Nas profundezas de um Vazio que estava encolhendo, Rand viu Moiraine surgir aparentemente do nada para agarrar Lanfear. Os ataques que ele sofria cessaram no instante em que as duas mergulharam pelo ter’angreal, batente de porta em um raio de luz branca infinita. A luz preenchia o retângulo de pedra vermelha retorcida como se quisesse atravessá-lo, mas colidisse em alguma barreira invisível. Relâmpagos criavam arcos prateados e azuis cada vez mais violentos em torno do ter’angreal. Ruídos estridentes crepitavam pelo ar.
Trôpego, Rand se pôs de pé. A dor ainda não tinha sumido por completo, mas a pressão, sim, trazendo a promessa de que a dor passaria. Não conseguia tirar os olhos do ter’angreal. Moiraine. O nome da mulher permanecia em sua mente, deslizando pelo Vazio.
Lan passou por ele cambaleando, concentrado no carroção, inclinado para a frente como se a única maneira de não cair fosse continuar avançando.
Rand não conseguia fazer mais que ficar de pé naquele momento. Ele canalizou e segurou o Guardião com fluxos de Ar.
— Você… Você não pode fazer nada, Lan. Não tem como ir atrás dela.
— Eu sei — respondeu Lan, desesperado. Contido no meio de um passo, ele não relutou, só ficou encarando o ter’angreal que engolira Moiraine. — Que a Luz me traga paz, mas eu sei.
Àquela altura, o próprio carroção estava em chamas. Rand tentou suprimi-las, mas, tão logo sugou o calor de uma das labaredas, os relâmpagos desencadearam outra. Embora feito de pedra, até o batente de porta começava a fumegar, uma fumaça branca e acre ficando mais espessa sob o domo cinza. Respirá-la, mesmo brevemente, fez Rand tossir e suas narinas queimarem. A pele formigava e ardia por onde quer que a fumaça passasse. Às pressas, ele desatou a tessitura do domo, preferindo desfazer a redoma do que esperar que ela se dissipasse, e urdiu em torno do carroção uma comprida chaminé de Ar que brilhava feito vidro, levando a fumaça bem para o alto, para longe. Só então soltou Lan. Não se surpreenderia se o homem fosse atrás de Moiraine de qualquer jeito, caso pudesse chegar ao carroção. Tudo já estava em chamas, assim como o batente de pedra vermelha, derretendo como se fosse de cera, mas, para um Guardião, talvez aquilo não importasse.
— Ela se foi. Não consigo sentir a presença dela. — As palavras soaram como se tivessem sido arrancadas do peito de Lan. Ele se virou e começou a percorrer a fila de carroções sem dar sequer uma olhadela para trás.
Acompanhando o Guardião com os olhos, Rand viu Aviendha ajoelhada segurando Egwene. Ele soltou saidin e correu pelo desembarcadouro. A dor física que estivera distante voltou com força, mas ele correu, ainda que desajeitado. Asmodean também estava lá, olhando de um lado para outro como se esperasse que Lanfear saltasse de trás de um dos carroções ou de uma carroça tombada. E Mat, agachado com a lança apoiada no ombro, abanava Egwene com seu chapéu.
Rand finalmente parou, derrapando.
— Ela…?
— Não sei — respondeu Mat, infeliz.
— Ainda está respirando. — Aviendha pareceu incerta sobre por quanto tempo continuaria assim, mas os olhos de Egwene tremularam e se abriram quando Amys e Bair passaram empurrando Rand, acompanhadas de Melaine e Sorilea. As Sábias se agruparam de joelhos em torno das mulheres mais jovens e murmuraram sozinhas e entre si enquanto examinavam Egwene.
— Eu me sinto… — balbuciou Egwene, parando para engolir. Seu rosto estava pálido, lívido. — Está… doendo. — Uma lágrima escapou.
— Claro que está — afirmou Sorilea, com rispidez. — É isso que acontece quando você se deixa envolver pelas maquinações de um homem.
— Ela não pode ir com você, Rand al’Thor. — Melaine, com seu lindo cabelo dourado, estava claramente irritada, mas não olhava para ele. A raiva poderia tanto ser de Rand quanto do que tinha acontecido.
