CAPÍTULO XVIII Superunificação

Um mar alteroso!

Estendida por cima de Sado,

A Via Láctea.

Matsuo Basho — Poema

Talvez tivessem escolhido Hokkaido por causa da sua fama de divergência. O clima exigia técnicas de construção que eram extremamente inconvencionais pelos padrões japoneses e a ilha era também a pátria dos Ainos, o peludo povo aborígine ainda desprezado por muitos japoneses. Os Invernos eram tão rigorosos como os de Minesota ou de Wyoming. Hokkaido apresentava certas dificuldades logísticas, mas encontrava-se, por assim dizer, fora do caminho no caso de uma catástrofe, visto estar fisicamente separada das outras ilhas japonesas. No entanto, não estava de modo nenhum isolada, agora que ficara concluído o túnel de cinqüenta e um quilômetros que a ligava a Honshu — o qual era o túnel submarino mais comprido do mundo.

Hokkaido parecera suficientemente segura para o teste de componentes individuais, mas fora manifestada preocupação quanto à montagem propriamente dita da Máquina na ilha. Aquela era, como as montanhas que cercavam as instalações testemunhavam eloqüentemente, uma região que ia emergindo de vulcanismo recente. Havia uma montanha que crescia à média de um metro por dia. Até os Soviéticos — as ilhas Sacalinas ficavam apenas a quarenta e três quilômetros de distância, do outro lado de Soya, ou estreito de La Pérouse — tinham manifestado alguns receios a esse respeito. Mas perdido por cem, perdido por mil. Por tudo quanto sabiam, até uma Máquina construída do lado mais distante da Lua poderia fazer a Terra ir pelos ares quando ativada. A decisão de construir a Máquina era o fato-chave na avaliação dos perigos; onde a coisa seria construída era uma consideração absolutamente secundária.

Em princípios de Junho, a Máquina estava mais uma vez a tomar forma. Na América era ainda motivo de controvérsia política e sectária; e, aparentemente, havia problemas técnicos graves com a Máquina soviética. Mas, aí — numas instalações muito mais modestas do que as de Wyoming —, os tubos de érbio tinham sido montados e o dodecaedro completado, embora não tivesse sido feita nenhuma comunicação pública a esse respeito. Os antigos pitagóricos, que tinham sido quem primeiro descobrira o dodecaedro, haviam decidido ser a sua própria existência um segredo, sendo rigorosas as penalidades aplicadas a quem o desvendasse. Por isso, talvez fosse lógico que este dodecaedro do tamanho de uma casa, a metade do mundo de distância e dois mil e seiscentos anos depois, fosse conhecido apenas por poucos.

O diretor do projeto japonês decretara alguns dias de repouso para toda a gente. A cidade mais próxima de tamanho razoável era Obihiro, um bonito lugar na confluência dos rios Yubetsu e Tokachi. Alguns foram esquiar em faixas de neve não derretida do monte Asahi; outros represaram regatos termais com uma parede de rocha improvisada, para se aquecerem com a decomposição de elementos radiativos engendrados pela explosão de alguma supernova verificada milhares de milhões de anos antes. Um pequeno número de elementos do Projeto foi às corridas de Bamba, nas quais possantes cavalos de tiro puxavam pesados trenós lastrados sobre faixas paralelas de terra de cultivo. Mas, para uma celebração a sério, os Cinco foram de helicóptero a Sapporo, a maior cidade de Hokkaido, situada a menos de duzentos quilômetros de distância.

Por um acaso auspicioso, chegaram a tempo de assistir ao Festival de Tanabata. O risco de segurança era considerado pequeno, pois o essencial para o êxito do projeto era a própria Máquina, muito mais do que aquelas cinco pessoas. Não tinham sido submetidas a nenhum treino especial, além do estudo minucioso da Mensagem, da Máquina e dos instrumentos miniaturizados que levariam com elas. Num mundo racional seriam fáceis de substituir, pensava Ellie, embora os impedimentos políticos para a seleção de cinco seres humanos aceitáveis por todos os membros do Consórcio Mundial da Máquina tivessem sido consideráveis.

