CAPÍTULO XII O isômero delta-um

Olhar as estrelas faz-me sempre sonhar, tão simplesmente como sonho vendo os pontos pretos que representam cidades e aldeias num mapa. Por que motivo, pergunto a mim próprio, não hão-de os pontos brilhantes do céu ser tão acessíveis como os pontos pretos do mapa da França?

VINCENT VAN GOGH

Estava uma esplêndida tarde de Outono, com um calor tão impróprio da estação que Devi Sukhavati não trouxera casaco. Ela e Ellie caminhavam ao longo dos Campos Elíseos, cheios de gente, na direção da Praça da Concórdia. A diversidade étnica só tinha rival em Londres, Manhattan e poucas outras cidades do planeta. Duas mulheres a caminhar juntas, uma de saia e camisola de malha e a outra de sari não constituíam de modo nenhum uma coisa invulgar.

À porta de uma tabacaria havia uma comprida, disciplinada e poliglota bicha de pessoas atraídas pela primeira semana de venda legalizada de cigarros de Cannabis curada dos Estados Unidos da América. Nos termos da lei francesa, não podiam ser vendidos a, ou consumidos por, menores de dezoito anos. Muitos dos que se encontravam na bicha eram pessoas de meia-idade e mais velhas. Alguns talvez fossem argelinos ou marroquinos naturalizados. Sobretudo na Califórnia e no Oregão, cultivavam-se variedades especialmente potentes de Cannabis destinadas ao comércio de exportação. A primazia, ali, pertencia a uma estirpe nova e admirada, que, para mais, crescera num ambiente de luz ultravioleta que convertia alguns dos canabinóides inertes no isômero. Chamava-se beijado-pelo-Sol. A embalagem, ilustrada numa montra com metro e meio de altura, apresentava, em francês, a frase publicitária «Isto será deduzido da sua parte no Paraíso».

As montras dos estabelecimentos ao longo do bulevar eram uma orgia de cor. As duas mulheres compraram castanhas a um vendedor ambulante e maravilharam-se com o seu sabor e a sua consistência. Por qualquer razão, todas as vezes que Ellie via um letreiro de propaganda do BNP, o Banque Nationale de Paris, lia-o como a palavra russa correspondente a cerveja, com a letra do meio invertida da esquerda para a direita. CERVEJA, os letreiros — ultimamente deturpados das suas vocações fiduciárias respeitáveis e habituais — pareciam instigá-la, CERVEJA RUSSA. A incongruência divertia-a, e só com dificuldade conseguia convencer a parte do seu cérebro encarregada da leitura de que estava perante o alfabeto latino, e não o alfabeto cirílico. Mais adiante maravilharam-se com L’Obélisque — um antigo memorial militar expropriado com grandes custos para se tornar num memorial militar moderno. Resolveram continuar a andar.

Der Heer furtara-se ao encontro marcado, ou, pelo menos, procedera de maneira que dera no mesmo. Telefonara-lhe de manhã, apologético, mas não desesperadamente. Estavam a ser levantadas excessivas questões políticas na sessão plenária. O secretário de Estado interrompia uma visita a Cuba e chegaria no dia seguinte, de avião. Der Heer estava ocupadíssimo, não tinha mãos a medir, e esperava que Ellie compreendesse. Ela compreendia. Detestava-se por dormir com ele. Para evitar uma tarde solitária, telefonara a Devi Sukhavati.

— Uma das palavras que significam «vitorioso», em sânscrito, é abhijit. Era esse o nome de Vega na Índia antiga. Abhijit. Foi sob a influência de Vega que as divindades hindus, os heróis da nossa cultura, venceram os asuras, os deuses do mal. Está a ouvir, Ellie?… É curioso: na Pérsia também há asuras, mas lá os asuras eram os deuses do bem. Eventualmente, surgiram religiões em que o deus principal, o deus da luz, o deus Sol, se chamava Ahura-Mazda. Os zoroastrianos, por exemplo, e os mitraístas. Ahura, Asura, é o mesmo nome. Hoje ainda há zoroastrianos, e os mitraístas deram uma boa luta aos primeiros cristãos. Mas, nesta mesma história, essas divindades hindus — eram principalmente femininas, diga-se de passagem — chamavam-se devis. É essa a origem do meu próprio nome. Na Índia, os devis são deuses do bem. Na Pérsia, os devis tornaram-se deuses do mal. Alguns eruditos pensam que foi daí que acabou por derivar a palavra inglesa devil. Tudo isto é, provavelmente, algum retrato vagamente recordado da invasão ariana que empurrou os Drávidas, meus antepassados, para o sul. Assim, consoante o lado da cordilheira de Kirthar em que uma pessoa vive, Vega apóia quer Deus, quer o Diabo.

