CAPÍTULO XVII O sonho das formigas

A fala humana é como uma chaleira rachada na qual percutimos ritmos rudimentares, para ursos dançarem ao seu compasso, enquanto anelamos por fazer música que comova as estrelas.

GUSTAVE FLAUBERT. Madame Bovary (1857)

Teologia popular… é uma incoerência maciça derivada a ignorância… Os deuses existem porque a própria natureza imprimiu na mente dos homens uma concepção deles.

CÍCERO. De Natura Deorum, 16

Ellie estava a acondicionar apontamentos, fitas magnéticas e uma fronde de palmeira, para embarque para o Japão, quando recebeu a notícia de que a mãe tivera uma trombose. Imediatamente a seguir, um correio do projeto entregou-lhe uma carta. Era de John Staughton e não continha preliminares de cortesia:


«A tua mãe e eu falamos muitas vezes das tuas deficiências e das tuas fraquezas. Era sempre uma conversa difícil. Quando eu te defendia (e, embora possas não acreditar, isso acontecia com freqüência), ela dizia-me que eu era barro nas tuas mãos. Quando te criticava, dizia-me que me metesse na minha vida.

Mas quero que saibas que a tua falta de disposição para a visitares nestes últimos anos, desde essa história de Vega, foi uma fonte de sofrimento constante para ela. Costumava dizer às suas amigas daquela horrível casa de saúde para a qual teimou em ir que a visitarias em breve. Disse-lhes isso durante anos. «Em breve.» Planejou como exibiria a sua famosa filha, por que ordem te apresentaria àquele bando decrépito.

Provavelmente não gostarás de saber isto e eu digo-to com mágoa. Mas é para teu próprio bem. O teu comportamento foi mais doloroso para ela do que qualquer outra coisa que jamais lhe aconteceu, até mesmo que a morte do teu pai. Agora podes ser uma figurona importante, o teu holograma pode correr mundo, podes ser tu cá, tu lá com políticos, etc., mas como ser humano não aprendeste nada desde o liceu…»


Com os olhos cheios de lágrimas, começou a amarrotar a carta e o sobrescrito, mas sentiu no seu interior um bocado de papel rígido, um holograma parcial feito de uma antiga fotografia bidimensional por uma técnica de extrapolação de computador. Dava uma leve, mas agradável, sensação de poder ver à volta de arestas e cantos. Era uma fotografia que nunca vira antes. A mãe, mulher jovem e encantadora, sorria-lhe da fotografia, com um braço naturalmente passado pelo ombro do pai de Ellie, que parecia ter a barba por fazer. Pareciam ambos radiosamente felizes. Com um ímpeto de angústia, remorso e fúria contra Staughton e um pouco de autocompaixão, Ellie enfrentou a evidente realidade de que nunca mais voltaria a ver qualquer das pessoas daquela fotografia.


A mãe jazia imóvel na cama. A sua expressão era singularmente neutra, não registrava nem alegria nem mágoa, simplesmente… uma espécie de espera. O seu único movimento era um pestanejar ocasional. Não se percebia se ouvia ou compreendia o que Ellie dizia. Esta pensou em esquemas de comunicação. Não pôde evitá-lo, o pensamento surgiu-lhe sem que o solicitasse: um pestanejo para «sim» dois pestanejos para «não». Ou ligar um encefalógrafo com um tubo de raio catódico que a mãe pudesse ver e ensiná-la a modular as suas ondas beta. Mas aquela era a sua mãe, não Alpha Lyrae, e do que ela precisava era de ternura, não de algoritmos de decifração.

Pegou-lhe na mão e falou durante horas. Falou, falou, acerca da mãe, do pai, da sua infância. Recordou o tempo em que era uma garotinha a tentar os primeiros passos entre os lençóis acabados de lavar e se sentia erguida no ar, levantada para o céu. Falou de John Staughton. Pediu desculpa de muitas coisas. Chorou um pouco.

