CAPÍTULO XV Cubo de érbio

A Terra, isso basta,

Não quero as constelações mais perto,

Sei que estão muito bem onde estão,

Sei que bastam àqueles que lhes pertencem

WALT WHITMAN. Leaves of Grass. Song of the Open Road. (1855)

Levou anos, foi um sonho tecnológico e um pesadelo diplomático, mas, por fim, decidiram construir a Máquina. Foram propostos vários neologismos e nomes de projeto evocativos de mitos antigos. Mas desde o princípio que toda a gente lhe chamara simplesmente a Máquina, e essa tornou-se a sua designação oficial. As continuadas, complexas e delicadas negociações internacionais eram descritas por editorialistas ocidentais como «Política da Máquina». Quando se conseguiu fazer o primeiro cálculo fundamentado do custo total, até os titãs da indústria aeroespacial perderam o fôlego. Eventualmente, ascendeu a meio bilhão de dólares por ano durante alguns anos, aproximadamente um terço do orçamento militar total — nuclear e convencional — do planeta.

Havia receio de que a construção da Máquina arruinasse a economia mundial. «Guerra econômica desencadeada por Vega?» perguntava o Economist, de Londres. As parangonas diárias de The New York Times eram, de qualquer ponto de vista desapaixonado, mais singulares e estranhas do que quaisquer outras do agora defunto National Enquirer, uma década atrás.

Os registros mostrarão que nenhum médium, vidente, profeta ou adivinho, nenhuma pessoa que se proclamasse possuidora de aptidões pré-cognitivas, nenhum astrólogo, nenhum numerólogo e nenhum copywriter de fins de Dezembro sobre «O Ano Que Vem» predissera a Mensagem ou a Máquina — e muito menos Vega, números primos, Adolf Hitler, os Jogos Olímpicos e todo o resto. Houve, no entanto, muitos que afirmaram ter previsto claramente os acontecimentos, mas, descuidadamente, terem negligenciado escrever a pré-cognição. Predições de acontecimentos surpreendentes revelam-se sempre mais exatas quando não são registradas de antemão no papel. É uma daquelas singulares regularidades da vida quotidiana. Muitas religiões encontravam-se numa categoria ligeiramente diferente: uma leitura atenta, cuidadosa e imaginativa dos seus escritos sagrados revelaria, argumentavam, uma previsão clara daqueles extraordinários acontecimentos.

Para outros, a Máquina representava uma sorte grande potencial para a indústria aeroespacial do mundo, que se encontrava em preocupante declínio desde que os Acordos de Hiroxima tinham entrado plenamente em vigor. Eram muito poucos os sistemas de armas estratégicas que estavam em desenvolvimento. Os habitats no espaço constituíam um negócio crescente, mas mal compensavam a perda das estações orbitais de combate laser e outros componentes da defesa estratégica encarada por uma administração anterior. Assim, alguns dos que se preocupavam com a segurança do planeta, se a Máquina fosse construída, tiveram de engolir os escrúpulos perante as implicações de mais postos de trabalho, lucros e promoções de carreiras.

Algumas fontes bem colocadas argumentavam não haver perspectiva mais rica para as indústrias de alta tecnologia do que uma ameaça do espaço. Teria de haver defesas, radares e vigilância imensamente potentes, eventuais postos avançados em Plutão ou na Nuvem do Cometa Oort. Não havia argumentação acerca das disparidades militares entre terrestres e extraterrestres capaz de intimidar tais visionários. «Mesmo que não consigamos defender-nos contra eles», perguntavam, «não querem que os vejamos vir?» Havia lucro nisso; e eles farejavam-no. Estavam a construir a Máquina, evidentemente, uma construção que atingia valores da ordem dos bilhões de dólares; mas a Máquina seria apenas o princípio se eles jogassem bem as suas cartas.

Uma inverossímil aliança política aglutinou-se por trás da reeleição da presidente Lasker, que se transformou, na realidade, num referendo nacional quanto a construir ou não a Máquina. O seu opositor advertiu quanto a Cavalos de Tróia, a Máquinas do Fim do Mundo e à perspectiva de desmoralização do engenho americano perante os alienígenas que já tinham «inventado tudo». A presidente declarou-se confiante em que a tecnologia americana estaria à altura do desafio e deu a entender, embora o não dissesse de fato, que o engenho americano viria eventualmente a igualar tudo quanto eles tinham em Vega. Foi reeleita por uma margem respeitável, mas de modo nenhum avassaladora.

As próprias instruções foram um fato decisivo. Tanto no manual sobre linguagem e tecnologia básica, como na Mensagem sobre a construção da Máquina, nada era confuso ou pouco claro. Algumas vezes, passos intermédios que pareciam absolutamente óbvios eram descritos com uma minúcia enfadonha — como quando, nas bases da aritmética, se prova que, se duas vezes três é igual a seis, então três vezes dois também é igual a seis. Em todos os estádios da construção havia espaços de conferência: o érbio produzido por este processo deve ser noventa e seis por cento puro, não conter mais do que uma fração da percentagem de impureza das outras terras raras. Quando o componente trinta e um estiver concluído e for colocado numa solução molar seis de ácido hidrofluorídrico, os elementos estruturais remanescentes deverão parecer-se com o diagrama da figura seguinte. Quando o componente quatrocentos e oito for montado, a aplicação de um campo magnético transversal de dois megagauss deverá fazer girar o rotor até tantas revoluções por segundo antes de ele voltar a um estado de imobilidade. Se algum dos testes falhava, voltava-se atrás e refazia-se tudo do princípio.

Passado algum tempo, as pessoas habituaram-se aos testes e esperaram ser capazes de os passar. Era uma coisa parecida com a memorização por repetição, com aprender de cor. Muitos dos componentes subjacentes, construídos por fábricas especiais concebidas a partir do nada e obedecendo às instruções do manual, desafiavam a compreensão humana. Era difícil perceber por que haveriam de funcionar. Mas funcionavam. Mesmo em tais casos, podiam encarar-se aplicações práticas das novas tecnologias. Ocasionalmente, pareciam surgir percepções promissoras para a refinação na metalurgia, por exemplo, ou em semicondutores orgânicos. Nalguns casos eram fornecidas várias tecnologias alternativas para produzir um componente equivalente; aparentemente, os extraterrestres não tinham a certeza de qual das abordagens seria mais fácil para a tecnologia da Terra.