Xi e Vaygay tinham, disseram, «assuntos inacabados» a debater, os quais só podiam ser acabados com a ajuda de saquê. Por isso, ela, Devi Sukhavati e Abonneba Eda deram consigo, guiados pelos seus anfitriões japoneses, a percorrer uma das ruas transversais da Alameda Odori, passando por esmerados arranjos de serpentinas e lanternas, quadros de folhas, tartarugas e pavões e engraçadas caricaturas representando um jovem e uma jovem em trajos medievais. Entre dois edifícios estava esticado um grande bocado de lona de vela, na qual tinha sido pintado um pavão emproado.

Ellie olhou para Eda, com a sua larga vestimenta de linho bordado e o seu barrete alto e rígido, e para Sukhavati, com outro espantoso sari de seda, e sentiu-se encantada na sua companhia. Até àquele momento, a Máquina japonesa passara todos os testes prescritos e tinha-se chegado a consenso quanto a uma tripulação que não era meramente — ainda que imperfeitamente — representativa da população do planeta, mas que incluía indivíduos genuínos não moldados pelos manda-chuvas oficiais de cinco nações. Cada um deles era de certo modo um rebelde.

Eda, por exemplo. Ali estava ele, o grande físico, o homem que descobrira aquilo a que se chamava superunificação — uma teoria superior que incluía como casos especiais física que percorria toda a escala, desde a gravitação aos quarks. Era um cometimento comparável aos de Isaac Newton ou Albert Einstein, e Eda estava a ser comparado a ambos. Nascera muçulmano, na Nigéria, o que por si só não era invulgar, mas era aderente de uma facção islâmica não ortodoxa chamada a Ahamadiyah, que incluía os sufis. Os sufis, explicara depois da noite passada com o abade Utsumi, eram para o islamismo o. que zen era para o budismo. Ahmadiyah proclamava «uma idade da caneta, e não da espada».

Apesar do seu comportamento sereno; até mesmo humilde, Eda era um adversário veemente do conceito mais muçulmano da gihad, guerra santa, e apelava, ao invés, para uma permuta livre de idéias mais vigorosa. Nesse aspecto constituía um embaraço para muito do Islã conservador e houvera oposição à sua participação na tripulação da Máquina da parte de algumas nações islâmicas. Estas tão-pouco estavam sós. Um laureado negro com o Prêmio Nobel — considerado ocasionalmente a pessoa mais inteligente da Terra era de mais para alguns que tinham mascarado o seu racismo como uma concessão às novas civilidades sociais. Quando, quatro anos antes, Eda visitara Tyrone Free na prisão, verificara-se uma acentuada exaltação do orgulho entre os Negros americanos e surgira um novo paradigma para os jovens. Eda trouxe à tona o pior que há nos racistas e o melhor que existe em todos os outros.

— O tempo necessário para trabalhar em física é um luxo — disse a Ellie. — Há muita gente que poderia fazer o mesmo se tivesse a mesma oportunidade. Mas, quando se têm de correr as ruas em busca de comida, não se dispõe de tempo suficiente para a física. É minha obrigação melhorar as condições de vida dos jovens cientistas do meu país.

À medida que, lentamente, se fora tornando um herói nacional na Nigéria, fora falando cada vez mais em corrupção, na idéia «justa» de se ter direito a certos privilégios, na importância da honestidade na ciência e em tudo o mais, em como a Nigéria poderia ser uma grande nação. Tinha uma população igual à que os Estados Unidos haviam tido na década de 1920, dizia. Era rica em recursos naturais e as suas muitas culturas constituíam uma força. Se a Nigéria conseguisse superar os seus problemas, argumentava, seria um farol para o resto do mundo. Em todas as outras coisas procurava o sossego e o isolamento, mas nestas questões manifestava-se. Muitos nigerianos, homens e mulheres — muçulmanos, cristãos e animistas, os jovens, mas não somente eles — tomavam essa visão a sério.