Esta história engraçada tinha sido contada como uma espécie de dádiva feita por Devi, que, parecia evidente, ouvira dizer alguma coisa a respeito das aventuras religiosas de Ellie na Califórnia, duas semanas atrás. Ellie sentiu-se grata. Mas a história recordou-lhe que não mencionara sequer a Joss a possibilidade de a Mensagem ser o projeto de uma máquina para fins desconhecidos. Agora ele não tardaria a ouvir falar de tudo aquilo através dos media. Devia, sem dúvida, disse severamente a si mesma, fazer um telefonema transcontinental para lhe explicar a nova evolução do caso. Mas constava que Joss estava em reclusão. Não prestara nenhuma declaração pública após o encontro de ambos em Modesto. Rankin anunciara numa conferência de imprensa que, embora pudesse haver alguns perigos, não se opunha a que os cientistas recebessem a Mensagem completa. Mas a sua interpretação era outra coisa. Impunha-se uma verificação periódica por todos os segmentos da sociedade, declarou, especialmente por aqueles a quem estava confiada a salvaguarda dos valores morais e espirituais.

Aproximavam-se agora dos Jardins das Tulherias, onde se exibiam as tonalidades extravagantes do Outono. Homens idosos e frágeis — Ellie pensou que fossem do Sudeste asiático — discutiam. Balões multicores, para venda, ornamentavam os portões pretos de ferro forjado. No centro de um tanque de água erguia-se uma Anfitrite de mármore, à volta da qual corriam veleiros de brincar, incitados por um exuberante grupo de garotos com aspirações magalianas. De súbito, um peixe-gato irrompeu a água, afundou o barquinho da frente e os rapazes e as raparigas ficaram emudecidos, coagidos por aquela aparição completamente inesperada. O Sol estava baixo, a ocidente, e Ellie sentiu um arrepio momentâneo.

Aproximaram-se de L’Orangerie, no anexo da qual decorria uma exposição especial, conforme o cartaz proclamava: «images Martiennes». Os veículos-robots americano-franco-soviéticos que percorriam Marte tinham proporcionado uma abundância espetacular de fotografias coloridas, algumas delas — como as imagens do sistema solar exterior obtidas pela Voyager cerca de 1980 — subindo muito acima do seu mero objetivo científico e transformando-se em arte. O cartaz apresentava uma paisagem fotografada no imenso planalto Elíseo. No primeiro plano via-se uma pirâmide trilateral, lisa, muito erodida, com uma cratera de impacto perto da base. Fora produzida por milhões de anos de fustigação pela areia atirada a grandes velocidades pelos agrestes ventos marcianos, tinham dito os geólogos planetários. Um outro lado de Marte atolara-se numa duna formada pelos ventos e os seus controladores em Pasadena haviam, até então, sido incapazes de atender os seus tristes pedidos de socorro.

Ellie deu consigo de atenção fixa no aspecto de Sukhavati: nos seus enormes olhos pretos, no seu porte ereto e em mais um suntuoso sari. Pensou para consigo: não sou graciosa. Geralmente, era capaz de desempenhar o seu papel numa conversa enquanto mentalmente debatia outros assuntos. Naquele dia, porém, tinha dificuldade em acompanhar uma linha de pensamento, quanto mais duas. Ao mesmo tempo que discutiam os méritos das várias opiniões sobre se era ou não de construir a Máquina, a sua mente voltou à imagem dada por Devi da invasão ariana da Índia três mil e quinhentos anos antes: uma guerra entre dois povos, cada um dos quais proclamava a vitória, cada um dos quais exagerava patrioticamente os acontecimentos históricos. Eventualmente, a estória transforma-se numa guerra de deuses. O «nosso» lado, evidentemente, é bom. O outro lado, evidentemente, é mau. Imaginou o Demônio do Ocidente, de barbicha de bode, cauda em forma de pá e fissípide, a evoluir, em lentos passos evolutivos ao longo de milhares de anos, de algum antecessor hindu, que, por tudo quanto ela sabia, podia ter cabeça de elefante e ser pintado de azul.