À medida que as primeiras fábricas foram sendo construídas e os primeiros protótipos produzidos, diminuiu o pessimismo quanto à capacidade humana para reconstruir uma tecnologia estranha a partir de uma Mensagem escrita numa linguagem desconhecida. Havia a sensação inebriante de chegar mal preparado para um exame e descobrir que se era capaz de deduzir as respostas a partir dos conhecimentos gerais e do bom senso que se possuíam. Como em todos os exames competentemente elaborados, fazê-lo era uma experiência instrutiva. Passaram-se todos os primeiros testes: o érbio tinha a pureza adequada; depois de o ácido hidrofluorídrico ter dissolvido o material inorgânico, ficou a superestrutura desenhada; o rotor girou como tinha sido indicado que deveria girar. A Mensagem lisonjeava os cientistas e os engenheiros, diziam os críticos; eles estavam a deixar-se apanhar pela tecnologia e a perder de vista os perigos.

Para a construção de um componente especificava-se um conjunto particularmente complicado de reações químico-orgânicas, cujo produto foi introduzido numa mistura, com as dimensões de uma piscina, de formaldeído e amônia aquosa. A massa cresceu, diferenciou-se, especializou-se e depois ficou simplesmente ali — exoticamente mais complexa do que qualquer coisa semelhante que os humanos sabiam construir. Tinha uma rede intrincadamente ramificada de finos tubos ocos, através dos quais talvez viesse a circular algum fluido. Era coloidal, polposa e vermelho-escura. Não fazia cópias de si mesma, mas era suficientemente biológica para assustar muita gente. Repetiram o processo e obtiveram algo aparentemente idêntico. Como era possível o produto final ser significativamente mais complicado do que as instruções para a sua construção, constituía um mistério. A massa orgânica esparramava-se na sua plataforma e, tanto quanto parecia, não fazia nada. Destinava-se a ir no interior do dodecaedro, logo acima e abaixo da área destinada à tripulação.

Nos Estados Unidos e na União Soviética estavam a ser construídas Máquinas idênticas. Ambas as nações tinham resolvido construir em lugares relativamente longínquos, não tanto para proteger os centros populacionais no caso de se tratar de uma Máquina do Fim do Mundo, como para controlar o acesso dos maníacos das curiosidades, dos contestatários e dos media. Nos Estados Unidos, a Máquina foi construída no Wyoming; na União Soviética, logo para lá do Cáucaso, na RSS do Uzbequistão. Instalaram-se fábricas novas perto dos lugares de montagem. Onde os componentes podiam ser fabricados com algo parecido com a indústria existente, o fabrico estava largamente distribuído. Um subempreiteiro de Jena, por exemplo, fazia e testava componentes destinados às Máquinas americana e soviética — e para irem para o Japão, onde cada componente era sistematicamente examinado para, na medida do possível, se compreender como funcionava. O progresso, a partir de Hokkaido, tinha sido lento.

Havia o receio de que um componente sujeito a um teste não autorizado na Mensagem pudesse destruir alguma sutil simbiose dos vários componentes de uma Máquina a funcionar. Uma importante subestrutura da Máquina eram três cápsulas esféricas concêntricas exteriores dispostas com os eixos perpendiculares uns aos outros e concebidas para girar a elevadas velocidades. As cúpulas esféricas deveriam ter talhados nelas padrões complexos e precisos. Uma cápsula que tinha sido girada algumas vezes num teste não autorizado funcionaria inadequadamente quando montada na Máquina? Em contrapartida uma cápsula não experimentada funcionaria perfeitamente.

As Hadden Industries eram o principal empreiteiro americano encarregado da construção da Máquina. Sol Hadden insistira em que se não efetuassem nenhuns testes não autorizados, nem sequer montagem de componentes destinados a eventual montagem na Máquina. As instruções, ordenou, teriam de ser seguidas ao bit, visto não haver letras, per se, na Mensagem. Instigou os seus empregados a pensarem em si mesmos como necromantes medievais a repetirem meticulosamente as palavras de um encantamento mágico. Não ousem pronunciar mal uma sílaba, recomendou-lhes.

Isto acontecia, consoante a doutrina calendarial ou escatológica que cada um preferisse, dois anos antes do Milênio. Estava tanta gente a «reformar-se», numa feliz antecipação do Juízo Final ou do Advento, ou de ambos, que nalgumas indústrias havia escassez de trabalhadores especializados. A disposição de Hadden para reestruturar a sua força laboral no sentido de otimizar a construção da Máquina, e para fornecer incentivos aos subempreiteiros, era vista como um fator importante do êxito americano até ali.

Mas Hadden também se tinha «reformado» — o que era uma surpresa, considerando as muito conhecidas opiniões do inventor do Preachnix. «Os quiliastas fizeram de mim um ateu», dizia-se que ele afirmava. As decisões-chave ainda estavam nas suas mãos, diziam os seus subordinados. Mas a comunicação com Hadden fazia-se via telerrede assíncrona rápida. Os seus subordinados deixavam-lhe relatórios dos progressos feitos, pedidos de autorização e perguntas numa caixa fechada à chave de um conhecido serviço de telerrede científica. As suas respostas vinham noutra caixa fechada à chave. Era um procedimento peculiar, mas parecia estar a dar resultado. À medida que os passos iniciais e mais difíceis eram dados e a Máquina começava realmente a tomar forma, cada vez se ouvia falar menos de S. R. Hadden. Os executivos do Consórcio Mundial da Máquina estavam preocupados, mas, após o que foi descrito como um prolongado encontro com Mr. Hadden num lugar não revelado, voltaram tranqüilizados. Mais ninguém conhecia o seu paradeiro.

