CAPÍTULO XI O Consórcio Mundial da Mensagem

O mundo está quase todo repartido e o que dele resta está a ser dividido, conquistado e colonizado. Pensar nessas estrelas que vemos lá em cima, à noite, nesses imensos mundos que nunca podemos alcançar! Anexaria os planetas, se pudesse; penso muitas vezes nisso. Entristece-me vê-los tão claros e todavia tão distantes.

CECIL RODES. Last will and Testament (1902)

Da mesa que ocupavam junto da janela, Ellie via o aguaceiro molhar a rua. Um transeunte encharcado, de gola levantada, passou apressado e resolutamente. O proprietário abrira o toldo às riscas sobre as tinas de ostras, selecionadas consoante tamanho e qualidade e constituindo uma espécie de anúncio público da especialidade da casa. Sentia-se quente e aconchegada dentro do restaurante, o famoso ponto de encontro da gente de teatro, Chez Dieux. Como tinha sido previsto bom tempo, não trouxera gabardina nem chapéu-de-chuva.

Igualmente desprovido de tais acessórios, Vaygay apresentou um novo assunto:

— A minha amiga Meera — anunciou — é uma ecdisiasta. É esta a palavra certa, não é? Quando trabalha no seu país, representa para grupos de membros de profissões liberais, em reuniões e convenções. Meera diz que, quando tira as roupas para homens da classe trabalhadora — em convenções e sindicatos e coisas desse gênero —, eles ficam desvairados, gritam sugestões impróprias e tentam juntar-se-lhe no palco. Mas, quando faz exatamente a mesma coisa para médicos ou advogados, eles deixam-se ficar sentados, imóveis. Alguns, diz ela, lambem mesmo os lábios. A minha pergunta é: os advogados são mais saudáveis do que os operários siderúrgicos?

Que Vaygay tinha diversos conhecimentos femininos, sempre fora aparente. As maneiras como abordava as mulheres eram tão diretas e extravagantes — excluindo ela própria, por qualquer razão que lhe agradava e desagradava simultaneamente — ; que elas podiam sempre dizer «não» sem embaraço. Muitas diziam «sim». Mas a novidade a respeito de Meera era um pouco inesperada.

Tinham passado a manhã numa comparação de apontamentos e interpretação de novos dados de última hora. A transmissão continuada da Mensagem chegara a um novo estágio importante. Estavam a ser transmitidos diagramas de Vega do mesmo modo que se transmitem telefotografias de jornais. Cada imagem era um sistema de quadriculação. O número de minúsculos pontos pretos e brancos que constituíam a gravura era o produto de dois números primos. De novo os números primos faziam parte da transmissão. Havia um grande conjunto de tais diagramas, uns após outros, e de modo algum intercalados no texto. Era como uma série de ilustrações lustrosas inseridas no fim de um livro. Após a transmissão das longas seqüências de diagramas, o texto ininteligível continuava. Com base em alguns dos diagramas, parecia evidente que Vaygay e Arkhangelsky tinham tido razão, que a Mensagem era, pelo menos em parte, as instruções, os planos para construir uma máquina. Uma máquina cujo fim era desconhecido. Na reunião plenária do Consórcio Mundial da Mensagem, a realizar no dia seguinte no Palácio do Eliseu, ela e Vaygay apresentariam pela primeira vez alguns dos pormenores a representantes das outras nações do Consórcio. Mas a hipótese da máquina já fora mais ou menos divulgada oficiosamente.

Durante o almoço, ela resumira o seu encontro com Rankin e Joss. Vaygay mostrara-se atento, mas não fizera perguntas. Fora como se ela tivesse estado a confessar alguma predileção pessoal indecorosa, e fora talvez isso que desencadeara a associação de idéias dele.

— Tem uma amiga chamada Meera que é uma artista de strip-tease? Com categoria internacional?

— Desde que Wolfgang Pauli descobriu o princípio da exclusão enquanto assistia às Folies-Bergére, considerei meu dever profissional, como físico, visitar Paris o mais possível. Considero isso a minha homenagem a Pauli. Mas, não sei por quê, nunca consigo persuadir os funcionários do meu país a aprovarem viagens exclusivamente para esse efeito. Geralmente, tenho de fazer também alguma física prosaica. Mas em tais estabelecimentos — foi onde conheci Meera — sou um estudioso da natureza, à espera de introspecção para atacar.

Abruptamente, o seu tom de voz passou de expansivo para casual:

— Meera diz que os homens americanos que se dedicam à ciência e às profissões liberais são sexualmente reprimidos e têm dúvidas e sentimento de culpa atormentadores.

— Deveras? E que diz ela acerca dos homens russos que se dedicam à ciência e às profissões liberais?

— Ah, nessa categoria só me conhece a mim! Por isso evidentemente, tem uma boa opinião. Acho que preferia estar com ela amanhã.

— Mas todos os seus amigos estarão na reunião do Consórcio — redargüiu-lhe Ellie, divertida.

— Sim, e eu estou satisfeito porque você lá estará — respondeu Vaygay, melancolicamente.

— Que o preocupa, Vaygay?

Ele demorou muito tempo antes de responder e, quando o fez, começou com uma ligeira, mas incaracterística, hesitação:

— Talvez não seja preocupação. Talvez seja inquietação… E se a Mensagem for realmente a concepção do projeto de uma máquina? Construímos a máquina? Quem a constrói? Todos juntos? O Consórcio? As Nações Unidas? Algumas nações em concorrência? E se for enormemente dispendiosa de construir? Quem paga? Por que hão-de querer pagar? E se não funcionar? Poderá a construção da máquina prejudicar economicamente algumas nações? Poderá prejudicá-las em qualquer outro aspecto?

Sem interromper a torrente de perguntas, Lunacharsky despejou o resto do vinho dos copos.