— Eu… vou ficar boa que nem água de poço… com um pouco de repouso — sussurrou Egwene.
Usando um cantil, Bair umedeceu um pano e cobriu com ele a testa de Egwene.
— Você vai ficar bem com bastante repouso. Receio que você não vá encontrar Nynaeve e Elayne hoje à noite. Não vai nem chegar perto de Tel’aran’rhiod durante alguns dias, até estar forte de novo. Não me olhe com essa cara teimosa, garota. Se for necessário, ficaremos de olho nos seus sonhos para ter certeza e, se sequer pensar em desobedecer, a deixaremos aos cuidados de Sorilea.
— Você não vai me desobedecer mais de uma vez, Aes Sedai ou não — advertiu Sorilea, mas com um toque de compaixão que destoava do rosto coriáceo emburrado. A frustração estava estampada no rosto de Egwene.
— Eu, pelo menos, estou bem o bastante para fazer o que precisa ser feito — disse Aviendha. Na verdade, ela não parecia muito melhor que Egwene, mas conseguiu lançar um olhar desafiador para Rand, de quem claramente esperava uma discussão. Seu ar de rebeldia se dissipou um pouco quando ela se deu conta de que as quatro Sábias estavam lhe encarando. — Eu estou — resmungou.
— Claro — retrucou Rand, sem muita convicção.
— Eu estou — insistiu ela. Para ele. Aviendha tomou o cuidado de evitar que seu olhar cruzasse com o das Sábias. — Lanfear me dominou por um pouco menos de tempo do que Egwene. Foi o suficiente para fazer diferença. Tenho toh com você, Rand al’Thor. Acho que não teríamos sobrevivido por muito mais tempo. Ela era muito forte. — Seus olhos viajaram até o carroção em chamas. Labaredas ferozes já haviam reduzido o veículo a um amontoado chamuscado e disforme dentro da chaminé vítrea. O ter’angreal de pedra vermelha desaparecera. — Eu não vi tudo que aconteceu.
— Elas… — Rand limpou a garganta. — As duas se foram. Lanfear está morta. Moiraine também.
Egwene começou a chorar, seus soluços fazendo-a tremer dentro do abraço apertado de Aviendha, que repousou a cabeça no ombro da amiga como se também fosse chorar.
— Você é um tolo, Rand al’Thor — afirmou Amys, se levantando. Seu rosto surpreendentemente jovem sob o turbante e o cabelo branco estava rígido como pedra. — Por isto e por muitas outras coisas, você é um tolo.
Rand se desviou do tom acusatório nos olhos dela. Moiraine estava morta. Morta porque ele não conseguira se obrigar a matar uma Abandonada. Não sabia se queria chorar ou gargalhar feito um louco. Se fizesse uma das duas coisas, achava que não conseguiria parar.
As docas, que se esvaziaram quando ele criou o domo, estavam cheias de novo, embora poucos se aproximassem do ponto onde surgira a redoma cinzenta e enevoada. Sábias se deslocavam pela área para atender os que tinham se queimado e para confortar os agonizantes, ajudadas por gai’shain de robes brancos e homens com o cadin’sor. Os gemidos e os gritos o apunhalavam. Ele não fora rápido o bastante. Moiraine morrera. Nada de Cura nem para os mais feridos. Porque ele… Eu não consegui. Que a Luz me ajude, eu não consegui!
Mais homens Aiel o observavam, alguns só agora baixando o véu. Rand ainda não via nenhuma Donzela. Não havia só Aiel. Dobraine, a cabeça nua, e montando um castrado negro, não tirava os olhos dele, e, não muito longe, Talmanes, Nalesean e Daerid observavam Mat de cima dos cavalos quase tão atentamente quanto o faziam com Rand. Pessoas se enfileiravam no topo da grande muralha da cidade, delineadas e sombreadas pelo sol que se erguia, e havia mais gente ao longo das cortinas de pedra. Dois daqueles vultos na penumbra se viraram quando ele olhou para cima, se viram a menos de vinte passadas de distância um do outro e pareceram se retrair. Rand seria capaz de apostar que se tratava de Meilan e Maringil.