Os estoques estratégicos mundiais desceram abaixo de três mil e duzentas armas nucleares pela primeira vez desde meados da década de 1950. As conversações multilaterais sobre as fases mais difíceis do desarmamento, a redução a um dissuasor nuclear mínimo, estavam a fazer progressos. Quanto menos fossem as armas de um lado, tanto mais perigosa seria a ocultação de um pequeno número de armas pelo outro. E com o número de sistemas de lançamento — que eram muito mais fáceis de controlar — também á diminuir rapidamente, com novos meios de monitorização automática do respeito pelos tratados a serem instalados e com novos acordos sobre inspeção in loco, as perspectivas de futuras reduções pareciam boas. O processo gerara uma espécie de momentum próprio na mente tanto dos peritos como do público. Como acontece no tipo de corrida armamentista habitual, as duas potências competiam para se manter a par uma da outra, mas, desta vez, nas reduções de armas. Em termos militares práticos, ainda não tinham prescindido de muito; mantinham a capacidade de «destruir a civilização planetária». No entanto, no otimismo gerado quanto ao futuro, na esperança engendrada na geração emergente, esse começo já realizara muito. Talvez com o auxílio das iminentes celebrações mundiais do Milênio, tanto seculares como canônicas, o número anual de hostilidades armadas entre nações diminuíra ainda mais. O cardeal-arcebispo da Cidade do México chamara-lhe «A Paz de Deus».

No Wyoming e no Uzbequistão tinham sido criadas novas indústrias e erguiam-se no solo cidades novas inteiras. O preço era suportado desproporcionalmente pelas nações industriais, claro, mas o preço pro rata para toda a gente da Terra era qualquer coisa como cem dólares por ano. Para um quarto da população terrestre, cem dólares era uma fração significativa do rendimento anual. O dinheiro gasto com a Máquina não produzia diretamente bens ou serviços. Mas era considerado um bom negócio no aspecto da estimulação de nova tecnologia, mesmo que a própria Máquina nunca funcionasse.

Havia muito quem achasse que o ritmo fora demasiado rápido, que cada passo deveria ser compreendido antes de se avançar para o seguinte. Se, assim, a construção da Máquina levasse gerações, argumentava-se, que importância teria isso? Distribuir os custos de desenvolvimento ao longo de décadas diminuiria o peso que a construção da Máquina representasse para a economia mundial. De muitos pontos de vista, isto constituía um conselho prudente, mas difícil de pôr em prática. Como se podia desenvolver apenas um componente da Máquina? Por todo o mundo, cientistas e engenheiros de diversas convicções disciplinares pressionavam para serem deixados livres naqueles aspectos da Máquina que se sobrepunham às suas áreas de especialidade.

Alguns receavam que, se a Máquina não fosse construída rapidamente, nunca o seria. A presidente americana e o premier soviético tinham comprometido as suas nações na construção da Máquina. Isto não estava garantido no caso de todos os possíveis sucessores. Além disso, por razões pessoais perfeitamente compreensíveis, os que controlavam o projeto desejavam vê-lo concluído enquanto ainda ocupavam cargos de responsabilidade. Havia quem argumentasse que existia uma freqüência intrínseca numa mensagem transmitida em tantas freqüências. Tão nitidamente e durante tanto tempo. Não nos estavam a pedir que construíssemos a Máquina quando estivéssemos preparados para isso. Pediam-nos que a construíssemos já. O ritmo acelerava-se.

Todos os subsistemas iniciais se baseavam em tecnologias elementares descritas na primeira parte do manual. Os testes determinados tinham sido feitos e passados sem grandes dificuldades. À medida, porém, que os subsistemas posteriores mais complexos foram sendo testados, notaram-se falhas ocasionais. Isto era aparente em ambas as nações, mas mais freqüente na União Soviética. Visto ninguém saber como os componentes funcionavam, geralmente era impossível recuar da falha detectada para a identificação do passo mal dado no processo de fabrico. Nalguns casos, os componentes eram feitos em paralelo por dois fabricantes diferentes, com competição nos capítulos de rapidez e precisão. Se havia dois componentes e ambos tinham passado nos testes, cada nação tinha tendência para escolher o produto doméstico. Assim, as Máquinas que estavam a ser montadas nos dois países não eram absolutamente idênticas.

Finalmente, em Wyoming, chegou a altura de começar a integração de sistemas, a junção dos componentes separados numa Máquina completa. Parecia provável que fosse a parte mais fácil do processo de construção. Parecia igualmente provável que tudo ficasse concluído em um ano ou dois. Alguns pensavam que a ativação da Máquina acabaria com o mundo mesmo na data certa.


Os coelhos eram muito mais astutos no Wyoming. Ou menos. Era difícil dizer. Os faróis do Thunderbird tinham iluminado um coelho perto da estrada mais de uma vez. Mas centenas deles dispunham-se em fileiras… Esse costume, aparentemente, ainda não se propagara do Novo México ao Wyoming. Ellie achava que a situação aqui não era muito diferente da de Argus. Havia uma importante instalação científica rodeada por dezenas de milhares de quilômetros quadrados de paisagem encantadora e quase desabitada. Ela não dirigia o espetáculo e não fazia parte da tripulação, mas estava ali, a trabalhar num dos maiores empreendimentos jamais imaginados. Sem dúvida, acontecesse o que acontecesse depois da Máquina ser ativada, a descoberta de Argus seria considerada um ponto de viragem da história humana.

Precisamente no momento em que se tornava necessária uma força unificadora suplementar qualquer, caíra aquele raio do céu. De vinte e seis anos-luz de distância, de duzentos e trinta bilhões de quilômetros. É difícil pensarmos na nossa lealdade principal como escoceses, ou eslovenos, ou szechwaneses quando estamos todos a ser indiscriminadamente saudados por uma civilização milênios à nossa frente. O fosso entre a nação tecnologicamente mais atrasada da Terra e as nações industrializadas era, com certeza, muito mais pequeno do que o fosso entre as nações industrializadas e os seres de Vega. Subitamente, distinções que antes tinham parecido tremendas — raciais, religiosas, nacionais, étnicas, lingüísticas, econômicas e culturais — começaram a parecer um pouco menos prementes.

«Somos todos humanos» — era uma frase que ultimamente se ouvia com freqüência. Era extraordinária a pouca freqüência com que, em décadas anteriores, tinham sido manifestados sentimentos desta natureza, especialmente nos media. Compartilhamos o mesmo pequeno planeta, dizia-se, e — muito aproximadamente — a mesma civilização global. Era difícil imaginar os extraterrestres tomando a sério a reivindicação de atendimento preferencial feita por representantes de uma ou outra facção ideológica. A existência da Mensagem — mesmo independentemente da sua função enigmática — estava a unir o mundo. Via-se isso acontecer diante dos olhos.