Das muitas características notáveis de Eda, talvez a mais admirável fosse a sua modéstia. Raramente expendia opiniões. As suas respostas à maioria das perguntas diretas eram lacônicas. Só nos seus escritos — ou na linguagem falada depois de as pessoas o conhecerem bem — era possível vislumbrar a sua profundidade. No meio de toda a especulação a respeito da Mensagem e da Máquina e, do que aconteceria após a sua ativação, Eda contribuíra apenas com um comentário: há uma estória segundo a qual em Moçambique os macacos não falam porque sabem que, se proferirem uma só palavra, aparece um homem que os põe a trabalhar.

Numa tripulação tão loquaz era estranho haver alguém tão taciturno como Eda. Como muitos outros, Ellie prestava atenção especial até mesmo às suas observações mais casuais. Ele descrevia como «erros idiotas» a sua primeira, e apenas parcialmente bem sucedida, versão da superunificação. O homem estava na casa dos trinta anos e era, Ellie e Devi concordavam a esse respeito, devastadoramente atraente. Ellie também sabia que ele era casado, e feliz, apenas com uma mulher, que, naquele momento, se encontrava com os filhos de ambos em Lagos.

Um estrado de renovos de bambu que tinham sido plantados para ocasiões semelhantes estava adornado, engalanado, na verdade sobrecarregado com milhares de tiras de papel colorido. Homens e mulheres, especialmente jovens, aumentavam a estranha folhagem. O Festival de Tanabata é único no Japão pela sua celebração do amor. Havia representações da estória central em tabuletas de painéis múltiplos e numa performance num improvisado palco ao ar livre: duas estrelas estavam apaixonadas, mas separadas pela Via Láctea. Só uma vez por ano, no sétimo dia do sétimo mês do calendário lunar, os amantes se conseguiam encontrar — desde que não chovesse. Ellie olhou para cima, para o azul-cristalIno daquele céu alpino, e desejou felicidades aos apaixonados. O jovem astro masculino, dizia a lenda, era uma espécie de cozerboy japonês e representado pela estrela anã A7 Altair. O feminino era uma tecelã e representado por Vega. Pareceu singular a Ellie que Vega fosse personagem principal de um festival japonês poucos meses antes da ativação da Máquina. Mas, se estudarmos culturas suficientes, provavelmente encontraremos lendas interessantes acerca de todas as brilhantes estrelas do céu. A lenda era de origem chinesa e Xi aludira-lhe, quando ela o ouvira anos atrás, no primeiro encontro do Consórcio Mundial da Mensagem, em Paris.

Na maioria das grandes cidades, o Festival de Tanabata estava em declínio. Os casamentos combinados tinham deixado de constituir a norma e a angústia dos amantes separados já não tocava uma corda tão sensível como noutros tempos. Mas, nalguns lugares — Sapporo, Sendai e poucos outros —, o Festival tornava-se mais popular de ano para ano. Em Sapporo revestia-se de especial pungência devido à indignação ainda muito disseminada contra os casamentos nipônico-ainenses. Havia na ilha toda uma indústria doméstica de detetives que, mediante o pagamento de certo preço, investigavam os parentes e antepassados de possíveis cônjuges para os filhos de quem os incumbia de tal missão. A ancestralidade aino ainda era considerada fundamento para rejeição sumária. Devi, recordando o jovem marido de tantos anos antes, mostrava-se particularmente mordaz. Sem dúvida, Eda ouvira uma ou duas histórias acerca do mesmo assunto, mas não se pronunciava.