— O Cavalo de Tróia de Baruda… talvez não seja uma idéia totalmente pateta — ouviu-se dizer. — Mas acho que não temos nenhuma alternativa, como o Xi disse. Eles podem estar aqui dentro de vinte e tal anos, se quiserem.

Chegaram a um arco monumental de estilo romano encimado por uma estátua heróica, até mesmo apoteótica, de Napoleão representado como auriga. De uma visão distante, de uma perspectiva extraterrestre, como era patética aquela postura. Descansaram num banco próximo, com as sombras compridas projetadas num canteiro de flores com as cores da República Francesa.

Ellie ansiava por discutir o seu problema emocional, mas isso poderia ter implicações políticas. Seria, no mínimo, imprudente. Não conhecia Sukhavati muito bem. Em vez disso, encorajou a companheira a falar da vida pessoal dela. Sukhavati aquiesceu sem hesitar.

Nascera numa família brâmane, mas não próspera, com tendências matriarcais, no estado meridional de Tamil Nadu. As famílias matriarcais ainda eram comuns em todo o Sul da Índia. Matriculara-se na Universidade Hindu de Banares. Na Escola Médica, em Inglaterra, conhecera e apaixonara-se profundamente por Surindar Ghosh, um colega estudante de Medicina. Mas Surindar era um harijan, um intocável, de uma casta tão detestável que o simples fato de os ver era considerado por brâmanes ortodoxos como conspurcador. Os antepassados de Surindar tinham sido obrigados a levar uma existência noturna, como morcegos e mochos. A família dela ameaçara renegá-la se casassem. O pai afirmava que filha capaz de considerar semelhante união não era sua. Mas ela desposou-o, mesmo assim. «Estávamos demasiado apaixonados», explicou. «Eu não tinha, realmente, nenhuma alternativa.» Passado um ano, ele morrera de septicemia contraída ao efetuar uma autópsia sob supervisão inadequada. No entanto, em vez de a reconciliar com a família, a morte de Surindar tivera o resultado oposto, e, depois de se licenciar em Medicina, ela resolvera ficar em Inglaterra. Descobrira uma vocação natural para a biologia molecular e considerara-a uma continuação fácil dos seus estudos médicos. Não tardou a verificar que possuía verdadeiro talento para aquela minuciosa disciplina. O conhecimento da replicação do ácido nucléico levou-a a trabalhos sobre a origem da vida, e isso, por sua vez, a considerar a possibilidade de vida noutros planetas.

— Pode-se dizer que a minha carreira científica foi uma seqüência de associações de idéias. Uma coisa conduziu, simplesmente, a outra. Recentemente estivera a trabalhar na caracterização de matéria orgânica marciana, medida nalguns lugares de Marte pelos mesmos veículos-robots cuja espantosa produção fotográfica tinham acabado de ver anunciada. Devi não voltara a casar, embora tenha dado claramente a entender que alguns a tinham pretendido. Ultimamente tivera encontros com um cientista de Bombaim que descrevia como um «rallah»[11] de computadores».

Caminharam um pouco mais e encontraram-se no Cour Napoléon, o pátio interior do Museu do Louvre. No seu centro encontrava-se a recém-completada e tremendamente controversa entrada piramidal e em nichos altos à volta do pátio viam-se representações escultóricas dos heróis da civilização francesa. Legendado sob cada estátua de um homem reverenciado — encontraram pouca evidência de mulheres reverenciadas — encontrava-se o seu apelido. Ocasionalmente viam-se letras deformadas — pela erosão natural do tempo, algumas, ou, em poucos casos, apagadas por algum transeunte ofendido. Em uma ou duas estátuas era difícil decifrar quem fora o sábio. Na estátua que, visivelmente, provocara o maior ressentimento público só restavam as letras Lrn.

Embora o Sol estivesse a pôr-se e o Louvre permanecesse aberto até meio do anoitecer, elas não entraram. Em vez disso, foram andando pela margem do Sena, seguindo o rio, no regresso, ao longo do Quai d’Orsay. Os proprietários das barracas de livros corriam taipais e fechavam a loja por aquele dia. Foram andando assim um bocado, de braço dado à maneira européia.