A primeira pergunta da mãe quando soube que Ellie não tinha sido escolhida foi: «Choraste?» Sim, chorara. Era natural. Havia, claro, uma parte dela que ansiava por embarcar. Mas Drumlin fora uma escolha de primeira categoria, dissera à mãe.

Os Soviéticos não tinham tomado nenhuma decisão entre Lunacharsky e Arkhangelsky; «treinar-se-iam» ambos para a missão. Era difícil entender qual poderia ser o treino adequado para além de compreenderem a Máquina o melhor que eles, ou quaisquer outros, pudessem. Alguns americanos alegavam, acusadores, tratar-se isso, apenas, de uma tentativa dos Soviéticos para terem dois porta-vozes principais na questão da Máquina, mas Ellie pensava que semelhante acusação era mesquinha. Tanto Lunacharsky como Arkhangelsky eram extremamente competentes. Perguntava a si mesma como decidiriam os Soviéticos qual deles enviar. Lunacharsky encontrava-se nos Estados Unidos, mas não ali, no Wyoming. Estava em Washington com uma delegação de alto nível soviética, numa reunião com o secretário de Estado e Michael Kitz, recentemente promovido a secretário-adjunto da Defesa. Arkhangelsky regressara ao Uzbequistão.

A nova metrópole que crescia no deserto de Wyoming chamava-se Máquina: Machine, Wyoming. A sua correlativa soviética recebera o nome russo equivalente: Makhina. Cada uma era constituída por um complexo de residências, serviços públicos, bairros comerciais e residenciais e — sobretudo — fábricas. Algumas eram despretensiosas, pelo menos exteriormente. Mas a outras bastava um simples olhar para detectar os seus aspectos singulares: cúpulas e minaretes, quilômetros de complicada tubagem exterior. Só as fábricas que eram consideradas potencialmente perigosas — as que fabricavam os componentes orgânicos, por exemplo — se encontravam ali, no deserto de Wyoming. As tecnologias melhor compreendidas estavam distribuídas por todo o mundo. O núcleo do conjunto de novas indústrias era a Instalação de Integração de Sistemas, construída perto do que em tempos fora Wagonwheel, Wyoming, para onde os componentes completados eram enviados. Às vezes, Ellie via chegar um componente e tinha consciência de que fora o primeiro ser humano a vê-lo como o desenho de um projeto. Sempre que alguma peça nova era desencaixotada, ia a correr inspecioná-la. Quando os componentes eram montados um após outro e os subsistemas passavam nos testes prescritos, sentia uma espécie de satisfação que julgava semelhante ao orgulho maternal.


Ellie, Drumlin e Valerian chegaram para uma reunião de rotina, havia muito marcada, sobre a, entretanto completamente redundante, monitorização do sinal de Vega. Quando chegaram, encontraram toda a gente a falar do incêndio de Babilônia. Ocorrera às primeiras horas da manhã, talvez numa ocasião em que o lugar era percorrido apenas pelos seus habitués mais iníquos e irregeneráveis. Um grupo de assalto, equipado com morteiros e bombas incendiárias, atacara simultaneamente através das portas de Enlil e Ishtar. Tinha sido lançado fogo ao zigurate. Havia uma fotografia de pessoas duvidosa e escassamente vestidas a fugir do Templo de Assur. Surpreendentemente, ninguém morrera, embora houvesse muitos feridos.

Pouco antes do ataque, o New York Sun, um jornal controlado pelos Earth-Firsters e ostentando um globo rachado por um raio a encabeçar a coluna dos nomes dos seus redatores e colaboradores, recebera um telefonema anunciando que o ataque ia ser efetuado. Tratava-se de castigo divinamente inspirado, informara quem telefonara, aplicado em nome da decência e da moralidade americanas por aqueles que estavam fartos e cansados de imundície e de corrupção. Houve declarações do presidente da Babylon, Inc., condenando o ataque e acusando uma alegada conspiração criminosa, mas — pelo menos até àquele momento nem uma palavra de S. R. Hadden, vinda de onde quer que ele estivesse.

Como se sabia que Ellie visitara Hadden em Babilônia, alguns membros do pessoal do projeto quiseram saber a sua reação. Até Drumlin se mostrou interessado na sua opinião a esse respeito, embora, a julgar pelo seu evidente conhecimento da geografia do lugar, parecesse possível que ele próprio o tivesse visitado mais de uma vez. Ellie não tinha dificuldade nenhuma em imaginá-lo como auriga. Mas talvez ele tivesse apenas lido a respeito da Babilônia. As revistas semanais tinham publicado fotomapas.

Eventualmente, abandonaram o assunto e voltaram ao que ali os levara. Fundamentalmente, a Mensagem prosseguia nas mesmas freqüências, passa-bandas, constantes temporais e modulações de fase e polarização; o desenho da Máquina e o manual de instruções continuavam sob os números primos e a transmissão dos Jogos Olímpicos. A civilização do sistema de Vega parecia muito empenhada. Ou talvez se tivessem apenas esquecido de desligar o emissor. Valerian tinha uma expressão distante nos olhos.

— Peter, porque tem de olhar para o teto quando pensa?

Dizia-se que Drumlin se tornara mais brando nos últimos anos, mas, como acontecia com aquela observação, a sua mudança nem sempre era aparente. Ser escolhido pela presidente dos Estados Unidos para representar a nação junto dos extraterrestres, costumava dizer, era uma grande honra. A viagem, confidenciava aos seus íntimos, seria o ponto culminante da sua vida. A mulher dele, temporariamente transplantada para Wyoming e ainda obstinadamente fiel, tinha de suportar as mesmas exibições de slides apresentadas a novas audiências de cientistas e técnicos que estavam a construir a Máquina. Como a localização ficava perto da sua Montana natal, de vez em quando ia lá em visitas breves. Numa ocasião, Ellie levara-o de carro a Missoula. Pela primeira vez desde que se conheciam, ele mostrara-se cordial com ela durante algumas horas consecutivas.

