CAPÍTULO XVI Os anciãos do ozônio

O deus que a ciência reconhece deve ser um deus exclusivamente de leis universais, um deus de negócio grossista, e não retalhista. Não pode conciliar os seus processos com a conveniência dos indivíduos.

WILLIAM JAMES. The Varieties of Religious Experience (1902)

A poucas centenas de quilômetros de altitude, a Terra enche metade do nosso céu e a faixa de azul que se estende de Mindanau a Bombaim, e que os nossos olhos abarcam num único relance, é capaz de nos despedaçar o coração, de tão bela. A nossa Terra, pensamos. Aquele é o meu mundo. Foi dali que vim. Toda a gente que conheço, toda a gente de quem alguma vez ouvi falar, cresceu ali em baixo, debaixo daquele azul implacável e extraordinário.

Corremos para leste de horizonte a horizonte, de alvorecer a alvorecer, dando a volta ao planeta em hora e meia. Passado pouco tempo ficamos a conhecê-lo, examinamos as suas idiossincrasias e anomalias. Conseguimos ver tanto a olho nu! A Florida estará em breve de novo à vista. Aquele sistema de tempestade tropical que vimos na última órbita, a rodopiar e a correr sobre as Caraíbas, terá chegado a Fort Lauderdale? Estarão libertas de neve, este Verão, algumas das montanhas do Hindu Kush? Temos tendência para admirar os recifes cor de água-marinha do mar de Coral. Olhamos para o banco de gelo do Antártico ocidental e perguntamo-nos se o seu colapso inundaria realmente todas as cidades costeiras do planeta.

À luz do dia, porém, é difícil ver qualquer sinal de habitação humana. Mas à noite, tirando a aurora polar, tudo quanto vemos é devido a humanos, ao fervilhar e tremeluzir a toda a volta do planeta. Aquela faixa de luz é a parte oriental da América do Norte, contínua de Boston a Washington, uma megalópoles de fato, se não de nome. Além arde o gás natural da Líbia. As luzes ofuscantes da frota japonesa de pesca do camarão movimentaram-se na direção do mar da China Meridional. Em cada órbita a Terra conta-nos novas estórias. Podemos ver uma erupção vulcânica na Kamchatka, uma tempestade de areia sariana a aproximar-se do Brasil, tempo gélido extemporâneo na Nova Zelândia.

Começamos a pensar na Terra como um organismo, uma coisa viva. Começamos a preocupar-nos com ela, a interessar-nos por ela, a desejar-lhe bem. As fronteiras nacionais são tão invisíveis como meridianos de longitude, ou os trópicos de Câncer e Capricórnio. As fronteiras são arbitrárias. O planeta é real.

O vôo espacial, conseqüentemente, é subversivo. Se tem a sorte suficiente de se encontrar em órbita terrestre, a maioria das pessoas, após um pouco de meditação, tem pensamentos similares. As nações que tinham instituído o vôo espacial haviam-no feito largamente por razões nacionalistas; constituía uma pequena ironia o fato de quase todos quantos penetravam no espaço terem o espantoso vislumbre de uma perspectiva transnacional, da Terra como um mundo.

Não era difícil imaginar um tempo em que a lealdade predominante seria para com esse mundo azul, ou mesmo para com um aglomerado de mundos aninhados à volta da estrela anã amarela próxima, à qual os humanos, outrora ignorantes de que toda a estrela é um sol, tinham aposto o artigo definido; o Sol. Somente agora, quando muitas pessoas entravam no espaço por longos períodos e lhes era concedido um pouco de tempo para reflexão, somente agora o poder da perspectiva planetária começava a sentir-se. Um número significativo desses ocupantes da órbita terrestre baixa eram, como viera a descobrir-se, influentes lá em baixo, na Terra.

Tinham — desde o princípio, desde antes de humanos terem entrado no espaço — enviado animais lá para cima. Amebas, moscas-da-fruta, ratos, cães e macacos tinham-se tornado audazes veteranos do espaço. À medida que vôos espaciais de duração cada vez mais longa se tornaram possíveis, descobriu-se uma coisa inesperada. Não exercia nenhum efeito sobre microrganismos e pouco efeito sobre moscas-da-fruta; mas, no tocante aos mamíferos, segundo parecia, a gravidade zero aumentava o período de duração da vida. Em dez ou vinte por cento. Se uma pessoa vivia em zero, o seu corpo despendia menos energia a combater a força da gravidade, as suas células oxidavam-se mais devagar e a pessoa vivia mais tempo. Alguns médicos afirmavam que os efeitos seriam muito mais pronunciados em seres humanos do que em ratos. Pairava no ar um tenuíssimo aroma de imortalidade.

