Com os mais vis dos companheiros, percorri as ruas de Babilônia…
O computador mainframe[13] Cray 21 de Argus tinha sido instruído para comparar a colheita diária de dados de Vega com os primeiros registros do nível três do palimpsesto. Com efeito, uma longa e incompreensível seqüência de zeros e uns estava a ser automaticamente comparada com outra seqüência anterior semelhante. Isto fazia parte de uma intercomparação estatística maciça de vários segmentos do texto ainda não descriptografado. Havia algumas curtas seqüências de zeros e uns — os analisadores chamavam-lhes «palavras», cheios de esperança — que se repetiam e tornavam a repetir. Muitas seqüências apareciam só uma vez em milhares de páginas de texto. Esta abordagem estatística da decifração de mensagens era conhecida de Ellie desde o liceu. Mas as sub-rotinas fornecidas pelos peritos da National Security Agency — postas à disposição apenas em conseqüência de uma diretiva presidencial, e mesmo assim munidas de instruções para se auto-destruírem se examinadas aprofundadamente — eram brilhantes.
Que prodígios de inventiva humana, pensou Ellie, estavam a ser congregados para a leitura da correspondência mútua! O confronto global entre os Estados Unidos da América e a União Soviética agora, sem dúvida, a abrandar um pouco — ainda estava a devorar o mundo. Não se tratava apenas dos recursos financeiros destinados às instituições militares de todas as nações. Esses aproximavam-se dos dois bilhões de dólares por ano e eram só por si ruinosamente dispendiosos, quando havia tantas outras necessidades humanas urgentes. Mas o pior, sabia-o, era o esforço intelectual dedicado à corrida aos armamentos.
Calculara-se que quase metade dos cientistas do planeta trabalhavam num ou noutro dos quase duzentos estabelecimentos militares do mundo. E não eram o refugo dos programas doutorais de Física e Matemática. Alguns dos seus colegas consolavam-se com esse pensamento quando surgia o problema constrangedor do que dizer a um recente candidato ao doutorado que andava a ser cortejado, digamos, por um dos laboratórios de armas. «Se ele prestasse para alguma coisa, oferecer-lhe-iam, pelo menos, o lugar de professor auxiliar em Stanford», lembrava-se de ter ouvido Drumlin dizer uma vez. Não, uma certa espécie de cérebro e de caráter estava a ser atraída para as aplicações militares da ciência e da matemática — pessoas que gostavam de grandes explosões, por exemplo; ou aqueles que não tinham gosto nenhum pelo combate pessoal e que, para vingar alguma injustiça sofrida no recreio da escola, aspiravam ao comando militar; ou solucionadores inveterados de quebra-cabeças que ansiavam por decifrar as mensagens mais complexas que se conheciam. Ocasionalmente, a motivação era política, remontava a disputas internacionais, política de imigração, horrores do tempo de guerra, brutalidade policial ou propaganda nacional desta ou daquela nação décadas atrás. Ellie sabia que muitos destes cientistas tinham competência genuína, fossem quais fossem as reservas que as suas motivações lhe despertassem. Tentou imaginar essa amálgama de talento verdadeiramente dedicada ao bem-estar da espécie e do planeta.
Deu uma vista de olhos aos relatórios que se tinham acumulado durante a sua ausência. Não estavam a progredir quase nada na decifração da Mensagem, embora as análises estatísticas formassem já uma rima de papel de um metro de altura. Era tudo muito desencorajador.
Desejou que houvesse em Argus alguém, especialmente uma amiga íntima, com quem pudesse desabafar a sua mágoa e a sua cólera pelo procedimento de Ken. Mas não havia, e ela não se sentia nada inclinada a usar o telefone para esse fim. Conseguiu passar um fim-de-semana com a sua amiga do colégio Becky Ellenbogen, em Austin, mas Becky, cujas avaliações dos homens tinham propensão para se situar algures entre perversas e mordazes, neste caso mostrou-se surpreendentemente moderada na sua crítica.
— Ele é o conselheiro científico da presidente e esta é apenas a mais espantosa descoberta da história do mundo. Não sejas tão severa com ele — aconselhou Becky. — Voltará às boas.
Mas Becky era uma das que consideravam Ken «encantador» (vira-o uma vez na inauguração do National Neutrino Observatory) e talvez tivesse excessiva inclinação para se acomodar ao poder. Se Der Heer tivesse tratado Ellie daquela maneira indecente enquanto era apenas um professor de Biologia Molecular algures, Becky tê-lo-ia posto em vinha de alhos e assado no espeto!
Depois de regressar de Paris, Der Heer lançara-se numa verdadeira campanha de desculpas e demonstrações de dedicação. Andara sob enorme tensão, justificara-se, sobrecarregado com uma infinidade de responsabilidades que incluíam problemas políticos difíceis e fora do vulgar. A sua posição como chefe da delegação americana e co-presidente do plenário poderia ter-se tornado menos efIcaz se houvesse conhecimento público do seu relacionamento com Ellie. Kitz fora insuportável. Ken passara muitas noites consecutivas com escassas horas de sono. No conjunto, Ellie achou as explicações excessivas. Mas consentiu que a ligação continuasse.