— Chiu! Estou a pensar — respondeu Valerian. — É uma técnica de supressão de ruído. Estou a tentar minimizar os motivos de distração no meu campo visual, e vem você e apresenta-me uma distração no espectro áudio! Poderia perguntar-me por que razão não fixo apenas um bocado de papel em branco. O problema é o fato de o papel ser demasiado pequeno. Consigo ver coisas na minha visão periférica. De qualquer modo, estava a pensar no seguinte: por que estamos ainda a receber a mensagem de Hitler, a transmissão dos Jogos Olímpicos? Passaram anos. Entretanto devem ter captado a transmissão da coroação britânica. Por que não vimos alguns primeiros planos de Orbe, Cetro e arminho e não ouvimos uma voz declamar e…agora coroado como Jorge VI, pela Graça de Deus, rei da Inglaterra e da Irlanda do Norte e imperador da Índia?

— Tem a certeza de que Vega estava sobre a Inglaterra aquando da transmissão da coroação? — perguntou Ellie.

— Tenho. Verificamos isso poucas semanas depois da recepção da transmissão dos Jogos Olímpicos. E a intensidade era mais forte do que a história do Hitler. Tenho a certeza de que Vega podia ter captado a transmissão da coroação.

— Receia que eles não queiram que saibamos tudo quanto sabem a nosso respeito? — sugeriu Ellie.

— Estão com pressa — respondeu Valerian, que ocasionalmente tinha propensão para elocuções délficas.

— O mais provável — opinou Ellie — é quererem continuar a recordar-nos que sabem o que respeita a Hitler.

— Isso não é inteiramente diferente do que eu estou a dizer — redargüiu Valerian.

— Está bem, não percamos mais tempo na Fantasilândia — resmungou Drumlin, que se impacientava sempre com especulações sobre a motivação dos extraterrestres. Conjecturar era um desperdício de tempo total, dizia; em breve saberíamos. Entretanto instigava todos a concentrarem-se na Mensagem: essa era constituída por dados concretos — redundantes, sem ambigüidades, brilhantemente compostos. — Olhem, um pouco de realidade talvez os concentre aos dois. Por que não vamos até à área de montagem? Creio que estão a fazer sistemas de integração com os tubos de érbio.

O desenho geométrico da Máquina era simples. Os pormenores eram extremamente complexos. As cinco cadeiras em que a tripulação se sentaria ficavam a meia-nau no dodecaedro, na parte onde formava um bojo exterior mais proeminente. Não existiam quaisquer instalações para comer, dormir ou outras funções corporais e havia um limite máximo, cuidadosamente prescrito, para o peso dos tripulantes e dos seus pertences. Na prática, essa restrição atuava com vantagem. para pessoas de pequena estatura. Alguns pensavam significar isso que, uma vez ativada, a Máquina se encontraria rapidamente com um veículo espacial interestelar nas imediações da Terra. O único senão era que meticulosas explorações ópticas e por radar não conseguiam detectar qualquer vestígio de tal nave. Custava a crer que os extraterrestres se tivessem esquecido das necessidades fisiológicas elementares humanas. Talvez a Máquina não fosse a lado nenhum. Talvez fizesse qualquer coisa à tripulação. Não havia instrumentos nenhuns na área tripulada, nada que servisse para conduzir, nem sequer uma chave de ignição — apenas as cinco cadeiras, voltadas para o interior, de modo que cada membro pudesse observar os outros.

Por cima e por baixo da área tripulada, na parte a afuselar do dodecaedro, ficavam os materiais orgânicos, com a sua arquitetura intrincada e intrigante. Dispostos através do interior desta parte do dodecaedro, aparentemente ao acaso, ficavam os tu os de ébrio. E rodeando o dodecaedro ficavam as três cápsulas esféricas concêntricas, cada qual representando de certo modo uma das três dimensões físicas. À primeira vista, as cápsulas ficavam magneticamente suspensas — pelo menos as instruções incluíam um potente gerador de campo magnético e o espaço entre as cápsulas esféricas e o dodecaedro seria um grande vácuo.

A Mensagem não especificava o nome de qualquer dos componentes da Máquina. O érbio era identificado como o átomo com sessenta e oito prótons e noventa e nove nêutrons. As diversas partes da Máquina também eram descritas numericamente — componente trinta e um, por exemplo. Assim, às cápsulas esféricas concêntricas rotativas foi dado o nome de benzels por um técnico checo que sabia alguma coisa da história da tecnologia: Gustav Benzel inventara, em 1870, o carrossel.

A concepção e a função da Máquina eram insondáveis; a construção da Máquina exigia todo um conjunto de novas tecnologias, mas ela era feita de matéria, a estrutura podia ser diagramada — na realidade, tinham aparecido em media de todo o mundo desenhos de cortes técnicos — e a sua forma acabada foi prontamente visualizada. Reinava um estado de espírito constante de otimismo tecnológico.

Drumlin, Valerian e Arroway submeteram-se à habitual seqüência de identificação, envolvendo credenciais, impressão do polegar e gravação da voz, e foram depois admitidos no vasto recinto de montagem. Guindastes de três andares colocavam tubos de érbio na matriz orgânica. Diversos painéis pentagonais para o exterior do dodecaedro pendiam de uma via férrea elevada. Enquanto os Soviéticos tinham tido alguns problemas, os subsistemas americanos tinham finalmente passado todos os testes e a arquitetura global da Máquina começava a emergir gradualmente. Está tudo a ficar nos seus lugares, pensou Ellie. Olhou para o lugar onde os benzels seriam montados. Quando completada, a Máquina pareceria, vista de fora, uma daquelas esferas armilares dos astrônomos da Renascença. Que teria Johannes Kepler pensado de tudo aquilo?

O chão e os caminhos circunferenciais dos vários pisos do edifício de montagem estavam cheios de técnicos, funcionários governamentais e representantes do Consórcio Mundial da Máquina. Enquanto observavam, Valerian comentou que a presidente iniciara uma correspondência ocasional com a sua mulher, mas que esta nem sequer lhe dizia acerca de que se correspondiam. Alegara o direito à privacidade.

O posicionamento dos tubos estava quase terminado e ia tentar-se pela primeira vez um teste importante de integração de sistemas. Alguns pensavam que o dispositivo de monitorização prescrito era um telescópio de onda de gravidade. No momento em que o teste ia começar, contornaram um poste, para verem melhor.