Lan voltara para os cavalos perto do último carroção da fila, e acariciava o focinho branco de Aldieb. A égua de Moiraine.
Rand foi até ele.
— Me desculpe, Lan. Se eu tivesse sido mais rápido, se eu… — Ele expirou profundamente. Não consegui matar uma, então matei a outra. Que a Luz me queime e me cegue! Se acontecesse, naquele momento, ele não teria se importado.
— A Roda tece. — Lan foi até Mandarb e se ocupou em verificar as cintas da sela do garanhão negro. — Ela era um soldado, uma guerreira, à maneira dela, tanto quanto eu. Isso poderia ter acontecido umas duzentas vezes nestes últimos vinte anos. Ela sabia, e eu também. Foi um bom dia para morrer. — Sua voz estava tão firme quanto sempre, mas aqueles frios olhos azuis estavam contornados de vermelho.
— Mesmo assim, me desculpe. Eu deveria… — O homem não seria reconfortado por “deveria”, e aquilo pesava na alma de Rand. — Espero que ainda possa ser meu amigo, Lan, depois do que… Eu valorizo seus conselhos, seus treinamentos com a espada, e vou precisar de ambos nos próximos dias.
— Sou seu amigo, Rand. Mas não posso ficar. — Lan girou e subiu na sela. — Moiraine fez uma coisa comigo que não se fazia há centenas de anos, não desde a época em que as Aes Sedai criavam elos com Guardiões independentemente da vontade deles. Ela alterou meu elo para que ele passasse para outra pessoa quando ela morresse. Agora eu preciso encontrar essa outra e me tornar um dos Guardiões dela. Eu já sou. Consigo senti-la de maneira tênue, em algum lugar no extremo oeste, e ela é capaz de me sentir. Preciso ir, Rand. Moiraine fez isso. Ela disse que não me daria nenhum tempo para morrer tentando vingá-la. — Ele agarrou as rédeas como se refreasse Mandarb, como se estivesse se segurando para não lhe enfiar as esporas. — Se algum dia você vir Nynaeve de novo, diga a ela que… — Por um instante, aquele rosto pétreo ficou encrespado de angústia. Só um instante, e logo voltou a ser como granito. Ele resmungou sozinho, mas Rand escutou: “Uma ferida limpa sara mais rápido e dói por menos tempo”. Em voz alta, o Guardião disse: — Diga a ela que encontrei outra pessoa. Às vezes, irmãs Verdes são tão próximas de seus Guardiões quanto outras mulheres são dos maridos. De todas as formas. Diga a ela que fui me tornar amante, e também a espada, de uma irmã Verde. Essas coisas acontecem. Já faz muito tempo desde a última vez que a vi.
— Vou dizer a ela o que você pedir, Lan, mas não sei se ela vai acreditar em mim.
Lan curvou-se do alto da sela para segurar com força o ombro de Rand. Ele se lembrava de já ter chamado Lan de lobo quase domesticado, mas aqueles olhos faziam um lobo parecer um cãozinho.
— Somos parecidos em muitos aspectos, você e eu. Há uma escuridão em nós. Escuridão, dor, morte. Tudo isso irradia de nós. Se algum dia você amar uma mulher, Rand, abandone-a e deixe-a encontrar outro homem. Vai ser o maior presente que você pode dar a ela. — Lan se endireitou e ergueu a mão. — Que a paz favoreça a sua espada. Tai’shar Manetheren. — A saudação antiga. O verdadeiro sangue de Manetheren.
Rand ergueu a mão.
— Tai’shar Malkier.
Lan esporou os flancos de Mandarb, e o garanhão deu um pinote para a frente, dispersando os Aiel e todos os demais do caminho, como se quisesse levar o último Malkier a galope durante todo o percurso até onde quer que ele estivesse indo.
— Que o último abraço da mãe o receba em casa, Lan — murmurou Rand, estremecendo. Aquilo era parte dos rituais funerais em Shienar e em todo o resto das Terras da Fronteira.
