CAPÍTULO II Luz coerente

Desde que adquiri o uso da razão, o meu pendor para aprender tem sido tão violento e tão forte que nem as repreensões de outras pessoas… nem a minha própria ponderação… têm conseguido impedir-me de obedecer a este impulso natural que Deus me deu. Só Ele deve saber por quê; e sabe também que Lhe tenho suplicado que me tire a luz do meu entendimento, deixando apenas a suficiente para respeitar a Sua lei, pois algo mais do que isso é excessivo numa mulher, segundo algumas pessoas. E outras dizem que é até prejudicial.

JUANA INES DE LA CRUZ Resposta ao Bispo de Puebla (1691), que atacara o seu trabalho erudito como inapropriado para o seu sexo.

Desejo propor à consideração benévola do leitor uma doutrina que, receio, pode parecer extremamente paradoxal e subversiva. A doutrina em questão é esta: é indesejável acreditar numa proposição quando não existe fundamento absolutamente nenhum para supô-la verdadeira. Tenho de admitir, claro, que, se tal opinião se tornasse comum, transformaria completamente a nossa vida social e o nosso sistema político; como ambos são presentemente irrepreensíveis, isto deve militar contra ela.

BERTRAND RUSSEL Skeptical Essays, (1928)

Circundando a estrela azul-branca no seu plano equatorial havia um imenso anel de fragmentos em órbita — rochas e gelo, metais e matéria orgânica —, avermelhados na periferia e azulados mais próximo da estrela. O poliedro do tamanho de um mundo precipitou-se através de uma abertura dos anéis e emergiu do outro lado. No plano anelar fora intermitentemente ensombrado por penedos gelados e montanhas em desmoronamento. Mas agora, transportado na sua trajetória na direção de um ponto acima do pólo oposto da estrela, o sol refletia-se dos seus milhões de apêndices taciformes. Olhando com muita atenção poder-se-ia talvez ter visto um deles efetuar um ligeiro ajustamento direcional. Não se teria visto a erupção de ondas de rádio saindo dele para os abismos do espaço.

Não obstante todo o domínio dos humanos na Terra, o céu noturno fora um companheiro e uma inspiração. As estrelas eram reconfortantes. Pareciam demonstrar que o firmamento fora criado para benefício e instrução de humanos. Este conceito patético tornou-se a sabedoria convencional difundida pelo mundo inteiro. Nenhuma cultura estava isenta dela. Algumas pessoas encontravam no firmamento uma abertura para a sensibilidade religiosa. Muitas sentiam-se intimidadas e humildes com a magnificência e a escala do cosmo. Outras eram estimuladas para os mais extravagantes vôos da fantasia.

No próprio momento em que os humanos descobriram a escala do universo e verificaram que as suas mais desenfreadas fantasias eram, na realidade, reduzidas a uma expressão pequeníssima só pelas verdadeiras dimensões da Galáxia a Via Láctea, tomaram providências que garantiram que os seus descendentes seriam incapazes de ver sequer as estrelas. Durante um milhão de anos tinham crescido com um conhecimento pessoal e quotidiano da abóbada do firmamento. Nos últimos milhares de anos começaram a construir cidades e a emigrar para elas. Nas últimas décadas uma importante fração da população humana abandonara um modo de vida rústico. A medida que a tecnologia se desenvolveu e as cidades se tornaram poluídas, as noites ficaram sem estrelas. Novas gerações atingiram a maturidade completamente ignorantes do céu que deslumbrara os seus antepassados e estimulara a era moderna de ciência e tecnologia. Sem sequer se aperceber disso, precisamente quando a astronomia iniciava uma era de ouro, a maioria das pessoas separou-se do céu, num isolacionismo cósmico que só terminou com o alvorecer da exploração espacial.

Ellie olhava para cima, para Vênus, e imaginava que se tratava de um mundo mais ou menos como a Terra — povoado por plantas, e animais, e civilizações, embora cada uma delas diferente das espécies que temos aqui. Nos subúrbios da cidade, logo após o pôr do Sol, examinava o céu noturno e perscrutava aquele brilhante ponto de luz não bruxuleante. Em comparação com nuvens próximas, mesmo por cima delas e ainda iluminadas pelo Sol, parecia um pouco amarelo. Tentava imaginar o que lá se passava. Punha-se em bicos de pés e fitava fixamente o planeta. Às vezes, quase conseguia convencer-se de que podia realmente vê-lo; um turbilhão de nevoeiro amarelo dissipava-se subitamente e uma imensa cidade crivada de pedras preciosas era momentaneamente revelada. Carros aéreos andavam velozmente entre os pináculos de cristal. Às vezes imaginava que espreitava para o interior de um desses veículos e vislumbrava um deles. Ou imaginava um jovem, a olhar para cima, para um brilhante ponto de luz, no seu céu, a pôr-se em bicos de pés e a fantasiar a respeito dos habitantes da Terra. Era uma idéia irresistível: um planeta abafado, tropical, fervilhante de vida inteligente e ali mesmo ao lado.

Sujeitava-se à memorização rotineira, mas sabia que era, na melhor das hipóteses, a concha oca de uma educação. Fazia o mínimo trabalho necessário para se sair airosamente dos seus estudos e dedicava-se a outras matérias. Arranjava maneira de passar períodos livres e horas ocasionais, depois das aulas, naquilo a que chamavam «oficina» — uma pequena fábrica modesta e soturna instalada quando a escola dedicara mais esforço do que estava agora em moda à «educação vocacional». «Educação vocacional» significava, mais do que qualquer outra coisa, trabalhar com as mãos. Havia tornos mecânicos, máquinas de furar e outras máquinas — ferramentas de que estava proibida de se aproximar, pois, por muito competente que pudesse ser, não deixava de ser «uma rapariga». Relutantemente, autorizavam-na a dedicar-se aos seus próprios projetos na área da eletrônica da «oficina». Construiu rádios mais ou menos a partir do zero e depois avançou para algo mais interessante.