O Festival de Tanabata da cidade de Sendai, na ilha de Honshu, era naquele momento um dos programas principais da Televisão Japonesa para pessoas que raramente podiam agora ver as verdadeiras Altair ou Vega. Ellie perguntou a si mesma se os Veganianos continuariam a transmitir eternamente a Mensagem para a Terra. Em parte devido ao fato de a Máquina estar a ser concluída no Japão, recebeu atenção considerável no comentário televisivo que acompanhava o Festival de Tanabata daquele ano. Mas os Cinco, como por vezes agora os tratavam, não tinham sido convidados para aparecer na Televisão Japonesa e a sua presença ali em Sapporo, para assistirem ao Festival, não era do conhecimento geral. Apesar disso, Eda, Sukhavati e ela foram prontamente reconhecidos e regressaram à Alameda Obori acompanhados por aplausos corteses e dispersos de transeuntes. Muitos também se inclinavam numa vênia. Um alto-falante, no exterior de uma loja de música, transmitia ruidosamente um número de rock-and-roll que Ellie identificou: tratava-se de I Wanna Ricochet Off You, pelo grupo musical negro Ruído Branco. A apanhar o sol da tarde via-se um cão velho, de olhos remelosos, que abanou levemente a cauda quando ela se aproximou.

Os comentadores japoneses falavam de Machindo, o Caminho da Máquina — a crescente perspectiva comum da Terra como um planeta e de todos os humanos compartilhando um direito igual no seu futuro. Algo parecido fora proclamado nalgumas religiões, mas de modo nenhum em todas. Praticantes desses credos ressentiam-se com a introspecção que estava a ser atribuída a uma Máquina alienígena. Se a aceitação de uma nova introspecção do nosso lugar no universo representa uma conversão religiosa, pensava Ellie, então a Terra estava a ser varrida por uma revolução teológica. Até os quiliastas americanos e europeus tinham sido influenciados pelo Machindo. Mas, se a Máquina não funcionasse e a Mensagem parasse, quanto tempo, perguntava-se, duraria a introspecção? Mesmo que tivéssemos cometido algum erro de interpretação ou construção, considerou, mesmo que nunca viéssemos a compreender mais nada a respeito dos Veganianos, a Mensagem demonstrava, sem qualquer sombra de dúvida, que havia outros seres no universo e que eles eram muito mais avançados do que nós. Isso, parecia-lhe, ajudaria a manter o planeta unificado durante uns tempos.

Perguntou a Eda se alguma vez tivera uma experiência religiosa transformadora.

— Tive — respondeu ele.

— Quando? — Às vezes era preciso instigá-lo a falar.

— Quando travei conhecimento com Euclides. E também quando compreendi pela primeira vez a gravitação newtoniana. E as equações de Maxwell e a relatividade geral. E durante o meu trabalho sobre a superunificação. Tive a sorte de ter muitas experiências religiosas.

— Não — protestou ela. — Sabe a que me refiro. Independentemente da ciência.

— Nunca — respondeu de imediato. — Nunca independentemente da ciência.

Falou-lhe um pouco da religião em que nascera. Não se considerava preso por todos os seus dogmas, disse, mas sentia-se bem nela. Pensava que poderia fazer muito bem. Era uma seita relativamente nova — contemporânea dos Cientistas Cristãos ou das Testemunhas de Jeová —, fundada por Mirza Ghulam Ahmad, no Punjabe. Aparentemente, Devi sabia alguma coisa acerca de Ahmadiyah como seita proselitizadora. Fora particularmente bem sucedida na África Ocidental. As origens da religião estavam envoltas em escatologia. Ahmad afirmara ser o Mahdi, a figura que os Muçulmanos esperam que apareça no fim do mundo. Também afirmara ser Cristo que voltava, uma encarnação de Krishna é um buruz, ou reaparecimento de Maomet. Entretanto, quiliastas cristãos tinham contaminado a Ahmadiyah e o reaparecimento de Ahmad estava iminente, segundo alguns dos fiéis. O ano de 2008, centenário da morte de Ahmad, estava a ser considerado uma data provável para o seu Regresso Final como Mahdi. O fervor messiânico global, em ora titubeante, parecia estar, de modo geral, a alastrar ainda mais, e Ellie confessou a sua preocupação com as predileções irracionais da espécie humana.