A taxa de novos cancros descera oitenta por cento nos animais orbitais, em comparação com um grupo de controle na Terra. A leucemia e os carcinomas linfáticos desciam noventa por cento. Havia até alguns indícios, talvez ainda não, estatisticamente, significativos, de que a taxa de remissão espontânea de doenças neoplásicas era muito maior em gravidade zero. Meio século atrás, o químico alemão Otto Warburg alvitrara que a oxidação era a causa de muitos cancros. O menor consumo celular de oxigênio no estado de ausência de peso parecia de súbito muito atraente. Pessoas que em décadas anteriores teriam feito uma peregrinação ao México em busca de laetrile clamavam agora por um bilhete para o espaço. Mas o preço era exorbitante. Quer como medicina preventiva, quer como medicina clínica, o vôo espacial estava ao alcance de muito poucos.

De súbito, somas de dinheiro até então inauditas ficaram disponíveis para investimento em estações orbitais civis. Mesmo no fim do Segundo Milênio havia hotéis de aposentadoria rudimentares a algumas centenas de quilômetros de altitude. Além da despesa existia, evidentemente, uma grave desvantagem; as lesões vasculares e osteológicas progressivas tornariam impossível voltar alguma vez ao campo gravitacional da superfície da Terra. Mas, para alguns dos anciãos ricos, isso não constituía impedimento importante. Em troca de outra década de vida, sentiam-se felizes por poderem retirar-se para o céu e, eventualmente, morrer lá.

Havia quem se preocupasse com o fato de se tratar de um investimento imprudente da riqueza limitada do planeta; eram demasiadas as necessidades urgentes e as justas queixas dos pobres e desprovidos de poder para que se gastasse essa riqueza a paparicar os ricos e poderosos. Era temerário, diziam, permitir que uma classe privilegiada emigrasse para o espaço, deixando as massas para trás, na Terra — um planeta que se tornava efetivamente pertença de proprietários absentistas. Outros professavam tratar-se de uma dádiva de Deus: os proprietários do planeta estavam a agrupar-se em bandos e a partir; lá em cima, argumentavam, não podiam fazer tanto mal, nem pouco mais ou menos, como cá em baixo.

Quase ninguém antevia o resultado principal, a transferência de uma perspectiva planetária viva para aqueles que podiam fazer o maior bem. Passados alguns anos restavam poucos nacionalistas em órbita terrestre. O confronto nuclear global levanta reais problemas àqueles com uma propensão para a imortalidade.

Havia industriais japoneses, grandes armadores gregos, príncipes herdeiros sauditas, um ex-presidente, um antigo secretário-geral do partido, um barão de magnatas escroques chinês e um patrão de traficantes de heroína retirado. No Ocidente, além de um punhado de convites promocionais, existia apenas um critério para obtenção de residência georbital: tinha de se poder pagar. A estalagem soviética era diferente; chamava-se estação espacial e o antigo secretário-geral encontrava-se lá, dizia-se, para «investigação gerontológica». De modo geral, as massas não se sentiam ressentidas. Um dia, imaginavam, também iriam.

Os que se encontravam em órbita terrestre tendiam a ser circunspectos, cuidadosos, calados. As suas famílias e os que os serviam tinham qualidades pessoais semelhantes. Eram o foco da atenção discreta de outras pessoas ricas e poderosas que ainda estavam na Terra. Não faziam declarações públicas, mas as suas opiniões permeavam gradualmente o pensamento de líderes em todo o mundo. A redução continuada das armas nucleares pelas cinco potências nucleares era uma coisa que os venerandos em órbita apoiavam. Sem alardes, tinham endossado a construção da Máquina em virtude do seu potencial para unificar o mundo. Ocasionalmente, organizações nacionalistas escreviam a respeito de uma imensa conspiração em órbita terrestre, de bonzões tremelicantes que vendiam as suas mães-pátrias. Havia panfletos que se afirmavam transcrições estenográficas de uma reunião a bordo do Methuselah, em que tinham estado presentes representantes de outras estações espaciais privadas, os quais para lá tinham sido transportados para o efeito. Era apresentada uma lista de «itens de ação», concebida para insuflar terror no coração do mais morno patriota. Os panfletos eram espúrios, anunciou a Timesweek, que lhes chamou «Os protocolos dos anciãos do ozônio».