Construiu uma máquina criptografadora. Era rudimentar, mas funcionava. Podia pegar em qualquer mensagem em língua inglesa e transformá-la, mediante um simples código de substituição, em algo que parecia uma língua de trapos. Construir uma máquina que fizesse o contrário — que convertesse uma mensagem criptografada em linguagem clara quando se ignorava a convenção de substituição —, isso era muito mais difícil. Podia-se fazer a máquina percorrer todas as substituições possíveis (A representa B, A representa C, A representa D…), ou podia-se lembrar que, em inglês, algumas letras eram usadas mais freqüentemente do que outras. Fazia-se uma idéia mais ou menos aproximada da freqüência do emprego das letras olhando para o tamanho das caixas de cada letra de tipo da tipografia ali ao lado. «ETAOIN SHRDLU», diziam os rapazes da tipografia, indicando com muita aproximação a ordem das doze letras mais freqüentemente usadas em inglês. Ao decodificar uma longa mensagem, a letra mais comum representava provavelmente um E. Ela descobriu também que algumas consoantes tinham tendência para andar juntas; as vogais distribuíam-se mais ou menos ao acaso. A palavra de três letras mais comum da língua inglesa era the. Se no interior de uma palavra havia uma letra entre um T e um E, era quase com certeza um H. Se não era, podia-se apostar num R ou numa vogal. Ellie deduziu outras normas e passou muitas horas a contar a freqüência das letras em vários livros escolares antes de descobrir que tais tabelas de freqüência já tinham sido compiladas e publicadas. A sua máquina decriptografadora destinava-se apenas a seu gozo pessoal. Não a utilizava para transmitir mensagens secretas a amigos. Sentia-se insegura quanto a quem poderia confiar com segurança esses seus interesses eletrônicos e criptográficos; os rapazes mostravam-se nervosos ou grosseiros e as raparigas gozavam-na estranhamente.

Soldados dos Estados Unidos da América combatiam num lugar distante chamado Vietnam. Parecia que todos os meses mais homens jovens estavam a ser arrebatados da rua ou da quinta e enviados para o Vietnam. Quanto mais se informava das origens da guerra e escutava as declarações públicas de líderes nacionais, tanto mais indignada se sentia. O presidente e o Congresso mentiam e matavam, pensava, e quase toda a gente consentia mudamente. O fato de o padrasto aprovar as posições oficiais no tocante a obrigações decorrentes de tratados, teorias do dominó e agressão comunista descarada só fortalecia a sua resolução. Começou a assistir a reuniões e comícios no colégio próximo. As pessoas que lá conheceu pareceram-lhe muito mais inteligentes e cordiais, mais vivas, do que os seus canhestros e baços companheiros de liceu. John Staughton começou por adverti-la e acabou por proibi-la de passar tempo com estudantes do colégio. Eles não a respeitariam, disse. Aproveitar-se-iam dela. Ela fingia uma sofisticação que não tinha nem nunca teria. O seu estilo de vestuário estava a deteriorar-se. Roupas do gênero das fardas de faxina militar não eram apropriadas para uma rapariga e constituíam um travesti, uma hipocrisia, para alguém que afirmava opor-se à intervenção americana no Sudeste asiático.

Tirando piedosas exortações a Ellie e a Staughton para não «brigarem», a mãe pouco participava em tais discussões. Particularmente, rogava a Ellie que obedecesse ao padrasto, que fosse «simpática». Ellie suspeitava agora de que Staughton casara com a mãe por causa do seguro de vida do pai — por que outro motivo haveria de ser? Não evidenciava, de modo nenhum, quaisquer sinais de a amar — e ele não tinha predisposição para ser «simpático». Um dia, algo agitada, a mãe pedira-lhe que fizesse uma coisa para bem de todos eles: freqüentasse o curso de Bíblia. Enquanto o pai, um céptico no tocante a religiões reveladas, fora vivo, não houvera qualquer conversa acerca de cursos de Bíblia. Como podia a mãe ter casado com Staughton? A pergunta cresceu nela pela milésima vez. O curso de Bíblia, continuou a mãe, ajudaria a instilar as virtudes convencionais; mas, mais importante ainda, mostraria a Staughton que Ellie estava disposta a uma certa conciliação. Por amor e compaixão pela mãe, acedeu.

Por isso, todos os domingos, durante a maior parte de um ano letivo, Ellie participou num grupo regular de discussão numa igreja próxima. Pertencia a uma das respeitáveis congregações protestantes, sem a mácula do evangelismo desordenado. Compunham-no alguns alunos liceais, um certo número de adultos — principalmente mulheres de meia-idade — e a instrutora, que era a mulher do pastor. Ellie nunca lera a Bíblia a sério, anteriormente, e tinha inclinação para aceitar a opinião porventura pouco generosa do pai de que era «meio história bárbara, meio contos de fadas». Por isso, no fim-de-semana que precedeu a primeira aula leu com atenção o que lhe pareceu serem as partes importantes do Velho Testamento, esforçando-se por fazê-lo de espírito aberto. Reconheceu ato contínuo existirem duas histórias diferentes e mutuamente contraditórias da Criação nos dois primeiros capítulos do Gênesis. Não compreendeu como podia haver luz e dias antes de o Sol ter sido feito e teve dificuldade em perceber com quem Caim casara ao certo. As histórias de Lot e das suas filhas, de Abraão e Sara no Egito, do noivado de Dinah e de Jacob e Esaú deixaram-na perplexa. Compreendia que a covardia ocorresse no mundo real — que filhos pudessem enganar e defraudar um pai idoso, que um homem pudesse consentir medrosamente na sedução da sua mulher pelo rei, ou até encorajar o estupro das suas filhas. Mas naquele livro sagrado não havia uma palavra de protesto contra tais ultrajes. Pelo contrário, parecia que os crimes eram aprovados, louvados até.

Quando a aula começou, sentia-se ansiosa pela discussão daquelas incoerências inquietantes, por um esclarecimento aliviador do Propósito de Deus ou, pelo menos, ao mesmo tempo, pareciam muito mais emocionalmente vulneráveis do que ela esperara. Talvez uma coisa causasse a outra.

