CAPÍTULO I Números transcendentes

Pequena mosca,

Teu estival folguedo

A minha descuidada mão

Afugentou.

Não sou eu

Uma mosca como tu?

Ou não és tu

Um homem como eu?


Pois eu danço,

E bebo, e canto,

Até que mão distraída

Afugente o meu vôo.

Pelos padrões humanos não poderia ter sido artificial: era do tamanho de um mundo. Mas era tão extravagante e complicadamente formada, tão claramente planejada para qualquer objetivo complexo, que só podia ter sido a expressão de uma idéia. Deslizando em órbita polar à volta da grande estrela azul-branca, parecia um imenso, imperfeito poliedro incrustado de milhões de lapas taciformes. Cada taça estava apontada a uma parte especial do céu. Cada constelação estava a ser observada. O mundo poliédrico desempenhava a sua enigmática função havia tempos infinitos. Era muito paciente. Podia dar-se ao luxo de esperar eternamente.

Quando a tiraram para fora, nem sequer chorava. Tinha a minúscula fronte enrugada e os seus olhos abriram-se muito. Olhou para as luzes brilhantes, para os vultos vestidos de branco e verde e para a mulher deitada na mesa debaixo dela. Sons de algum modo familiares passaram sobre ela. O seu rosto tinha uma expressão estranha para uma recém-nascida — perplexidade, talvez.

Quando tinha dois anos, levantava as mãos acima da cabeça e dizia muito docemente: «Papá, pega.» Os amigos dele mostravam-se surpreendidos. A garotinha era delicada. «Não se trata de delicadeza», dizia-lhes o pai. «Ela costumava gritar quando queria que lhe pegassem. Por isso, uma vez, disse — Ellie, não precisas de gritar. Basta dizeres: ‘papá, pega.’ Os miúdos são espertos. Não é verdade, Presh?»

Por isso, ela agora estava lá em cima, numa altitude estonteante, empoleirada nos ombros do pai e agarrada ao seu cabelo, que começava a ficar ralo. A vida era melhor ali em cima, muito mais segura do que gatinhar através de uma floresta de pernas. Lá em baixo, qualquer pessoa a podia pisar. Podia perder-se. Agarrou-se com mais força.

Deixando os macacos, dobraram uma esquina e deparou-se-lhes um grande bicho de pernas delgadas, pescoço comprido, corpo sarapintado e chifres pequeninos na cabeça. Erguia-se acima deles. «Têm o pescoço tão comprido que a fala não pode sair», disse o pai. Ela teve pena da pobre criatura condenada ao silêncio. Mas sentiu também uma alegria pela sua existência, um prazer por haver tais maravilhas.

— Vá, Ellie — instigou-a a mãe brandamente, com um tom de satisfação na voz familiar. — Lê.

A irmã da mãe não acreditara que Ellie, com três anos, soubesse ler. A tia estava convencida de que as histórias infantis tinham sido decoradas. Naquela altura desciam vagarosamente a State Street, num fresco dia de Março, e tinham parado diante de uma montra. Lá dentro, uma pedra vermelho-borgonha cintilava ao sol.

— Joalheiro — leu Ellie devagar, pronunciando quatro sílabas.


Com um sentimento de culpa, entrou no quarto de hóspedes. O velho aparelho de rádio Motorola estava na prateleira, como ela se lembrava. Era muito grande e pesado e, ao apertá-lo contra o peito, quase o deixou cair. Na parte de trás estavam escritas as palavras: «Perigo.. Não furar.» Mas ela sabia que, se não estivesse ligado, não haveria perigo. Com a língua entre os lábios, retirou os parafusos e expôs as entranhas do aparelho. Como desconfiara, não havia orquestras minúsculas nem locutores em miniatura a viver silenciosamente as suas pequenas vidas à espera do momento em que o botão fosse girado, com um clique, para «ligado». Em vez disso, havia bonitos tubos de vidro, um pouco parecidos com lâmpadas elétricas. Alguns assemelham-se às igrejas de Moscovo que vira apresentadas num livro. As pontes da sua base estavam perfeitamente concebidas para se ajustarem aos receptáculos onde se achavam encaixadas. Com a parte de trás tirada e o botão em «ligado», introduziu a ficha do aparelho numa tomada próxima, na parede. Se não lhe tocasse, se não se aproximasse, como poderia magoá-la?