Nos dias que antecederam imediatamente o lançamento, Ellie tentou passar algum tempo — freqüentemente logo após o alvorecer — em Cocoa Beach. Pedira emprestado um apartamento que dava para a praia e para o oceano Atlântico. Levava consigo bocados de pão e treinava-se a atirá-los às gaivotas. Elas tinham habilidade para apanhar pedaços em vôo, com uma vantagem de campo mais ou menos equivalente, segundo os seus cálculos, à de um externo campista de basebol da primeira divisão. Havia momentos em que vinte ou trinta gaivotas pairavam no ar, apenas um metro ou dois acima da sua cabeça. Batiam vigorosamente as asas para se manterem no seu lugar, de bico aberto, tensas, na previsão do aparecimento miraculoso de comida. Roçavam umas pelas outras num parente movimento ao acaso, mas o efeito geral era um padrão estacionário. No caminho de regresso reparou numa pequena e, na sua humildade, perfeita fronde de palmeira caída no fim da praia. Apanhou-a e levou-a para o apartamento, a sacudir cuidadosamente a areia com os dedos.

Hadden convidara-a para uma visita à sua casa longe de casa, ao seu castelo no espaço. Chamava-lhe Methuselah. Ela não pôde falar do convite a ninguém, fora do Governo, em virtude da paixão de Hadden por se manter afastado da atenção pública. Na realidade, ainda não era do conhecimento geral que ele fora residir em órbita, se mudara para o céu. Todos os participantes do Governo a quem Ellie falou do convite se mostraram favoráveis. O conselho de Der Heer foi: «A mudança de cenário far-te-á bem.» A presidente era claramente a favor da visita, pois apareceu rapidamente um lugar disponível no próximo vaivém, o já idoso STS Intrepid. A passagem para uma casa de repouso em órbita efetuava-se geralmente por transporte comercial. Estava a ser submetido a provas de qualificação de vôo final um veículo muito maior não reutilizável. Mas a esquadra de vaivens, embora a envelhecer, era ainda o cavalo de carga das atividades espaciais do Governo dos EUA, tanto militares como civis.

— Soltam-se mosaicos às mãos-cheias quando reentramos e depois voltamos a colá-los quando descolamos — explicou-lhe um dos pilotos-astronautas.

Além de uma saúde geral boa, não havia quaisquer exigências quanto á condição física para o vôo. Os veículos comerciais tinham tendência para subir cheios e regressar vazios. Em contrapartida, os vôos de vaivens esgotavam a lotação tanto na ida como na volta. Antes da sua última aterragem, na semana anterior, o Intrepid encontrara-se com o Methuselah e acostara, a fim de trazer dois passageiros de regresso à Terra. Ellie reconheceu-lhes os nomes: um era um desenhista de sistemas de propulsão e o outro um criobiólogo. Perguntou a si mesma o que teriam ido fazer a Methuselah.

— Verá — continuou o piloto —, será como cair de um tronco derrubado. Quase ninguém detesta e a maioria das pessoas adora.

Ela adorou. Apertada no interior do veículo com o piloto, dois especialistas missionários, um militar de lábios cerrados e um funcionário do Internal Revenue Service, acumulou o prazer de uma descolagem impecável com a embriaguez da sua primeira experiência em gravidade zero, uma experiência mais demorada do que a viagem no elevador de alta desaceleração no World Trade Center, em Nova Iorque. Uma órbita e meia depois encontravam-se com Methuselah. Dali a dois dias, o transporte comercial Narnia trá-la-ia para baixo.

O Castelo — Hadden insistia em chamar-lhe assim — girava lentamente, efetuando uma revolução completa em cada noventa minutos, de modo que o mesmo lado estava sempre voltado para a Terra. O gabinete de Hadden apresentava um panorama magnificente na antepara voltada para a Terra — não se tratava de um écran de televisão, mas sim de uma verdadeira janela transparente. Os fótons que ela estava a ver tinham sido projetados pelos nevados Andes apenas uma fração de segundo antes. A não ser nas proximidades da periferia da janela, onde o plano inclinado através do grosso polímero era mais longo, não se notava praticamente nenhuma distorção.

Havia muita gente que conhecia, até mesmo pessoas que se consideravam religiosas, para quem o sentimento de reverência era um embaraço. Mas era preciso ser feita de pau, pensou, para parar diante daquela janela e não o experimentar. Deveriam enviar jovens poetas e compositores, artistas plásticos, cineastas e pessoas profundamente religiosas, mas sem estarem completamente dependentes das burocracias sectárias.

Aquela experiência podia ser facilmente transmitida, achava, à gente comum da Terra. Que pena não ter ainda sido tentado a sério. A sensação era… numinosa.

— Habituamo-nos — disse-lhe Hadden —, mas não nos cansamos. De vez em quando ainda é inspiradora.

Abstêmio como sempre, fazia render uma cola de dieta. Ela recusara a oferta de qualquer coisa mais forte. O preço do etanol em órbita devia ser elevado.