Estava meio convencida de que não freqüentaria o colégio, embora estivesse decidida a sair de casa. Staughton não pagaria para ela ir para qualquer outro lado e as tímidas intercessões da mãe não valiam de nada. Mas Ellie obtivera resultados espetacularmente bons nos exames padronizados de admissão ao colégio e ouvira com surpresa os professores dizerem-lhe ser provável que lhe fossem oferecidas bolsas de estudo por universidades famosas. Respondera ao acaso a diversas perguntas de opção múltipla e considerara a sua prova um bambúrrio. Se se sabe muito pouco, apenas o suficiente para excluir todas menos as duas respostas mais prováveis, e se depois se responde por intuição a dez perguntas concretas, há aproximadamente uma probabilidade em mil de dar a resposta certa às dez, explicou a si mesma. Para vinte perguntas concretas, as probabilidades eram de uma em um milhão. Mas provavelmente qualquer coisa como um milhão de miúdos fizera aquela prova. Alguém tinha de ter sorte.

Cambridge, no Massachusetts, parecia suficientemente longe para se furtar à influência de John Staughton, mas também suficientemente perto para vir de lá de férias, a fim de visitar a mãe — que via o programa como um compromisso difícil entre abandonar a filha e irritar cada vez mais o marido. Ellie surpreendeu-se a si mesma ao preferir Harvard ao Massachusetts Institute of Technology.

Chegou para o período de orientação: uma jovem bonita de cabelo escuro, altura mediana, sorriso oblíquo e uma avidez de aprender tudo. Estava decidida a alargar a sua educação, a tirar tantos cursos quantos possíveis, além dos seus interesses fulcrais em Matemática, Física e Engenharia. Mas havia um problema com os seus interesses fulcrais. Achou difícil discutir Física, quanto mais debatê-la, com os seus condiscípulos predominantemente masculinos. Ao princípio, eles ouviam as suas observações com uma espécie de desatenção seletiva. Havia uma ligeira pausa e depois continuavam como se ela não tivesse falado. Ocasionalmente, prestavam atenção à sua observação, elogiavam-na até, e em seguida continuavam igualmente sem se desviar da sua maneira de ver. Ellie estava razoavelmente convencida de que as suas observações não eram inteiramente idiotas e não desejava ser ignorada, e muito menos ignorada e tratada com condescendência, alternadamente. Sabia que parte do que sucedia — mas apenas parte — se devia à suavidade da sua voz. Aperfeiçoou uma voz de física, uma voz profissional: clara, competente e muitos decibéis acima do tom de conversa social. Com tal voz era importante ter razão. Ela tinha de escolher os seus momentos. Era difícil falar demoradamente numa voz assim, pois às vezes corria o perigo de desatar a rir. Por isso, deu consigo a optar por intervenções rápidas, por vezes cortantes e geralmente suficientes para prender a atenção deles: depois podia continuar durante um bocado num tom de voz mais normal. Todas as vezes que ia parar a um novo grupo tinha de lutar para abrir novamente caminho, só para meter a sua colherada na discussão. Os rapazes encontravam-se uniformemente alheios ao fato de haver sequer um problema.

Às vezes, ela estava ocupada num exercício de laboratório ou num seminário quando o professor dizia: «Cavalheiros, prossigamos», e depois apercebia-se do franzir de testa de Ellie e acrescentava: «desculpe, Miss Arroway, mas considero-a um dos rapazes.» O maior cumprimento que eram capazes de lhe prestar era o de, na mente deles, ela não ser francamente feminina.

Teve de lutar para não adquirir uma personalidade excessivamente combativa ou tornar-se completamente misantropa. Conteve-se, de súbito. «Misantropo» é alguém que antipatiza com toda a gente, e não apenas com homens. E havia sem dúvida uma palavra para quem detesta mulheres: «misógino». Mas os lexicógrafos tinham-se, não se sabia como, esquecido de arranjar uma palavra que significasse a antipatia pelos homens. Eles próprios eram quase todos homens, pensou, e tinham sido incapazes de imaginar que existisse mercado para tal palavra.

Mais do que muitas outras raparigas, vivera tolhida por interdições paternas. As suas recém-encontradas liberdades — intelectual, social e sexual — eram inebriantes. Numa época em que muitas das suas contemporâneas optavam por vestuário informe que minimizava as distinções entre os sexos, ela aspirava a uma elegância e simplicidade de vestuário e maquilagem que a obrigavam a «esticar» o seu orçamento limitado. Havia maneiras mais eficazes de fazer afirmações políticas, pensava. Cultivou alguns amigos íntimos e arranjou uma quantidade de inimigos casuais, que antipatizavam com ela por causa do seu vestuário, das suas opiniões políticas e religiosas, ou pelo vigor com que defendia os seus pontos de vista. A sua competência e o prazer que sentia na ciência eram consideradas atitudes reprovadoras por muitas jovens competentes noutros aspectos. Mas algumas consideravam-na aquilo a que os matemáticos chamam um «teorema de existência» — uma demonstração de que uma mulher podia, sem dúvida nenhuma, distinguir-se na ciência — ou até um modelo de comportamento.

No auge da revolução sexual experimentou com entusiasmo gradualmente crescente, mas verificou que intimidava os seus supostos amantes. Os seus relacionamentos tendiam a durar poucos meses, ou menos ainda. A alternativa parecia ser disfarçar os seus interesses e sufocar as suas opiniões, coisa que se recusara resolutamente a fazer no liceu. Perseguia-a a imagem da mãe, condenada a um aprisionamento resignado e apaziguador. Começou a sentir curiosidade a respeito de homens não relacionados com a vida acadêmica e científica.

Parecia que algumas mulheres eram completamente desprovidas de astúcia e concediam os seus afetos quase sem um momento de pensamento consciente. Outras decidiam pôr em prática uma campanha de perfeição militar, com árvores e emergência ramificadas e posições de retirada, tudo para «caçar» um homem desejável. A palavra «desejável» era a denúncia da estratégia, pensava Ellie. O pobre diabo não era realmente desejado, mas apenas «desejável», um objeto plausível de desejo na opinião daqueloutros a pensar em quem toda aquela lamentável charada se desenrolava. A maioria das mulheres, pensava, encontravam-se algures no meio, procurando conciliar as suas paixões com a sua apercebida vantagem a longo prazo. Talvez houvesse comunicações ocasionais entre amor e interesse próprio que escapavam à percepção da mente consciente. Mas a idéia geral da cilada calculada causava-lhe calafrios. Naquela questão, concluiu, era uma aficionada do espontâneo. Foi então que conheceu Jesse.