— Num Festival do Amor — respondeu-lhe Devi — não devia ser tão pessimista.

Em Sapporo houvera uma abundante queda de neve e o costume local de fazer esculturas de neve e gelo de animais e figuras mitológicas fora atualizado: tinha sido meticulosamente esculpido um imenso dodecaedro, que foi mostrado regularmente, como uma espécie de ícone, no telejornal da noite. Depois de dias quentes, impróprios da estação, viam-se os escultores do gelo a acamar, a desbastar e a esmagar, para reparar os estragos.

Que a ativação da Máquina pudesse, de uma maneira ou de outra, desencadear um apocalipse global, tornara-se um receio agora mencionado com freqüência. O Projeto da Máquina respondia ao público com garantias confiantes, aos governos com afirmações serenas, e ia dando ordens para manter secreta a data da ativação. Alguns cientistas propunham que a ativação se fizesse em 17 de Novembro, num anoitecer em que se previa a mais espetacular chuva de meteoros do século. Era um simbolismo agradável, diziam. Mas Valerian argumentava que, se a Máquina deixasse a Terra nessa altura, ter de voar através de uma nuvem de lixo cometário constituiria um risco adicional e desnecessário. Por isso, a ativação sofreu um adiamento de algumas semanas, até ao fim do último mês de mil novecentos e qualquer coisa. Embora esta data não fosse literalmente a viragem do Milênio, mas sim um ano antes, foram planeadas celebrações em escala grandiosa por aqueles que não estavam para se dar ao trabalho de compreender as convenções calendariais, ou que desejavam celebrar a vinda do Terceiro Milênio em dois Dezembros consecutivos.

Apesar de os extraterrestres não poderem ter sabido quanto pesaria cada membro da tripulação, especificavam com pormenores minuciosos a massa de cada componente e a massa total permissível. Sobrava muito pouco para equipamento de concepção terrestre. Tal fato servira alguns anos atrás como argumento para uma tripulação constituída exclusivamente por mulheres, para que a margem destinada a equipamento pudesse ser aumentada; mas a sugestão fora rejeitada como ridícula.

Não havia lugar para fatos espaciais. Tinham de se contentar com a esperança de que os Veganianos se tivessem lembrado de que os humanos tinham propensão para respirar oxigênio. Virtualmente sem nenhum equipamento próprio, com as suas diferenças culturais e o desconhecimento do destino, era evidente que a missão poderia acarretar grande risco. A imprensa mundial discutia esse fato com freqüência; os Cinco, nunca.


Insistia-se com a tripulação para que levasse uma variedade de máquinas fotográficas, espectrômetros e supercomutadores supercondutores, tudo miniaturizado, além de bibliotecas microfilmadas. Tinha lógica e não tinha. Não havia a bordo da Máquina instalações para dormir, cozinhar ou sanitárias. Eles levariam apenas um mínimo de provisões, parte delas atafulhadas nas algibeiras dos fatos-macaco. Devi levaria um estojo médico rudimentar. Na parte que lhe tocava, Ellie pensava levar apenas uma escova de dentes e uma muda de roupa interior. Se podem conduzir-me a Vega numa cadeira, raciocinava, provavelmente poderão fornecer também os acessórios necessários. Se precisasse de uma máquina fotográfica, disse aos funcionários do Projeto, limitar-se-ia a pedi-la aos Veganianos.

Havia um grupo de opinião, aparentemente sério, segundo o qual os Cinco deveriam ir nus; visto que não tinha sido especificado nenhum vestuário, não deveria ser incluído nenhum, já que poderia perturbar de qualquer modo o funcionamento da Máquina. Ellie e Devi, entre muitos outros, sentiram-se divertidas e observaram que não existia nenhuma prescrição contra o uso de vestuário, coisa que era um costume humano popular evidente na transmissão dos Jogos Olímpicos. Os Veganianos sabiam que nós usávamos roupa, protestaram Xi e Vaygay. As únicas restrições diziam respeito à massa total. Deveríamos também, perguntaram, tirar as próteses dentárias e deixar os óculos em terra? O seu ponto de vista colheu, em parte devido à relutância de muitas nações em estarem associadas a um projeto que culminasse tão indecorosamente. Mas a discussão originou um certo humor malicioso entre a imprensa, os técnicos e os Cinco.