— Mesmo que a Mensagem volte atrás, e mesmo que a decifremos totalmente, que utilidade poderá ter a tradução? Conhece a opinião de Cervantes? Ele disse que ler uma tradução é como examinar o avesso de uma tapeçaria. Talvez não seja possível traduzir a Mensagem perfeitamente. Assim sendo, não construiríamos a máquina perfeitamente. Além disso, temos de fato a certeza de estar de posse de todos os dados? Talvez haja informação essencial em qualquer outra freqüência que ainda não descobrimos.

«Sabe, Ellie, acho que as pessoas deviam ser muito cautelosas quanto a construir esta máquina. Mas amanhã aparecerão alguns que instigarão à construção imediata — quero dizer, logo após recebermos o livro de instruções e decifrarmos a Mensagem, presumindo que a deciframos. Que vai a delegação americana propor?

— Não sei — respondeu ela, devagar.

Mas lembrou-se de que, pouco depois de o material diagramático ter sido recebido, Der Heer começara a perguntar se era presumível que a máquina estivesse ao alcance da economia e da tecnologia da Terra. Ela pouco o pudera tranqüilizar em qualquer dos aspectos. Recordou de novo quanto Ken parecera preocupado nas últimas semanas, algumas vezes até nervoso. Claro que as suas responsabilidades na questão eram…

— O doutor Der Heer e Mister Kitz estão no mesmo hotel que você?

— Não, eles estão instalados na Embaixada.

Era sempre assim. Devido à natureza da economia soviética e à necessidade consciente de comprar tecnologia militar em vez de bens de consumo com as suas reservas limitadas de moedas fortes, os Russos dispunham de pouco dinheiro para gastar quando visitavam o Ocidente. Eram obrigados a ficar em hotéis de segunda ou terceira categoria, ou até mesmo em pensões, enquanto os seus colegas ocidentais viviam em relativo luxo. Isso constituía uma contínua fonte de embaraço para os cientistas de ambos os países. Pagar a conta daquela refeição relativamente simples não representaria dificuldade nenhuma para Ellie, mas seria um peso grande para Vaygay, apesar da sua posição comparativamente elevada na hierarquia científica soviética. Mas o que estava ele…

— Vaygay, seja direto comigo. Que pretende dizer? Pensa que o Ken e Mike Kitz se estão a antecipar?

— «Direto»[9]… Uma palavra interessante; nem para a direita nem para a esquerda, mas progressivamente em frente. Receio que nos próximos dias assistamos a uma discussão prematura acerca da construção de uma coisa que não temos direito nenhum de construir. Os políticos pensam que nós sabemos tudo. Na realidade, não sabemos quase nada. Semelhante situação poderia ser perigosa.

Ellie apercebeu-se finalmente de que Vaygay estava a assumir uma responsabilidade pessoal pela compreensão da natureza da Mensagem. Se conduzisse a alguma catástrofe, preocupava-o que a culpa pudesse ser sua. Claro que também tinha menos motivações pessoais.

— Quer que eu fale com o Ken?

— Se lhe parecer apropriado. Tem oportunidades freqüentes de falar com ele? — Fez a pergunta em tom natural.

— Vaygay, não está com ciúmes, pois não? Desconfio que se apercebeu dos meus sentimentos pelo Ken antes de eu própria ter consciência deles. Quando esteve em Argus. O Ken e eu temos estado mais ou menos juntos nos últimos dois meses. Tem algumas objeções?

— Oh, não, Ellie! Não sou seu pai nem um amante ciumento. Só lhe desejo grande felicidade. Acontece apenas que vejo tantas possibilidades desagradáveis…

Mas não adiantou mais.

Voltaram às suas interpretações preliminares de alguns dos diagramas, com os quais a mesa ficou eventualmente coberta. Como contraponto, também discutiram um pouco de política: o debate na América sobre os princípios de Mandala para resolver a crise na África do Sul e a crescente guerra de palavras entre a União Soviética e a República Democrática Alemã. Como sempre, Arroway e Lunacharsky sentiam prazer em denunciar um ao outro a política externa dos seus próprios países. Isto era muito mais interessante do que denunciar a política externa da nação um do outro, o que teria sido igualmente fácil de fazer. Durante a discussão ritual acerca de repartirem a despesa, ela reparou que a forte chuva se reduzira a um leve chuviscar.


Entretanto, a notícia da Mensagem de Vega chegara a todos os cantos do planeta Terra. Contara-se a pessoas que não sabiam nada de radiotelescópios e nunca tinham ouvido falar em números primos, uma história peculiar acerca de uma voz das estrelas, acerca de seres estranhos — que não eram exatamente homens, mas também não eram exatamente deuses — que, descobrira-se, viviam no céu noturno. Não vinham da Terra. A sua estrela-pátria podia ser facilmente vista, mesmo com Lua cheia. No meio do ininterrupto frenesi de comentários sectários havia também — por todo o mundo, como agora se tornara aparente — um sentimento de espanto, até mesmo de temor. Estava a acontecer alguma coisa transformadora, alguma coisa miraculosa. O ar estava cheio de possibilidades, de uma sensação de novo começo.

«A humanidade foi promovida à escola secundária» escrevera um editorialista americano.

Havia outros seres inteligentes no universo. Podíamos comunicar com eles. Provavelmente eram mais velhos do que nós, possivelmente mais sábios. Estavam a enviar-nos bibliotecas de informação complexa. Havia como que uma intuição muito espalhada de iminente revelação secular. Por isso, os especialistas de todas as matérias começaram a preocupar-se. Matemáticos preocupavam-se com as descobertas elementares que podiam ter lhes escapado. Dirigentes religiosos receavam que valores veganianos, apesar de alienígenas, encontrassem adeptos fáceis, especialmente entre os jovens sem instrução. Astrônomos preocupavam-se com a possibilidade de haver aspectos fundamentais acerca de estrelas próximas que tivessem interpretado mal. Políticos e dirigentes governamentais temiam que quaisquer outros sistemas de governo, alguns completamente diferentes dos presentemente em moda, pudessem ser admirados por uma civilização superior. Fosse o que fosse que os Veganianos soubessem, não fora influenciado por instituições, história ou biologia peculiarmente humanas. E se muito do que nós julgávamos certo fosse um equívoco, um caso especial ou uma asneira lógica?