Todos ainda o observavam, os Aiel e as pessoas em cima das muralhas. A Torre saberia do que ocorrera ali, ou uma versão do ocorrido, tão logo um pombo pudesse voar até lá. Se Rahvin também tivesse alguma maneira de vigiá-lo — bastaria apenas um corvo na cidade, um rato ali à beira do rio —, certamente não esperaria nada naquele dia. Elaida pensaria que ele estava enfraquecido, talvez mais maleável, e Rahvin…
Rand percebeu o que estava fazendo e se retraiu. Pare com isso! Por pelo menos um minuto, pare e fique de luto! Não queria todos aqueles olhos nele. Os Aiel recuavam diante de Rand quase tão prontamente quanto tinham recuado diante de Mandarb.
A cabana com teto de ardósia do administrador das docas não passava de um único aposento de pedra sem janelas repleto de prateleiras entupidas de livros contábeis, rolos de pergaminho e papéis, iluminado por duas lamparinas sobre uma mesa rústica coberta de selos fiscais e carimbos de aduana. Rand fechou a porta atrás de si para se proteger de quaisquer olhos.
Moiraine morta, Egwene ferida e Lan ausente. Um preço alto a se pagar por Lanfear.
— Que a Luz o queime, fique de luto! — grunhiu ele. — Ela fez por merecer ao menos isso! Você não tem mais nenhum sentimento? — Mas, na maior parte, ele se sentia dormente. O corpo doía, mas, sob a dor, estava amortecido.
Rand deixou os ombros caírem, enfiou as mãos nos bolsos e sentiu as cartas de Moiraine. Pegou-as devagar. Tinha uma coisa na qual ele precisava pensar, ela dissera. Recolocando no bolso a carta de Thom, rompeu o lacre da outra. As páginas estavam densamente recobertas pela letra elegante de Moiraine.
Estas palavras vão desaparecer poucos momentos depois que esta carta sair da sua mão — uma proteção feita para você —, então tenha cuidado. O fato de você estar lendo isto significa que certos acontecimentos se passaram nas docas como eu esperava…
Ele parou, os olhos fixos no papel, e então continuou a leitura depressa.
Desde o primeiro dia em que cheguei a Rhuidean, eu soube — e você não deve se dar o trabalho de se perguntar como, já que alguns segredos pertencem aos outros, e não vou traí-los — que haveria um dia em que notícias a respeito de Morgase chegariam a Cairhien. Eu não sabia o conteúdo — se o que escutamos for verdade, que a Luz tenha misericórdia daquela alma, uma mulher voluntariosa e teimosa, às vezes com o gênio de uma leoa, mas, mesmo assim, uma rainha boa e graciosa —, mas, em todas as vezes, tal notícia conduzia às docas no dia seguinte. A partir das docas, havia três caminhos, mas, se você está lendo isto, eu parti, e Lanfear também…
As mãos de Rand apertaram as páginas ainda mais. Ela sempre soube. Soube, e mesmo assim o levou até lá. Apressado, desamassou o papel amarrotado.
Os outros dois caminhos eram muito piores. Em um deles, Lanfear matava você. No outro, levava-o embora e, quando eu o via de novo, você passara a se intitular Lews Therin Telamon, e era amante devoto dela.
Espero que Egwene e Aviendha tenham sobrevivido ilesas. Veja, eu não sei o que vai acontecer com o mundo no futuro, exceto, talvez, por uma coisinha que não tem a ver com você.
Não pude lhe dizer, pelo mesmo motivo que não pude contar a Lan. Mesmo conhecendo as opções, eu não sabia ao certo qual você escolheria. Os homens de Dois Rios, ao que parece, têm muito do famoso Manetheren, assim como os homens das Terras da Fronteira. Dizem que um nativo das Terras da Fronteira levaria uma facada para evitar que uma mulher se machucasse, e consideraria justo. Não ousei arriscar que você colocasse minha vida acima da sua, certo de que, de alguma forma, se esquivaria do destino. Não se trata de um risco, eu temo, mas de uma certeza tola, como certamente ficou provado hoje…
— Minha escolha, Moiraine — resmungou ele. — Era minha escolha.