— Claro que sentimos a falta de coisas: longos passeios a pé, nadar no oceano, velhos amigos que aparecem sem serem anunciados… Mas eu nunca fui muito dessas coisas. E, como vê, os amigos podem vir cá acima fazer uma visita.

— O que é imensamente dispendioso.

— Uma mulher vem visitar Yamagishi, o meu vizinho da ala contígua. Na segunda terça-feira de cada mês, quer chova quer faça sol. Depois apresento-lho. É um tipo e tanto. Criminoso de guerra classe A… mas só pronunciado, compreende, nunca condenado.

— Qual é a atração? — perguntou Ellie. — Você não pensa que o mundo está prestes a terminar. Que faz aqui em cima?

— Gosto da vista. E há algumas subtilezas jurídicas.

Ela olhou-o, um pouco agastada.

— Sabe, uma pessoa na minha situação — novas invenções, novas indústrias — está sempre muito à beirinha de infringir uma ou outra lei. Geralmente isso acontece porque as leis antigas não acertaram o passo com a nova tecnologia. Arriscamo-nos a perder uma quantidade do nosso tempo em litígios. É uma coisa que reduz a nossa eficiência. Ao passo que nada disto — fez um gesto largo, abarcando tanto o Castelo como a Terra — é pertença de nenhuma nação. Este Castelo pertence-me a mim, ao meu amigo Yamagishi e a alguns outros. Nunca poderia haver nada de ilegal em fornecer-me alimentos e o necessário para a satisfação de necessidades materiais. No entanto, e apenas por uma questão de segurança, estamos a trabalhar em sistemas ecológicos fechados. Não existe nenhum tratado de extradição entre este Castelo e qualquer das nações lá de baixo. Enfim, pesados os prós e os contras, é melhor para mim estar cá em cima…

«Não quero que pense que fiz alguma coisa verdadeiramente ilegal. Mas estamos a fazer tantas coisas novas que é inteligente jogar pelo seguro. Por exemplo, há pessoas que acreditam realmente que eu sabotei a Máquina, quando na verdade eu gastei uma quantidade absurda do meu próprio dinheiro a tentar construí-la. E você sabe o que eles fizeram a Babilônia. Os investigadores do meu seguro pensam que devem ter sido as mesmas pessoas que atuaram tanto em Babilônia como em Terre Haute. Parece que tenho muitos inimigos. Não compreendo por quê. Acho que fiz muito bem às pessoas. De qualquer modo, globalmente, é melhor para mim estar cá em cima.

«Mas era da Máquina que queria falar-lhe. Foi horrível, aquela catástrofe do tubo de érbio no Wyoming. Lamento sinceramente o que aconteceu ao Drumlin. Era um gajo teso. E deve ter sido um grande choque para você. Tem a certeza de que não quer uma bebida?

Mas a ela bastava-lhe olhar para a Terra e escutar.

— Se eu não estou desencorajado a respeito da Máquina — prosseguiu Hadden —, não percebo por que motivo você há-de estar. Provavelmente receia que nunca venha a haver uma máquina americana, preocupa-a que haja demasiada gente que queira que ela falhe. A presidente está preocupada com a mesma coisa. E aquelas fábricas que construímos não são linhas de montagem. Temos estado a fazer produtos por encomenda. Vai ser dispendioso substituir todas as partes danificadas. Mas você está principalmente a pensar que talvez tenha começado por ser tudo uma má idéia. Que talvez tenhamos sido idiotas por avançarmos tão depressa. Portanto, examinemos tudo demorada e cuidadosamente. Mesmo que você não esteja a pensar assim, a presidente está. Mas, se não o fizermos em breve, receio que nunca o façamos. E há ainda outra coisa: não creio que o convite fique em aberto para sempre.

—:É curioso que tenha dito isso. Era precisamente do que Valerian, Drumlin e eu própria estávamos a falar antes do acidente… da sabotagem — corrigiu. — Queira continuar.

— Sabe, os religiosos — a maior parte deles — pensam realmente que este planeta é uma experiência. É, nisso que as suas crenças se resumem. Um deus qualquer está sempre a consertar e a esquadrinhar, a envolver-se com mulheres de negociantes, a dar tábuas de leis em montanhas, a ordenar-nos que mutilemos os nossos filhos, a informar as pessoas das palavras que podem dizer e das que não podem dizer, a fazer com que as pessoas se sintam culpadas por se divertirem e coisas assim. Por que não deixam os deuses as coisas em paz? Toda esta intervenção denuncia incompetência. Se Deus não queria que a mulher de Lot olhasse para trás, por que motivo não a fez obediente para que ela fizesse o que o marido lhe dissesse? Se não tivesse feito Lot uma parva tão grande, talvez ela Lhe tivesse prestado mais atenção. Se Deus é onipotente e onisciente, por que não começou por fazer o universo de modo que ele saísse da maneira que Ele queria? Por que está constantemente a reparar e a protestar? Não, há uma coisa que a Bíblia torna evidente: o Deus bíblico é um construtor de má qualidade. Não presta na concepção e não presta na execução. Estaria desempregado se houvesse alguma concorrência.