Peritos começaram, intranqüilamente, a reavaliar a fundamentação das suas matérias.

Para além desta restrita inquietação vocacional havia uma grande e sublime percepção de uma nova aventura para a espécie humana, o dobrar de uma esquina, de entrar de rompante numa nova era — um simbolismo fortemente ampliado pela aproximação do Terceiro Milênio. Ainda havia conflitos políticos, alguns deles — como a incessante crise sul-africana — graves. Mas havia também em muitas partes do mundo um declínio notório de retórica jingoísta e nacionalismo auto-congratulatório pueril. Havia a sensação de que a espécie humana, milhares de milhões de minúsculos seres humanos espalhados por todo o mundo, estava a ser coletivamente presenteada com uma oportunidade sem precedentes, ou até, porventura, com um grave perigo comum. A muitos parecia absurdo que os estados-nações em desacordo continuassem com os seus conflitos mortíferos quando enfrentados por uma civilização não humana de aptidões imensamente maiores. Andava no ar um cheirinho de esperança. Algumas pessoas que a tal não estavam acostumadas tomaram-no erradamente por qualquer outra coisa — confusão, talvez, ou covardia.

Durante décadas, depois de 1945, o arsenal mundial de armas nucleares estratégicas aumentara sistematicamente. Os dirigentes mudavam, os sistemas de armamento mudavam, a estratégia mudava, mas o número de armas estratégicas, esse, só aumentava. Chegou uma altura em que havia mais de vinte e cinco mil no planeta, dez para cada cidade. A tecnologia estava a empurrar no sentido de tempo de vôo curto, incentivos para ard-target-first strike e, pelo menos, launch-on-Warning de fato. Só um perigo tão monumental podia anular uma insensatez tão monumental, apoiada por tantos líderes em tantas nações durante tanto tempo. Mas, finalmente, o mundo recuperou a lucidez, pelo menos até determinado ponto, e foi assinado um acordo pelos Estados Unidos da América, a União Soviética, a Inglaterra, a França e a China. Não se destinava a libertar o mundo das armas nucleares. Poucos esperavam que trouxesse na sua esteira alguma utopia. Mas os Americanos e os Soviéticos comprometeram-se a reduzir os seus arsenais estratégicos para mil armas nucleares cada. Os pormenores foram cuidadosamente concebidos, de modo que nenhuma das superpotências se encontrasse em desvantagem significativa em qualquer estágio do processo de redução.

A Inglaterra, a França e a China acordaram em começar a reduzir os seus arsenais quando as superpotências tivessem descido abaixo do nível das três mil e duzentas unidades. Os Acordos de Hiroxima foram assinados, com júbilo mundial, junto da famosa placa em memória das vítimas da primeira cidade obliterada por uma arma nuclear: «Descansai em paz, pois não voltará a acontecer!»

Todos os dias, os ativadores de cisão de um número igual de ogivas nucleares dos Estados Unidos da América e da União Soviética eram entregues numa instalação especial dirigida por técnicos americanos e russos. O plutônio era extraído, registrado, selado e transportado por equipes bilaterais para centrais de energia nuclear onde era consumido e convertido em eletricidade. Este esquema, conhecido por Plano de Gayler, em homenagem a um almirante americano, era largamente aclamado como a última palavra na transformação de espadas em relhas de arado. Como cada nação ainda conservava uma capacidade de retaliação devastadora, até os estabelecimentos militares acabaram eventualmente por concordar com o sistema. Os generais não desejam mais do que qualquer outra pessoa que os seus filhos morram, e a guerra nuclear é a negação das virtudes militares convencionais; é difícil encontrar muita coragem no ato de carregar num botão. A primeira cerimônia de despojamento — filmada pela televisão, transmitida em direto e retransmitida muitas vezes — apresentava técnicos americanos e soviéticos vestidos de branco transportados em dois dos objetos metálicos cinzento-baços, cada um quase do tamanho de uma otomana e variadamente engalanados com estrelas e riscas e foices e martelos. Foi vista por uma enorme fração da população mundial. Os telejornais noturnos anunciavam regularmente quantas ameaças estratégicas de ambos os lados tinham sido desmanteladas e quantas mais iam sê-lo. Dentro de pouco mais de duas décadas, estas notícias também chegariam a Vega.

Nos anos seguintes, as desativações continuaram, quase sem nenhum problema. Ao princípio, o excesso nos arsenais foi anulado, com pouca mudança na doutrina estratégica; mas agora os cortes estavam a ser sentidos e os sistemas de armas mais desestabilizadores estavam a ser desmantelados. Tratava-se de algo que os peritos tinham classificado de impossível e declarado «contrário à natureza humana». Mas uma sentença de morte, como Samuel Johnson observara, faz concentrar a mente de maneira maravilhosa. No último meio ano, o desmantelamento de armas nucleares pelos Estados Unidos e pela União Soviética dera importantes passos novos, com equipes de inspeção intrusivas de cada nação a serem em breve instaladas no território da outra — apesar da desaprovação e preocupação publicamente manifestadas pelos estados-maiores militares de ambas as potências. As Nações Unidas revelaram-se inesperadamente eficientes na mediação de disputas internacionais, com as guerras fronteiriças oeste-iraniana e Chile-Argentina ambas aparentemente resolvidas. Falava-se até, e não se tratava de conversa inteiramente estulta, de um tratado de não agressão entre a NATO e o Pacto de Varsóvia.