Algumas considerações finais.
Se Lan ainda não partiu, diga-lhe que o que eu fiz com ele foi pensando no melhor. Um dia ele vai entender e, eu espero, me abençoar por isso.
Não confie cegamente em nenhuma mulher que hoje seja uma Aes Sedai. Não me refiro apenas à Ajah Negra, embora você sempre deva ficar atento a elas. Desconfie tanto de Verin quanto de Alviarin. Temos feito o mundo dançar conforme a nossa música durante três mil anos. Esse é um hábito difícil de quebrar, como bem aprendi enquanto dancei conforme a sua música. Você deve dançar como quiser, e até a mais bem-intencionada de minhas irmãs pode tentar guiar seus passos, assim como um dia eu tentei.
Por favor, entregue a carta para Thom Merrilin em segurança quando o encontrar de novo. Há uma pequena questão que tratei com ele certa vez e que, em nome da paz de espírito de Thom, quero esclarecer.
Por fim, fique sempre atento também ao Mestre Jasin Natael. Não o aprovo plenamente, mas entendo. Talvez fosse a única alternativa. Mas tenha cuidado com ele. Ele continua sendo o mesmo homem que sempre foi. Tenha isso sempre em mente.
Que a Luz o ilumine e proteja. Você vai se sair bem.
Estava assinada simplesmente com “Moiraine”. Ela quase nunca utilizara o nome de sua Casa.
Rand releu o penúltimo parágrafo com atenção. De alguma forma, ela sempre soube quem era Asmodean. Só podia ser isso. Soubera que um dos Abandonados estava bem ali, diante dela, e não pestanejara uma vez sequer. Também soubera por quê, caso ele tivesse entendido direito. Rand pensaria que, em uma carta que se apagaria assim que ele a soltasse, Moiraine poderia ser explícita e dizer logo o que queria. Não só no que se referia a Asmodean, mas também sobre como descobrira aquilo tudo em Rhuidean — algo a ver com as Sábias, a não ser que estivesse enganado, e elas não lhe revelariam mais que a carta —, sobre as Aes Sedai — havia alguma razão para ela ter mencionado Verin? E por que Alviarin, em vez de Elaida? — e até sobre Thom e Lan. Rand não achava que ela tivesse deixado uma carta para Lan. O Guardião não era o único que acreditava em feridas limpas. Ele quase abriu a carta endereçada a Thom, mas Moiraine poderia tê-la protegido do mesmo jeito que protegera a dele. Aes Sedai e cairhiena, ela se embrulhara até o fim em mistério e manipulação. Até o fim.
Era isso que ele estava tentando evitar com toda aquela baboseira sobre ela guardar segredos. Moiraine sempre soube o que aconteceria e o acompanhara com a mesma bravura de qualquer Aiel. Veio se encontrar com a morte mesmo sabendo que ela a esperava. Morrera porque ele não conseguira se obrigar a matar Lanfear. Não fora capaz de matar uma mulher, então outra morrera. Os olhos dele retornaram às últimas palavras.
Você vai se sair bem.
Elas cortavam feito navalha.
— Por que está chorando aqui sozinho, Rand al’Thor? Ouvi falar que alguns aguacentos acham vergonhoso ser pego chorando.
Ele cravou os olhos em Sulin, de pé junto à porta. Estava com seu equipamento completo, o arco em um estojo às costas, a aljava na cintura, um broquel redondo de couro e três lanças nas mãos.
— Eu não… — As bochechas dele estavam úmidas. Rand tratou de secá-las. — Está quente aqui. Estou suando feito um… O que você quer? Pensei que tinham decidido me abandonar e voltar para a Terra da Trindade.
— Não fomos nós que abandonamos você, Rand al’Thor. — Sulin fechou a porta atrás de si, sentou-se no chão e largou o broquel e um par de lanças. — Foi você que nos abandonou. — Em um único movimento, a mulher pôs o pé contra a lança que tinha nas mãos, fez pressão, e partiu-a no meio.
— O que você está fazendo? — Ela jogou os dois pedaços para o lado e apanhou mais uma lança. — Eu perguntei o que você está fazendo!