Decorridos poucos momentos, alguns tubos começaram a brilhar suavemente, mas não se ouviu nenhum som. O aparelho estava «estragado» e tinha sido posto de parte havia alguns anos, em favor de um modelo mais moderno. Um dos tubos não brilhava. Ela tirou a ficha da tomada e retirou o tubo renitente do seu receptáculo. No interior havia um quadrado metálico, preso a fios pequeninos. A eletricidade passa ao longo dos fios, pensou vagamente. Mas primeiro tinha de entrar no tubo. Uma das pontas da base parecia dobrada e, com um bocadinho de trabalho, ela conseguiu endireitá-la. Voltou a encaixar o tubo e a ligar o aparelho e ficou encantada ao vê-lo começar a brilhar e ouvir um oceano de estática erguer-se à sua volta. Olhou na direção da porta fechada com um sobressalto e reduziu o volume do som. Girou o botão que dizia «freqüência» e encontrou uma voz que falava agitadamente — tanto quanto conseguiu entender, acerca de uma máquina russa que estava no céu a girar interminavelmente à volta da Terra. Interminavelmente, pensou. Girou de novo o botão, à procura de outras estações. Passado um bocado, receosa de ser descoberta, desligou o aparelho, voltou a aparafusar frouxamente a parte de trás e, ainda com maior dificuldade, levantou a telefonia e tornou a pô-la na prateleira.

Quando saía do quarto de hóspedes, um pouco ofegante, a mãe apareceu e ela sobressaltou-se de novo.

— Aconteceu alguma coisa, Ellie?

— Não, mamã.

Aparentou um ar casual, mas o seu coração batia depressa e as palmas das suas mãos suavam. Sentou-se num lugar favorito do pequeno quintal das traseiras e, com os joelhos erguidos até ao queixo, pensou no interior do rádio. Todos aqueles tubos são realmente necessários? Que aconteceria se os tirássemos um de cada vez? O pai chamara-lhes uma vez tubos de vácuo. Que acontecia dentro de um tubo de vácuo? Não havia realmente nenhum ar lá dentro? Como entravam no aparelho a música das orquestras e a voz dos locutores? Eles gostavam de dizer «estamos no ar». O rádio era transportado pelo ar? Que acontecia dentro do aparelho de rádio quando mudávamos de estação? Que era a «freqüência»? Porque era necessário ligá-lo a uma tomada para trabalhar? Seria possível fazer uma espécie de mapa que mostrasse como a eletricidade passa através do aparelho? Seria possível desmontá-lo sem se magoar? E montá-lo de novo?

— Ellie, que andaste tu a fazer? — perguntou a mãe, ao passar com roupa lavada para estender.

— Nada, mãezinha. Estou só a pensar.


Nas férias do seu décimo verão levaram-na a visitar dois primos que detestava, num aglomerado de chalés ao longo de um lago da península Setentrional do Michigan. Não conseguia compreender que pessoas que viviam num lago no Wisconsin se expusessem a conduzir durante cinco horas a fim de irem para outro lago no Michigan. Especialmente para verem dois rapazes ruins e infantis. Só com dez e onze anos. Autênticos patetas. Como podia o seu pai, que noutros aspectos a compreendia tão bem, querer que ela brincasse dia após dia com idiotas? Passou todo o verão a evitá-los.

Numa noite abafada e sem lua, depois do jantar, desceu sozinha até ao cais arborizado. Tinha acabado de passar um barco a motor e o barco a remos do tio, amarrado à doca, balançava suavemente na água estrelada. Tirando as cigarras distantes e um grito quase subliminal que ecoava através do lago, o silêncio era total. Olhou para o céu luminoso salpicado de estrelas e sentiu o coração acelerado.

Sem olhar para baixo, apenas com a mão estendida para se guiar, encontrou uma extensão de erva macia e deitou-se. O céu resplandecia de estrelas. Havia milhares delas, a maioria a piscar e algumas luminosas e firmes. Olhando cuidadosamente, podiam ver-se tênues diferenças de cor. Aquela luminosa, ali, não era azulada?

Tateou de novo o chão debaixo dela; era sólido, firme… tranqüilizador. Cautelosa, sentou-se e olhou para a esquerda e para a direita, para cima e para baixo da longa extensão da beira-lago. Conseguia ver ambos os lados da água. O mundo parece apenas plano, pensou. Na realidade, é redondo. Tudo isto é uma grande bola… a girar no meio do céu… uma vez por dia. Tentou imaginar o mundo a girar, com milhões de pessoas coladas a ele, falando línguas diferentes, usando roupas engraçadas, todas presas à mesma bola.