«É por isso que não acredito que sejamos uma experiência. Poderia haver uma quantidade de planetas experimentais no Universo, lugares onde deuses-aprendizes fossem pôr à prova as suas aptidões. Que pena Rankin e Joss não terem nascido num desses planetas! Mas neste planeta — apontou de novo para a janela — não há nenhuma micro-intervenção. Os deuses não passam por cá para consertar as coisas quando nós fazemos borrada. Olhe para a história humana e verá que é evidente que temos estado entregues a nós mesmos.

— Até agora — disse ela. — Deus ex machina? É isso que pensa? Acha que os deuses tiveram finalmente pena de nós e nos mandaram a Máquina?

— É mais Machina ex deo, ou lá como se diz em bom latim. Não, não penso que nós sejamos a experiência. Penso que somos o controle, o planeta pelo qual ninguém se interessou, o lugar onde ninguém interveio. Um mundo de calibração que se deteriorou. É isso que acontece se eles não intervêm. A Terra é uma lição objetiva para os deuses aprendizes. «Se vocês se esforçarem realmente», dizem-lhes, «farão qualquer coisa como a Terra.» Mas, claro, seria um desperdício deixar destruir um mundo perfeitamente bom. Por isso, nos dão uma espreitadela de vez em quando, pelo sim, pelo não. Talvez nessas alturas tragam consigo os deuses que se esforçaram. A última vez que deram uma vista de olhos andávamos nós a brincar nas savanas, a tentar correr mais depressa do que os antílopes. «Muito bem, está porreiro», disseram. «Estes tipos não nos vão causar problemas nenhuns. Dêem-lhes outra espreitadela daqui a mais dez milhões de anos. Mas, para jogarmos pelo seguro, vigiem-nos pelas radiofreqüências.»

«Até que um dia soa um alarme. Uma mensagem da Terra. «O quê? Eles já têm televisão? Vejamos o que estão a tramar.» Estádio olímpico. Bandeiras nacionais. Ave de rapina. Adolph Hitler. Milhares de pessoas a ovacionar. «Ora esta!», exclamam. Conhecem os sinais de advertência. Rápidos como um raio, dizem-nos: Eh, vocês, acabem com isso. Têm aí um planeta perfeitamente bom. Desorganizado, mas operacional. Olhem, construam antes esta Máquina. Estão preocupados conosco. compreendem que estamos numa vertente a descer. Pensam que devemos ter pressa de ser consertados. E eu penso o mesmo. Temos de construir a Máquina.

Ellie sabia o que Drumlin teria pensado de argumentos daquele gênero. Apesar de muito do que Hadden acabara de dizer coincidir com o seu próprio pensamento, estava farta daquelas especulações enganosas e convencidas quanto ao que os Veganianos tinham em mente. Queria que o projeto continuasse, que a Máquina fosse completada e ativada, que o novo estádio da história humana começasse. Ainda desconfiava das suas próprias motivações, ainda se mantinha prudente mesmo quando a mencionavam como possível membro da tripulação de uma Máquina completada. Por isso, a demora no reatamento da construção trabalhava a seu favor, dava-lhe tempo para deslindar os seus próprios problemas.

— Jantaremos com Yamagishi. Gostará dele. Confesso-lhe, no entanto, que estamos um pouco preocupados a seu respeito. À noite mantém a pressão parcial do seu oxigênio muito baixa.

— Que quer dizer?

— Bem, quanto mais baixo o conteúdo de oxigênio no ar, mais tempo vivemos. Pelo menos é isso o que os médicos nos dizem. Por essa razão, temos todos de decidir qual será a quantidade de oxigênio nos nossos aposentos. Durante o dia não a podemos descer muito abaixo dos vinte por cento, pois, de contrário, ficamos grogues. Prejudica o funcionamento mental. Mas de noite, pelo menos estamos a dormir, podemos baixar a pressão parcial do oxigênio. Existe, no entanto, um perigo: o de a baixarmos demasiado. A de Yamagishi está reduzida a catorze por cento, nos tempos que correm, porque ele quer viver eternamente. Em conseqüência disso, não está lúcido antes da hora do almoço.

— Eu tenho sido assim toda a minha vida, com vinte por cento de oxigênio — replicou ela, a rir.