Os delegados que chegavam para a primeira sessão plenária do Consórcio Mundial da Mensagem vinham predispostos para a cordialidade numa medida sem paralelo em décadas recentes.

Cada nação possuidora nem que fosse apenas de um punhado de bits da Mensagem estava representada, tendo enviado delegados tanto científicos como políticos; um número surpreendente enviou também representantes militares. Nalguns casos, poucos, as delegações nacionais eram chefiadas por ministros dos Estrangeiros ou até por Chefes de Estado. A delegação do Reino Unido incluía o visconde Boxforth, Lorde do Selo Privado — título que, intimamente, Ellie achava hilariante[10]. A delegação da URSS era chefiada por B. Ya Abukhimov, presidente da Academia de Ciências Soviética, com Gotsridze, ministro da Indústria Meio-Pesada, e Arkhangelsky a desempenharem papéis significativos. A presidente dos Estados Unidos insistira em que Der Heer chefiasse a delegação americana, embora ela incluísse o subsecretário de Estado Elmo Honicutt e Michael Kitz, entre outros, em representação do Departamento da Defesa.

Um enorme e complicado mapa em projeção de área igual mostrava a disposição dos radiotelescópios no planeta, incluindo os navios oceânicos rastreadores soviéticos. Ellie olhou em redor do recém-concluído salão de conferências, adjacente aos gabinetes e à residência do presidente da França. Ainda apenas no segundo ano do seu mandato de sete anos, ele estava a fazer todos os esforços para assegurar o êxito da reunião. Uma multitude de rostos, bandeiras e uniformes nacionais refletia-se das compridas e curvas mesas de mogno e das paredes espelhadas. Ellie reconheceu poucas das pessoas dos campos político e militar, mas em cada delegação parecia encontrar-se pelo menos um cientista ou engenheiro familiar: Annunziata e Ian Broderick, da Austrália; Fedirka, da Checoslováquia; Braude, Crebillon e Boileau, da França; Kumar Chandrapurana e Devi Sukhavati, da Índia; Hironaga e Matsui, do Japão… Pensou nos fortes antecedentes tecnológicos, mais do que radioastronômicos, de muitos dos delegados, especialmente dos japoneses. A idéia de que a construção de alguma imensa máquina poderia fazer parte da agenda da reunião originara mudanças de última hora na composição das delegações.

Reconheceu também Matesta, da Itália; Bedenbaugh, um físico que se metera na política, Clegg e o venerando Sir Arthur Chatos a conversar atrás do tipo de bandeira inglesa que se encontra em mesas de restaurantes em estâncias européias; Jaime Ortiz, de Espanha; Prebula, da Suíça — o que era intrigante, uma vez que a Suíça, que ela soubesse, não tinha sequer um radiotelescópio; Bao, que organizara brilhantemente a distribuição de radiotelescópios chineses, e Wintergarden, da Suécia. Havia delegações sauditas, paquistanesas e iraquianas surpreendentemente grandes e, evidentemente, os soviéticos, entre os quais Nadya Rozhdestvenskaya e Genrikh Arkhangelsky compartilhavam um momento de genuína hilaridade.

Ellie olhou à procura de Lunacharsky e finalmente localizou-o com a delegação chinesa. Estava a apertar a mão a Yu Renqiong, diretor do Radiobservatório de Beijing. Lembrava-se de que os dois homens tinham sido amigos e colegas durante o período da cooperação sino-soviética. Mas as hostilidades entre as duas respectivas nações tinham posto fim a qualquer contato entre eles e as restrições das autoridades chinesas às viagens ao estrangeiro dos seus cientistas mais importantes ainda eram quase tão rigorosas como as soviéticas. Ellie compreendeu que estava a testemunhar o primeiro encontro dos dois ao fim de, talvez, um quarto de século.

— Quem é o velho chinês a quem Vaygay está a apertar a mão? — A pergunta era, da parte de Kitz, uma tentativa de cordialidade. Nos últimos dias, ele tivera pequenas atitudes deste gênero, mudança de comportamento que ela achava pouco prometedora.

— Yu, diretor do Observatório de Beijing.

— Julgava que aqueles tipos não se gramavam uns aos outros.

— Michael, o mundo é simultaneamente melhor e pior do que você imagina.

— Provavelmente pode levar-me a palma no «melhor», mas não me chega aos calcanhares no «pior».

Depois das boas-vindas dadas pelo presidente da França (que, para certo espanto dos presentes, ficou para ouvir as apresentações do início da reunião) e da discussão da condução dos trabalhos e da agenda por Der Heer e Abukhimov como co-presidentes da conferência, Ellie e Vaygay apresentaram em conjunto o resumo dos dados. Fizeram o que entretanto se tornara a forma de apresentação-padrão — não excessivamente técnica, por consideração para com as individualidades políticas e militares — quanto ao modo como os radiotelescópios funcionavam, a distribuição das estrelas próximas no espaço e a história da Mensagem em palimpsesto. A sua apresentação conjunta terminou com um visionamento, através dos monitores colocados diante de cada delegação, do material diagramático recentemente recebido. Ela foi cuidadosa na demonstração de como a modulação de polarização se convertia numa seqüência de zeros e uns, como os zeros e os uns se ajustavam para formar uma imagem e como, na maioria dos casos, eles não faziam a mais vaga idéia do que a imagem significava.

Os pontos de dados agrupavam-se nos écrans dos computadores. Ela via rostos iluminados de branco, âmbar e verde pelos monitores no salão, agora parcialmente escurecido. Os diagramas mostravam complexas articulações ramificadas; formas protuberantes, quase indecentemente biológicas, e um dodecaedro regular perfeitamente formado. Uma longa série de páginas fora agrupada numa construção tridimensional complicadamente pormenorizada que girava lentamente. A cada objeto enigmático correspondia uma legenda ininteligível.

