A faca roçou o cabelo de Nynaeve e se cravou na tábua na qual ela estava encostada, fazendo-a se encolher por trás da venda. Queria estar com uma trança decente, em vez das mechas soltas caindo pelos ombros. Se aquela lâmina tivesse cortado um único fio… Sua tola, pensou, amargurada. Você é muito, muito tola. Com a venda cobrindo os olhos, Nynaeve só enxergava uma linha de luz bem fina na parte inferior. Parecia brilhante no escuro sob o pano. Ainda devia haver luz suficiente, mesmo que a tarde já estivesse acabando. Claro que o homem não atiraria facas se não desse para enxergar direito. A lâmina seguinte se cravou do outro lado de sua cabeça. Nynaeve sentiu a vibração. Achou que estava rente à sua orelha. Queria matar Thom Merrilin e Valan Luca. E talvez, por puro princípio, qualquer outro homem no qual conseguisse pôr as mãos.
— As peras — gritou Luca, como se não estivesse a apenas trinta passadas dela. Ele devia pensar que a venda também a deixava surda, não apenas cega.
Nynaeve manuseou desajeitadamente a bolsa na cintura, apanhou uma pera e equilibrou-a cuidadosamente na cabeça. Ela estava cega. Tola e absolutamente cega! Mais duas peras, e a garota abriu os braços com cautela em meio às facas que a circundavam, segurando, pelo talo, um fruto em cada mão. Fez-se uma pausa. Ela abriu a boca para dizer a Thom Merrilin que, se ele sequer a arranhasse, iria…
Tchunk, tchunk, tchunk! As lâminas voaram tão rápido que, se sua garganta não estivesse contraída feito um punho, Nynaeve teria deixado escapar um gritinho. Na mão esquerda, só restava o talo; na direita, a pera tremia ligeiramente, com a faca atravessada. Do fruto na cabeça escorria suco em seu cabelo.
Retirando o tecido dos olhos, foi até Thom e Luca, ambos com enormes sorrisos. Antes que pudesse falar qualquer uma das palavras que fervilhavam em sua mente, Luca disse, admirado:
— Você é magnífica, Nana. Sua bravura é magnífica, mas você é mais ainda. — Ele rodopiou aquela ridícula capa de seda vermelha ao se curvar, uma das mãos na altura do coração. — Devo chamar este número de “Uma Rosa Entre Espinhos”. Apesar de, sinceramente, você ser mais bonita do que uma simples rosa.
— Não é preciso ter muita coragem para ficar parada feito uma árvore. — Ela era uma rosa? Então mostraria os espinhos para ele. Mostraria para os dois. — Escute aqui, Valan Luca…
— Quanta coragem. Você nunca vacila. Vou lhe dizer: eu não teria estômago para fazer o que você está fazendo.
Aquela era a pura verdade, Nynaeve afirmou para si mesma.
— Não tenho mais coragem que o necessário — disse, em um tom mais ameno. Era difícil gritar com um homem que insistia em dizer o quanto ela era valente. Com certeza era melhor do que escutar toda aquela baboseira sobre rosas. Thom tocou o longo bigode branco como se estivesse diante de algo engraçado.
— O vestido — disse Luca, com um sorriso que exibia todos os dentes. — Você vai ficar maravilhosa com…
— Não! — explodiu ela. Ele perdeu toda a simpatia que conquistara com os elogios ao puxar de novo aquele assunto. Clarine confeccionara o vestido que Luca queria que ela usasse, de uma seda mais rubra do que a capa dele. Nynaeve achava que a cor era para esconder o sangue, caso Thom errasse a mão.
— Mas, Nana, uma beldade em perigo é um grande atrativo. — A voz de Luca era suave, como se ele estivesse sussurrando palavras doces em seu ouvido. — Todos os olhos estarão em você, todos os corações batendo por sua beleza e coragem.
— Se você gosta tanto — retrucou ela, com firmeza —, use você.
Além da cor, Nynaeve não estava disposta a mostrar tanto busto em público, e pouco importava se Clarine achava adequado ou não. Ela já tinha visto o vestido com que Latelle se apresentava, cheio de lantejoulas pretas e com gola alta, até o queixo. Poderia usar algo do tipo… Onde estava com a cabeça? Nynaeve não tinha a menor intenção de seguir com aquilo. Só concordara em praticar o número para que Luca parasse de arranhar a porta de seu carroção toda noite, tentando convencê-la.
Mas o homem era hábil em perceber quando mudar de assunto.
— O que aconteceu aqui? — perguntou, parecendo subitamente um pouco preocupado.
