua história?

— Palmer, se eu tivesse provas sólidas, falaria. Mas, não tendo nenhumas, as pessoas como o Kitz dirão que estou a mentir. Ou com alucinações. É por isso que esse manuscrito está na sua algibeira interior. Você vai lacrá-lo, datá-lo, reconhecê-lo pelo notário e guardá-lo num cofre de depósito. Se me acontecer alguma coisa, pode divulgá-lo ao mundo. Dou-lhe autoridade total para fazer o que quiser dele.

— E se não lhe acontecer nada?

— Se não me acontecer nada? Então, quando encontrarmos o que procuramos, esse manuscrito confirmará a nossa história. Se encontrarmos evidência de um buraco negro duplo no Centro Galáctico, ou alguma imensa construção artificial em Cygnus A, ou uma mensagem oculta dentro de pi, isto — deu-lhe uma leve palmadinha no peito — será a minha prova. Então falarei… Entretanto, não o perca.

— Continuo a não compreender — confessou ele. — Sabemos que existe uma ordem matemática no universo. A lei da gravidade e tudo isso. Em que é isto diferente? Digamos que existe ordem dentro dos dígitos de pi. E depois?

— Não. Não vê? Isto seria diferente. Isto não é apenas começar o universo com algumas leis matemáticas precisas que determinam a física e a química. Isto é uma mensagem. Quem quer que faz o universo oculta mensagens em números transcendentes para que elas sejam lidas quinze mil milhões de anos depois, quando a vida inteligente finalmente evoluir. Critiquei-o, e ao Rankin, quando nos encontramos pela primeira vez, por não compreenderem isso. «Se Deus quisesse que soubéssemos que existia, por que não nos enviaria uma mensagem sem ambigüidades?», perguntei. Lembra-se?

— Lembro-me muito bem. Você pensa que Deus é um matemático.

— Qualquer coisa do gênero. Se o que nos dizem é verdade. Se isto não é uma busca sem objetivo. Se há uma mensagem oculta em pi e não um da infinidade de outros números transcendentes. Uma quantidade de «ses», como vê.

— Está a procurar a Revelação na aritmética. Conheço uma maneira melhor.

— Palmer, esta é a única maneira. Esta é a única coisa capaz de convencer um cético. Imagine que descobrimos qualquer coisa. Não tem de ser tremendamente complicado. Basta que seja qualquer coisa mais metódica que possa acumular por acaso todos esses dígitos em pi. Só disso que precisamos. Então, matemáticos de todo o mundo poderão encontrar exatamente o mesmo padrão ou mensagem ou seja lá o que venha a ser. Então não haverá divisões sectárias. Toda a gente começará a ler a mesma Escritura. Então ninguém poderá argumentar que o milagre-chave da religião foi truque de qualquer prestidigitador, ou que os historiadores falsificaram os registros, ou que não passa tudo de histeria, ou ilusão, ou um progenitor-substituto para quando crescemos. Toda a gente poderá ser um crente.

— Não pode ter a certeza de que encontra alguma coisa. Pode esconder-se aqui e computar até as galinhas terem dentes. Ou pode sair e contar a sua história ao mundo. Mais cedo ou mais tarde terá de escolher.

— Espero não ter de escolher, Palmer. Primeiro, a evidência concreta; depois, a divulgação pública. Caso contrário… Não vê como nos tornaríamos vulneráveis? Não falo por mim própria, mas…

Ele abanou a cabeça, quase imperceptivelmente. Brincava-lhe um sorriso nos cantos dos lábios. Detectara um fator irônico nas circunstâncias deles.

— Por que está tão ansioso para que eu conte a minha história? — perguntou Ellie.

Talvez ele tenha considerado que se tratava de uma pergunta retórica. Fosse como fosse, não respondeu, e ela continuou:

— Não acha que se deu uma estranha… inversão nas nossas posições? Aqui estou eu, portadora da profunda experiência religiosa que não posso provar… para ser franca, Palmer, mal posso compreendê-la. E aqui está você, o cético endurecido, a tentar — com mais êxito do que eu jamais consegui — ser generoso com o crédulo…

— Oh, não, Eleanor! Eu não sou um cético. Eu sou um crente.

— É? A história que tenho para contar não é exatamente acerca de castigo e recompensa. Não é exatamente Advento e Êxtase. Não há nela uma palavra a respeito de Jesus. Parte da minha mensagem diz que nós não somos fundamentais para o objetivo do cosmo. O que me aconteceu faz-nos parecer a todos muito pequenos.