Vaygay sublinhou as incertezas ainda mais fortemente do que ela. No entanto, na sua opinião, não restavam agora dúvidas de que a Mensagem era um manual para a construção de uma máquina. Não mencionou que a idéia de a Mensagem ser um projeto de construção tinha partido inicialmente dele e de Arkhangelsky, mas Ellie aproveitou a oportunidade para retificar a omissão.

Nos últimos meses falara do assunto o suficiente para saber que audiências tanto científicas como gerais se sentiam freqüentemente fascinadas pelos pormenores do deslindar da Mensagem e presas de uma curiosidade atormentadora pelo conceito ainda por provar de um livro de instruções. No entanto, não estava preparada para a reação daquela — julgar-se-ia — serena assistência. Vaygay e ela tinham interdigitado as suas apresentações. Quando terminaram, houve aplausos estrondosos e prolongados. As delegações soviética e leste-européias aplaudiram em uníssono, com uma freqüência de duas ou três palmas por batimento cardíaco. Os americanos e muitos outros aplaudiram separadamente, com as suas palmas assíncronas a formar um mar de ruído branco que se erguia da multidão. Envolta numa espécie de alegria que lhe não era familiar, Ellie não resistiu a pensar nas diferenças de caracteres nacionais: os Americanos como individualistas e os Russos empenhados num esforço coletivo. Recordou que, em aglomerações, os Americanos também tendiam para maximizar a sua distância dos seus companheiros, enquanto os Soviéticos tendiam para se aproximar o mais possível uns dos outros. Ambos os estilos de aplauso — o americano claramente dominante — a encantaram. Durante um momento, apenas, permitiu-se pensar no padrasto. E no pai.

Depois do almoço houve uma sucessão de outras apresentações sobre a recolha e a interpretação dos dados. David Drumlin desenvolveu uma argumentação extraordinariamente competente de uma análise estatística que efetuara recentemente a todas as páginas anteriores da Mensagem que se referiam aos novos diagramas numerados. Alegou que a Mensagem continha não só um plano para a construção de uma máquina, mas também descrições do desenho e dos modos de fabrico de componentes e subcomponentes. Nalguns casos, pensava, havia descrições de novas indústrias completas ainda não conhecidas na Terra. De boca aberta, Ellie sacudiu o dedo na direção de Drumlin, a perguntar silenciosamente a Valerian se ele tivera conhecimento daquilo. De lábios franzidos, Valerian encolheu os ombros e virou as mãos de palmas para cima. Ela perscrutou os outros delegados, à procura de alguma expressão de emoção, mas detectou principalmente indícios de fadiga; a profundidade do material técnico e a necessidade de, mais cedo ou mais tarde, tomar decisões políticas estavam já a produzir tensão. Finda a sessão, cumprimentou Drumlin pela interpretação, mas perguntou-lhe por que motivo só agora ouvira falar dela. «não pensei que fosse suficientemente importante para a maçar com o assunto! Tratou-se apenas de uma coisinha que eu fiz enquanto você andou por fora a consultar fanáticos religiosos.»

Ellie pensou que, se Drumlin tivesse sido conselheiro da sua tese, ela ainda andaria às voltas com o seu doutorado. Ele nunca a aceitara totalmente. Nunca compartilhariam um relacionamento despreocupado de colegas cientistas. A suspirar, perguntou a si mesma se Ken soubera do novo trabalho de Drumlin. Mas, como co-presidente da conferência, Der Heer estava sentado com o seu homólogo soviético num estrado voltado para a ferradura de bancadas de delegados. Estava, como estivera durante semanas, quase inacessível. Claro que Drumlin não era obrigado a discutir com ela as suas descobertas; ela sabia que ambos tinham andado preocupados recentemente. Mas, quando em conversa com ele, por que se mostrava ela sempre acomodatícia — e argumentativa somente in extremis? Era evidente que uma parte de si mesma ainda achava que a obtenção do seu doutorado e a oportunidade de prosseguir o seu trabalho científico continuavam a ser possibilidades futuras firmemente contidas nas mãos de Drumlin.


Na manhã do segundo dia foi dada a palavra a um delegado soviético. Ela não o conhecia. «Stefan Alexenvich Baruda», indicaram os vitagráficos no écran do seu computador, «Diretor, Instituto de Estudos para a Paz, Academia de Ciências Soviética, Moscovo; Membro, Comitê Central, Partido Comunista da URSS.»

— Agora vamos começar a jogar duro — ouviu ela Michael Kitz dizer a Elmo Honicutt, do Departamento de Estado.

Baruda era um homem esmeradamente vestido, de fato de passeio ocidental elegante e impecavelmente na moda, talvez de corte italiano. O seu inglês era fluente e quase sem sotaque. Nascera numa das repúblicas bálticas, era jovem para um dirigente de uma organização tão importante formada para estudar as implicações a longo prazo, na política estratégica, da redução das armas nucleares — e constituía um exemplo frisante da «nova onda» da liderança soviética.

— Sejamos francos — dizia Baruda. — Está a ser-nos enviada uma mensagem das lonjuras do espaço. A maior parte da informação tem sido recolhida pela União Soviética e pelos Estados Unidos da América. Passagens essenciais foram também obtidas por outros países. Todos estes países estão representados nesta conferência. Qualquer nação — a União Soviética, por exemplo — podia ter aguardado que a Mensagem se repetisse várias vezes, como todos nós esperamos que acontecerá, e preencher desse modo as muitas lacunas. Mas isso levaria anos, talvez décadas, e nós estamos um pouco impacientes. Por isso compartilhamos todos os dados.