O rosto da Donzela de cabelo branco poderia até ter feito Lan hesitar, mas Rand se curvou e lhe tomou a lança das mãos. O pé dela, revestido em uma bota macia, acabou indo parar nas articulações do dedo dele. E com força.
— Você vai nos mandar vestir saias e nos obrigar a casar e cuidar do lar? Ou vamos ter que ficar do lado da sua fogueira e lamber sua mão sempre que você nos der um pedaço de carne? — Os músculos da mulher se retesaram, e a lança se partiu, as farpas rasgando a palma da mão dele.
Rand praguejou ao afastar a mão ferida e sacudiu as gotículas de sangue.
— Eu não quero nada disso. Achei que vocês tinham entendido. — Sulin apanhou a última lança, posicionou o pé, e Rand canalizou, tecendo Ar para mantê-la na posição em que estava. A mulher apenas o encarou em silêncio. — Que me queime, você não disse nada! Então eu mantive as Donzelas longe da batalha com Couladin. Nem todos lutaram naquele dia. E você nunca disse uma só palavra.
Os olhos de Sulin se arregalaram, incrédulos.
— Você impediu as Donzelas de dançarem as lanças? Nós é que impedimos você. Parecia uma garota recém-casada com a lança, pronto para sair correndo e matar Couladin sem nem pensar na lança que poderia atingi-lo pelas costas. Você é o Car’a’carn. Não tem o direito de se arriscar sem necessidade. — A voz dela ganhou um tom neutro. — E agora lá vai você enfrentar o Abandonado. O segredo está bem guardado, mas já ouvi o suficiente daqueles que lideram as outras sociedades.
— E você quer me impedir de lutar dessa vez também? — perguntou ele, bem baixo.
— Não seja tolo, Rand al’Thor. Qualquer um poderia ter dançado as lanças com Couladin. Você ter cogitado correr esse risco foi o pensamento de uma criança. Nenhum de nós é capaz de enfrentar os Devotos da Sombra, só você.
— Então por que…? — Ele fez uma pausa. Já sabia a resposta. Depois daquele dia sangrento contra Couladin, se convencera de que elas não se importariam. Quisera acreditar que não.
— Os que o acompanham foram escolhidos. — As palavras foram ditas como pedras sendo atiradas. — Homens de todas as sociedades. Homens. Não tem nenhuma Donzela, Rand al’Thor. As Far Dareis Mai carregam a sua honra, e você nos tira a nossa.
Ele respirou fundo, atrapalhando-se para encontrar as palavras.
— Eu… não gosto de ver mulheres morrendo. Eu detesto, Sulin. Me embrulha o estômago. Eu não seria capaz de matar uma mulher nem se minha vida dependesse disso. — As páginas da carta de Moiraine farfalhavam em suas mãos. Morta porque ele não fora capaz de matar Lanfear. Nem sempre era só a vida dele. — Sulin, eu preferiria ir até Rahvin sozinho do que ver uma de vocês morrer.
— Bobagem. Qualquer pessoa precisa de outra na retaguarda. Então é Rahvin. Até Roidan, dos Andarilhos do Trovão, e Turol, dos Cães de Pedra, esconderam isso. — Ela deu uma olhada para seu pé erguido, preso contra a lança pelos mesmos fluxos que lhe enredavam os braços. — Me solte, e conversaremos.
Após um momento de hesitação, Rand desfez a tessitura. Estava pronto para amarrá-la de novo, caso necessário, mas Sulin apenas cruzou as pernas e se sentou, quicando a lança nas palmas das mãos.
— Às vezes eu me esqueço de que você foi criado longe do nosso sangue, Rand al’Thor. Agora me ouça. Eu sou o que eu sou. Isto é o que eu sou. — E levantou a lança.