Quando aconteceu, foi de novo Willie, desta vez no turno da meia-noite às oito horas, quem primeiro se apercebeu. Posteriormente, Willie atribuiria a rapidez da descoberta menos ao computador supercondutor e aos programas da NSA do que aos novos chips de reconhecimento de contexto Hadden. de qualquer modo, Vega estava baixa no céu mais ou menos uma hora antes da alvorada quando o computador acionou um alerta moderado. Com algum aborrecimento, Willie largou o que estava a ler — um novo manual sobre espectroscopia de transformação rápida de Fourier — e reparou que estavam a ser impressas no écran as seguintes palavras:
RPT. TEXTO PP. 41617-41619: DESCORRELAÇÃO DE BIT 0/2271. COEFICIENTE DE CORRELAÇÃO 0,99 +
Enquanto observava, o número 41619 passou para 41620 e depois para 41621. Os dígitos depois da barra aumentavam numa marcha contínua. Tanto o número de páginas como o coeficiente de correlação, uma medida da improbabilidade de a correlação ser por acaso, aumentavam enquanto ele olhava. Deixou passar mais duas páginas antes de utilizar a linha direta para o apartamento de Ellie.
Ela dormia profundamente e ficou por momentos desorientada. Mas acendeu depressa o candeeiro da mesa-de-cabeceira e passados instantes deu instruções para que o pessoal superior de Argus se reunisse. Disse que localizaria Der Heer, que se encontrava algures nas instalações. O que não foi muito difícil. Sacudiu-lhe o ombro:
— Ken, levanta-te. Chegaram notícias de que repetimos.
— O quê?
— A Mensagem reciclou. Ou, pelo menos, é isso o que o Willie diz. Vou para lá. Por que não esperas dez minutos, para podermos fingir que estavas no teu quarto, no BSQ?
E chegara quase à porta quando ele lhe gritou:
— Como podemos reciclar? Ainda não recebemos o manual.
Corria através dos écrans uma seqüência emparelhada de zeros e uns, uma comparação de tempo real dos dados a serem recebidos naquele momento com os dados de uma página anterior de texto recebida em Argus um ano antes. O programa teria separado quaisquer diferenças. Por enquanto não havia nenhumas. Tranqüilizou-os verificar que não tinham transcrito mal, que não havia erros de transmissão aparentes e que, se alguma pequena nuvem interestelar densa entre Vega e a Terra podia «comer» um ocasional um ou zero, isso era uma ocorrência infreqüente. Argus encontrava-se em comunicação de tempo real com dúzias de outros telescópios que faziam parte do Consórcio Mundial da Mensagem e a notícia da reciclagem foi transmitida para os postos de observação seguintes, na direção oeste, para a Califórnia, o Havaí, o Marshal Nedelin — agora no Pacífico Sul — e para Sydney. Se a descoberta tivesse sido feita quando Vega se encontrava na mira de um dos outros telescópios da rede, Argus teria sido informada imediatamente.
A ausência do manual de instruções constituía uma decepção angustiante, mas não era a única surpresa. Os números de página da Mensagem tinham saltado descontinuamente da casa dos quarenta mil para a dos dez mil, onde a reciclagem fora descoberta. Era evidente que Argus captara a emissão de Vega quase no momento em que ela começara a chegar à Terra. Era um sinal extraordinariamente forte e teria sido captado até por pequenos telescópios omnidirecionais. Mas constituía uma coincidência surpreendente o fato de chegar à Terra no próprio momento em que Argus estava a observar Vega. Por outro lado, qual era o significado de o texto começar numa página da casa dos dez mil? Faltariam dez mil páginas de texto? Seria uma prática atrasada da Terra começar a numerar livros pela página um? Aqueles números seqüenciais não seriam, talvez, números de páginas, mas sim qualquer outra coisa? Ou — e isto era o que mais preocupava Ellie — haveria alguma diferença fundamental e inesperada entre o modo como os humanos e os alienígenas pensavam nas coisas? Se assim fosse, teria implicações preocupantes na aptidão do Consórcio para compreender a Mensagem, com ou sem manual de instruções.
A Mensagem repetia-se exatamente, as lacunas estavam todas preenchidas e ninguém conseguia ler uma palavra. Parecia improvável que a civilização emissora, meticulosa em tudo o mais, tivesse pura e simplesmente ignorado a necessidade de um manual de instruções. Pelo menos a transmissão olímpica e o desenho interior da Máquina pareciam concebidos especificamente para humanos. Não era concebível que se dessem a todo aquele trabalho para planejar e emitir a Mensagem sem tomarem quaisquer providências no sentido de os humanos a lerem. Por conseqüência, devia ter escapado qualquer coisa aos humanos. Chegou-se em breve ao consenso geral de que existia algures uma quarta camada no palimpsesto. Mas onde?