Voltou a estender-se e tentou sentir a rotação. Talvez conseguisse senti-la só um bocadinho. Do outro lado do lago, uma estrela brilhante piscava entre os ramos mais altos. Semi-cerrando os olhos, distinguiam-se raios de luz a sair dela, como se dançassem. Semi-cerrando-os um pouco mais, os raios mudavam obedientemente de comprimento e de forma. Seria imaginação sua ou… a estrela estava agora inquestionavelmente acima das árvores? Poucos minutos antes espreitara entre os ramos, que ora a ocultavam, ora a revelavam. Agora estava mais alta, não havia dúvida nenhuma a esse respeito. Era a isso que se referiam quando diziam que uma estrela estava a nascer, pensou. A Terra virava-se na outra direção. De um lado do céu, as estrelas nasciam. Este lado chamava-se Oriente. Do outro lado do céu, atrás dela, para lá dos chalés, as estrelas estavam a pôr-se. Esse lado chamava-se Ocidente. Uma vez em cada dia, a Terra dava uma volta completa e as mesmas estrelas tornavam a nascer no mesmo lugar.

Mas, se uma coisa tão grande como a Terra girava uma vez por dia, tinha de mover-se absurdamente depressa. Toda a gente que ela conhecia tinha de estar a girar a uma velocidade incrível. Pensou que conseguia agora sentir realmente a Terra girar — não apenas imaginá-lo na sua cabeça, mas senti-lo de fato na boca do estômago. Era como descer num elevador rápido. Esticou o pescoço mais para trás, para que o seu campo de visão não fosse contaminado por nada na Terra, até ver somente céu preto e estrelas brilhantes. Com um sentimento de satisfação, foi avassalada pela idéia de que o melhor seria agarrar-se aos tufos de erva de cada lado, mas agarrar-se com todas as forças, ou então cairia no céu, com o corpo pequeno e às cambalhotas minguado pela imensa esfera escurecida que ficava em baixo.

Gritou, gritou de fato, antes de conseguir abafar o grito com o punho. Foi assim que os primos conseguiram encontrá-la.

Correndo pela encosta abaixo, descobriram-lhe no rosto um misto invulgar de embaraço e surpresa que prontamente assimilaram, ansiosos por surpreenderem qualquer pequena imprudência que pudessem ir contar aos pais dela.


O livro era melhor do que o filme. Para começar, tinha muito mais coisas. E alguns dos desenhos eram tremendamente diferentes do filme. Mas, em ambos, Pinóquio — um rapaz de madeira de tamanho natural que adquiria magicamente vida — usava uma espécie de cabresto e parecia ter cavilhas nas articulações. Quando Geppetto está mesmo a acabar de fazer Pinóquio, vira as costas ao boneco e é imediatamente atirado de pantanas por um pontapé bem apontado. Nesse instante chega o amigo do carpinteiro e pergunta-lhe que está ele a fazer estatelado no chão. «Estou a ensinar», responde Geppetto com dignidade, «o alfabeto às formigas.»

Ellie achava a frase muito espirituosa e deliciava-se a contá-la às amigas. Mas todas as vezes que a citava ficava a pairar na margem do seu consciente uma pergunta não formulada: Podia-se ensinar o alfabeto às formigas? E querer-se-ia? Ali em baixo, com centenas de insetos apressados capazes de percorrer toda a nossa pele ou até de nos picar? De resto, que podiam as formigas saber?

Às vezes levantava-se no meio da noite para ir à casa de banho e encontrava lá o pai, em calças de pijama, de pescoço esticado para cima e uma espécie de patrício desdém a acompanhar o creme de barbear que lhe cobria o lábio superior. «Olá, Presh», dizia ele. Era um diminutivo de «preciosa», e ela amava-o por a tratar assim. Por que se barbeava ele à noite, quando ninguém poderia saber se tinha a barba crescida? «Porque», respondia-lhe ele a sorrir, «a tua mãe saberá.» Anos mais tarde, ela descobriu que compreendera aquela observação brincalhona apenas incompletamente. Os seus pais tinham estado apaixonados.