O cabelo da mãe estava despenteado e ela procurou uma escova e alindou-a um pouco. Observou o rosto enrugado e reconheceu o seu próprio rosto. Os olhos da mãe, afundados e úmidos, olhavam fixamente, apenas com um pestanejar ocasional para — parecia — muito longe.

— Sei de onde vim — disse-lhe Ellie docemente.

Quase imperceptivelmente, a mãe abanou a cabeça de um lado para o outro, como se lamentasse todos aqueles anos em que ela e a filha tinham estado afastadas. Ellie deu-lhe um apertozinho na mão e teve a impressão de sentir outro em resposta.

A vida da mãe não estava em perigo, disseram-lhe. Se se verificasse alguma modificação no seu estado, telefonariam imediatamente para o seu escritório em Wyoming. Dentro de poucos dias poderiam mandá-la do hospital de novo para o lar, onde, garantiram-lhe, havia os meios adequados para a tratar.

Staughton parecia acabrunhado, com uma intensidade de ternura pela mãe que ela nunca imaginara existisse nele. Telefonaria com freqüência, prometeu-lhe Ellie.


O austero átrio de mármore ostentava, talvez incongruentemente, uma estátua verdadeira — não uma holografia — de uma mulher nua, no estilo de um Praxíteles. Subiram num elevador Otis-Hitachi, onde a segunda língua era o inglês, e não o braille, e ela viu-se introduzida numa sala imensa onde se encontravam pessoas inclinadas para processadores de palavras. Batia-se no teclado uma palavra em niragana, o alfabeto fonético japonês de cinqüenta e uma letras, e no écran aparecia o ideograma chinês correspondente em kanji. Havia centenas de milhares desses ideogramas, ou caracteres, armazenados nas memórias dos computadores, embora apenas três mil ou quatro mil fossem geralmente necessários para ler um jornal. Em virtude de muitos caracteres de significados completamente diferentes serem exprimidos pela mesma palavra falada, todas as traduções possíveis em kanji eram impressas, por ordem de probabilidade. O processador de palavras tinha uma sub-rotina contextual em que os caracteres candidatos também eram colocados em bicha, digamos, de acordo com o cálculo do computador do significado pretendido. Raramente se enganava. Numa linguagem para a qual, até recentemente, nunca houvera uma máquina de escrever, o processador de palavras estava a fazer uma revolução nas comunicações — uma revolução que não era inteiramente admirada pelos tradicionalistas.

Na sala de conferências sentaram-se em cadeiras baixas — uma concessão evidente aos gostos ocidentais — à volta de uma mesa lacada baixa, e foi servido chá. No campo visual de Ellie, para lá da janela, ficava a cidade de Tóquio. Andava a passar muito tempo diante de janelas, pensou. O jornal era o Asashi Shimbun — Noticias do Sol Nascente —, e foi com interesse que ela verificou que um dos repórteres políticos era uma mulher, uma raridade pelos padrões dos media americanos e soviéticos. O Japão estava empenhado numa reavaliação nacional do papel das mulheres. Os privilégios tradicionais masculinos estavam a capitular lentamente, no que parecia um combate rua a rua, do qual não havia comunicados. Ainda na véspera, o presidente de uma firma chamada Nanoelectronics se lhe lamentara de que não havia na cidade de Tóquio uma rapariga que ainda soubesse colocar um obi[18]. Como acontecera com os laços já feitos e prontos a usar, um simulacro facilmente ajustável tinha conquistado o mercado. As mulheres japonesas tinham coisas melhores que fazer do que passar todos os dias meia hora a envolver-se num obi e a pregueá-lo. A repórter vestia um austero saia-casaco de trabalho, com a bainha da saia a chegar-lhe às barrigas das pernas.