O rapaz com quem saíra levara-a a um bar numa cave à saída de Kenmore Square. Jesse cantava ritmos e blues e era primeiro-guitarrista. O modo como cantava e a maneira como se mexia tornaram evidente a Ellie aquilo de que andara a sentir a falta. Na noite seguinte voltou sozinha. Sentou-se na mesa mais próxima e cravou os olhos nele durante ambos os seus números.

Dois meses depois viviam juntos.

Era só quando os contratos dele o levavam a Fiartford ou a Bangor que ela trabalhava alguma coisa. Passava os dias com os outros estudantes: rapazes com a última geração de réguas de cálculo suspensas no cinto como troféus; rapazes com lapiseiras de plástico na algibeira do peito; rapazes meticulosos, formais, de riso nervoso; rapazes sérios, que passavam todos os momentos de vigília a tornar-se cientistas. Absorvidos na tarefa de se treinarem para sondar os abismos da natureza, eram quase impotentes, desamparados, nos assuntos humanos comuns, em que, não obstante todo o seu saber, pareciam patéticos e superficiais. Talvez a entrega dedicada à ciência fosse tão esgotante, tão competitiva, que não sobrava tempo para uma pessoa se tornar um ser humano bem equilibrado. Ou talvez as suas inabilidades sociais os tivessem conduzido para campos onde a carência não seria notada. Exceto no aspecto da ciência propriamente dita, ela não os achava boa companhia.

À noite havia Jesse, com os seus saltos e os seus lamentos musicais, uma espécie de força da natureza que se apoderara da vida dela. No ano que passaram juntos não se recordava de uma única noite em que ele propusesse que fossem dormir. Não sabia nada de física nem de matemática, mas estava bem acordado dentro do universo, e durante algum tempo ela também esteve.

Ellie sonhava com a conciliação dos seus dois mundos. Tinha fantasias de músicos e físicos num concerto social harmonioso. Mas os serões que organizava eram embaraçosos e terminavam cedo.

Um dia ele disse-lhe que queria um filho. Tornar-se-ia sério, assentaria, arranjaria um emprego normal. Poderia até considerar a possibilidade de casar.

— Um filho? — perguntou-lhe ela. — Mas eu teria de abandonar a escola. Ainda me faltam anos para acabar. Se tivesse um filho, poderia nunca mais voltar a estudar.

— Sim, mas teríamos um filho. Não terias escola, mas terias outra coisa.

— Jesse, eu preciso da escola.

Ele encolheu os ombros e ela sentiu a vida em comum de ambos escorregar-lhe dos ombros com esse gesto e desaparecer. Durou ainda mais alguns meses, poucos, mas na realidade terminara tudo naquela breve conversa. Despediram-se com um beijo e ele partiu para a Califórnia. Ela não voltou a ouvir a sua voz.


No fim da década de sessenta, a União Soviética conseguiu fazer descer veículos espaciais na superfície de Vênus. Foram as primeiras naves espaciais da espécie humana a pousar em estado funcional noutro planeta. Antes, ao longo de uma década, radioastrônomos americanos, confinados à Terra, tinham descoberto que Vênus era uma fonte intensa de radiemissão. A explicação mais popular para tal fato fora a de que a atmosfera maciça de Vênus aprisionava o calor através de um efeito de estufa planetário. De acordo com esta opinião, a superfície do planeta era sufocantemente quente, excessivamente quente para permitir a existência de cidades de cristal e Venusianos curiosos. Ellie ansiava por qualquer outra explicação e tentava, sem êxito, imaginar modos de a radiemissão poder provir de muito acima de uma superfície venusiana clemente. Alguns astrônomos de Harvard e do MIT afirmavam que nenhuma das alternativas a um Vênus tórrido podia explicar os dados-rádio. A idéia de um efeito de estufa tão maciço parecia a Ellie improvável e de certo modo desagradável, um planeta que se deixara morrer. Mas, quando a nave espacial Venera pousou e pôs efetivamente um termômetro de fora, a temperatura registrada era suficientemente elevada para derreter estanho ou chumbo. Ela imaginou as cidades de cristal a liquefazer-se (embora Vênus também não fosse assim tão quente), a superfície inundada de lágrimas de silicato. Era uma romântica. Havia anos que o sabia.

Mas, ao mesmo tempo, teve de admirar quanto a radioastronomia era poderosa. Os astrônomos tinham ficado em casa, apontado os seus radiotelescópios para Vênus e medido a temperatura da superfície quase tão exatamente quanto as sondas da Venera o fizeram treze anos depois. Sentia-se fascinada com a eletricidade e a eletrônica desde que se conhecia. Mas aquela era a primeira vez que ficava profundamente impressionada com a radioastronomia. Uma pessoa fica em segurança no seu próprio planeta e aponta o seu telescópio, com a sua eletrônica associada. Informação acerca de outros mundos desce então, pulsante, através das antenas. A idéia maravilhava-a.

Ellie começou a visitar o modesto radiotelescópio da Universidade na vizinha Harvard, Massachusetts, e eventualmente recebeu um convite para ajudar nas observações e na análise dos dados. Foi aceita, como assistente aga durante o verão, no National Radio Astronomy Observatory de Green Bank, Virgínia Ocidental, e à chegada olhou com algum arrebatamento para o radiotelescópio primitivo de Grote Reber, construído no seu quintal das traseiras em Wheaton, Ilinóis, em 1938, a servir agora de lembrete do que um amador devotado consegue realizar. Reber fora capaz de detectar a radiemissão do centro da Galáxia quando, por acaso, ninguém da vizinhança estava a ligar o motor do carro e o aparelho de diatermia, ao fundo da rua, não estava a funcionar. O Centro Galáctico era muito mais potente, mas o aparelho de diatermia ficava muito mais perto.

A atmosfera de paciente investigação e as ocasionais recompensas de modestas descobertas eram-lhe agradáveis. Estavam a tentar avaliar como o número de distantes fontes de rádio extragalácticas aumentava à medida que procuravam mais profundamente no espaço. Ellie começou a pensar em melhores maneiras de detectar sinais-rádio fracos. Na devida altura licenciou-se cum laude em Harvard e foi trabalhar em radioastronomia, como pós-graduada, no outro extremo do país, no California Institute of Technology.