Os diagramas foram publicados num conjunto de livros «mesa de café» em oito volumes, que não tardou a ser editado em todo o mundo. Em todo o planeta havia gente a tentar decifrar os desenhos. O dodecaedro e as formas quase biológicas eram particularmente evocativas. O público apresentou muitas sugestões inteligentes, as quais foram cuidadosamente analisadas pela equipa de Argus. Não faltaram também muitas interpretações extravagantes, principalmente em semanários. Criaram-se novas indústrias completas — sem dúvida imprevistas pelos que conceberam a Mensagem — ; destinadas a utilizar os diagramas para ludibriar o público. Foi anunciada a Ordem Antiga e Mística do Dodecaedro. A Máquina era um OVNI. A Máquina era a Roda de Ezequiel. Um anjo revelou o significado da Mensagem e dos diagramas a um homem de negócios brasileiro, que distribuiu — ao princípio a expensas próprias — a sua interpretação pelo mundo todo. Com tantos diagramas enigmáticos para interpretar, era inevitável que muitas religiões reconhecessem alguma da sua iconografia na Mensagem das estrelas. Um corte transversal principal da Máquina parecia-se um tanto ou quanto com um crisântemo, ato que despertou grande entusiasmo no Japão. Se houvesse uma imagem de um rosto humano entre todos os diagramas, o fervor messiânico poderia ter atingido um ponto de explosão.
Mesmo assim, um número surpreendentemente grande de pessoas estava a arrumar os seus negócios, preparando-se para o Advento. A produtividade industrial descia à escala mundial. Muitos tinham dado todos os seus bens aos pobres e depois, como o fim do mundo se ia adiando, foram obrigados a pedir auxílio a uma obra de caridade ou ao Estado. Como as dádivas deste gênero constituíam uma parte importante dos recursos de tais obras de caridade, alguns dos filantropos acabaram por ser ajudados por aquilo que eles próprios tinham dado. Delegações abordavam dirigentes governamentais para insistirem no sentido de que a esquistossomíase, por exemplo, ou a fome mundial estivessem exterminadas aquando o Advento; caso contrário, não se sabia o que nos poderia acontecer. Outros opinavam, mais serenamente, que, se estava iminente uma década de autêntica loucura mundial, devia haver nela, algures, uma considerável vantagem monetária ou nacional.
Alguns diziam que não havia manual de instruções nenhum, que todo o exercício consistia em ensinar humildade aos humanos ou dar conosco em malucos. Havia editoriais de jornais aventando a hipótese de não sermos tão espertos como julgávamos ser e um ressentimento contra os cientistas, que, depois de todo o apoio que lhes fora dado pelos governos, não nos sabiam valer na hora em que deles precisávamos. Ou talvez os humanos fossem muito mais estúpidos do que o que os Veganianos nos julgavam. Talvez houvesse algum ponto que tivesse sido perfeitamente óbvio para todas as civilizações emergentes anteriores assim contatadas, qualquer coisa que nunca antes escapara a ninguém na história da Galáxia. Alguns comentadores aceitaram esta perspectiva de humilhação cósmica com vero entusiasmo. Provava o que eles tinham dito das pessoas desde sempre. Passado algum tempo, Ellie chegou à conclusão de que precisava de auxílio.
Entraram sub-repticiamente pela porta de Enlil, com o acompanhante enviado pelo proprietário. A brigada de segurança da General Services Administration estava inquieta, apesar da, ou talvez por causa da, proteção suplementar.
Embora ainda houvesse um pouco de luz do dia, as ruas sujas estavam iluminadas por braseiras, candeeiros a petróleo e uma tocha ocasional, gotejante. Duas ânforas, suficientemente grandes para conterem um ser humano adulto, flanqueavam a entrada de uma loja de venda de azeite a retalho. A tabuleta era em caracteres cuneiformes. Num edifício público adjacente via-se um magnífico baixo-relevo de uma caçada ao leão no reino de Assurbanipal. Quando se aproximavam do Templo de Assur, houve uma agitação na multidão e o acompanhante de Ellie desviou-se. Ela tinha agora uma visão desimpedida do Zigurate, por uma avenida iluminada por tochas abaixo. Era mais empolgante do que nas fotografias. Soou um floreado marcial de um instrumento metálico que lhe não era familiar, passaram a trote três homens e um cavalo, com o auriga de barrete frígio. Como numa representação medieval de uma estória advertente do Livro do Gênesis, o cimo do zigurate estava envolto em nuvens crepusculares baixas. Deixaram o caminho de Ishtar e entraram no zigurate por uma rua transversal. No elevador privado, o acompanhante de Ellie premiu o botão para o último andar: QUARENTA, dizia. Nada de numerais. Simplesmente a palavra. E depois, para não deixar qualquer espaço para dúvidas, um painel de vidro iluminou-se com as palavras: OS DEUSES.