De súbito, Drumlin ia pelo ar, a voar. Tudo o mais parecia voar também. Lembrou a Ellie o tornado que transportara Dorothy para Oz. Como num filme ao retardador, Drumlin inclinou-se na direção dela, de braços abertos, e atirou-a brutalmente ao chão. Depois de todos aqueles anos, pensou Ellie, seria aquela a sua idéia de uma abordagem sexual? O homem tinha muito que aprender!


Nunca se conseguiu determinar de quem foi a autoria. Entre as organizações que reivindicavam publicamente a responsabilidade contavam-se os Earth-Firsters, a Facção do Exército Vermelho, a Jihad islâmica, a agora clandestina Fundação de Energia de Fusão, os Separatistas Sikhs, o Sendero Luminoso, o Khmer Verde, a Renascença Afegã, a ala radical das Mães Contra a Máquina, a Igreja Reunificada da Reunificação, a Omega Sete, os Quiliastas do Juízo Final (embora Billy Jo Rankin desmentisse qualquer ligação com o assunto e afirmasse que as confissões eram feitas pelos ímpios numa tentativa condenada ao fracasso para desacreditar Deus), pela Broederbond, por El Catorce de Febrero, pelo Exército Secreto do Kuomitang, pela Liga Sionista, pelo partido de Deus e pela recém-ressuscitada Frente de Libertação Simbionesa. Na sua maioria, estas organizações não dispunha dos meios necessários para executar a sabotagem; a extensão da lista era apenas um indicativo de como a oposição à Máquina alastrara.

A Ku-Klux-Klan, o partido Nazi Americano, o partido Nacional-Socialista Democrático e um punhado de outras organizações de mentalidade semelhante abstiveram-se e não reivindicaram a responsabilidade no sucedido. Uma minoria influente dos seus membros acreditava que a Mensagem tinha sido enviada pelo próprio Hitler. Segundo uma versão, ele fora levado para fora da Terra pela tecnologia de foguetões alemã em Maio de 1945 e, nos anos intermédios, os nazis tinham feito um progresso significativo.

— Não sei aonde a Máquina ia — disse a presidente passados alguns meses —, mas, se era a algum lugar nem que fosse só com metade da chaladice deste planeta, provavelmente a viagem não teria, de qualquer modo, valido a pena.

Segundo a reconstituição feita pela Comissão de Inquérito, um dos tubos de érbio fora partido ao meio por uma explosão; os dois fragmentos em forma de casamata tinham descido de uma altura de vinte metros e sido também propulsionados lateralmente a uma velocidade considerável. Uma parede interior sustentadora de peso tinha sido atingida e cedera sob o impacto. Morreram onze pessoas e ficaram feridas quarenta e oito. Foi destruído um certo número de componentes importantes da Máquina e, como uma explosão não se contava entre os protocolos dos testes prescritos pela Mensagem, a explosão devia ter danificado componentes aparentemente não afetados. Quando não se fazia a mínima idéia quanto ao funcionamento de uma coisa, era imprescindível ter muito cuidado com a sua construção.

Apesar da profusão de organizações que reivindicaram sofregamente o crédito pela sabotagem, nos Estados Unidos as suspeitas concentraram-se imediatamente em dois dos poucos grupos que não tinham reivindicado a responsabilidade: os extraterrestres e os Russos. Conversas acerca de Máquinas do Fim do mundo voltaram a encher o ar. Os extraterrestres tinham concebido a Máquina para explodir catastroficamente quando montada, mas, por sorte no dizer de alguns, tínhamos sido descuidados na montagem e somente uma pequena carga — talvez o detonador da Máquina do Fim do Mundo — explodira. Insistiam em que se parasse a construção antes que fosse demasiado tarde e se enterrassem os componentes sobreviventes em minas de sal muito afastadas umas das outras.

Mas a Comissão de Inquérito encontrou provas de que a Tragédia da Máquina, como o caso veio a tornar-se conhecido, era de origem mais terrestre. Os tubos tinham uma cavidade elipsoidal central de propósito desconhecido e a sua parede interior era forrada por uma intricada rede de finos fios de gadolínio. Essa cavidade fora cheia de explosivo plástico ligado a um dispositivo de relógio, materiais que não constavam da relação das peças da Máquina. O tubo tinha sido executado, a cavidade forrada e o produto final testado e selado numa instalação da Hadden Cybernetics em Terre Haute, Indiana. A instalação dos fios de gadolínio tinha sido demasiado complicada para ser feita à mão; tornaram-se necessários servo-mecânicos robóticos, que, por sua vez, tinham exigido a construção de uma fábrica importante. O custo da construção da fábrica fora totalmente suportado pela Hadden Cybernetics, mas haveria outras, e mais lucrativas, aplicações para os seus produtos.

Os três outros tubos de érbio do mesmo lote foram inspecionados e não se encontrou qualquer explosivo plástico. Equipes soviéticas e japonesas tinham efetuado uma série de experiências de auscultação remota antes de ousarem abrir os seus tubos de érbio. Alguém introduzira cuidadosamente uma carga tamponada e um detonador de relógio na cavidade, perto do fim do processo de construção em Terre Haute. Uma vez fora da fábrica, o tubo — e os de outros lotes — tinha sido transportado por comboio especial, e sob guarda armada, para Wyoming. O momento da explosão e a natureza da sabotagem sugeriam alguém com conhecimento da construção da Máquina; fora um trabalho feito no interior.

Mas a investigação pouco progrediu. Houvera diversas dúzias de pessoas — técnicos, analistas de controle de qualidade, inspetores que selaram o componente para o transporte — que poderiam ter tido a oportunidade de cometer a sabotagem, se não os meios e a motivação. Os que falharam nos testes do polígrafo tinham álibis de pedra e cal. Nenhum dos suspeitos se descaiu com uma confissão num momento desprevenido, no bar mais próximo. Nenhum começou a gastar mais do que os seus meios permitiam. Nenhum «cedeu» sob o interrogatório. Apesar do que se qualificou de esforços vigorosos da parte das agências responsáveis pelo cumprimento da lei, o mistério permaneceu por desvendar.