— Ele agora está a experimentar drogas nootrópicas para evitar o atordoamento. Você sabe, coisas como o Piracetam. Melhoram, sem dúvida nenhuma, a memória. Não sei se tornam uma pessoa efetivamente mais inteligente, mas é isso que eles dizem. Assim, o Yamagishi anda a tomar uma quantidade enorme de nootrópicos e a respirar oxigênio insuficiente de noite.

— Por isso tem um comportamento de idiota?

— Idiota? É difícil dizer. Não conheço muitos criminosos de guerra da classe A com noventa e dois anos.

— É por essa razão que todas as experiências precisam de um controle — comentou ela, e ele sorriu.


Mesmo com a sua avançada idade, Yamagishi apresentava o porte ereto que adquirira durante o seu longo período de serviço no Exército Imperial. Era um homem pequeno, completamente calvo, com um bigode branco que não dava nas vistas e uma expressão fixa e benigna no rosto.

— Encontro-me aqui por causa dos quadris — explicou. — Estou informado acerca do cancro e do período de duração da vida, mas encontro-me aqui por causa dos quadris. Na minha idade, os ossos fraturam-se com facilidade. O barão Tsukuma morreu em conseqüência de ter caído do futon para o tatami[17]. Uma queda de meio metro. Meio metro. E os seus ossos fraturaram-se. Em g zero os quadris não se fraturam.

Parecia uma idéia muito sensata.

Tinham sido feitas algumas cedências gastronômicas, mas o jantar foi de surpreendente elegância. Criara-se uma pequena tecnologia especializada para jantares em ambientes com ausência de peso. Os utensílios de servir tinham tampas, os copos eram cobertos e tinham palhinhas. Alimentos como nozes ou flocos de cereais secos eram proibidos.

Yamagishi aconselhou o caviar a Ellie. Era um dos poucos alimentos ocidentais, explicou-lhe, cujo preço por quilograma, na Terra, era superior ao do envio para o espaço. A coesão dos ovos individuais do caviar constituía um acaso afortunado. Tentou imaginar milhares de ovos separados em queda livre individual, a enevoar os corredores daquele lar e repouso orbital. De súbito lembrou-se de que a sua mãe também estava num lar de repouso, várias ordens de magnitude mais modesto do que aquele. Por sinal, orientando-se pelos Grandes Lagos, visíveis naquele momento do lado de fora da janela, conseguia localizar o lugar onde a mãe se encontrava. Podia dispor de dois dias para tagarelar em órbita terrestre com rapazes maus milhares de vezes milionários, mas não dispunha de um quarto de hora para fazer um telefonema à mãe? Prometeu a si mesma que lhe telefonaria assim que aterrasse em Cocoa Beach. Um comunicado oriundo da órbita terrestre, pensou, poderia parecer novidade excessiva para o lar de cidadãos idosos de Janesville, Wisconsin.

Yamagishi interrompeu-lhe os pensamentos para a informar de que era o homem mais velho do espaço. Desde sempre. Até mesmo o ex-primeiro-ministro chinês era mais novo. Despiu o casaco, arregaçou a manga direita, fletiu o bíceps e pediu a Ellie que apalpasse o músculo. Momentos depois desfazia-se em pormenores animados e quantitativos das obras de caridade meritórias às quais dera grandes contribuições.

Ela tentou conversar cortesmente.

— Isto aqui em cima é muito plácido e sossegado. Deve estar a apreciar a sua estada aqui.

Dirigira a observação delicada a Yamagishi, mas foi Hadden quem respondeu:

— Não é inteiramente isento de acontecimentos. De vez em quando há uma crise e temos de agir rapidamente.

— Explosão solar, muitíssimo má. Torna uma pessoa estéril — elucidou Yamagishi.

— Sim, se há uma grande explosão solar monitorizada por telescópio, dispomos de cerca de três dias antes de as partículas carregadas atingirem o Castelo. Por isso, os residentes permanentes, como Yamagishi-san e eu, vão para o abrigo contra tempestades. Muito espartano, muito restrito. Mas tem um escudo anti-radiação suficiente para fazer a sua diferença. Claro que há sempre alguma radiação secundária. O problema é que todo o pessoal não permanente e todos os visitantes têm de partir nesse espaço de três dias. Esse gênero de emergência pode sobrecarregar a frota comercial. Às vezes temos de recorrer à NASA ou aos Soviéticos para recolherem essa gente. Nem imagina as pessoas que temos de mandar embora a correr em emergências de explosão solar! Mafiosos, diretores de serviços de informação, homens e mulheres bonitos…

— Por que será que tenho a sensação de que o sexo ocupa um lugar cimeiro na lista de importações da Terra? — perguntou Ellie com certa relutância.