Um casal francês caminhava poucos passos à sua frente, segurando cada um dos componentes a mão da filha, uma menina dos seus quatro anos que periodicamente se erguia do passeio. Na sua momentânea suspensão em g zero experimentava, via-se perfeitamente, algo parecido com êxtase. Os pais falavam do Consórcio Mundial da Mensagem, o que dificilmente se poderia considerar uma coincidência, visto que os jornais a pouco mais se referiam. O homem era pela construção da Máquina; podia criar novas tecnologias e aumentar a taxa de empregos em França. A mulher parecia mais cautelosa, mas por razões que tinha dificuldade em exprimir. A filha, de tranças a voar, mostrava uma despreocupação absoluta com o destino a dar a um projeto de construção vindo das estrelas.


Der Heer, Kitz e Honicutt tinham convocado uma reunião na Embaixada americana para o princípio da manhã seguinte, a fim de se prepararem para a chegada do secretário de Estado, que se verificaria nesse mesmo dia, mais tarde. A reunião seria confidencial e realizar-se-ia na Sala Preta da Embaixada, uma câmara eletromagneticamente isolada do mundo exterior e que tornava impossível até mesmo a observação eletrônica sofisticada. Ou, pelo menos, assim se afirmava. Ellie pensava que talvez tivesse sido criada instrumentação capaz de contornar e superar essas precauções.

Depois de passar a tarde com Devi Sukhavati, recebera o recado e tentara telefonar a Der Heer, mas só conseguira contactar com Michael Kitz. Discordava, disse-lhe, de uma reunião confidencial sobre aquele assunto; era uma questão de princípio. A Mensagem era claramente endereçada a todo o planeta. Kitz respondeu-lhe que não estavam a ser sonegados quaisquer dados ao resto do mundo, pelo menos pelos Americanos, e que a reunião era de natureza meramente consultiva, para ajudar os Estados Unidos nas difíceis negociações processuais que se seguiriam. Apelou para o patriotismo dela, para o seu interesse próprio, e; por fim, invocou de novo a decisão Hadden. «Tanto quanto sei, essa coisa continua fechada no seu cofre por ler. Leia-a.» recomendou.

Ela tentou, novamente em vão, comunicar com Der Heer. Primeiro, o indivíduo aparece por todos os cantos das instalações Argus, como uma moeda falsa. Muda-se para o teu apartamento. Tens a certeza, pela primeira vez em muitos anos, de que estás apaixonada. Mas, de repente, não consegues sequer levá-lo a atender o telefone.

Resolveu assistir à reunião, quanto mais não fosse para se encontrar com Ken cara a cara.

Kitz era entusiasticamente pela construção da Máquina, Drumlin cautelosamente a favor, Der Heer e Honicutt sem opinião, pelo menos exteriormente, e Peter Valerian angustiadamente indeciso. Kitz e Drumlin até já falavam a respeito do lugar onde construí-la. Só os custos de transporte tornavam a construção, ou sequer a montagem, do lado mais distante da Lua proibitivamente elevada, como Xi calculara.

— Se utilizarmos travagem aerodinâmica, sairá mais barato enviar um quilograma para Phobos ou Deimos do que para o lado mais distante da Lua — opinou Bobby Bui.

— Onde diabo fica Fobusódimos? — perguntou Kitz.

— São as luas de Marte. Eu estava a falar de travagem aerodinâmica na atmosfera marciana.

— E quanto tempo é preciso para chegar a Phobos ou Deimos? — indagou Drumlin, a mexer o café.

— Talvez um ano, mas, assim que tivermos uma esquadra de veículos de transferência interplanetária e o pipeline estiver cheio…

— Um ano comparado com três dias para a Lua? — resmungou Drumlin. — Bui, deixe de nos fazer perder tempo.

— Foi apenas uma sugestão — protestou o outro. — Compreendem, apenas uma coisa a pensar.

Der Heer parecia impaciente, desatento. Era evidente que se encontrava sob grande tensão, evitando alternadamente os olhos dela e — parecia-lhe — fazendo-lhe um apelo mudo qualquer. Ellie considerou isso um sinal de esperança.