Durante um ano foi pupila de David Drumlin. Ele tinha uma reputação mundial de ser brilhante e não tolerar idiotas de boa mente, mas no fundo era um daqueles homens que se podem encontrar no ponto mais alto de todas as profissões e estão num estado de permanente ansiedade, temendo que alguém, algures, demonstre ser mais inteligente do que eles.

Drumlin ensinou a Ellie algo do verdadeiro cerne da matéria, especialmente as suas bases teóricas. Embora constasse inexplicavelmente que ele era atraente para as mulheres, Ellie achou-o freqüentemente combativo e constantemente absorvido em si mesmo. Ela era demasiado romântica, dizia-lhe ele. O universo está rigorosamente ordenado de acordo com as suas próprias regras. A idéia é pensar como o universo pensa, não impingir as nossas predisposições românticas (e anelos de rapariga, acrescentou uma vez) ao universo. Tudo quanto não é proibido pelas leis da natureza, garantiu-lhe — citando um colega do fundo do corredor —, é obrigatório. Mas, prosseguiu, quase tudo é proibido. Ela observou-o enquanto ele prelecionava, tentando adivinhar aquela singular combinação de características de personalidade. Viu um homem em excelente forma física: cabelo prematuramente grisalho, sorriso sardônico, óculos de leitura em meia-lua empoleirados perto da ponta do nariz, laço, queixo quadrado e restos de um sotaque nasalado de Montana.

Para ele, passar um bom bocado era convidar os estudantes graduados e o corpo docente mais jovem para jantar (ao contrário do padrasto dela, que gostava de um séquito de estudantes, mas considerava uma extravagância oferecer-lhes de jantar). Drumlin demonstrava uma territorialidade intelectual extrema, encaminhando a conversa para tópicos em que ele era o especialista reconhecido e despachando rapidamente, em seguida, as opiniões contrárias. Depois do jantar sujeitava-os muitas vezes a uma projeção de diapositivos do Dr. D. a mergulhar com aparelho respiratório autônomo em Cozumel, em Tobago ou na Grande Barreira de Coral. Sorria e acenava freqüentemente para a câmara, mesmo nas imagens subaquáticas. Às vezes aparecia uma vista submarina da sua colega científica Dra. Helga Bork. (A mulher de Drumlin levantava sempre objeções a esses diapositivos particulares, com a fundamentação razoável de que a maior parte da assistência já os vira em anteriores jantares. Na verdade, a assistência já vira todos os diapositivos. Drumlin reagia enaltecendo as virtudes da atlética Dra. Bork e a humilhação da mulher aumentava.) Muitos dos estudantes colaboravam de boa vontade no entretenimento, à procura de alguma novidade que porventura lhes tivesse escapado anteriormente entre os corais-cérebro e os espinhosos ouriços-do-mar. Alguns tremiam de embaraço ou absorviam-se na salada de abacate.

Uma tarde estimulante para os seus estudantes graduados consistia em serem convidados, em grupos de dois ou três, para o conduzirem de carro à beira de um penhasco favorito que ficava perto de Pacific Palisades. Despreocupadamente preso ao seu hang-glider, lançava-se no precipício na direção do oceano tranqüilo, algumas dezenas de metros abaixo. A missão dos estudantes era conduzirem o carro pela estrada marginal abaixo e recolhê-lo. Ele «picava» sobre eles, a sorrir exultantemente. Alguns eram convidados a fazerem-lhe companhia, mas poucos aceitavam. Ele tinha, e com isso se deleitava, a vantagem competitiva. Era uma magnífica exibição. Outros professores consideravam os estudantes graduados recursos para o futuro, os seus porta-testemunhos intelectuais para a geração seguinte. Mas Ellie achava que o Dr. Drumlin tinha um ponto de vista completamente diferente. Para ele, os estudantes graduados eram pistoleiros. Nunca se sabia qual deles poderia desafiá-lo de um momento para o outro para a disputa do título de «Pistoleiro mais Rápido do Oeste». Tinham de ser mantidos nos seus lugares. Ele nunca se lhe «atirara», mas ela tinha a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, era capaz de tentar.

No segundo ano de Ellie no Cal Tech, Peter Valerian regressou ao campus do seu ano sabático no estrangeiro. Era um homem brando e sem atrativos especiais. Ninguém, e ele menos do que toda a gente, o considerava particularmente brilhante. No entanto, possuía um currículo sólido de realizações significativas em radioastronomia porque, como explicava quando insistiam com ele, «não largava o assunto». Havia um aspecto ligeiramente desacreditável na sua carreira científica: fascinava-o a possibilidade de inteligência extraterrestre. Dir-se-ia que cada membro do corpo docente tinha o direito a um fraco: o de Drumlin era o vôo em hang-glider e o de Valerian a vida noutros mundos. Os fracos de outros eram bares com criadas topless, ou plantas carnívoras, ou uma coisa chamada «meditação transcendental». Valerian pensava em inteligência extraterrestre, abreviadamente. E, havia mais tempo e mais aprofundadamente — e em muitos casos mais cuidadosamente — do que qualquer outro. À medida que o foi conhecendo melhor, pareceu a Ellie que a ele proporcionava um fascínio, um romance, que contrastava profundamente com a monotonia da vida pessoal de Valerian. Aquilo de pensar em inteligência extraterrestre não era trabalho para ele, mas sim divertimento. A sua imaginação subia a grandes altitudes.

Ellie adorava ouvi-lo. Era como entrar no País das Maravilhas ou na Cidade Esmeralda. Na realidade, era até melhor, porque no fim de todas as suas reflexões ficava o pensamento de que talvez pudesse ser realmente verdade, pudesse realmente acontecer. Um dia, cismava ela, um dos grandes radiotelescópios podia receber de fato uma mensagem, e não apenas no campo da fantasia. Mas noutro aspecto era pior, pois Valerian, como Drumlin noutras matérias, frisava repetidamente que a especulação tinha de ser confrontada com a realidade física racional. Era uma espécie de peneira que separava a rara especulação útil de torrentes de tolices. Os extraterrestres e a sua tecnologia tinham de ser rigorosamente conformes com as leis da natureza, fato que deforma gravemente muitas perspectivas encantadoras. Mas o que emergia dessa peneira e sobrevivia à mais cética análise física e astronômica podia até ser verdade. Claro que não era possível ter a certeza. Era natural existirem possibilidades que nos escapavam e que, um dia, seriam detectadas por pessoas mais inteligentes.