Mr. Hadden juntar-se-lhe-ia dentro de momentos. Desejava beber alguma coisa enquanto esperava? Considerando a fama do lugar, Ellie recusou. Babilônia estendia-se à sua frente — magnificente, como toda a gente dizia, na sua recriação de um tempo e um lugar havia muito desaparecidos. Durante as horas do dia, autocarros de museus, de algumas escolas — muito poucas — e de agências de turismo descarregavam na Porta de Ishtar os seus passageiros, que envergavam roupas apropriadas e viajavam no tempo para o passado. Sabiamente, Hadden doava todos os lucros da sua clientela diurna a obras de caridade da cidade de Nova Iorque e de Long Island. As excursões diurnas eram imensamente populares, em parte por proporcionarem uma oportunidade respeitável para verem o lugar àqueles que não podiam sequer sonhar ver a Babilônia de noite. Bem, sonhar, talvez sonhassem.
Depois de escurecer, Babilônia passava a chamar-se um parque de diversão de adultos. Era de uma opulência, de um tamanho e de uma imaginatividade que tornavam insignificantes lugares como, por exemplo, o Reeperbahn de Hamburgo. Era de longe a maior atração turística da área metropolitana de Nova Iorque e a que dava, também de longe, os maiores lucros brutos. Sabia-se bem como Hadden conseguira convencer os vereadores de Babilônia, Nova Iorque, e de que enredos de corredor se servira para um «abrandamento» das leis locais e estaduais sobre a prostituição. Agora ia-se do centro de Manhattan à Porta de Ishtar em meia hora de comboio. Ellie insistira em viajar nesse comboio, apesar das súplicas da gente da segurança, e verificara que quase um terço dos visitantes era constituído por mulheres. Não havia graffiti e o perigo de um ataque com intuitos de roubo era pequeno; mas o tipo de ruído branco era muito menor, comparado com o proporcionado pelos transportes da rede de metropolitano da cidade de Nova Iorque.
Embora Hadden fosse membro da Academia Nacional de Engenharia, nunca, que Ellie soubesse, comparecera a uma reunião dessa agremiação, e ela nunca lhe pusera os olhos em cima. No entanto, anos antes, o seu rosto tornara-se bem conhecido de milhões de americanos, em conseqüência da campanha do Conselho de Publicidade contra ele: O ANTIAMERICANO, fora então a legenda aposta sob uma fotografia pouco lisonjeira de Hadden. Mesmo assim, ficou espantada quando, no meio do seu devaneio junto da parede de vidro oblíqua, foi interrompida por uma pessoa baixa e gorda a acenar-lhe.
— Oh, desculpe! Nunca compreendi como alguém pode ter medo de mim.
A sua voz era surpreendentemente harmoniosa. Na realidade, ele parecia falar em quintas. Não achara necessário apresentar-se e voltou a inclinar a cabeça para a porta que deixara entreaberta. Em tais circunstâncias custava a crer que estivesse prestes a abater-se sobre ela algum crime passional; por isso, muda, entrou na sala ao lado.
Ele mostrou-lhe uma maqueta meticulosamente executada de uma antiga cidade de aspecto menos pretensioso do que Babilônia.
— Pompéia — disse, a título de explicação. — Aqui a chave é o estádio. Com as restrições impostas ao boxe, não restam na América quaisquer desportos sanguinários salutares. Muito importante. Extrai alguns dos venenos da corrente sanguínea nacional. Está tudo concebido, as licenças concedidas, e agora isto.
— «Isto,» o quê?
— Nada de jogos gladiatoriais. Acabo de receber informação de Sacramento. Foi apresentado à legislatura um projeto de lei para proibir jogos gladiatoriais na Califórnia. Demasiado violentos, dizem. Autorizam um novo arranha-céus sabendo que perderão dois ou três trabalhadores na sua construção. Os sindicatos sabem-no, os construtores sabem-no, e trata-se apenas de construir escritórios para companhias petrolíferas ou advogados de Beverly Hills. Claro, nós perderíamos alguns praticantes. Mas estamos mais orientados para rede e tridente do que para espada curta. Esses legisladores não têm as suas prioridades certas.
Lançou-lhe um sorriso de mocho e ofereceu-lhe uma bebida, que ela voltou a recusar.
— Quer então falar comigo a respeito da Máquina e eu quero falar consigo a respeito da Máquina. Primeiro: você quer saber onde está o chamado manual?
— Estamos a pedir auxílio a algumas pessoas-chave que poderão ter alguma percepção a tal respeito. Pensamos que o senhor, com o seu palmares de invenção — e uma vez que o seu chip de reconhecimento de contexto interveio na descoberta da reciclagem —, se poderia colocar no lugar dos Veganianos e imaginar onde colocaria o manual. Compreendemos que é uma pessoa muito ocupada e eu lamento ter de…
— Oh, não! Não há problema. É verdade que estou muito ocupado. Estou a tentar regularizar os meus negócios, porque vou fazer uma grande mudança na minha vida…
— Para o Milênio? — Ellie tentou imaginá-lo a dar aos pobres a S. R. Hadden and Company; a casa de corretagem da Wall Street; a Genetic Engineering, Inc.; a Hadden Cybernetics, e Babilônia.
— Não é bem isso. Não. Foi divertido pensar no assunto. Fez-me sentir bem ser consultado. Vi os diagramas.
Apontou com a mão para o conjunto comercial de oito volumes desordenadamente espalhados numa mesa de trabalho.