A fim de garantir a segurança, não eram autorizadas visitas de profissionais da imprensa no estaleiro da Máquina, em Hokkaido. Em vez disso, quando membros da tripulação ou funcionários ligados ao projeto iam à ilha principal de Honshu, agendavam, por rotina, uma série de entrevistas com media noticiosos japoneses e estrangeiros. Como sempre, as perguntas eram unilineares. Os repórteres de todo o mundo abordavam o assunto da Máquina quase da mesma maneira, dando, evidentemente, algum desconto às idiossincrasias locais. Estava satisfeita com o fato de, após as «decepções» americana e soviética, estar a ser construída uma Máquina no Japão? Sentia-se isolada na ilha setentrional de Hokkaido? Preocupava-a o fato de os componentes da Máquina que estavam a ser utilizados em Hokkaido terem sido testados para além das estritas recomendações da Máquina?

Antes de 1945, aquele bairro da cidade pertencera à Armada Imperial e, na realidade, imediatamente adjacente, ela via o telhado do Observatório Naval, cujas duas cúpulas prateadas abrigavam telescópios ainda utilizados para funções de acerto horário e calendariais. Brilhavam ao sol do meio-dia.

Por que motivo faziam parte da Máquina um dodecaedro e as três cápsulas esféricas chamadas benzels? Sim, os repórteres compreendiam que ela não soubesse. Mas que pensava? Explicou que numa questão daquela natureza seria estouvado ter uma opinião na ausência de provas. Eles insistiram e ela defendeu as virtudes da tolerância pela ambigüidade. Se houvesse perigo genuíno, enviariam robots em lugar de pessoas, como um perito de inteligência artificial japonês recomendara? Ela levaria consigo alguns objetos pessoais? Alguns retratos de família? Microcomputadores? Uma faca do Exército suíço?

Ellie reparou em duas figuras que emergiam de um alçapão no telhado do observatório vizinho. Visores obscureciam-lhes o rosto. Vestiam os fatos de proteção acolchoados, cinzento-azulados, do Japão medieval. Brandindo varas de madeira mais altas do que eles, inclinaram-se um diante do outro, pararam durante o tempo de um batimento cardíaco e depois desferiram e apararam golpes durante meia hora. As respostas de Ellie aos repórteres tornaram-se um pouco formais; estava fascinada pelo espetáculo que se desenrolava diante dos seus olhos. Mais ninguém parecia, no entanto, reparar. As varas deviam ser pesadas, pois o combate cerimonial era lento, como se eles fossem guerreiros do fundo do oceano.

Conhecera o Dr. Lunacharsky e a Dra. Sukhavati muitos anos antes da recepção da Mensagem? E quanto ao Dr. Eda? E Mr. Xi? Que pensava deles, das suas realizações? Como se estavam os cinco a entender? Sinceramente, sentia-se maravilhada por fazer parte de um grupo tão seleto.

Quais eram as suas impressões quanto à qualidade dos componentes japoneses? Que podia dizer a respeito do encontro dos Cinco com o imperador Akihito? As suas conversas com dirigentes xintoístas e budistas faziam parte de um esforço geral do Projeto da Máquina para tomar conhecimento dos pontos de vista das figuras religiosas mundiais antes de a Máquina ser ativada, ou tratara-se apenas de um gesto de cortesia para com o Japão como país anfitrião? Pensava que o engenho podia ser um Cavalo de Tróia ou uma Máquina do Fim do Mundo? Nas suas respostas, Ellie tentou ser cortês, sucinta e não suscitar polêmicas. O funcionário de relações públicas do Projeto da Máquina que a acompanhara estava visivelmente satisfeito.

Bruscamente, a entrevista terminou. Desejavam-lhe, e aos seus colegas, o maior êxito, disse o chefe da redação. Tinham toda a esperança de voltar a entrevistá-la quando regressasse. Esperavam que depois visitasse freqüentemente o Japão.

Os seus anfitriões sorriam e inclinavam-se. Os guerreiros de fatos acolchoados tinham regressado ao interior do edifício pelo alçapão do telhado. Ellie viu os membros da sua segurança, de olhos atentos, do lado de fora da porta agora aberta da sala de conferências.

Enquanto saíam, interrogou a repórter a respeito das aparições do Japão medieval.

— Ah, sim! — respondeu a mulher. — São astrônomos da Guarda Costeira. Praticam kendo na hora do almoço, todos os dias. Podemos acertar o relógio por eles.