Depois das aulas montara na bicicleta e fora para um pequeno parque no lago. Tirou de um pequeno alforje O Manual do Radiamador e Um Americano na Corte do Rei Artur. Após momentânea hesitação, decidiu-se pelo segundo. O herói de Mark Twain tinha levado uma traulitada na cabeça e acordara na Inglaterra arturiana. Talvez fosse tudo um sonho ou uma ilusão. Mas talvez fosse real. Era possível viajar para trás no tempo? Com o queixo nos joelhos, procurou uma passagem preferida: aquela em que o herói de Mark Twain é encontrado pela primeira vez por um homem de armadura, que ele toma por um fugitivo de um manicômio local. Ao chegarem à crista do monte vêem uma cidade desenrolar-se diante deles:

«— Bridgeport? — perguntei eu.

— Camelot — respondeu ele.»

Fitava o lago azul, a tentar imaginar uma cidade que pudesse passar simultaneamente por Bridgeport, do século XIX, e Camelot, do século XVI, quando a mãe correu para ela.

— Procurei-te em toda a parte. Por que nunca estás onde possa encontrar-te? Oh, Ellie — murmurou —, aconteceu uma coisa horrível!


No sétimo ano andavam a estudar «pi». Era uma letra grega que lembrava a arquitetura de Stonehenge, em Inglaterra: duas colunas verticais com uma trave em cima: p. Medindo a circunferência de um círculo e dividindo-a depois pelo diâmetro do círculo, obtinha-se o valor de pi. Em casa, Ellie pegou na tampa de um boião de maionese, passou-lhe um cordel à volta, endireitou o cordel e com uma régua mediu a circunferência do círculo. Fez o mesmo ao diâmetro e dividiu um número pelo outro. Obteve 3,21. Parecia simples.

No dia seguinte, o professor, Mr. Weisbrod, disse que pi era cerca de 22/7, aproximadamente 3,1416. Mas, na realidade, se se queria ser exato, era um decimal que se prolongava indefinidamente sem repetir o padrão dos números. Indefinidamente, pensou Ellie. Levantou a mão. O ano escolar começara havia pouco e ela ainda não fizera nenhumas perguntas naquela aula.

— Como pode alguém saber que os decimais se prolongam indefinidamente?

— Porque é assim — respondeu o professor, com alguma rispidez.

— Mas por quê? Como sabe? Como se podem contar decimais indefinidamente?

— Miss Arroway — o professor estava a consultar a caderneta da turma —, essa é uma pergunta estúpida. Está a desperdiçar o tempo da aula.

Nunca ninguém chamara estúpida a Ellie, e ela deu consigo desfeita em lágrimas. Billy Hortsman, que ocupava o lugar ao seu lado, estendeu bondosamente a mão e colocou-a sobre a dela. O pai fora recentemente acusado de praticar adulterações nos odômetros dos carros usados que vendia e, por isso, Billy estava sensível à humilhação pública. Ellie fugiu da aula a soluçar.

Depois das aulas foi de bicicleta à biblioteca do colégio próximo, a fim de consultar livros de matemática. Tanto quanto conseguiu depreender do que leu, a sua pergunta não tivera nada de estúpida. Segundo a Bíblia, os antigos hebreus tinham aparentemente pensado que pi era exatamente igual a três. Os Gregos e os Romanos, que sabiam montes de coisas a respeito de matemática, não tinham a mínima idéia de que os dígitos de pi se prolongavam indefinidamente sem se repetir. Tratava-se de um fato que só fora descoberto havia cerca de duzentos e cinqüenta anos. Como queriam que ela soubesse se não podia fazer perguntas? Mas Mr. Weisbrod tivera razão acerca dos primeiros dígitos. Pi não era 3,21. Talvez a tampa do boião da maionese estivesse um bocadinho machucada, não fosse um círculo perfeito. Ou talvez ela tivesse sido descuidada ao medir o cordel. No entanto, mesmo que tivesse sido muito mais cuidadosa, não podiam esperar que medisse um número infinito de dízimos.

Havia, porém, outra possibilidade. Podia-se calcular pi tão exatamente quanto se quisesse. Se uma pessoa soubesse uma coisa chamada cálculo, poderia experimentar fórmulas para pi que lhe permitiriam calculá-lo até tantos decimais quantos o tempo de que dispusesse lhe permitisse. O livro enunciava fórmulas para pi dividido por quatro. Algumas delas não conseguia pura e simplesmente compreendê-las. Mas havia outras que a fascinavam: pi p/4, dizia o livro, era o mesmo que 1–1/3 + 1/5 — 1/7 +…, com as frações a continuar indefinidamente. Sem perda de tempo, tentou pôr a fórmula em prática, adicionando e subtraindo as frações alternadamente. O resultado saltava de maior do que p/4 para menor do que 7p/4, mas ao fim de algum tempo podia ver-se que esta série de números seguia em linha reta para a resposta certa. Nunca lá se podia chegar exatamente, mas era possível alguém aproximar-se tanto quanto quisesse, desde que fosse muito paciente. Pareceu-lhe um milagre que a forma de todos os círculos do mundo estivesse conexa com aquela série de frações. Como podiam os círculos saber alguma coisa de frações? Decidiu aprender cálculo.