«Qualquer nação — a União Soviética, por exemplo — podia colocar em órbita à volta da Terra grandes radiotelescópios com receptores sensíveis que funcionam nas freqüências da Mensagem. Os Americanos podiam igualmente fazê-lo. Talvez o Japão ou a França, ou a Agência Espacial Européia, pudessem fazê-lo. Assim, qualquer nação, por si só, poderia adquirir todos os dados, porque, no espaço, um radiotelescópio pode estar sempre apontado a Vega. Mas isso poderia ser considerado um ato hostil. Não é segredo nenhum que os Estados Unidos da América ou a União Soviética poderiam ser capazes de abater tais satélites. Por isso, talvez também por esta razão, compartilhamos os dados.

«É melhor cooperar. Os nossos cientistas desejam trocar não apenas os dados que recolheram, mas também as suas especulações, as suas suposições, os seus… sonhos. Todos vós, cientistas, sois iguais nesse aspecto. Eu não sou cientista. A minha especialidade é governar. Por isso sei que as nações também são iguais. Todas as nações são cautelosas. Todas as nações são desconfiadas. Nenhum de nós daria uma vantagem a um adversário potencial se pudesse evitá-lo. E, assim, ouve duas opiniões — talvez mais, mas pelo menos duas —, uma que aconselha a permuta de todos os dados e outra que aconselha cada nação a procurar obter vantagem sobre as outras. «Podem ter a certeza de que o outro lado está à procura de qualquer vantagem», dizem a mesma coisa na maior parte das nações.

«Os cientistas venceram este debate. Assim, por exemplo, a maior parte dos dados — embora, desejo salientá-lo, não todos — adquiridos pelos Estados Unidos da América e pela União Soviética foram permutados. A maior parte dos dados de todos os outros países foram permutados em todo o mundo. Sentimo-nos felizes por termos tomado esta decisão.

Ellie segredou a Kitz:

— Isto não me parece «jogo duro».

— Continue sintonizada — murmurou ele em resposta.

— Mas há outras espécies de perigos. Gostaríamos de indicar agora um deles, para consideração do Consórcio.

O tom de Baruda recordou-lhe o de Vaygay ao almoço, dias antes. Que andava a preocupar os Soviéticos?

— Ouvimos o acadêmico Lunacharsky, a doutora Arroway e outros cientistas concordarem em que estamos a receber as instruções para construir uma máquina complexa. Suponhamos que, como toda a gente parece esperar, o fim da Mensagem chega; a Mensagem recicla, volta ao princípio e nós recebemos a introdução — a palavra inglesa é primer, não é? — que nos permite lê-la. Suponhamos também que continuamos a cooperar inteiramente, todos nós. Permutamos todos os dados, todas as fantasias, todos os sonhos.

«Ora os seres de Vega não estão a enviar-nos estas instruções para se divertirem. Eles querem que construamos uma máquina. Talvez nos digam o que se destina a máquina a fazer. Talvez não. Mas, mesmo que digam, porque haveremos de acreditar neles? Por isso confesso a minha própria fantasia, o meu próprio sonho. Não é um sonho feliz. E se a máquina for um Cavalo de Tróia? Nós construímo-la com grande dispêndio, ligamo-la e, de súbito, sai dela um exército invasor. Ou se — outra hipótese — for uma Máquina do Fim do Mundo? Construímo-la, ligamo-la e a Terra explode. Talvez seja esta a maneira de eles suprimirem civilizações que começam a emergir no cosmo. Não custaria muito caro; pagariam apenas um telegrama e a civilização nascente destruir-se-ia obedientemente.

«O que vou perguntar é apenas uma sugestão, um ponto para conversarmos. Apresento-o à vossa consideração. Pretendo que seja construtivo. Neste caso, todos nós compartilhamos o mesmo planeta, temos todos os mesmos interesses. Não duvido de que vou levantar a questão com demasiada contundência. Eis a minha pergunta: seria melhor queimar os dados e destruir os radiotelescópios?

Houve agitação. Muitas delegações pediram simultaneamente para serem ouvidas. Em vez disso, os co-presidentes da conferência pareceram principalmente motivados para recordar aos delegados que as sessões não deveriam ser gravadas nem vídeo-gravadas. Não deveriam ser concedidas quaisquer entrevistas à imprensa. Haveria comunicados diários para a imprensa, elaborados de acordo com os co-presidentes e os chefes das delegações. Até mesmo os tegumentos da presente discussão teriam de permanecer restritos àquela câmara de conferências.

Diversos delegados pediram clarificação à presidência.

— Esse Baruda tem razão acerca de um Cavalo de Tróia ou de uma Máquina do Fim do Mundo, gritou um delegado holandês, «não é nosso dever informar o público?»

Mas não lhe fora dada a palavra e o seu microfone não tinha sido ativado. Prosseguiram para outros assuntos mais urgentes.

Ellie carregara rapidamente numa tecla do terminal do computador institucional à sua frente, para conseguir uma posição nos primeiros lugares da bicha. Descobriu que ficou em segundo lugar, depois de Sukhavati e antes de um dos delegados chineses.

Ellie conhecia vagamente Devi Sukhavati. Mulher imponente dos seus quarenta e cinco anos, usava penteado ocidental, sapatos decotados, de salto alto e sem calcanhar, e vestia um exótico sari de seda. Inicialmente formada como médica, tornara-se uma das principais especialistas indianas em biologia molecular e agora repartia o seu tempo entre o King’s College, Cambridge, e o Instituto Tata, em Bombaim. Fazia parte do punhado de membros indianos da Royal Society de Londres e constava estar politicamente bem colocada. Tinham-se encontrado pela última vez havia alguns anos num simpósio internacional em Tóquio, antes de a recepção da Mensagem ter eliminado os forçosos pontos de interrogação dos títulos de alguns dos seus ensaios científicos. Ellie ressentira uma afinidade mútua, apenas em parte devida ao ato de se contarem entre as poucas mulheres participantes em reuniões científicas sobre vida extraterrestre.