— Oh, ocupa, ocupa! Há montes de razões para isso. A clientela, a localização… Mas a razão principal é a g zero. Com g zero podemos fazer coisas aos oitenta anos que nunca julgamos possíveis aos vinte. Devia gozar umas férias cá em cima… com o seu namorado. Pode considerar o convite definitivo.

— Noventa — disse Yamagishi.

— Perdão?

— Podemos fazer aos noventa anos coisas que não sonhamos aos vinte. É isso o que Yamagishi-san está a dizer. É por isso que toda a gente quer vir cá para cima.

Enquanto tomavam o café, Hadden voltou ao tópico da Máquina.

— Yamagishi-san e eu somos sócios, juntamente com algumas outras pessoas. Ele é o presidente de administração honorário das Yamagishi Industries. Como sabe, trata-se do principal empreiteiro dos testes dos componentes da Máquina efetuados em Hokkaido. Agora imagine o nosso problema. Por exemplo: há três grandes cápsulas esféricas, umas dentro das outras. São feitas de uma liga de nióbio, têm padrões peculiares talhados nelas e destinam-se obviamente a girar a grande velocidade em direções ortogonais, no vácuo. Chamam-se benzels. Claro, você sabe tudo isso. Que acontece se fazemos um modelo em escala dos três benzels e lhes imprimimos uma rotação muito rápida? Que acontece? Todos os físicos entendidos pensam que não acontece nada. Mas, evidentemente, ninguém fez a experiência. Esta experiência precisa. Por isso, ninguém sabe de fato. Suponha que acontece alguma coisa quando toda a Máquina é ativada. Depende da velocidade da rotação? Depende da composição dos benzels? Do padrão dos entalhes? É uma questão de escala? Por isso temos estado a construir essas coisas e a testá-las — modelos em escala e cópias de tamanho natural. Queremos fazer girar a nossa versão dos benzels grandes, os que serão acoplados aos outros componentes das duas Máquinas. Suponhamos que não acontece nada então. Depois quereríamos acrescentar componentes adicionais, um por um. Continuaríamos a acoplá-los, um pequeno trabalho de integração de sistemas em cada passo, e depois talvez chegasse uma altura em que, ao acrescentarmos um componente, que não seria o último, a Máquina fizesse qualquer coisa que nos deixasse descalços. Estamos apenas a tentar imaginar como a Máquina funciona. Compreende aonde quero chegar?

— Quer dizer que têm estado a montar secretamente uma cópia idêntica da Máquina no Japão?

— Bem, não se trata exatamente de um segredo. Estamos a testar os componentes individuais. Ninguém disse que só os podemos testar um de cada vez. Por conseqüência, eis o que Yamagishi e eu propomos: mudamos o plano das experiências em Hokkaido. Fazemos agora sistemas de integração totais e, se não resultar nada, faremos depois os testes componente a componente. De qualquer modo, o dinheiro já foi todo distribuído.

«Pensamos que serão necessários meses — talvez mesmo anos — para o esforço americano recuperar. E não achamos que os Russos, possam fazê-la mesmo nesse tempo. O Japão é a única possibilidade. Não precisamos de o anunciar imediatamente. Não temos de tomar já uma decisão quanto a ativar a Máquina. Estamos apenas a testar componentes.

— Vocês dois podem tomar, sozinhos, essa decisão?

— Oh, encontra-se perfeitamente dentro daquilo a que chamam as responsabilidades que nos foram atribuídas! Calculamos que podemos recuperar e voltar ao ponto em que a construção da Máquina de Wyoming estava em seis meses. Claro que teremos de ter muito mais cuidado no capítulo da sabotagem. Mas, se os componentes estão fixos, a Máquina também estará: é a modos que difícil chegar a Hokkaido. Depois, quando tudo estiver verificado e pronto, podemos perguntar ao Consórcio Mundial da Máquina se quer experimentá-la. Se a tripulação estiver disposta a isso, aposto que o Consórcio alinhará. Que lhe parece, Yamagishi-san?

Yamagishi não ouvira a pergunta. Cantava baixinho, para consigo, Queda Livre, uma canção muito em voga, cheia de pormenores eloqüentes quanto a cair em tentação em órbita terrestre. Que não sabia a letra toda, explicou, quando a pergunta foi repetida.

Imperturbável, Hadden continuou:

— Alguns dos componentes terão sido submetidos a rotação, ou colocados, ou qualquer coisa. Mas em qualquer caso precisarão de passar nos testes prescritos. Não pensei que isso seria suficiente para a assustar e fazer desistir. Quero dizer, pessoalmente.