— Pois faz. Mas também faz Deus muito grande.

Ela olhou-o um momento e apressou-se a continuar:

— Sabe que é tão verdade como a Terra correr à volta do Sol que os poderes deste mundo — os poderes religiosos, os poderes seculares — teimaram em tempos que a Terra não se mexia nada. Estavam todos ocupados a ser poderosos. Ou, pelo menos, a fingir que eram poderosos. E a verdade fê-los sentirem-se muito pequenos. A verdade assustou-os; minou os seus poderes. Por isso eles a suprimiram. Essas pessoas achavam a verdade perigosa. Tem a certeza de que sabe o que implica acreditar em mim?

— Tenho andado à procura, Eleanor. Acredite-me, ao fim de todos estes anos conheço a verdade quando a vejo. Qualquer fé que admira a verdade, que luta para conhecer Deus, tem de ser suficientemente corajosa para abranger o universo. Refiro-me ao universo real. Todos esses anos-luz. Todos esses mundos. Penso na extensão do seu universo, nas oportunidades que oferece ao Criador, e falta-me a respiração. É muito melhor do que engarrafá-lo num pequeno mundo. Nunca me agradou a idéia de a Terra ser o escabelo verde de Deus. Era excessivamente tranqüilizadora, como uma estória para crianças… como um tranqüilizante. Mas o seu universo tem espaço suficiente, e tempo suficiente, para a espécie de Deus em que acredito. Digo-lhe que não precisa de mais provas. Já existem provas bastantes. Cygnus A e tudo isso são coisas apenas para os cientistas. Você julga que será difícil convencer a gente comum de que está a dizer a verdade. Eu acho que será fácil, uma canja, como costuma dizer-se. Julga que a sua história é excessivamente peculiar, excessivamente estranha. Mas eu ouvi-a antes. Conheço-a bem. E aposto que você também.

Fechou os olhos e passado um momento recitou: Ele sonhou e, pasmai, uma escada ergueu-se na Terra, e o cimo dela chegou ao Céu: e, pasmai, os anjos de Deus a subirem-na e a descerem-na… certamente o Senhor está neste lugar; e eu não sabia… Esta não é outra que não a Casa de Deus, e esta é a porta do Céu.

Ele deixara-se levar um pouco pelo entusiasmo, como se estivesse a pregar para multidões do púlpito de uma grande catedral, e, quando abriu os olhos, fê-lo com um pequeno sorriso auto-depreciativo. Desceram uma vasta avenida, flanqueada à esquerda e à direita por enormes radiotelescópios caiados de branco a perscrutar o céu, e instantes depois ele falou num tom mais coloquial:

— A sua história foi prevista. Aconteceu antes. Algures, dentro de si, você deve tê-lo sabido. Nenhum dos pormenores que apresenta constam do Livro do Gênesis. Claro que não. Como poderiam constar? O relato do Gênesis estava certo para o tempo de Jacob. Assim como o seu testemunho está certo para este tempo, para o nosso tempo. As pessoas vão acreditá-la, Eleanor. Milhões delas. Em todo o mundo. Tenho a certeza…

Ellie abanou a cabeça e caminharam mais um momento em silêncio, antes de ele continuar:

— Seja, pronto. Compreendo. Demore o tempo que tiver de demorar. Mas, se houver alguma maneira de apressar as coisas, utilize-a… por mim. Falta menos de um ano para o Milênio.

— Eu também compreendo. Tenha paciência comigo durante mais uns meses. Se até lá não encontrarmos alguma coisa em pi, considerarei a idéia de tornar público o que aconteceu lá em cima. Antes de 1 de Janeiro. Talvez Eda e os outros estejam dispostos a falar também. De acordo?

Retrocederam em silêncio na direção do edifício da administração de Argus. Os aspersores estavam a regar o parco relvado e eles contornaram uma poça de água que, naquela terra ressequida, parecia estranha, deslocada.

— Alguma vez foi casada? — perguntou ele.

— Não, nunca fui. Creio que tenho andado demasiado ocupada.

— Alguma vez esteve apaixonada? — a pergunta foi franca, natural.

— Estive a meio caminho, meia dúzia de vezes. Mas… — olhou para o telescópio mais próximo — havia sempre tanto ruído que o sinal era difícil de encontrar. E você?

— Nunca — respondeu sem hesitar. Fez uma pausa e depois acrescentou, com um leve sorriso: — Mas eu tenho fé.

Ela resolveu não aprofundar, naquele momento, aquela ambigüidade e subiram o curto lanço de degraus para examinar o computador mainframe.

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