Mas o livro dizia ainda mais alguma coisa: chamava-se um número «transcendente». Não existia nenhuma equação com números ordinários capaz de dar pi, a não ser que fosse infinitamente longa. Ela já aprendera sozinha um pouco de álgebra e compreendia o que isso significava. E pi não era o único número transcendente. Efetivamente, havia uma infinidade de números transcendentes. Mais do que isso, havia infinitamente mais números transcendentes do que números ordinários, apesar de pi ser o único de que ela jamais ouvira falar. Em mais de um sentido, estava ligado à infinidade.

Tivera um vislumbre de algo grandioso. Escondida entre todos os números ordinários existia uma infinidade de números transcendentes de cuja presença nunca se suspeitaria a não ser que se penetrasse profundamente na matemática. De vez em quando, um deles, como o pi, surgia inesperadamente na vida quotidiana. Mas na sua maioria — um número infinito deles, recordou a si mesma — estavam escondidos, metidos na sua própria vida, quase com certeza não vislumbrados pelo irritável Mr. Weisbrod.


Desde o princípio que não teve ilusões a respeito de John Staughton. Que a sua mãe pudesse sequer encarar a idéia de casar com ele — mesmo sem tomar em consideração que tinham passado apenas dois anos depois da morte do pai — era um mistério impenetrável para ela. De aspecto razoavelmente agradável ele conseguia dar a impressão, quando se empenhava nisso, de que se interessava realmente por uma pessoa. Mas era um tirano. Convidava os alunos para os fins-de-semana na nova casa para onde se tinham mudado a fim de montarem e tratarem do jardim e, depois de se irem embora, troçava deles. Disse a Ellie que estava apenas a iniciar o liceu e não deveria olhar duas vezes para nenhum dos seus jovens alunos inteligentes. Inchava-o uma imaginária importância pessoal. Ellie tinha a certeza de que, como professor, desprezava secretamente o seu falecido pai, que fora apenas lojista. Staughton tornara claro que um interesse por rádio e eletrônica era inadequado numa rapariga, que não lhe caçaria um marido, e que compreender física era para ela uma idéia pateta e aberrante. «Pretensiosa», foi a palavra que empregou. Ela não tinha, simplesmente, capacidade para isso. Tratava-se de um fato objetivo a que seria melhor habituar-se. Dizia-lho para seu próprio bem. Ela agradecer-lho-ia mais tarde. No fim de contas, ele era um professor associado de Física[1]. Sabia o que tal estudo exigia. Estes sermões enfureciam-na sempre, embora — apesar da recusa de Staughton em acreditá-la — nunca tivesse considerado uma carreira científica.

Não era um homem brando, como o seu pai fora, e não fazia a mínima idéia do que fosse o sentido do humor. Quando alguém pensava que ela era filha de Staughton, Ellie sentia-se indignada. A mãe e o padrasto nunca lhe sugeriram que mudasse o apelido para Staughton; sabiam qual seria a sua resposta.

Ocasionalmente, havia um pouco de calor humano no indivíduo, como quando, no quarto do hospital onde fora submetida a uma amigdalectomia, ele lhe oferecera um esplêndido caleidoscópio.

— Quando me fazem a operação? — perguntara, um pouco sonolenta.

— Já fizeram — respondera Staughton. — Vais ficar boa.

Ela achara inquietante que pudessem ser roubados blocos completos de tempo sem seu conhecimento e atribuíra-lhe as culpas, embora na altura soubesse que estava a ser infantil.

Que a mãe pudesse amá-lo verdadeiramente, era inconcebível. Devia ter voltado a casar por solidão, por fraqueza. Precisava de alguém que tomasse conta dela. Ellie jurou que nunca aceitaria uma situação de dependência. O pai morrera, a mãe distanciara-se e ela sentia-se exilada em casa de um tirano. Já não havia ninguém que lhe chamasse Presh.

Ansiava por libertar-se.

«— Bridgeport? — perguntei eu.

— Camelot — respondeu ele.»

Загрузка...