— Há ali coisas maravilhosas, mas não creio que seja lá que o manual está escondido. Não é nos diagramas. Não sei por que motivo pensam que a chave tem de estar na Mensagem. Talvez a tenham deixado em Marte ou Plutão, ou na Nuvem do Cometa Oort, e a descubramos daqui a alguns séculos. Por agora sabemos que existe esta Máquina maravilhosa, com desenhos do projeto e trinta mil páginas de texto explicativo. Mas não sabemos se seríamos capazes de construir a coisa se conseguíssemos ler o texto. Por isso, aguardamos alguns séculos, enquanto vamos aperfeiçoando a nossa tecnologia, sabendo que mais cedo ou mais tarde teremos de estar preparados para a construir. O fato de não termos o manual prende-nos a gerações futuras. Foi enviado aos seres humanos um problema que levará gerações para resolver. Não acho que seja uma coisa assim tão má. Poderá ser muito salutar. Talvez estejam a cometer um erro ao procurar um manual. Talvez seja melhor não o encontrarem.
— Não, eu quero encontrá-lo sem demora. Não sabemos se ficará eternamente à nossa espera. Se eles desistissem em virtude de não receberem nenhuma resposta, seria muito pior do que se nunca tivessem sequer estabelecido contato.
— Bem, talvez tenha uma certa razão. De qualquer modo, pensei no máximo de possibilidades banais e depois numa que não o é. Primeiro, as banais: o manual está na Mensagem, mas num ritmo de dados muito diferente. Suponha que havia lá outra mensagem a um bit por hora. Conseguiriam detectá-la?
— Absolutamente. Por rotina, aliás, verificamos se há uma declinação receptora a longo prazo. Mas, de resto, um bit por hora só nos dá… deixe ver… dez ou vinte mil bitstops antes de a Mensagem. reciclar.
— Por conseqüência, isso só faz sentido se o manual for muito mais fácil do que a Mensagem. Você pensa que não é. Eu penso que não é. E a respeito de ritmos de bits muito mais rápidos? Como sabe que debaixo de cada bit da sua Mensagem da Máquina não á um milhão de bits da mensagem do manual?
— Porque produziria larguras de banda monstruosas. Saberíamos imediatamente.
— Muito bem, há então uma acumulação de dados rápidos de vez em quando. Pense nisso como se fosse um microfilme. Há um ponto minúsculo de microfilme que se encontra em partes repetidas — quero dizer repetitivas — da Mensagem. Estou a imaginar uma caixinha que diz na sua linguagem habitual: «Eu sou o manual.» Depois, logo após isso, há um ponto. E nesse ponto há cem milhões de bits muito rápidos. Poderiam ver, se receberam algumas caixas.
— Acredite-me, teríamos visto.
— Sim, senhora, e a respeito de modulação de fase? Usamo-la no radar e na telemetria de naves espaciais e praticamente não suja o espectro. Ligaram um correlacionador de fases?
— Não. É uma idéia útil. Estudá-la-ei.
— Agora a idéia não banal é a seguinte: se a Máquina alguma vez for feita, se a nossa gente vai sentar-se nela, alguém vai carregar num botão e então essas cinco pessoas vão a qualquer lado. Não interessa onde. É, no entanto uma questão interessante saber se essas cinco pessoas vão regressar. Talvez não. Atrai-me a idéia de que toda esta concepção da Máquina foi inventada por ladrões de corpos veganianos. Percebe o que quero dizer, os seus estudantes de Medicina, ou antropólogos, ou qualquer coisa. Eles precisam de alguns corpos humanos. Uma grande trabalhadeira para vir à Terra — é necessária permissão, passaporte da autoridade do trânsito, o inferno… dá mais chatices do que benefício. Mas com um pouco de esforço pode-se enviar para a Terra uma mensagem, e então serão os terrestres a ter o trabalho todo para lhes enviar os cinco corpos.
«É como colecionar selos. Eu costumava colecionar selos quando era miúdo. Podíamos enviar uma carta a alguém num país estrangeiro, e quase sempre as pessoas respondiam. Não interessava o que elas diziam. Tudo quanto queríamos era o selo. Assim, o quadro que vejo é esse: há alguns colecionadores de selos em Vega. Mandam cartas para o exterior quando estão para aí virados e chegam-lhes corpos a voar de todos os cantos do espaço. Não gostaria de ver a coleção?