— Pessoalmente? Que o leva a pensar que eu vou? Para começar, ninguém me convidou e, além disso, há uma quantidade de fatores novos.

— É muito grande a probabilidade de a Comissão Selecionadora a convidar e a presidente concordará. Entusiasticamente. Então — acrescentou, a sorrir maliciosamente —, não quer passar a vida inteira na parvónia, pois não?

Estava enevoado sobre a Escandinávia e o mar do Norte e o canal da Mancha apresentava-se coberto por uma teia arrendada, quase transparente, de nevoeiro.

— Vai, sim. — Yamagishi estava de pé, de braços rigidamente esticados ao longo do corpo. Fez-lhe uma vênia profunda e acrescentou: — Falando em nome dos vinte e dois milhões de empregados das empresas que controlo, tive muito gosto em conhecê-la.


Dormitou intermitentemente no cacifo para dormir que lhe destinaram. Estava folgadamente preso a duas paredes, para que, ao voltar-se em g zero, ela não fosse contra nenhum obstáculo. Acordou quando todos pareciam ainda dormir e caminhou, agarrando-se a uma sucessão de pegas, até chegar diante da grande janela. Estavam sobre o lado noturno. A Terra encontrava-se mergulhada em escuridão, embora desse a impressão de uma espécie de manta de retalhos salpicados de luz — valorosa tentativa dos seres humanos para compensarem a opacidade do planeta quando o seu hemisfério estava oculto do Sol. Vinte minutos depois, ao nascer do Sol, decidiu que, se a convidassem, responderia afirmativamente.

Hadden aproximou-se por trás dela e assustou-a um nadinha.

— Admito que parece formidável. Estou cá em cima há anos e continua a parecer-me formidável. Mas não a incomoda que haja uma nave espacial à sua volta? Olhe, imagine uma experiência que ainda ninguém teve. Veste um fato espacial, não há nada a prendê-la, nenhuma nave espacial a envolvê-la. Talvez o Sol esteja atrás de si e você se encontre rodeada de estrelas por todos os lados. Talvez a Terra esteja por baixo de si. Ou talvez qualquer outro planeta. Pessoalmente, tenho uma preferência por Saturno. Ali está você, a flutuar no espaço, como se fizesse realmente parte do cosmo. Hoje em dia, os fatos espaciais comportam consumíveis suficientes para durar horas. A nave espacial que a largou pode ter partido há muito tempo. Talvez tenha encontro marcado consigo dentro de uma hora. Talvez não.

O melhor seria se a nave não voltasse. As suas últimas horas cercada por espaço, estrelas e mundos. Se tivesse uma doença incurável, ou quisesse apenas proporcionar a si mesma um derradeiro prazer verdadeiramente belo, como poderia alguma coisa ultrapassar isso?

— Fala a sério? Quer comercializar esse… esquema?

— Bem, é demasiado cedo para comercializar. Talvez não seja exatamente a maneira certa de tratar o assunto. Digamos apenas que estou a pensar num estudo de exeqüibilidade.

Ellie resolveu não falar a Hadden da sua decisão e ele também não tocou no assunto. Mais tarde, quando o Narnia chegou ao ponto de encontro e iniciou a atracação ao Methuselah, Hadden chamou-a de parte.

— Dissemos que Yamagishi é a pessoa mais idosa que se encontra cá em cima. Bem, se falarmos de permanentemente cá em cima — não me refiro a pessoal, astronautas e dançarinas —, eu sou a pessoa mais nova. Bem sei que tenho um interesse investido na resposta, mas existe a possibilidade clínica definitiva de a g zero me manter vivo durante séculos. Compreenda, estou empenhado numa experiência sobre a imortalidade.

«Não abordo este assunto para me vangloriar. Estou a abordá-lo por uma razão prática. Se nós conseguimos imaginar maneiras de prolongar o período de duração da nossa vida, pense no que aquelas criaturas de Vega devem ter feito. Provavelmente são imortais, ou quase. Sou uma pessoa prática e tenho pensado muito na imortalidade. Talvez tenha pensado mais longa e mais seriamente nela do que qualquer outra pessoa. E posso dizer-lhe uma coisa certa a respeito de imortais: eles são muito cuidadosos. Não abandonam as coisas ao acaso. Investiram demasiado esforço para se tornarem imortais. Não sei que aspecto têm, não sei o que querem de si, mas, se alguma vez os vir, só tenho um conselho prático a dar-lhe: qualquer coisa que lhe pareça canja, garantida, será considerada por eles um risco inaceitável. Se tiver de fazer alguma negociação lá em cima, não se esqueça do que lhe estou a dizer.

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