— Reconheço que o acadêmico Baruda levantou uma questão importante e sensível — começou Sukhavati — e seria estúpido afastar de ânimo leve a possibilidade do Cavalo de Tróia. Tendo em consideração uma grande parte da história recente, é uma idéia natural, e surpreende-me que tenha decorrido tanto tempo antes de ser apresentada. No entanto, gostaria de recomendar cautela quanto a semelhantes receios. É extremamente improvável que os seres de um planeta da estrela Vega se encontrem exatamente no nosso nível de avanço técnico. Nem mesmo no nosso planeta as culturas evoluem ao mesmo ritmo e ao mesmo tempo. Umas começam mais cedo, outras mais tarde. Reconheço que algumas culturas podem recuperar o atraso, pelo menos tecnologicamente. Quando havia civilizações avançadas na Índia, na China, no Iraque e no Egito, havia, quando muito, nômades da idade do ferro na Europa e na Rússia e culturas da idade da pedra na América.

«Mas as diferenças de tecnologias serão muito maiores nas circunstâncias presentes. É provável que os extraterrestres estejam muito adiantados em relação a nós, com certeza mais do que algumas centenas de anos — talvez milhares de anos à nossa frente, ou até milhões. Ora peço-vos que compareis isso com o ritmo do avanço tecnológico humano no último século.

«Eu cresci numa minúscula aldeia do Sul da Índia. No tempo da minha avó, a máquina de costura de pedal era um prodígio tecnológico. De que seriam capazes seres que estão milhares de anos a nossa frente? Ou milhões de anos? Como um filósofo do nosso lado do mundo disse uma vez: «Os artefatos de uma civilização extraterrestre suficientemente avançada seriam indistinguíveis da magia.»

«Não podemos constituir absolutamente nenhuma ameaça para eles. Não têm nada a recear de nós, e assim continuará a ser durante muito tempo. Este não é nenhum confronto entre Gregos e Troianos, que estavam eqüitativamente equiparados. Isto não é nenhum filme de ficção científica em que seres de diferentes planetas lutam com armas similares. Se eles desejam destruir-nos, podem certamente fazê-lo com ou sem a nossa coope…

— Mas por que preço? — interrompeu alguém da assistência. — Não compreende? A questão é essa. Baruda diz que as nossas transmissões de televisão para o espaço são a sua informação de que chegou a altura de nos destruírem, e a Mensagem é o meio. As expedições punitivas são caras. A Mensagem é barata.

Ellie não conseguiu distinguir quem gritara esta intervenção. Pareceu-lhe ser alguém da delegação britânica. As suas observações não tinham sido amplificadas pelo sistema áudio, porque, mais uma vez, a presidência não lhe concedera o direito de falar. Mas a acústica do salão de conferências era suficientemente boa para permitir que tivesse sido ouvido com toda a clareza. Der Heer, na presidência, tentava manter a ordem. Abukhimov inclinou-se e murmurou qualquer coisa a um ajudante.

— Pensa que existe perigo em construir a máquina — respondeu Sukhavati. — Eu penso que existe perigo em não a construir. Envergonhar-me-ia do nosso planeta se voltássemos as costas ao futuro. Os seus antepassados — apontou um dedo ao autor da intromissão — não foram tão temerosos quando se fizeram pela primeira vez à vela para a Índia ou para a América.

A reunião estava a ficar cheia de surpresas, pensou Ellie, embora duvidasse que Clive ou Raleigh fossem os melhores modelos-exemplo para a tomada de decisão presente. Talvez Sukhavati estivesse apenas a beliscar os Ingleses por conta de passadas ofensas coloniais. Aguardou que a luzinha verde se acendesse na sua consola, a indicar que o seu microfone estava ativado e podia falar.

— Senhor Presidente — ouviu-se dirigir-se, naquele tom formal e público, a Der Heer, que mal vira nos últimos dias. Tinham combinado passar a tarde do dia seguinte juntos, durante um intervalo da conferência, e ela sentia uma certa ansiedade a respeito do que iriam dizer. Livra, pensamento negativo, pensou. — Se for Presidente, creio que podemos lançar alguma luz sobre estas duas questões: o Cavalo de Tróia e a Máquina do Fim do Mundo. Tencionava discutir isso amanhã de manhã, mas agora parece, sem dúvida, relevante.

Tocou na sua consola, nalgumas teclas de números de código, para apresentação de alguns dos seus dispositivos. O grande salão espelhado escureceu.

— O doutor Lunacharsky e eu estamos convencidos de que estas são projeções diferentes da mesma configuração tridimensional. Mostramos ontem toda a configuração em rotação simulada por computador. Pensamos, embora não possamos ter a certeza, que este será o aspecto que o interior da máquina terá. Ainda não há nenhuma indicação clara de escala. Talvez tenha um quilômetro de lado a lado, talvez seja submicroscópica. Mas reparem nestes cinco objetos regularmente espaçados à volta da periferia da principal câmara interior, dentro do dodecaedro. Aqui está um grande plano de um deles. São as únicas coisas da câmara que parecem reconhecíveis.

«Isto parece ser uma vulgar cadeira de braços excessivamente estofada, perfeitamente configurada para um ser humano. É muito improvável que seres extraterrestres, que evoluíram noutro mundo completamente diferente, se pareçam conosco o suficiente para compartilharem as nossas preferências no tocante a mobília de sala de estar. Olhem, vejam este grande plano. Parece um objeto qualquer do quarto de hóspedes da minha mãe, quando eu estava a crescer.

Na verdade, quase parecia ter uma cobertura florida de proteção. Experimentou um pequeno sentimento de culpa. Esquecera-se de telefonar à mãe antes de partir para a Europa e, verdade fosse dita, só lhe telefonara uma ou duas vezes desde que a Mensagem fora recebida. Ellie, como és capaz de proceder assim? — repreendeu-se mentalmente.