Valerian sublinhava quanto estamos coarctados pelo nosso tempo, e pela nossa cultura, e pela nossa biologia; quanto somos, por definição, limitados na imaginação de criaturas ou civilizações fundamentalmente diferentes. E, tendo evoluído separadamente em mundos muito diferentes, teriam de ser muito diferentes de nós. Era possível que seres muito mais avançados do que nós pudessem ter tecnologias inimagináveis — isto era, de fato, quase garantido — e até leis de física novas. Era irremediavelmente tacanho, dizia ao passarem por uma sucessão de arcadas de estuque como numa pintura de Chirico, imaginar que todas as importantes leis da física tinham sido descobertas no momento em que a nossa geração começara a encarar o problema. Haveria uma física do século XXI e uma física do século XXII, e até uma física do Quarto Milênio. Podíamos estar tremendamente afastados da realidade ao imaginar como uma civilização técnica muito diferente comunicaria.

Mas, tranqüilizava-se sempre, os extraterrestres sabiam com certeza como estávamos atrasados. Se fôssemos mais avançados, já saberiam da nossa existência. Ali estávamos nós, mal começando a firmar-nos nos nossos dois pés, tendo descoberto o fogo na quarta-feira anterior e somente ontem se nos deparando, como que por acaso, a dinâmica newtoniana, as equações de Maxwell, os radiotelescópios e indícios de superunificação das leis da física. Valerian tinha a certeza de que eles nos não dificultariam as coisas. Tentariam facilitá-las, pois, se quisessem comunicar com patetas, teriam de dar desconto a esses mesmos patetas. Era por isso, pensava, que teria uma probabilidade de obter resultados se alguma vez chegasse uma mensagem. A sua falta de brilho era, na realidade, a sua força. Ele sabia, tinha a certeza, o que os patetas sabiam.

Como tópico para a sua tese de doutorado, Ellie escolheu, com a cooperação do corpo docente, o desenvolvimento de uma melhoria dos sensíveis receptores empregados nos radiotelescópios. Isto permitia utilizar os seus talentos em eletrônica, libertava-a do essencialmente teórico Drumlin e permitia-lhe continuar as suas discussões com Valerian — mas sem dar o passo profissionalmente perigoso de trabalhar com ele em inteligência extraterrestre. Era uma matéria demasiado especulativa para uma dissertação de doutorado. O padrasto adquirira o hábito de denunciar os seus vários interesses como irrealisticamente ambiciosos ou, de vez em quando, como mortalmente banais. Quando teve conhecimento do tema da sua tese através da coscuvilhice (entretanto ela deixara por completo de lhe falar), ignorou-o como prosaico.

Ela estava a trabalhar no laser de rubi. Um rubi é feito principalmente de alumina, que é quase perfeitamente transparente. A cor vermelha deriva de uma pequena impureza de crômio distribuída através do cristal de alumina. Quando se faz incidir um forte campo magnético no rubi, os átomos de crômio aumentam a sua energia ou, como os físicos gostam de dizer, são elevados para um estado excitado. Ela adorava a imagem de todos os pequenos átomos de crômio chamados para uma atividade febril em cada amplificador, tornados frenéticos para uma boa causa prática — amplificar um sinal de rádio fraco. Quanto mais forte o campo magnético, mais excitados se tornam os átomos de crômio. Assim, o maser poderia ser sintonizado para se tornar particularmente sensível a uma radiofreqüência selecionada. Ellie descobriu um modo de fazer rubis com impurezas de lantânio além dos átomos de crômio, a fim de um maser poder ser sintonizado para uma amplitude de freqüência mais estreita e detectar um sinal muito mais fraco do que masers anteriores. O seu detector tinha de ser mergulhado em hélio líquido. Depois instalou o novo instrumento num dos radiotelescópios do Cal Tech em Owens Valley e detectou, em freqüências inteiramente novas, aquilo a que os astrônomos chamam a radiação de fundo do corpo negro de três graus — os resíduos no radiespectro da imensa explosão que iniciou este universo, o Big Bang.

«Vejamos se não me enganei», costumava dizer para consigo, «peguei num gás inerte que existe no ar, transformei-o num líquido, pus algumas impurezas num rubi, acrescentei um magneto e detectei os fogos da Criação.»

Depois abanava a cabeça, maravilhada. A uma pessoa ignorante da física subjacente podia parecer a mais arrogante e pretensiosa necromancia. Como se explicaria semelhante coisa aos melhores cientistas de mil anos atrás, que tinham conhecimentos a respeito do ar, dos rubis e de magnetitas, mas não acerca de hélio líquido, emissão estimulada e bombas de fluxo supercondutoras? Na verdade, recordou a si mesma, não faziam sequer a mais pequena idéia a respeito do radiespectro. Ou sequer a idéia de um espectro — a não ser vagamente, em resultado da contemplação do arco-íris. Não sabiam que a luz eram ondas. Como podíamos nós esperar compreender a ciência de uma civilização que nos levava um avanço de mil anos?

Era necessário fazer rubis em grandes quantidades, pois apenas alguns teriam as propriedades necessárias. Nenhuns eram gemas genuínas e, na sua maioria, eram pequenos. Mas ela adquiriu o hábito de usar alguns dos resíduos maiores. Condiziam bem com a sua coloração escura. Mesmo que fosse cuidadosamente cortada, reconhecia-se sempre alguma anomalia na pedra encastoada num anel ou num broche: por exemplo, a maneira estranha como captava a luz em certos ângulos de uma abrupta reflexão interna, ou uma mácula cor de pêssego dentro do vermelho de rubi. Ela explicava a amigos não cientistas que gostava de rubis, mas não podia dar-se ao luxo de os ter. Era um pouco como o cientista que primeiro descobriu o caminho bioquímico da fotossíntese das plantas verdes e depois passou a usar sempre agulhas de pinheiro ou um pé de salsa na lapela. Os colegas, cujo respeito por ela aumentava, consideravam o fato uma pequena idiossincrasia.