Xi nascera na Longa Marcha e, quando jovem, lutara contra o Kuomitang, durante a Revolução. Servira como oficial dos serviços de informação na Coréia e eventualmente ascendera a uma posição de autoridade na tecnologia estratégica chinesa. Mas na Revolução Cultural tinha sido publicamente humilhado e condenado a exílio interno, embora mais tarde tivesse sido reabilitado com todas as honras.

Um dos crimes de Xi aos olhos da Revolução Cultural fora o de admirar algumas das antigas virtudes confucianas, e especialmente uma passagem da Grande Sabedoria que durante séculos todos os chineses, mesmo aqueles com uma instrução rudimentar, tinham sabido de cor. Fora nessa passagem, dissera Sun Yat-sen, que se baseara o seu próprio movimento revolucionário nacionalista, no início do século XX:


Os antigos que desejaram ilustrar virtude preclara através do reino começavam por organizar bem as suas próprias propriedades. Desejando organizar bem as suas próprias propriedades, começavam por ordenar as suas famílias. Desejando ordenar as suas famílias, começavam por cultivar a sua pessoa. Desejando cultivar a sua pessoa, começavam por corrigir o coração. Desejando corrigir o coração, começavam por procurar ser sinceros nos seus pensamentos. Desejando ser sinceros nos seus pensamentos, começavam por alargar ao máximo o seu conhecimento. Tal alargamento do seu conhecimento residia na investigação das coisas.


Assim, acreditava Xi, a busca do conhecimento era de importância fulcral para o bem-estar da China. Mas os Guardas Vermelhos tinham pensado de outro modo.

Durante a Revolução Cultural, Xi fora colocado como trabalhador numa empobrecida herdade coletiva na província de Ningxia, perto da Grande Muralha, região com uma rica tradição muçulmana, onde, enquanto lavrava um campo pouco prometedor, encontrou um capacete de bronze, complicadamente ornamentado, da dinastia de Han. Quando reintegrado na liderança, desviara a sua atenção das armas estratégicas para a arqueologia. A Revolução Cultural tentara cortar uma tradição cultural chinesa contínua de cinco mil anos. A réplica de Xi foi ajudar a construir pontes para o passado da nação. Dedicou cada vez mais a sua atenção à escavação da cidade funerária subterrânea de Xian.

Tinha sido lá que se fizera a grande descoberta do exército de terracota do imperador ao qual a própria China devia o nome. O seu nome oficial era Qin Shi Huangdi, mas, através dos caprichos da transliteração, acabara por se tornar largamente conhecido no Ocidente por Chin. No século III a.C., Qin unificou o país, construiu a Grande Muralha e, compassivamente, decretou que, aquando da sua morte, modelos de terracota em tamanho natural substituíssem os membros da sua corte — soldados, criados e nobres — que, de acordo com a tradição anterior, teriam de ser sepultados vivos com o seu corpo. O exército de terracota era composto por sete mil e quinhentos soldados, aproximadamente uma divisão. Cada um deles tinha feições faciais distintas. Via-se que estavam representadas pessoas de toda a China. O imperador unificara numa nação muitas províncias separadas e guerreando-se. Uma sepultura próxima continha o corpo quase perfeitamente preservado da marquesa de Tai, uma funcionária de categoria inferior da corte do imperador. A tecnologia da conservação dos corpos — via-se claramente a expressão severa do rosto da marquesa, porventura refinada por décadas passadas a admoestar os criados — era imensamente superior à do antigo Egito.

Qin simplificara a escrita, codificara as leis, construíra estradas, completara a Grande Muralha e unificara o país. Também confiscara armas. Embora fosse acusado de chacinar eruditos que criticavam a sua política e de queimar livros porque algum do conhecimento era desestabilizador, ele assegurava que eliminara a corrupção endêmica e instituíra a paz e a ordem. Xi recordou a Revolução Cultural. Imaginou conciliar essas tendências em conflito no coração de uma única pessoa. A arrogância de Qin atingira proporções espantosas — para castigar uma montanha que o ofendera, mandara despi-la de vegetação e pintá-la de vermelho, a cor usada por criminosos condenados. Qin era grande, mas também era louco. Poderia alguém unificar um conjunto de nações diversas e litigiosas sem ser um pouco louco? Era preciso ser mesmo maluco para o tentar, sequer, dissera Xi, risonho, a Ellie.