Os que consideravam os Soviéticos culpados argumentavam que o seu móbil fora impedir os Estados Unidos de ativar a sua Máquina primeiro. Os Russos possuíam a competência técnica necessária para efetuar a sabotagem e, claro, o conhecimento minucioso dos protocolos e da prática da construção da Máquina de ambos os lados do Atlântico. Assim que o desastre ocorreu, Anatoly Goldmann, antigo discípulo de Lunacharsky que estava a trabalhar como agente de ligação soviético em Wyoming, comunicou urgentemente com Moscovo e disse-lhes que desmontassem todos os seus tubos de érbio. Aparentemente, esta conversa — que tinha sido rotineiramente escutada pela NSA — pareceu demonstrar a inexistência de qualquer envolvimento russo, mas alguns argumentaram que o telefonema fora um estratagema para desviar as suspeitas, ou que Goldmann não tivera conhecimento antecipado da sabotagem. O argumento foi aproveitado por aqueles que, nos Estados Unidos, se sentiam inquietos com a recente redução das tensões entre as duas superpotências nucleares. Compreensivelmente, Moscovo ficou indignado com a sugestão.

Na realidade, os Soviéticos estavam a encontrar mais dificuldades na construção da sua Máquina do que era do conhecimento geral. Utilizando a Mensagem descriptografada, o Ministério da Indústria Meio-Pesada fez progressos consideráveis na extração de minério, metalurgia, nas máquinas e ferramentas e similares. A nova microeletrônica e a nova cibernética eram mais difíceis, e a maior parte desses componentes para a Máquina soviética estavam a ser produzidos, sob contrato, noutros lugares da Europa e do Japão. Mais difícil ainda para a indústria nacional soviética era a química orgânica, muita da qual exigia técnicas desenvolvidas na biologia molecular.

Fora desferido um golpe quase fatal na genética soviética quando, na década de 1930, Estaline decretara que a moderna genética mendeliana era ideologicamente inadequada e declarara cientificamente ortodoxa a genética excêntrica de um agrônomo politicamente sofisticado chamado Trofim Lysendo. A duas gerações de inteligentes estudantes soviéticos não foi ensinado essencialmente nada das bases fundamentais da hereditariedade. Agora, sessenta anos volvidos, a biologia molecular e a engenharia genética soviéticas estavam relativamente atrasadas e poucas descobertas importantes nessa matéria se deviam a cientistas soviéticos. Algo similar acontecera, mas abortivamente, nos Estados Unidos, onde, por razões teológicas, tinham sido feitas tentativas para impedir os estudantes de escolas públicas de aprenderem o que dizia respeito à evolução, a idéia central da biologia moderna. A razão era transparente, visto uma interpretação fundamentalista da Bíblia ser largamente considerada incompatível com o processo evolutivo. Felizmente para a biologia molecular americana, os fundamentalistas não eram tão influentes nos Estados Unidos como Estaline fora na União Soviética.

O relatório da National Intelligence preparado para a presidente sobre a questão concluía pela inexistência de provas de envolvimento soviético. Pelo contrário, em virtude de terem paridade com os Americanos no número de tripulantes, os Soviéticos tinham fortes incentivos para apoiar a conclusão da Máquina americana. «Se a nossa tecnologia está no nível três», explicou o diretor da Central Intelligence, «e a do nosso adversário no nível quatro, ficamos felizes quando cai do céu tecnologia do nível quinze. Desde que tenhamos igual acesso a ela e recursos adequados.» Poucos funcionários do Governo americano acreditavam que os Soviéticos fossem os causadores da explosão, e a presidente disse isso mesmo publicamente em mais de uma ocasião. Mas os velhos hábitos custam a morrer.

«Nenhum grupo excêntrico, por muito bem organizado que esteja, desviará a humanidade deste objetivo histórico,» declarou a presidente. Na prática, porém, tornara-se muito mais difícil conseguir um consenso nacional. A sabotagem insuflara vida nova a todas as objeções, razoáveis ou desrazoáveis, que anteriormente tinham sido levantadas. Só a perspectiva de. os Soviéticos completarem a sua Máquina manteve o projeto americano ativo.


A mulher quisera que o funeral de Drumlin se confinasse a uma cerimônia familiar, mas nisso, como em muitas outras coisas, as suas boas intenções foram ignoradas. Físicos, páras-mergulhadores, fãs de hang-ding, funcionários governamentais, entusiastas do mergulho autônomo, radioastrônomos, os divers, aquaplanadores e a comunidade mundial SETI, todos quiseram comparecer. Durante algum tempo encararam a idéia de realizar os serviços religiosos na Catedral de São João Evangelista, na cidade de Nova Iorque, por ser a única igreja do país de tamanho adequado. Mas a mulher de Drumlin obteve uma pequena vitória e a cerimônia foi efetuada ao ar livre na cidade natal do marido, em Missoula, Montana. As autoridades tinham concordado porque Missoula simplificava os problemas de segurança.

Embora Valerian não tivesse ficado gravemente ferido, os seus médicos aconselharam-no a não assistir ao funeral; apesar disso, ele proferiu um dos elogios fúnebres, numa cadeira de rodas, O gênio especial de Drumlin consistia em saber que perguntas fazer, disse Valerian. Abordara o problema da SETI ceticamente, porque o ceticismo se encontrava no coração da ciência. Mas, quando se tornara evidente que estava a ser recebida uma Mensagem, ninguém se devotara mais a decifrá-la nem revelara para isso mais recursos. O secretário-adjunto da Defesa, Michael Kitz, em representação da presidente, sublinhou as qualidades pessoais de Drumlin — o seu entusiasmo, a sua preocupação com os sentimentos dos outros, a sua inteligência brilhante, as suas aptidões atléticas. Não fora aquele trágico e cobarde acidente, e Drumlin teria ficado na história como o primeiro americano a visitar outra estrela.

Dela não haveria nenhuma peroração, dissera Ellie a Der Heer. Nem entrevistas à imprensa. Talvez algumas fotografias — compreendia a importância de algumas fotografias. Não confiava em si, não tinha a certeza de que diria as coisas certas. Durante anos fora uma espécie de porta-voz, para o público, da SETI, de Argus e depois da Mensagem e da Máquina. Mas aquilo agora era diferente. Precisava de algum tempo para entender tudo bem.