— Sulin…
— Escute bem, Rand al’Thor. Eu sou a lança. Quando um amante se colocou entre mim e a lança, eu escolhi a lança. Há quem escolha diferente. Algumas decidem que já passaram tempo demais com a lança e que querem um marido, um filho. Eu nunca quis outra coisa. Nenhum chefe hesitaria em me mandar para onde quer que a dança estivesse mais intensa. Se eu morresse lá, minhas irmãs-primeiras fariam luto por mim, mas nem uma unha a mais do que quando nosso irmão-primeiro faleceu. Um Assassino da Árvore que me apunhalasse no coração enquanto eu estivesse dormindo estaria me honrando mais do que você honra. Entende agora?
— Entendo, mas… — Ele de fato entendia. Sulin não queria que ele fizesse dela algo diferente do que era. Tudo o que ele tinha de fazer era estar disposto a vê-la morrer. — O que acontece se você quebrar a última lança?
— Se eu não tenho honra nesta vida, talvez na próxima. — Ela disse aquilo como se fosse apenas outra explicação. Rand levou alguns momentos para compreender. Tudo o que tinha de fazer era estar disposto a vê-la morrer.
— Você não me deixa escolha, não é? — Não mais do que Moiraine deixara.
— Sempre há escolhas, Rand al’Thor. Você tem uma opção, e eu tenho outra. O ji’e’toh só permite isso.
Rand queria rosnar para ela, xingar o ji’e’toh e todos que o seguiam.
— Escolha suas Donzelas, Sulin. Não sei quantas posso levar, mas vão ser tantas Far Dareis Mai quanto de qualquer outra sociedade.
Ele passou rápido por ela, que abriu um sorriso súbito. Não de alívio. De prazer. Prazer porque teria a chance de morrer. Rand devia tê-la deixado amarrada por saidin, amarrada ali para que pudesse lidar com ela quando voltasse de Caemlyn. Abriu a porta com força, avançou a passos largos até o desembarcadouro… e parou.
Enaila encabeçava uma fila de Donzelas, cada uma com três lanças nas mãos. A fila começava junto à porta da cabana e desaparecia no portão da cidade mais próximo. Alguns dos homens Aiel na doca lançavam olhares curiosos para a cena, mas estava bem claro que se tratava de uma questão entre as Far Dareis Mai e o Car’a’carn, e que nenhuma outra sociedade tinha nada a ver com o assunto. Amys e mais três ou quatro Sábias que um dia haviam sido Donzelas observavam com mais atenção. A maior parte dos que não eram Aiel já tinha ido embora, exceto por alguns homens que endireitavam nervosamente as carroças de grãos tombadas e tentavam olhar para o outro lado. Enaila deu um passo na direção de Rand e então parou e sorriu assim que Sulin saiu. Não de alívio. De prazer. Sorrisos de prazer que se estendiam por toda aquela longa fila de Donzelas. Sorrisos das Sábias também, além de um meneio firme de Amys, como se Rand tivesse dado um fim a algum comportamento imbecil.
— Cheguei a pensar que elas entrariam uma a uma para lhe tirar da miséria com beijos — afirmou Mat.
Rand franziu o cenho para ele, que sorria recostado na lança, o chapéu de aba larga na cabeça, inclinado para trás.
— Como você pode estar tão animado? — O cheiro de carne tostada ainda recendia no ar, assim como as lamúrias de homens e mulheres queimados sendo tratados pelas Sábias.
— Porque estou vivo — rosnou Mat. — O que você quer que eu faça? Chore? — Ele deu de ombros, um tanto constrangido. — Amys disse que Egwene vai ficar bem de verdade em alguns dias. — Mat deu uma olhada em volta, mas parecia não querer ver o que via. — Que me queime, se vamos mesmo fazer isso, então vamos. Dovie’andi se tovya sagain.
— O quê?
— Eu disse que é hora de lançar os dados. Sulin tampou seus ouvidos?
— É hora de lançar os dados — concordou Rand. As chamas haviam se extinguido dentro da chaminé vítrea de Ar, mas a fumaça branca ainda subia como se o fogo continuasse consumindo o ter’angreal. Moiraine. Ele deveria ter… O que estava feito estava feito. As Donzelas já se amontoavam ao redor de Sulin, tantas quantas cabiam no desembarcadouro. O que estava feito estava feito, e ele teria que lidar com isso. A morte seria uma libertação de tudo com que ele tinha que conviver. — Então vamos.