Os grandes radiotelescópios do mundo estão construídos em lugares remotos pela mesma razão que levou Paul Gauguin a navegar para Taiti: para trabalharem bem, precisam de estar longe da civilização. À medida que o tráfico-rádio civil e militar aumentou, os radiotelescópios foram tendo de se esconder — seqüestrados, digamos, num obscuro vale de Porto Rico, ou exilados num imenso deserto restolhoso do Novo México ou do Cazaquistão. Como a radinterferência continua a aumentar, torna-se cada vez mais lógico construir os telescópios completamente fora da Terra. Os cientistas que trabalham nestes observatórios isolados mostram propensão para serem pertinazes e determinados. As esposas abandonam-nos e os filhos saem de casa na primeira oportunidade, mas os astrônomos resistem e agüentam. Raramente pensam em si próprios como sonhadores. O pessoal científico permanente de observatórios remotos tende a ser constituído pelos práticos, pelos experimentalistas, pelos peritos que sabem muito a respeito de concepção de antenas e análise de dados e muito menos a respeito de quasars ou pulsars. De um modo geral, não tinham anelado pelas estrelas na infância; tinham estado demasiado ocupados a reparar o carburador do carro da família.

Depois de receber o seu doutorado, Ellie aceitou colocação como investigadora associada no Observatório de Arecibo, uma grande taça com trezentos e cinco metros de largura, fixada ao chão de um vale de carste nos sopés dos montes do Noroeste do Porto Rico. Com o maior radiotelescópio do planeta, sentiu-se ansiosa por utilizar o seu detector maser para observar o máximo de objetos astronômicos que pudesse — planetas e estrelas próximos, o centro da Galáxia, pulsars e quasars. Como membro em tempo inteiro do pessoal do Observatório ser-lhe-ia destinada uma quantidade significativa de tempo para observação. O acesso aos grandes radiotelescópios é vivamente competitivo, pois os projetos de investigação que valem a pena são muito mais do que a capacidade dos aparelhos permite. Por isso, o tempo de telescópio reservado ao pessoal residente é uma condição prévia de valor incalculável. Para muitos dos astrônomos é a única razão que os levaria a aceitar viver em lugares tão remotos.

Ela esperava também examinar algumas estrelas próximas, em busca de possíveis sinais de origem inteligente. Com o seu sistema detector seria possível ouvir as perdas-rádio de um planeta como a Terra, mesmo que ele se encontrasse a alguns anos-luz de distância. E uma sociedade avançada que pretendesse comunicar conosco seria indubitavelmente capaz de possuir uma força de transmissão muito maior do que a nossa. Se Arecibo, utilizado como um telescópio de radar, era capaz de transmitir um megavátio de energia para um lugar específico do espaço, então uma civilização apenas um bocadinho avançada em relação à nossa poderia, pensava ela, transmitir cem megavátios ou mais. Se estavam a transmitir intencionalmente para a Terra com um telescópio tão grande como o de Arecibo, mas com um emissor de cem megavátios, Arecibo seria capaz de os detectar virtualmente em qualquer ponto da Galáxia da Via Láctea. Quando pensava cuidadosamente no assunto, surpreendia-a o fato de, na procura de inteligência extraterrestre, o que podia ser feito se encontrar à frente do que tinha sido feito. Achava insignificantes os recursos que tinham sido destinados àquela questão. Sentia dificuldade em encontrar um problema científico mais importante.

As instalações de Arecibo eram conhecidas pela gente local como El Radar. A sua função era, de modo geral, obscura, mas proporcionava mais de cem postos de trabalho, que faziam muita falta. As jovens da localidade eram seqüestradas dos astrônomos do sexo masculino, alguns dos quais podiam ser vistos a quase todas as horas do dia ou da noite, cheios de energia nervosa, praticando jogging ao longo do caminho circunferencial que contornava o disco. Em conseqüência disso, as atenções concentradas em Ellie depois da sua chegada, embora não fossem inteiramente mal acolhidas, não tardaram a desviar-lhe a atenção da sua investigação.

A beleza física do lugar era considerável. Ao crepúsculo olhava pelas janelas de controle e via nuvens de tempestade pairarem sobre o outro bordo do vale, logo a seguir a uma das três imensas torres das quais estavam suspensas as antenas de corneta e o seu recém-instalado sistema maser. No cimo de cada torre brilhava uma luz vermelha para avisar e fazer afastar quaisquer aviões que improvavelmente se tivessem desviado para aquela remota paisagem. Às quatro da manhã costumava ir até ao exterior a fim de tomar um pouco de ar e esforçar-se por compreender um coro maciço de milhares de rãs terrestres locais chamadas coquis, nome que era uma onomatopéia do seu grito lamentoso.

Alguns astrônomos viviam perto do Observatório, mas o isolamento, agravado pela ignorância da língua espanhola e pela inexperiência de qualquer outra cultura, tendia a impeli-los, e às suas mulheres, para a solidão e a anomia. Alguns tinham decidido viver na Base Aérea de Ramey, que possuía a única escola de língua inglesa das imediações. Mas a viagem de automóvel de noventa minutos também aumentava o seu sentimento de isolamento. Ameaças repetidas de separatistas porto-riquenhos, erradamente convencidos de que o Observatório desempenhava qualquer missão militar importante, aumentavam a sensação de histeria sufocada, de circunstâncias dificilmente controladas.

Muitos meses depois, Valerian fez uma visita. Nominalmente, encontrava-se ali para fazer uma conferência, mas ela sabia que parte do seu objetivo era verificar como ela se ia dando e proporcionar-lhe o possível apoio psicológico. A sua investigação estava a correr muito bem. Ellie descobrira o que parecia ser um novo complexo de nuvens moleculares interestelares e obtivera alguns excelentes dados de elevada resolução temporal sobre a pulsar do centro da nébula do Caranguejo. Completara até a investigação mais sensível até aí realizada de sinais de uma dúzia de estrelas próximas, mas sem resultados positivos. Houvera uma ou duas regularidades suspeitas. Observara de novo as estrelas em questão e não conseguira encontrar nada fora do vulgar. Se olhamos para muitas estrelas, mais cedo ou mais tarde a interferência terrestre ou a concatenação de ruído ocasional produzirá um padrão que por momentos nos faz palpitar o coração. Acalmamo-nos e conferimos. Se não se repete, consideramo-lo espúrio. Esta disciplina era essencial se ela queria preservar algum equilíbrio emocional em face do que procurava. Estava decidida a ser tão tenaz e lúcida quanto possível, mas sem abandonar a sensação de maravilhamento que antes de mais nada a impulsionava.