Com uma fascinação crescente, Xi organizou escavações maciças em Xian. Pouco a pouco convenceu-se de que o próprio Qin ali jazia igualmente à espera, perfeitamente conservado, nalgum grande túmulo próximo do exército de terracota exumado. Nas proximidades, segundo antigos registros, estava também enterrada, debaixo de um grande monte, uma maqueta pormenorizada da nação chinesa no ano de 210 a.C., com todos os templos e pagodes meticulosamente representados. Os rios, dizia-se, eram feitos de mercúrio, com a barca miniatural do imperador a navegar perpetuamente no seu domínio subterrâneo. Quando se descobriu que o solo de Xian estava contaminado de mercúrio, a excitação de Xi aumentou.

Xi desenterrara um relato contemporâneo que descrevia uma grande cúpula que o imperador encomendara para cobrir aquele reino em miniatura, chamado como o verdadeiro Reino Celeste. Como o chinês escrito praticamente não mudara em dois mil e duzentos anos, ele conseguira ler pessoalmente o relato, sem a intervenção de um perito em lingüística. Um cronista do tempo de Qin falara diretamente a Xi. Eram muitas as noites em que este adormecia a tentar visionar a grande Via Láctea que dividia a abóbada do céu no túmulo coberto por uma cúpula do grande imperador, e a noite incendiada de cometas que tinham aparecido aquando do seu passamento, para honrar a sua memória.

A procura do túmulo de Qin e da sua maquete do universo tinha ocupado Xi na última década. Ainda não os encontrara, mas a sua busca prendera a imaginação da China. Dizia-se a seu respeito: «Há mil milhões de pessoas na China, mas há só um Xi.» Numa nação que ia afrouxando lentamente as repressões impostas ao individualismo, considerava-se que ele exercia uma influência construtiva.

Qin, era evidente, vivera obcecado pela imortalidade. O homem que dera o seu nome à nação mais populosa da Terra, o homem que construíra a que fora então a maior estrutura do planeta, receava, podia-se vaticinar com segurança, vir a ser esquecido. Por isso, mandou erigir mais estruturas monumentais; preservou, ou reproduziu para os séculos vindouros, os corpos e os rostos dos seus cortesãos; construiu o seu próprio e ainda esquivo túmulo e a maqueta do mundo, e enviou repetidas expedições ao mar Oriental em busca do elixir da vida. Queixava-se amargamente da despesa quando dava início a cada nova viagem. Numa dessas missões participaram dezenas de juncos capazes de navegar no oceano e uma tripulação de três mil jovens, homens e mulheres. Nunca voltaram e o seu destino é desconhecido. A água da imortalidade era inalcançável.

Exatamente cinqüenta anos depois, a cultura aquática do arroz e a metalurgia do ferro apareceram subitamente no Japão, progressos que modificaram profundamente a economia japonesa e criaram uma classe de aristocratas guerreiros. Xi alegava que o nome nipônico escolhido para o Japão refletia claramente a origem chinesa da cultura japonesa: a Terra do Sol Nascente. Onde teria de se estar, perguntava Xi, para o Sol nascer sobre o Japão? Conseqüentemente, o próprio nome do jornal diário que Ellie acabava de visitar era, sugeria Xi, um lembrete da vida e do tempo do imperador Qin. Ellie pensou que, por contraste, Qin transformava Alexandre o Grande num fanfarrão de pátio de recreio escolar. Bem, quase.