— Se querem preocupar-se com Máquinas do Fim do Mundo — dizia Drumlin —, têm de se preocupar com provisões de energia. Se não tiver acesso a uma enorme quantidade de energia, não poderá ser uma Máquina do Fim do Mundo. Por isso, enquanto as instruções não exigirem um reator nuclear de um gigavátio, não acho que tenhamos de nos preocupar com Máquinas do Fim do Mundo.

— Por que têm vocês tanta pressa de começar a construção? — perguntou Ellie a Kitz e Drumlin conjuntamente. Eles estavam sentados ao lado um do outro, com um prato de croissants no meio.

Kitz olhou de Honicutt para Der Heer antes de responder:

— Esta reunião é confidencial — começou. — Todos nós sabemos que não transmitirá aos seus amigos russos nada do que se disser aqui. Trata-se do seguinte: ignoramos o que a Máquina fará, mas é evidente, pela análise do Dave Drumlin, que contém nova tecnologia, provavelmente novas indústrias. Construir a Máquina terá necessariamente valor econômico… quero dizer, pense no que aprenderíamos. E poderia ter valor militar. Pelo menos é isso que os Russos pensam. Veja, os Russos estão entalados. Aqui está toda uma nova área de tecnologia que vão ter de compartilhar com os Estados Unidos. Talvez haja, na Mensagem, instruções para alguma arma decisiva, ou então alguma vantagem econômica. Não podem ter a certeza. Terão de estourar com a sua economia a experimentar. Notou a insistência com que Baruda se referiu ao que era custo efetivo? Se todo este material da Mensagem desaparecesse — queimem os dados, destruam os telescópios —, os Russos poderiam manter a paridade militar. É por isso que estão tão cautelosos. Conseqüentemente, claro, é por isso que nós estamos cheios de entusiasmo para avançar. — Sorriu.

Temperamentalmente, Kitz era desumano, pensou Ellie; mas estava longe de ser estúpido. Quando se mostrava frio e retraído, as pessoas tinham tendência para antipatizar com ele. Por isso cultivara um verniz ocasional de afabilidade urbana. Na opinião dela, era uma camada de verniz monomolecular.

— Agora permita que eu lhe faça uma pergunta — continuou ele. — Detectou a observação de Baruda acerca de sonegar alguns dos dados? Faltam dados?

— Apenas muito ao princípio. Creio que apenas das primeiras semanas. Houve algumas lacunas na cobertura chinesa um pouco depois disso. Ainda há uma pequena quantidade de dados que não foram permutados em todas as partes. Mas não detecto quaisquer indícios de sonegação grave. De qualquer modo, colmataremos quaisquer brechas depois de a Mensagem reciclar.

— Se a Mensagem reciclar — rosnou Drumlin.

Der Heer moderou um debate sobre planejamento contingencial: que fazer quando o manual fosse recebido; que indústrias americanas, alemãs e japonesas notificar com antecedência sobre possíveis projetos de desenvolvimento importantes; como identificar cientistas e engenheiros-chave para construir a Máquina se fosse tomada a decisão de ir para a frente; e, em breve, a necessidade de suscitar entusiasmo pelo projeto no Congresso e junto do público americano. Der Heer apressou-se a acrescentar que se tratava apenas de planos contingenciais, que não estava a ser tomada nenhuma decisão final, e que não restavam dúvidas de que as preocupações soviéticas a respeito de um Cavalo de Tróia eram, pelo menos, parcialmente genuínas.

Kitz fez perguntas a respeito da composição da «tripulação».

— Eles estão a pedir-nos que sentemos pessoas em cinco cadeiras estofadas. Que pessoas? Como vamos decidir? Provavelmente terá de ser uma tripulação internacional. Quantos americanos? Quantos russos? Mais alguém? Não sabemos o que acontecerá a essas cinco pessoas quando se sentarem nessas cadeiras, mas queremos dispor dos melhores homens para a missão.

Ellie não mordeu a isca e ele continuou:

— Um grande problema vai ser quem paga o quê, quem constrói o quê, quem se encarrega da integração de sistemas globais. Creio que podemos regatear no duro a este respeito, a troco de significativa representação americana na tripulação.

— Mas continuamos interessados em enviar as melhores pessoas que for possível — observou Der Heer, um pouco obviamente.