Recorrendo às escassas provisões que tinha no frigorífico comunitário, improvisou um almoço-piquenique rudimentar e Valerian sentou-se com ela mesmo na periferia do disco taciforme. Viam-se ao longe trabalhadores a reparar ou a substituir os painéis, calçando sapatos de neve especiais para não rasgarem as chapas de alumínio e não se despencarem no solo, em baixo, pelas aberturas.

Valerian mostrou-se encantado com o progresso dela. Trocaram pequenos mexericos e falaram de assuntos científicos especiais correntes. A conversa desviou-se para a SETI, como a procura de inteligência extraterrestre começava a ser chamada.

— Alguma vez pensou em trabalhar nisso a tempo inteiro, Ellie? — perguntou ele.

— Não, não pensei muito. Mas também não é realmente possível, pois não? Que eu saiba, não existe em parte alguma do mundo nenhuma instalação importante destinada à SETI em tempo inteiro.

— Não, mas poderá existir. Há uma probabilidade de que dúzias de discos adicionais sejam acrescentados ao Very Lar e Array e o transformem num observatório dedicado à SETI. Claro que fariam também um pouco do tipo habitual da radioastronomia. Seria um interferômetro estupendo. Trata-se apenas de uma possibilidade, é dispendioso, exige vontade política autêntica e, na melhor das hipóteses, está a anos de distância. É somente uma coisa para pensar.

— Peter, acabo de examinar umas quarenta e tal estrelas próximas de tipo espectral mais ou menos solar. Estudei a linha de hidrogênio de vinte e um centímetros, que toda a gente diz ser a freqüência de aviso óbvia, porque o hidrogênio é o átomo mais abundante do universo, etc. E fi-lo com a sensibilidade mais elevada jamais experimentada. Não existe a sombra de um sinal. Talvez não exista ninguém lá. Talvez toda esta história seja um desperdício de tempo.

— Como a vida em Vênus? Isso não passa de conversa de desiludida. Vênus é um mundo infernal; é apenas um planeta. Mas há centenas de milhares de milhões de estrelas na Galáxia. Você observou somente um punhado delas. Não acha um pouco prematuro desistir? Resolveu um milésimo milionésimo do problema. Provavelmente muito menos do que isso, se tiver em consideração outras freqüências.

— Bem sei, bem sei. Mas não tem a sensação de que, se eles estão nalgum lado, estão em todo o lado? Se seres realmente avançados vivem a mil anos-luz de distância, não seria natural terem um posto avançado no nosso quintal das traseiras? Bem sabe que uma pessoa podia trabalhar eternamente na SETI e nunca se convencer de que completara a busca.

— Oh, começa a parecer o Dave Drumlin! Se não conseguimos encontrá-los durante o tempo da sua vida, não está interessado. Estamos apenas a iniciar a SETI. Você sabe quantas possibilidades existem. Esta é a altura de deixar abertas todas as opções. Esta é a altura de ser otimista. Se vivêssemos em qualquer época anterior da história humana, poderíamos passar toda a nossa vida a pensar no assunto sem podermos fazer nada para encontrar a resposta. Mas este momento é único. É a primeira vez que alguém tem possibilidade de procurar inteligência extraterrestre. Você fez o detector para procurar civilizações nos planetas de milhões de outras estrelas. Ninguém garante o êxito. Mas consegue imaginar coisa mais importante? Suponha-os ali, a enviar-nos sinais sem ninguém na Terra a escutar. Isso seria ridículo, seria grotesco. Não se envergonharia da sua civilização se tivéssemos meios de escutar e nos faltasse a energia, a garra, para o fazer?


Duzentos e cinqüenta e seis imagens do mundo esquerdo perpassaram à esquerda. Duzentos e cinqüenta e seis imagens do mundo direito deslizaram à direita. Ela integrou as quinhentas e doze imagens numa visão envolvente do que a cercava. Estava profundamente embrenhada numa floresta de grandes folhas ondulantes, umas verdes, outras estioladas, quase todas maiores do que ela. Mas não tinha dificuldade nenhuma em subi-las, equilibrar-se precariamente, de vez em quando, numa folha inclinada, cair para a branda almofada das folhas horizontais de baixo e depois continuar sem hesitar o seu caminho. Sabia que estava centrada na pista. Na pista torturantemente recente. Não se importaria nada, se a tal pista a guiasse, de escalar um obstáculo cem ou mil vezes mais alto do que ela. Não precisava de torres nem de cordas; já estava equipada. O terreno imediatamente à sua frente recendia a um odor marcador deixado recentemente — tinha de ser — por outra batedora do seu clã.

Conduziria a comida; conduzia quase sempre. A comida apareceria espontaneamente. Batedoras descobri-la-iam de volta. Às vezes, a comida era uma criatura muito parecida com ela própria; outras, era apenas um matacão amorfo ou cristalino. Ocasionalmente era tão grande que se tornavam necessárias muitas do seu clã, trabalhando juntas, elevando-o e empurrando-o sobre as folhas dobradas, para o levar para casa. Estalou as mandíbulas, num antegosto.


— O que me preocupa mais — continuou ela — é o oposto, a possibilidade de eles não estarem a tentar. Podiam comunicar conosco, sim senhor, mas não o fazem porque não vêem nenhuma utilidade nisso. E como olhou para baixo, para a beira da toalha de mesa que tinham estendido sobre a erva… como as formigas. Ocupam a mesma paisagem que nós. Têm muito que fazer, coisas em que ocupar-se. Em certo nível, estão muito conscientes do seu ambiente. Mas nós não tentamos comunicar com elas. Por isso, não creio que tenham a mais vaga idéia de que existimos.

Uma grande formiga, mais empreendedora do que as suas companheiras, aventurara-se a avançar pela toalha de mesa e marchava com desenvoltura ao longo da diagonal de um dos quadrados encarnados e brancos. Reprimindo um pequeno estremecimento de repugnância, ela atirou-a, com um piparote desajeitado, novamente para a erva — onde era o seu lugar.

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