Se Qin vivera obcecado pela imortalidade, Xi vivia obcecado por Qin. Ellie falou-lhe da sua visita a Sol Hadden em órbita terrestre e concordaram que, se o imperador Qin estivesse vivo nos últimos anos do século XX, seria em órbita terrestre que se encontraria. Ela apresentou Xi a Hadden por videofone e depois deixou-os falar a sós. O excelente inglês de Xi fora apurado durante a sua recente participação na transferência da colônia da coroa britânica de Hong-Kong para a República Popular da China. Ainda estavam a falar quando Methuselah se pôs, e tiveram de continuar através da rede de satélites de comunicações em órbita geossíncrona. Deviam ter-se entendido bem. Pouco depois, Hadden pediu que a ativação da Máquina fosse sincronizada de modo que ele estivesse por cima nesse momento. Queria Hokkaido na mira do seu telescópio, disse, quando a ocasião chegasse.


— Os budistas acreditam ou não em Deus? — perguntou Ellie quando iam a caminho para jantar com o abade.

— A posição deles parece ser — respondeu Valerian secamente — que o seu Deus é tão grande que nem sequer precisa de existir.

Enquanto atravessavam velozmente a região, falaram a respeito de Utsumi, o abade do mosteiro budista zen mais famoso do Japão. Alguns anos atrás, em cerimônias comemorativas do 50º aniversário da destruição de Hiroxima, Utsumi proferira um discurso que atraíra as atenções mundiais. Estava bem relacionado na vida política japonesa e agia como uma espécie de conselheiro espiritual do partido político dirigente, embora passasse a maior parte do seu tempo em atividades monásticas e religiosas.

— O pai dele também foi abade de um mosteiro budista — lembrou Sukhavati.

Ellie arqueou as sobrancelhas.

— Não fique tão surpreendida. O casamento era-lhes permitido, como ao clero ortodoxo russo. Não é verdade, Vaygay?

— Isso foi antes do meu tempo — respondeu ele, um pouco distraído.

O restaurante erguia-se num bosque de bambus e chamava-se Ungetsu: a Lua Enevoada — e, efetivamente, a Lua estava enevoada no céu do princípio da noite. Os seus anfitriões japoneses tinham tratado o necessário para que não houvesse outros comensais. Ellie e os companheiros descalçaram os sapatos e, em palmilhas de meias, entraram numa pequena sala de jantar de onde se desfrutava uma paisagem de troncos de bambu.

O abade tinha a cabeça rapada e envergava uma vestimenta preta e prateada. Saudou-os num inglês coloquial perfeito, e o seu chinês, segundo Xi disse mais tarde a Ellie, também era aceitável. O ambiente era repousante, a conversa descontraída. Cada prato constituía uma pequena obra de arte, uma jóia comestível. Ela compreendeu de que maneira a nouvelle cuisine tinha as suas origens na tradição culinária japonesa. Se, em vez disso, as iguarias fossem trazidas apenas para serem admiradas e nunca para serem comidas, teria ficado igualmente satisfeita. Ver e comer, simultaneamente, era um antegosto do Paraíso.

Ellie estava sentada defronte do abade e ao lado de Lunacharsky. Outros fizeram perguntas acerca da espécie — ou, pelo menos, do reino — deste ou daquele acepipe. Entre o sushi e as nozes de gingkon, a conversa desviou-se, por assim dizer, para a missão.

— Mas por que comunicamos? — perguntou o abade.

— Para trocar informação — respondeu Lunacharsky, aparentemente a prestar toda a atenção aos seus recalcitrantes pauzinhos.

— Mas por que desejamos trocar informação?

— Porque nos alimentamos de informação. A informação é necessária à nossa sobrevivência. Sem informação morremos.

Lunacharsky estava atento a uma noz de gingkon que escorregava dos pauzinhos todas as vezes que tentava levá-la à boca. Baixou a cabeça para se encontrar com os pauzinhos a meio caminho.

— Acredito — continuou o abade — que comunicamos levados pelo amor ou pela compaixão. — Pegou com os dedos numa das suas nozes de gingkon e meteu-a naturalmente na boca.

— Pensa então — perguntou Ellie — que a Máquina é um instrumento de compaixão? Pensa que não existe risco nenhum?