Tanto quanto lhe parecia, Drumlin morrera ao salvar-lhe a vida. Vira a explosão antes de os outros a ouvirem, lobrigara a massa de vários centos de quilogramas de érbio descrevendo um arco na direção deles. Com os seus reflexos rápidos, saltara para a empurrar para trás, para o outro lado do poste.

Mencionara essa possibilidade a Der Heer, que respondera: Drumlin estava provavelmente a saltar para se salvar a si próprio e calhou, apenas, encontrares-te no seu caminho. A observação era dura; pretenderia também agradar-lhe? Ou talvez, continuara Der Heer, ao sentir que lhe desagradara, Drumlin tivesse sido atirado ao ar pela onda de choque provocada pelo érbio ao atingir a plataforma de montagem.

Mas ela tinha a certeza absoluta. Vira tudo. A preocupação de Drumlin fora salvar-lhe a vida. E salvara. Tirando algumas pequenas escoriações, ficara fisicamente ilesa. Valerian, que estivera completamente protegido pelo poste, ficara com ambas as pernas fraturadas por uma parede que ruíra. Ela fora afortunada em mais de um aspecto. Nem sequer perdera os sentidos.

O seu primeiro pensamento, assim que compreendera o que acontecera, não tinha sido para o seu antigo professor David Drumlin, horrivelmente esmagado diante dos seus olhos; não tinha sido de espanto ante a perspectiva de Drumlin ter dado a sua vida pela dela; não tinha sido o atraso que de tudo aquilo resultaria para o Projeto da Máquina. Não. Límpido, claro, o seu primeiro pensamento tinha sido: Posso ir, eles terão de me enviar, não há mais ninguém, tenho de ir eu.

Contivera-se imediatamente. Mas já tarde demais. Ficou apavorada com o seu envolvimento pessoal, com o egoísmo mesquinho que revelara a si mesma naquele momento de crise. Não importava que Drumlin tivesse tido fraquezas semelhantes. Sentia-se horrorizada por descobri-las, ainda que fugazes, dentro de si mesma — tão… veementemente, tão azafamadamente, planejando futuros cursos de ação, esquecida de tudo, exceto dela própria. O que mais detestou foi a ausência absoluta de generosidade do seu ego: não apresentava quaisquer justificações, não dava quartel, atirava-se de cabeça. Era imoral, doentio. Ela sabia que seria impossível arrancá-lo, raiz e ramo. Teria de trabalhar nele pacientemente, de discutir com ele chamando-o à razão, de desviar-lhe a atenção, talvez até mesmo de ameaçá-lo.

Quando os investigadores chegaram à cena do desastre, mostrou-se incomunicativa. «Lamento não poder dizer-lhes muito. Nós três caminhávamos juntos na área de montagem e, de súbito, houve uma explosão e foi tudo pelos ares. Sinto não poder ajudar. Gostaria de poder.»

Disse claramente aos seus colegas que não queria falar do assunto e refugiou-se no seu apartamento durante tanto tempo que eles mandaram um grupo de reconhecimento saber dela. Tentou recordar todos os cambiantes do incidente. Tentou reconstituir a sua conversa antes de entrarem na área de montagem, o que ela e Drumlin tinham dito durante a viagem de automóvel a Missoula, o que Drumlin lhe parecera quando o tinha conhecido no princípio da sua carreira de pós-graduação. Pouco a pouco descobriu que houvera uma parte dela que desejara a morte dele — antes mesmo de se tornarem competidores para o lugar americano na Máquina. Odiava-o por tê-la diminuído na presença dos outros estudantes; nas aulas, por se ter oposto ao Projeto Argus, pelo que lhe dissera no momento seguinte à reconstituição do filme de Hitler. Desejara-lhe a morte. E agora ele morrera. Obedecendo a um certo raciocínio — que reconheceu imediatamente como tortuoso —, considerava-se culpada.

Ele teria estado, sequer, ali, se não fosse ela. Com certeza que sim, respondeu a si mesma; qualquer outra pessoa teria descoberto a Mensagem e Drumlin ter-lhe-ia saltado para cima. Por assim dizer. Mas não o teria ela — porventura através da sua própria insensibilidade científica — instigado a envolver-se mais profundamente no Projeto da Máquina? Passo a passo, examinou as possibilidades. Se eram desagradáveis, aprofundava-as com particular insistência; escondia-se ali alguma coisa. Pensou em homens, homens que por qualquer razão admirara. Drumlin. Valerian. Der Heer. Joss. Jesse… Staughton?… O seu pai.

— Doutora Arroway?

Sentiu-se gratamente arrancada à sua meditação por uma mulher loura e robusta, de meia-idade e vestido azul estampado. O seu rosto pareceu-lhe de certo modo familiar. A tarjeta identificativa, de pano, no busto farto, dizia: H. Bork, Goteborg. H

— Doutora Arroway, lamento a sua… a sua perda. O David disse-me tudo a seu respeito.

Claro! A lendária Helga Bork, companheira de mergulho autônomo de Drumlin em tantas e tão enfadonhas sessões de exibição de slides para estudantes pós-graduados. Quem, perguntou a si própria pela primeira vez, tirara aquelas fotografias? Convidaria um fotógrafo para os acompanhar nos seus encontros subaquáticos?

— Ele disse-me quanto eram íntimos, os dois.

Que está esta mulher a tentar dizer-me? Ter-lhe-á o Drumlin insinuado… Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.

— Desculpe, doutora Bork, neste momento não me sinto muito bem.

De cabeça baixa, a outra apressou-se a afastar-se.

Estavam no funeral muitos que ela desejava ver: Vaygay, Arkhangelsky, Gotsridze, Baruda, Yu, Xi, Devi… E Abonneba Eda, de quem se falava cada vez mais como do quinto membro da tripulação — se as nações tivessem uma ponta de bom senso, pensou Ellie, e se alguma vez houvesse uma coisa como uma Máquina completada. Mas a sua histamina social estava estourada e naquele momento ela não poderia suportar encontros demorados. Por um lado, receava o que fosse capaz de dizer. Quanto do que dissesse seria para bem do projeto e quanto para satisfazer as suas próprias necessidades? Os outros mostraram-se compassivos e compreensivos. No fim de contas, ela fora a pessoa que se encontrava mais perto de Drumlin quando o tubo de érbio o atingira e fizera em polpa.

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