Sorriu-lhe e continuou:
— Ora bem, que tem isto a ver com encontrar o manual? Nada. Só é relevante se eu estou enganado. Se o meu quadro está errado, se as cinco pessoas vão regressar à Terra, então será uma grande ajuda termos inventado o vôo espacial. Independentemente do muito ou pouco espertos que eles sejam, vai ser difícil pousar a Máquina. Há demasiadas coisas em movimento. Sabe Deus qual é o sistema de propulsão. Se surgimos do espaço alguns metros abaixo do solo, estamos tramados. E que são alguns metros em vinte e seis anos-luz? É excessivamente arriscado. Quando a Máquina regressar, surgirá — ou seja lá o que fizer — do espaço algures perto da Terra, mas não sobre ela ou nela. Por isso, precisam de ter a certeza de que temos vôo espacial para que as cinco pessoas possam ser recuperadas no espaço. Estão cheios de pressa e não podem esperar inativos até chegar a Vega o telejornal noturno de 1957. Que fazem então? Arranjam maneira de parte da Mensagem só poder ser detectada do espaço. Que parte é essa? O manual. Se alguém conseguir detectar o manual, é porque tem vôo espacial e pode regressar em segurança. Por isso imagino que o manual está a ser enviado na freqüência das absorções e oxigênio no espectro de microondas ou no infravermelho próximo… nalguma parte do espectro que só podemos detectar quando estamos bem fora da atmosfera da Terra…
— Tivemos o Telescópio de Hubble a observar Vega em todo o ultravioleta, o visível e o infravermelho próximo. Nem sombra de nada. Os Russos afinaram o seu dispositivo de onda milimétrica. Praticamente não têm estado a observar mais nada além de Vega e não descobriram coisa nenhuma. Mas continuaremos a observar. Outras possibilidades?
— Tem a certeza de que não quer uma bebida? Pessoalmente não bebo, mas há tanta gente que bebe… — Ellie voltou a declinar. — Não, não vejo outras possibilidades. Agora é a minha vez?
«Olhe, quero pedir-lhe uma coisa. Mas não tenho jeito para pedir coisas. Nunca tive. A minha imagem pública é rica, cômica, inescrupulosa — alguém que procura fraquezas no sistema para poder ganhar umas coroas depressa. E não me diga que não acredita em nenhuma dessas coisas. Toda a gente acredita, pelo menos nalgumas. Provavelmente já ouviu dizer parte do que vou contar-lhe, mas dê-me dez minutos e eu digo-lhe como tudo isto começou. Quero que saiba alguma coisa a meu respeito.
Ellie recostou-se na cadeira, a perguntar a si mesma que poderia ele querer dela, e afastou do pensamento fantasias tolas em que entravam o Templo de Ishtar, Hadden e talvez um auriga ou dois, pelo sim, pelo não.
Anos antes, ele inventara um módulo que, quando a televisão comercial aparecia, emudecia automaticamente o som. Ao princípio, não era um dispositivo de reconhecimento de contexto. Ao invés, monitorizava simplesmente a amplitude da onda transportadora. Os anunciantes da TV tinham adquirido o hábito de passar os seus anúncios mais alto e com maior audiolimpidez do que os programas que eram os seus veículos normais. A notícia do módulo de Hadden propagou-se de boca em boca. As pessoas confessaram um sentimento de alívio, a libertação de um grande peso, até mesmo uma sensação de alegria por se verem livres da barragem publicitária das seis a oito horas por dia que o americano médio passava defronte do televisor. Antes que pudesse haver qualquer reação coordenada da indústria de publicidade televisiva, o Adnix tornara-se tremendamente popular. Obrigava anunciantes e cadeias de televisão a novas opções de estratégia de onda transportadora, a cada uma das quais Hadden replicava com uma nova invenção. Algumas vezes inventou circuitos para vencer estratégias que as agências e as cadeias ainda não tinham descoberto. Alegava que estava a poupar-lhes a maçada de fazerem novas invenções, com grandes custos para os seus acionistas, invenções que estavam de qualquer maneira condenadas ao malogro. À medida que o seu volume de vendas aumentava, ia reduzindo os preços. Era uma espécie de guerra eletrônica. E ele estava a vencer.
Tentaram processá-lo — qualquer coisa a respeito de uma conspiração para coarctar o comércio. Tiveram músculo político suficiente para que lhe fosse negado o pedido de recusa sumária da ação, mas influência insuficiente para ganharem realmente a causa. O julgamento obrigara Hadden a investigar os códigos jurídicos relevantes. Pouco depois requereu, por intermédio de uma conhecida agência da Madison Avenue da qual se tornara entretanto sócio majoritário silencioso, autorização para anunciar o seu próprio produto na televisão comercial. Após algumas semanas de controvérsia, os seus anúncios foram recusados. Processou então todas as três cadeias televisivas e neste julgamento conseguiu provar conspiração para coarctação de comércio. Recebeu uma enorme indenização, que constituiu na altura um recorde em casos daquela espécie, e contribuiu à sua modesta maneira para a morte das cadeias primitivas.
Houvera sempre pessoas que gostavam dos anúncios, claro, e não precisavam do Adnix para nada. Mas constituíam uma minoria em declínio. Hadden fez uma grande fortuna com a evisceração da transmissão de publicidade. Fez também muitos inimigos.