— Sem dúvida — redargüiu Kitz —, mas que quer significar com «melhores»? Cientistas, pessoas com antecedentes de informação militar? Força física e resistência? Patriotismo? (Não é uma palavra feia, bem sabem.) E depois — levantou os olhos do croissant em que estava a espalhar manteiga e olhou a direito para Ellie, — há a questão do sexo. Quero dizer, dos sexos. Mandamos apenas homens? Se forem homens e mulheres, terão de ser mais de um sexo do que do outro. Há cinco lugares, um número ímpar. Todos os membros da tripulação trabalharão bem juntos? Se formos para a frente com este projeto, haverá muito que negociar, e duramente.

— Isto não me parece certo — declarou Ellie. — Não se trata de nenhuma embaixada que se compre com uma contribuição para uma campanha eleitoral. Isto é um assunto sério. Ademais, quer lá em cima algum idiota cheio de músculo, algum garoto de vinte e poucos anos que não sabe nada acerca do modo como o mundo funciona, que sabe apenas como participar numa respeitável corrida de cem metros e obedecer a ordens? Ou algum mercenário político? Esta viagem não pode estar relacionada com coisas dessas.

— Não, tem razão — concordou Kitz, a sorrir. — Acho que arranjaremos pessoas que satisfaçam os nossos critérios.

Der Heer, com os papos sob os olhos a tornarem-no quase desfigurado, declarou a reunião encerrada. Conseguiu transmitir a Ellie um pequeno sorriso íntimo, mas um sorriso só de lábios, sem dentes à mostra. As limousines da Embaixada aguardavam para os levar ao Palácio do Eliseu.

— Eu explico-lhes por que motivo seria melhor enviar russos — dizia Vaygay. — Quando vocês, Americanos, desbravaram o vosso país — pioneiros, caçadores de armadilha, batedores índios e tudo isso —, não encontraram oposição, pelo menos de ninguém ao vosso nível de tecnologia. Correram através do continente, do Atlântico ao Pacífico. Passado algum tempo contavam que tudo seria fácil. A nossa situação foi diferente. Nós fomos vencidos pelos Mongóis. A sua tecnologia eqüestre era muito superior à nossa. Quando nos expandimos para leste, fomos cuidadosos. Nunca atravessamos o deserto contando que seria fácil. Estamos mais adaptados à adversidade do que vocês. Além disso, os Americanos estão habituados a estar tecnologicamente à frente. Nós estamos habituados a alcançar quem está tecnologicamente à nossa frente. Ora toda a gente da Terra é um russo — compreenda, refiro-me a ser um russo na nossa situação histórica. Esta missão precisa de soviéticos mais do que de americanos.

O simples fato de se encontrar com ela a sós acarretava certos riscos para Vaygay — e também para ela, como Kitz fizera questão de lhe lembrar. Às vezes, num encontro científico na América ou na Europa, Vaygay era autorizado a passar uma tarde com ela. Mais freqüentemente, porém, era acompanhado por colegas ou por um baby-sitter KGB que era descrito como intérprete, mesmo quando o seu inglês era claramente inferior ao de Vaygay, ou como cientista do secretariado desta ou daquela comissão da Academia, apesar de o seu conhecimento dos assuntos científicos se revelar muitas vezes superficiais. Vaygay abanava a cabeça quando interrogado a respeito deles. Mas, de modo geral, considerava os baby-sitters uma parte do jogo, o preço a pagar quando deixavam uma pessoa visitar o Ocidente, e Ellie teve a impressão de detectar mais de uma vez uma nota de afeto na voz de Vaygay quando ele falava com o baby-sitter: ir a um país estrangeiro e fingir ser especialista numa matéria que se conhecia mal devia causar muita angústia.

Talvez, lá muito no fundo, o baby-sitter detestasse tanto o seu papel como Vaygay.

Estavam sentados à mesa junto da montra do Chez Dieux. Pairava no ar uma frescura inequívoca, uma premonição de Inverno, e um homem novo, cuja única concessão ao frio era um comprido cachecol azul, passou apressadamente pelas tinas de ostras geladas do lado de fora da montra. Pelas observações (incaracteristicamente) cautelosas e continuadas de Lunacharsky, Ellie deduziu que reinava a confusão na delegação soviética. Os Soviéticos receavam que a Máquina pudesse de algum modo redundar em vantagem estratégica para os Estados Unidos na competição global que durava havia cinco décadas. Vaygay ficara sinceramente escandalizado com a pergunta de Baruda quanto a queimarem-se os dados e destruírem-se os radiotelescópios. Não tivera nenhum conhecimento prévio da posição de Baruda. Os Soviéticos tinham desempenhado um papel vital na captação da Mensagem, com a maior cobertura em longitude de qualquer nação, frisou Vaygay, e tinham os únicos radiotelescópios verdadeiramente nacionais nos oceanos. esperavam, naturalmente, um papel importante fosse no que fosse que se seguisse. Ellie garantiu-lhe que, pela parte que lhe tocava, teriam esse papel.