— Por essa ordem de idéias — disse Lunacharsky —, não está realmente especificado que devem ir seres humanos. Talvez eles achassem cinco chimpanzés igualmente aceitáveis.

Até uma simples fotografia bidimensional de uma máquina alienígena poderia ter um valor incalculável, disseram a Ellie. E imaginasse uma fotografia dos próprios alienígenas. Queria fazer o favor de reconsiderar e levar uma máquina fotográfica? Der Heer, que naquela altura se encontrava em Hokkaido com uma grande delegação americana, pediu-lhe que levasse as coisas a sério. As paradas eram excessivamente altas para… Mas ela lançou-lhe um olhar tão fulminante que ele não completou a frase. Na sua mente, Ellie sabia o que ele ia dizer: para comportamento infantil. Surpreendentemente, Der Heer agia como se tivesse sido ele a parte ofendida no relacionamento de ambos. Contou tudo a Devi, que não se mostrou inteiramente do seu lado. Der Heer, disse, era «muito querido». Eventualmente, Ellie acedeu a levar uma videocâmara ultraminiaturizada.

No manifesto que o projeto exigia, sob a rubrica «Objetos pessoais,» escreveu: «fronde de palmeira, 0,811 k.»

Der Heer foi encarregado de a chamar à razão.

— Sabes que há um esplêndido sistema de captação de imagens de infravermelho que podes levar e que pesa apenas dois terços de um quilograma. Por que hás-de querer levar o ramo de uma árvore?

— Uma fronde. É uma fronde de palmeira. Sei que cresceste em Nova Iorque, mas deves saber o que é uma palmeira. Vem tudo no Ivanhoe. Não o leste no liceu? No tempo das cruzadas, peregrinos que faziam a longa viagem à Terra Santa traziam no regresso a fronde de uma palmeira, para mostrar que lá tinham realmente estado. Destinava-se a manter o seu moral elevado. Não me importa o muito avançados que possam ser. A Terra é a minha Terra Santa. Levar-lhes-ei uma fronde para lhes mostrar de onde vim.

Der Heer limitou-se a abanar a cabeça. Mas, quando ela explicou as suas razões a Vaygay, este disse: «Compreendo isso muito bem.»

Ellie recordou-se das preocupações de Vaygay e da estória que ele lhe contara em Paris a respeito do droshky enviado à aldeia pobre. Mas essa não era de modo nenhum a preocupação dela. Compreendeu que a fronde de palmeira tinha outro propósito. Precisava de qualquer coisa que lhe recordasse a Terra. Tinha medo de ser tentada a não regressar.


No dia anterior àquele em que a Máquina deveria ser ativada recebeu um pequeno embrulho que fora entregue pessoalmente no estaleiro de construção em Wyoming e reenviado para ali por mensageiro. Não tinha nenhum endereço de remetente nem, no interior, nenhum bilhete ou qualquer assinatura. O embrulhinho continha um medalhão de ouro suspenso de um fio. Concebivelmente, podia ser usado como um pêndulo. Ambos os lados do medalhão tinham uma inscrição gravada, pequena, mas legível. De um lado, lia-se:

Hera, majestosa rainha

De vestes douradas,

Dominava Argos,

Cujos olhares se estendiam

Através do mundo.

No anverso leu:


Esta é a resposta dos defensores de Esparta ao comandante do exército romano: «Se sois um deus, não molestareis aqueles que nunca vos fizeram mal. Se sois um homem, avançai… e encontrareis homens iguais a vós». E mulheres.