Quando os chips de reconhecimento de contexto se tornaram comercialmente acessíveis, ele estava preparado com o Preachnix, um submódulo que podia ser acoplado ao Adnix. Era simplesmente capaz de mudar de canal se por acaso estivesse sintonizado um programa religioso doutrinário. Tornava possível pré-selecionar palavras-chave, tais como ADVENTO ou ÊXTASE[14] e cortar grandes fatias da programação disponível. O Preachnix foi uma verdadeira bênção para uma minoria paciente, mas significativa, de telespectadores. Dizia-se, em parte meio a sério, que o submódulo seguinte de Hadden se chamaria Jivenix e só funcionaria em discursos públicos de presidentes e primeiros-ministros.[15]
À medida que foi aperfeiçoando os chips de reconhecimento de contexto, tornou-se-lhe evidente que tinham aplicações muito mais vastas — dos campos da educação, ciência e medicina aos da informação militar e espionagem industrial. Foi a este aspecto que se foi buscar a fundamentação para a famosa ação Estados Unidos da América v. Hadden Cybernetics. Um dos chips de Hadden foi considerado bom demais para a vida civil, e, por recomendação da National Security Agency, as instalações e o pessoal-chave da produção do chip de reconhecimento de contexto passaram para a tutela do Governo. Era pura e simplesmente demasiado importante ler o correio russo. Sabia Deus, disseram-lhe, o que aconteceria se os Russos fossem capazes de ler o correio americano.
Hadden recusou-se a cooperar com a expropriação e jurou diversificar para áreas que não corressem o risco de ser conectadas com a segurança nacional. O Governo estava a nacionalizar a indústria. Proclamava-se capitalista, mas, quando lhe convinha, mostrava o seu rosto socialista. Ele descobrira uma necessidade pública insatisfeita e utilizara uma tecnologia nova, existente e legal para satisfazer essa carência. Era capitalismo clássico. Mas havia muitos capitalistas ortodoxos que diriam que ele já fora demasiado longe com o Adnix, que criara uma verdadeira ameaça ao modo de vida americano. Numa coluna assinada por V. Petrov, o Pravda declarou ser o caso um exemplo concreto das contradições do capitalismo. The Wall Street Journal replicou, talvez um pouco tangencialmente, chamando ao Pravda, que em russo significa «verdade», um exemplo concreto das contradições do comunismo.
Hadden desconfiava que a expropriação fora apenas um pretexto, que o seu verdadeiro delito tinha sido atacar a publicidade e o video-evangelismo. Adnix e Preachnix eram a essência da potencialidade empreendedora capitalista, argumentava repetidamente. Considerava-se que o objetivo do capitalismo era fornecer alternativas às pessoas.
— Bem, disse-lhes eu, a ausência de publicidade é uma alternativa. Só há verbas enormes para publicidade quando não há diferença entre os produtos. Se os produtos fossem realmente diferentes, as pessoas comprariam o que fosse melhor. A publicidade ensina as pessoas a não confiarem no seu critério. A publicidade ensina as pessoas a serem estúpidas. Um país forte precisa de pessoas inteligentes. Por isso, o Adnix é patriótico. Os fabricantes podem utilizar parte das suas verbas destinadas à publicidade na melhoria dos seus produtos. O consumidor será beneficiado. Revistas, jornais e negócios diretamente pelo correio florescerão, e isso aliviará a chatice das agências de publicidade. Não vejo onde está o problema.
O Adnix, muito mais do que as ações de difamação contra as cadeias comerciais primitivas, conduziu diretamente à morte destas. Durante algum tempo houve um pequeno exército de executivos publicitários desempregados, ex-funcionários de antigas cadeias de televisão comercial sem recursos e clérigos sem um centavo que jurara sanguinariamente vingar-se de Hadden. E houve um número sempre crescente de adversários ainda mais formidáveis. Não havia dúvida, pensou Ellie, de que Hadden era um homem interessante.
— Portanto, cheguei à conclusão de que é altura de sair de cena. Tenho tanto dinheiro que não sei que fazer dele, a minha mulher não me pode suportar e tenho inimigos em toda a parte. Quero fazer uma coisa importante, uma coisa que valha a pena. Quero fazer uma coisa graças à.qual, daqui a séculos, as pessoas olhem para trás e se sintam contentes por eu ter existido.
— O senhor quer…
— Quero construir a Máquina. Escute, estou perfeitamente habilitado para isso. Tenho os melhores conhecimentos especializados de cibernética, cibernética prática, do meio — melhor do que Carne de-Mellon, melhor do que o MIT, melhor do que Stanfor, melhor do que Santa Bárbara. E, se há alguma coisa clara nesses desenhos que estão a receber, é que não se trata de um trabalho para um fabricante antigo de ferramentas e moldes. Não encontrará ninguém que mais se dedique a esse trabalho do que eu. E fá-lo-ei com prejuízo.
— Francamente, Mister Hadden, quem construirá a Máquina, se alguma vez chegarmos a esse ponto, não depende de mim. Será uma decisão internacional. Está implicada toda a espécie de política. Eles ainda estão a debater, em Paris, se a coisa deverá ser construída, se e quando decifrarmos a Mensagem.
— Julga que não sei isso? Também me estou a candidatar através das vias habituais da influência e da corrupção. Desejava apenas que fosse dita uma boa palavra a meu favor pelas razões justas, pelo lado dos anjos. Compreende? E, por falar de anjos, você deu realmente um grande safanão ao Palmer Joss e ao Billy Jo Rankin. Não os via tão agitados desde aquele problema que tiveram por causa das águas de Maria. O Rankin a dizer que foi citado erradamente, de propósito, a respeito de apoiar a Máquina. Credo, credo.