Olhou de novo para os gráficos do computador. A simetria quintuplicada do dodecaedro refletia-se nas cinco cadeiras do interior, cada uma voltada para uma superfície pentagonal.

— Assim, é nossa opinião — do doutor Lunacharsky e minha — que as cinco cadeiras se destinam a nós. São para pessoas. Isso significaria que a câmara interior da máquina tem apenas alguns metros de largura e o exterior talvez dez ou vinte metros. A tecnologia é indubitavelmente formidável, mas não cremos estar a falar da construção de uma coisa do tamanho de uma cidade. Ou tão complexa como um porta-aviões. Poderemos ser muito capazes de construir isto, seja lá o que for, se trabalharmos todos juntos.

«O que estou a tentar dizer é que não se metem cadeiras dentro de uma bomba. Não penso que se trate de uma Máquina do Fim do Mundo ou de um Cavalo de Tróia. Concordo com o que a doutora Sukhavati disse, ou talvez tenha apenas insinuado; a idéia de que isto é um Cavalo de Tróia constitui por si mesma uma indicação do muito caminho que temos de percorrer.

Houve de novo um protesto. Mas desta vez Der Heer não fez nenhum esforço para o deter; pelo contrário, ligou até o microfone da pessoa em questão. Era o mesmo delegado que interrompera Sukhavati poucos minutos antes, Hili Edenbaugh, do Reino Unido, um ministro do Partido trabalhista no periclitante Governo de coligação.

— … simplesmente não compreendem qual é a nossa preocupação. Se fosse literalmente um cavalo de madeira, não nos sentiríamos tentados a levar o engenho alienígena para dentro das portas da cidade. Lemos o nosso Homero. Mas embonequem-no com alguns estofos, e as nossas suspeitas desaparecem. Por quê? Porque estamos a ser lisonjeados. Ou subornados. Há uma aventura histórica implícita. Há a promessa de novas tecnologias. Há uma sugestão de aceitação por — como dizer? — seres maiores. Mas eu digo que, sejam quais forem as grandiosas fantasias que os radioastrônomos possam acalentar, se houver nem que seja uma minúscula possibilidade de a máquina ser um meio de destruição, ela não deverá ser construída. Melhor, como o delegado soviético propôs, devem-se queimar as gravações dos dados e considerar a construção de radiotelescópios um crime capital.

A conferência estava a tornar-se ingovernável. Dezenas de delegados punham-se eletronicamente na fila, à espera de autorização para falar. O murmúrio inicial subiu para um barulho abafado que recordou a Ellie anos de escuta de estática radioastronômica. Não parecia fácil chegar-se a um consenso e os co-presidentes eram visivelmente incapazes de conter os delegados.

Quando o delegado chinês se levantou para falar, os vitagráficos demoraram a aparecer no écran de Ellie, que olhou em redor à procura de ajuda. Também não fazia nenhuma idéia de quem aquele homem era. Ngnyen «Bobby» Bui, funcionário do «National Security Council» agora ao serviço de Der Heer, inclinou-se e disse: «Chama-se Xi Qiaomu. Tipo durão. Nascido na Longa Marcha. Voluntário, ainda antes dos vinte anos, na Coréia. Funcionário governamental de caráter principalmente político. Afastado e caído em desgraça na Revolução Cultural. Presentemente, membro do Comitê Central. Muito influente. Tem sido falado ultimamente nos meios de comunicação. Também dirige as escavações arqueológicas chinesas.»

Xi Qiaomu era um homem alto, de ombros largos e dos seus sessenta anos. As rugas do seu rosto faziam-no parecer mais velho, mas a sua postura e o seu físico davam-lhe um aspecto quase juvenil. Usava a túnica abotoada no colarinho, à maneira tão obrigatória para os líderes políticos chineses como os fatos de três peças para os líderes governamentais americanos — excluindo a presidente, claro. Os vitagráficos chegaram finalmente à consola de Ellie, que se lembrou de ter lido um extenso artigo acerca de Xi Qiaomu numa das revistas de vídeo.

— Se estamos assustados — dizia ele —, não fazemos nada. Isso demorá-los-á um pouco. Mas, lembrai-vos, eles sabem que estamos aqui. A nossa televisão chega ao seu planeta. Todos os dias lhes somos lembrados. Tendes reparado nos nossos programas de televisão? Eles não nos esquecerão. Se não fizermos nada e se eles estiverem preocupados conosco, chegarão até nós, com máquina ou sem máquina. Não nos podemos esconder deles. Se tivéssemos ficado calados, não enfrentaríamos este problema. Se tivéssemos apenas TV-cabo e nenhum grande radar militar, então talvez eles não soubessem da nossa existência. Mas agora é tarde de mais. Não podemos voltar atrás. O nosso rumo está traçado.

«Se estais seriamente assustados com a possibilidade de esta máquina destruir a Terra, não a construais na Terra. Fazei-a noutro lado qualquer. Assim, se for uma Máquina do Fim do Mundo e fizer o mundo ir pelos ares… não será o nosso mundo. Mas isso será muito dispendioso. Provavelmente demasiado dispendioso. Ou, se não estamos assim tão assustados, fazei-a em qualquer deserto isolado. Poderá haver uma explosão muito grande no deserto de Takopi, na província de Xinjing, sem morrer ninguém. E, se não estamos nada assustados, podemos construí-la em Washington. Ou em Moscovo. Ou em Beijing. Ou nesta bela cidade.

«Na China antiga chamava-se Chih Neu a Vega e a duas estrelas próximas. Chih Neu quer dizer a jovem mulher e a roca.

«É um símbolo auspicioso, uma máquina para fazer roupas novas para as pessoas da Terra.

«Recebemos um convite. Um convite muito fora do vulgar. Talvez seja para irmos a um banquete. A Terra nunca foi convidada para um banquete antes. Seria descortês recusar.

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