Ela adivinhou quem lho enviara

No dia seguinte, Dia da Ativação, fizeram uma sondagem de opinião do pessoal superior acerca do que aconteceria. A maioria pensava que não aconteceria nada, que a Máquina não funcionaria. Um número mais pequeno estava convencido de que os Cinco iriam, fosse como fosse, parar muito rapidamente ao sistema de Vega, não obstante a relatividade contrariar tal hipótese. Outros aventaram, variadamente, que a Máquina era um veículo para explorar o sistema solar, a partida mais dispendiosa da história, uma sala de aula, uma máquina do tempo, ou uma cabina telefônica galáctica. Um cientista escreveu: «Cinco substitutos muito feios, com escamas verdes e dentes aguçados, materializar-se-ão muito lentamente nas cadeiras.» Esta era, de todas as respostas, a que mais se aproximava do cenário do Cavalo de Tróia. Outro — mas apenas outro — escreveu: «Máquina do Fim do Mundo.»

Houve uma espécie de cerimônia. Fizeram-se discursos, serviu-se de comer e de beber. As pessoas abraçaram-se umas às outras. Algumas choraram serenamente. Só um punhado se mostrou francamente céptico. Pressentia-se que, se acontecesse alguma coisa na Ativação, a reação seria estrondosa. Havia uma sugestão de alegria em muitos rostos.

Ellie conseguiu telefonar para o lar e dizer adeus à mãe. Disse a palavra para o bocal do telefone em Hokkaido e o som idêntico foi reproduzido no Wisconsym. Mas não houve resposta. A mãe, disse-lhe a enfermeira, estava a recuperar algumas funções motoras do lado atingido. Em breve talvez conseguisse dizer algumas palavras. Quando o telefonema terminou, Ellie estava a sentir-se quase despreocupada.

Os técnicos japoneses usavam hachimai, faixas de pano à volta da cabeça, tradicionalmente postas quando se preparavam para um esforço mental, físico ou espiritual, e em especial para o combate. Estampada na faixa, uma reprodução convencional do mapa da Terra. Nenhuma nação ocupava uma posição predominante.

Não houvera grande coisa no campo de recomendações nacionais. Tanto quanto ela sabia, ninguém fora incitado a reunir-se à volta da bandeira. Os governantes nacionais enviaram breves declarações em vídeotape. Ellie achou a da presidente particularmente interessante:

— Isto não são instruções nem uma despedida. É apenas um até breve. Cada um de vós faz esta viagem em representação de mil milhões de almas. Representais todos os povos do planeta Terra. Se fordes transportados a qualquer outro lado, então vede por todos nós — não apenas a ciência, mas tudo quanto consigais aprender. Representais toda a espécie humana, passada, presente e futura. Aconteça o que acontecer, o vosso lugar na história está assegurado. Sois heróis do nosso planeta. Falai por todos nós. Sede judiciosos. E… voltai.

Poucas horas depois entraram pela primeira vez na Máquina — um de cada vez, através de uma pequena câmara de vácuo. Acenderam-se luzes interiores ocultas, de muito baixa potência. Mesmo depois de a Máquina ter sido concluída e de ter passado todos os testes prescritos, haviam receado que os Cinco ocupassem os seus lugares prematuramente. Alguns membros do pessoal do projeto temiam que o simples fato de eles se sentarem pudesse induzir a Máquina a funcionar, mesmo com os benzels imobilizados. Mas eles ali estavam, e não estava a acontecer nada de extraordinário, por enquanto. Aquele era o primeiro momento em que ela conseguia recostar-se, um pouco hesitante, sem dúvida, no plástico moldado e acolchoado. Teria preferido chintz, revestimentos de chintz teriam sido perfeitos para aquelas cadeiras. Mas até isso, descobrira, era uma questão de orgulho nacional. O plástico parecia mais moderno, mais científico, mais sério.