Abanou a cabeça, num gesto de fingida consternação. Parecia muito provável a existência de uma inimizade pessoal antiga entre aqueles proselitizadores ativos e o inventor do Preachnix, e, por qualquer razão, ela sentiu um impulso para os defender:
— Eles são ambos muito mais espertos do que poderá pensar. E Palmer Joss é… enfim, há algo de genuíno nele. Não é um impostor.
— Tem a certeza de que não se trata apenas de outra cara bonita? Desculpe, mas é importante que as pessoas compreendam os seus sentimentos a este respeito. É mesmo um caso demasiado importante para que possam não os compreender. Conheço esses palhaços. Por baixo, quando as coisas ficam feias, são chacais. Muita gente acha a religião atraente — você percebe, pessoalmente, sexualmente. Devia ver o que acontece no Templo de Ishtar.
Ellie reprimiu um estremecimento de repugnância.
— Acho que sempre aceito essa bebida.
Olhando para baixo, da mansarda, podia ver os terraços gradativos do zigurate, cada um deles revestido de flores, umas artificiais e outras naturais, consoante a estação. Era uma reconstrução dos Jardins Suspensos da Babilônia, uma das Sete Maravilhas do «Mundo Antigo». Miraculosamente, estava construído de tal modo que não se parecia muito com um Hyatt Hotel. Lá, muito em baixo, vislumbrou um cortejo iluminado por tochas, que regressava do zigurate à porta de Enlil. À frente ia uma espécie de liteira transportada por quatro homens robustos, nus da cintura para cima. Não conseguiu distinguir quem ou o que ia na liteira.
— «uma cerimônia em honra de Gilgamesh», um dos antigos heróis culturais sumérios.
— Sim, já ouvi falar dele.
— O seu negócio era a imortalidade.
Disse as palavras com naturalidade, à guisa de explicação, e olhou para o relógio.
— Sabe, os reis subiam mesmo ao topo do Zigurate para receberem instruções dos deuses. Especialmente Anu, o deus do céu. A propósito, procurei que nome davam a Vega. Era Tirana, a Vida do Céu. Estranho nome para lhe darem.
— E recebeu algumas instruções?
— Não. As instruções foram para as suas instalações, não para as minhas. Mas haverá outro cortejo de Gilgamesh às nove horas.
— Lamento não poder demorar-me tanto tempo. Mas permita que lhe pergunte uma coisa: por quê Babilônia? E Pompéia? O senhor é uma das pessoas mais inventivas que existem. Criou diversas indústrias muito importantes; derrotou a indústria da publicidade no próprio terreno dela. Está bem, foi punido naquela questão de segurança sobre o chip de reconhecimento e contexto. Mas há inúmeras outras coisas que poderia ter feito. Por quê… isto?
Muito ao longe, o cortejo chegara ao Templo de Assur.
— Por que não algo mais… digno? — perguntou ele, por sua vez. — Estou apenas a tentar satisfazer necessidades da estrutura societária que o Governo descura ou ignora. É capitalismo. É legal. Torna uma quantidade de gente feliz. E eu acho que é uma válvula de escape para alguns dos chalados que esta sociedade não pára de gerar.
«Mas na altura não pensei a fundo em tudo isso. Foi muito simples. Lembro-me perfeitamente do momento em que tive a idéia da Babilônia. Estava no mundo de Walt Disney, a viajar no vapor fluvial de rodas do Mississipi com o meu neto, Jason. O garoto teria uns quatro ou cinco anos. Pensei como era inteligente da parte dos dirigentes da Disney terem acabado com os bilhetes individuais para cada divertimento e oferecerem em seu lugar um passe para um dia, que dava direito a experimentar tudo. Poupavam alguns salários — de alguns dos vendedores de bilhetes, por exemplo. Mas, muito mais importante, as pessoas tinham tendência para sobreestimar o seu apetite por divertimentos. Pagavam um prêmio que lhes dava acesso a tudo e depois contentavam-se com muito menos.
«Perto de mim e de Jason ia um garoto de oito anos com uma expressão distante no olhar. Estou apenas a calcular a sua idade. Talvez ele tivesse dez anos. O pai perguntava-lhe coisas e ele respondia-lhe com monossílabos. O rapaz acariciava o cano de uma espingarda de brincar que encostara à sua cadeira de convés. Tinha a coronha entre as pernas. Só queria que o deixassem em paz e afagar a espingarda. Atrás dele erguiam-se as torres e os pináculos do Reino Mágico e subitamente tudo se encaixou no seu devido lugar. Sabe o que estou a dizer?
Encheu um copo de cola de dieta e bateu com ele no dela.
— À confusão dos seus inimigos — brindou, bem-disposto. — Vou mandar conduzi-la à Porta de Ishtar, que estava coberta de reproduções, em azulejos esmaltados, de um animal azul qualquer. Os arqueólogos tinham-lhes chamado dragões.