— Escute, Vaygay, eles sabem pelas nossas transmissões de televisão que a Terra gira e que há muitas nações diferentes. Só a transmissão dos Jogos Olímpicos deve ter bastado para lhes dizer isso. Transmissões posteriores de outras nações tê-lo-ão confirmado. Por isso, se são tão avançados como nós pensamos, podiam ter faseado as transmissões com a rotação da Terra, de modo que apenas uma nação recebesse a Mensagem. Optaram por não fazer isso. Querem que a Mensagem seja recebida por toda a gente do planeta. Este não pode ser um projeto exclusivamente americano ou exclusivamente russo. Não é isso que o nosso… cliente quer.

Mas não tinha a certeza, acrescentou, de que viria a representar algum papel no tocante a decisões sobre a construção da Máquina ou a seleção dos seus tripulantes. Regressava aos Estados Unidos no dia seguinte, principalmente para se pôr em dia com os novos dados recebidos nas últimas semanas. As sessões plenárias do Consórcio pareciam intermináveis e não fora fixada nenhuma data para o seu encerramento. Vaygay fora solicitado pelos seus a ficar pelo menos um pouco mais de tempo. O ministro dos Estrangeiros acabava de chegar e chefiava agora a delegação soviética.

— Receio que tudo isto acabe mal — disse ele. — Há tantas coisas que podem dar para o torto… Falhas tecnológicas. Falhas políticas. Falhas humanas. E, mesmo que consigamos superar tudo isso, mesmo que não desencadeemos uma guerra por causa da Máquina, mesmo que a construamos corretamente sem irmos pelos ares, mesmo assim continuarei preocupado.

— Com quê? Que quer dizer?

— O melhor que pode acontecer é julgarem que somos parvos.

— Quem poderá julgar isso?

— Não compreende, Arroway? — Uma veia do pescoço de Lunacharsky latejava. — Espanta-me que não o veja. A Terra é um… gueto. Sim, um gueto. Todos os seres humanos estão aqui encurralados. Ouvimos vagamente dizer que há lá fora grandes cidades, para além do gueto, com bulevares largos cheios de droshkys[12] e bonitas mulheres perfumadas e vestidas de peles. Mas as cidades estão muito, muito longe, e nós somos muito, muito pobres para alguma vez lá podermos ir, até mesmo os mais ricos dentre nós. Aliás, sabemos que eles não nos querem. Foi por isso que, para começar, nos deixaram nesta patética aldeola.

«E agora eis que chega um convite. Como o Xi disse. Delicado, elegante. Eles enviaram-nos um cartão impresso e um droshky vazio. Devemos enviar cinco aldeãos e o droshky levá-los-á a — quem sabe? — Varsóvia. Ou Moscovo. Talvez mesmo a Paris. Claro, alguns sentem-se tentados a ir. Haverá sempre gente que se sentirá lisonjeada com o convite, ou que julgará que se trata de uma maneira de fugir da nossa humilde aldeia.

«E que pensa que acontecerá quando lá chegarmos? Pensa que o grão-duque nos convidará para jantar? Que o presidente da Academia nos fará perguntas interessantes acerca da vida quotidiana na nossa imunda aldeia? Imagina que o metropolitano ortodoxo russo travará conosco um debate sobre religião comparativa?

«Não, Arroway. Nós olharemos embasbacados para a grande cidade e eles rir-se-ão de nós à socapa. Exibir-nos-ão aos curiosos. Quanto mais atrasados formos, melhor se sentirão, mais tranqüilos ficarão.

«Será um sistema rotativo. De cinco em cinco séculos cinco de nós teremos direito a passar um fim-de-semana em Vega. Tenham piedade dos provincianos e façam com que eles saibam quem são os seus superiores.»

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