— Posso comunicar com uma flor — prosseguiu ele, como se lhe respondesse. — Posso falar com uma pedra. Não teríeis dificuldade nenhuma em compreender os seres — é esta a palavra apropriada? — de qualquer outro mundo.

— Sou perfeitamente capaz de acreditar que a pedra comunique consigo — redargüiu Lunacharsky, a mastigar a noz, depois de seguir o exemplo do abade. — Mas admira-me que possa comunicar com a pedra. Como nos convenceria de que é capaz de comunicar com uma pedra? O mundo está cheio de erro. Como podemos saber que não está a enganar-se a si mesmo?

— Ah; ceticismo científico! — O rosto do abade iluminou-se num sorriso que Ellie achou absolutamente cativante; era inocente, quase infantil. — Para comunicar com uma pedra tem de se tornar muito menos… preocupado. Não deve pensar tanto, falar tanto. Quando digo que comunico com uma pedra, não estou a falar de palavras. Os cristãos dizem: «Ao princípio era o Verbo.» Mas eu estou a falar de uma comunicação muito mais anterior, muito mais fundamental do que essa.

— É só o Evangelho de S. João que fala do Verbo — observou Ellie… com certo pedantismo, pensou, assim que as palavras lhe saíram da boca. — Os evangelhos sinópticos anteriores não dizem nada a esse respeito. Trata-se, na realidade, de um acréscimo oriundo da filosofia grega. A que gênero de comunicação pré-verbal se refere?

— A sua pergunta é feita de palavras. Pede-me que utilize palavras para descrever o que não tem nada a ver com palavras. Deixe-me ver… Há uma estória japonesa chamada O Sonho das Formigas. Passa-se no Reino das Formigas. É uma estória comprida e não lha vou contar agora. Mas o que pretende dizer é o seguinte: para compreender a linguagem das formigas, uma pessoa tem de se tornar numa formiga.

— Linguagem das formigas é, na realidade, uma linguagem química — disse Lunacharsky, a olhar vivamente para o abade. — Elas depositam vestígios moleculares específicos para indicar o caminho que tomaram para encontrar comida. Para compreender a linguagem das formigas preciso de um cromatógrafo de gases ou de um espectômetro de massa. Não preciso de me tornar uma formiga.

— Talvez essa seja a única maneira que conheceis de vos tornardes uma formiga — comentou o abade, sem olhar para ninguém em particular. — Dizei-me, porque estudais os sinais deixados pelas formigas?

— Bem — respondeu Ellie —, creio que um entomólogo diria que é para compreender as formigas e a sociedade das formigas. Os cientistas sentem prazer em compreender.

— Essa é apenas outra maneira de dizer que eles amam as formigas.

Ellie reprimiu um pequeno calafrio.

— Sim, mas os que financiam os entomólogos dizem uma coisa diferente. Dizem que é para controlar o comportamento das formigas, para as fazer sair de uma casa que infestaram, por exemplo, ou para compreender a biologia do solo para a agricultura. Poderia fornecer uma alternativa aos pesticidas. Suponho que se pode dizer que há nisso algum amor pelas formigas — conjeturou Ellie.

— Mas é também no nosso interesse próprio — interveio Lunacharsky. — Os pesticidas são igualmente venenosos para nós.

— Por que estão a falar de pesticidas no meio de um jantar como este? — disparou Sukhavati, do outro lado da mesa.

— Sonharemos o sonho das formigas noutra ocasião — disse o abade docemente a Ellie, e repetiu aquele sorriso perfeito, imperturbado.

Calçados de novo com a ajuda de calçadeiras com um metro de comprimento, dirigiram-se para a sua pequena frota de automóveis, enquanto as criadas que tinham servido o jantar e a proprietária sorriam e se inclinavam cerimoniosamente. Ellie e Xi observaram o abade a entrar para uma limusine com alguns dos seus anfitriões japoneses.

— Perguntei-lhe se, visto poder falar com uma pedra, podia comunicar com os mortos — disse Xi.

— E que respondeu ele?

— Disse que com os mortos era fácil. As suas dificuldades eram com os vivos.

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