Conhecedores dos hábitos de fumar descuidado de Vaygay, tinham decidido que não poderiam entrar na Máquina nenhuns cigarros. Lunacharsky praguejara fluentemente em dez línguas. Chegada a altura entrou depois dos outros, após ter acabado de fumar o seu último Lucky Strike. Ofegou apenas um nadinha quando se sentou ao lado dela. Não havia cintos de segurança no desenho extraído da Mensagem e, por isso, não os havia também na Máquina. No entanto, alguns membros do pessoal do projeto tinham considerado temerário omiti-los.

A Máquina vai a algum lado, pensou Ellie. Era um meio de transporte, uma passagem para outro lado… ou outro quando. Era um comboio de mercadorias a rodar e a apitar na noite. Se uma pessoa entrava nele, podia levá-la das sufocantes cidades de província da sua infância para as grandes cidades de cristal. Era descoberta e fuga e um fim da solidão. Todos os atrasos logísticos na construção e todas as discussões sobre a interpretação correta de algum subcodicilo das instruções a tinham mergulhado em desespero. Não era glória que procurava… Não era principalmente isso, não era muito isso… era, ao invés, uma espécie de libertação.

Era uma maravilhómana. Na sua mente, era um homem de uma tribo montanhesa parado, de queixo descaído, embasbacado, diante da verdadeira Porta de Ishtar, da antiga Babilônia; Dorothy a captar os primeiros vislumbres dos pináculos abobadados da Cidade Esmeralda de Oz; um rapazinho dos confins mais escuros de Brooklyn transportado bruscamente para o Corredor das Nações da Feira Mundial de 1939, com Trylon e Perisphere acenando ao longe; era Pocahontas navegando estuário do Tamisa acima, com Londres estendida à sua frente de horizonte a horizonte.

O seu coração cantava de antegozo. Descobriria, tinha a certeza, que mais era possível, o que podia ser realizado por outros seres, por seres grandiosos — seres que, parecia admissível, viajavam entre as estrelas quando os antepassados dos humanos ainda braquiavam de ramo em ramo à sarapintada luz do Sol da abóbada da floresta.

Drumlin, como muitos outros que conhecera ao longo dos anos, chamara-lhe uma romântica incurável; e ela voltava a perguntar a si mesma por que seria que tanta gente considerava isso uma deficiência embaraçosa. O seu romantismo fora uma força impulsionadora na sua vida e uma fonte de deleites. Defensora e praticante do romance, ia a caminho para ver o Feiticeiro.

Chegou um comunicado via rádio. Não havia quaisquer anormalidades de funcionamento, tanto quanto podia ser detectado pela bateria de instrumentação que tinha sido instalada fora da Máquina. A principal espera devia-se à evacuação do espaço entre e à volta dos benzels. Um sistema extraordinariamente eficiente estava a bombear o ar para atingir o vácuo mais elevado jamais conseguido na Terra. Ellie voltou a verificar o acondicionamento do seu sistema de videomicrocâmara e deu uma palmadinha na fronde da palmeira. Tinham-se acendido luzes fortes no exterior do dodecaedro. Duas das cápsulas esféricas giravam agora àquilo a que a Mensagem definira como velocidade crítica. Estavam já transformadas numa mancha, para os que observavam no exterior. O terceiro benzel atingiria o mesmo ponto dentro de um minuto. Estava a formar-se uma forte carga elétrica. Quando todas as três cápsulas esféricas, com os seus eixos mutuamente perpendiculares, atingissem a velocidade estipulada, a Máquina estaria ativada. Ou assim dissera a Mensagem.

Ellie achou que o rosto de Xi revelava veemente determinação; o de Lunacharsky, uma calma deliberada; os olhos de Sukhavati estavam muito abertos, e Eda mantinha apenas uma atitude de serena atenção. Devi cruzou o olhar com o de Ellie e sorriu.

Desejou ter tido um filho. Foi esse o seu último pensamento antes de as paredes tremeluzirem e se tornarem transparentes e, aparentemente, a Terra se abrir e engoli-la.

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