Nynaeve se encolheu quando ele tocou seu olho inchado. Azar o dele ter optado por pular para aquele assunto. Teria sido melhor continuar tentando enfiá-la no vestido vermelho.
— Eu não gostei do olhar que vi no espelho esta manhã, então acabei com ele.
O tom inflexível e a expressão feroz fizeram Luca recolher a mão. Pelo brilho ressabiado em seus olhos escuros, parecia suspeitar de que ela pudesse acabar com ele também. Thom esfregava o bigode furiosamente, o rosto vermelho do esforço para não rir. Sabia o que havia acontecido, claro. Sempre sabia. E, assim que ela saísse, sem dúvida entreteria Luca com sua versão do ocorrido. Os homens não conseguiam ficar sem fofocar. Já nasciam assim, e nada que as mulheres fizessem dava jeito neles.
A luz do dia estava mais fraca do que ela pensara. O sol descia vermelho em meio às copas das árvores a oeste.
— Se fizer isso de novo sem uma luz melhor… — rosnou Nynaeve, mostrando o punho para Thom. — Já está quase de noite!
— Imagino — respondeu o homem, erguendo a espessa sobrancelha — que isso significa que você não quer praticar a parte em que eu é que fico vendado? — Ele estava brincando, claro. Só podia estar brincando. — Como quiser, Nana. De agora em diante, só com a melhor luz possível.
Foi só quando se afastou, alisando as saias furiosamente, que Nynaeve se deu conta de que concordara em participar daquela tolice. Dera a entender, pelo menos. Tão certo quanto o pôr do sol, eles tentariam fazê-la cumprir a palavra. Sua tola, tola, tola !
A clareira onde eles — ou Thom, ao menos, e que ele e Luca se queimassem! — tinham andado praticando não ficava longe do acampamento montado ao lado da estrada para o norte. Estava claro que Luca não queria perturbar os animais, caso Thom atravessasse o coração dela com alguma de suas facas. Era provável que o homem usasse o cadáver de Nynaeve para alimentar os leões. A única razão para ele querer que ela trajasse aquele vestido era poder cobiçar o que ela não tinha a intenção de mostrar a ninguém, exceto Lan, e que este também queimasse por ser tão tolo e teimoso. Queria que Lan estivesse ali para que pudesse dizer isso na cara dele. Queria que Lan estivesse ali para ter certeza de que ele estava em segurança. Nynaeve arrancou uma macela morta e usou o talo marrom e macio como um chicote para decepar as pontas das ervas daninhas que surgiam entre as folhas caídas no chão.
Na noite anterior, segundo Elayne, Egwene relatara conflitos em Cairhien, escaramuças com bandidos, com cairhienos que viam qualquer Aiel como inimigo, e com soldados andorianos que tentavam tomar o Trono do Sol para Morgase. Lan estivera envolvido. Sempre que Moiraine o deixava ficar longe de seus olhos, o homem parecia dar um jeito de participar de conflitos, como se fosse capaz de pressentir onde eles irromperiam. Nynaeve nunca pensara que fosse desejar que aquela Aes Sedai mantivesse Lan em rédea curta ao lado dela.
Naquela manhã, Elayne ainda estava incomodada com o fato de os soldados da mãe estarem em Cairhien lutando contra os Aiel de Rand, mas o que preocupava Nynaeve eram os bandidos. De acordo com Egwene, se alguém identificasse bens roubados na posse de um bandido ou se jurasse tê-lo visto matar uma pessoa ou incendiar sequer um celeiro, Rand o mandava para a forca. Ele não pendurava a corda, mas dava no mesmo, e Egwene tinha dito que ele assistia a cada execução com o rosto tão frio e duro quanto as montanhas. Aquilo não era do feitio dele. Rand fora um garoto gentil. Qualquer mudança sofrida no Deserto havia sido para bem pior.
Mas Rand estava muito longe, e os problemas dela — dela e de Elayne — não estavam nem perto de serem resolvidos. O rio Eldar ficava a menos de uma milha ao norte, atravessado por uma única ponte de pedra alta, erigida entre compridos pilares de metal que cintilavam sem o menor sinal de ferrugem. Remanescentes de tempos antigos, decerto, talvez até de outra Era. Ela subira na ponte no meio do dia, assim que eles chegaram, mas não havia nenhum barco no rio que merecesse a denominação. Barcos a remo, pequenas embarcações pesqueiras trabalhando ao longo das margens com suas fileiras de juncos, algumas coisinhas estreitas e estranhas que zanzavam pela água, propulsionadas por homens ajoelhados que usavam remos, e até uma barcaça atarracada que parecia presa à lama — parecia haver muita lama nas duas margens, uma parte já dura, seca e rachada, ainda que isso não fosse surpresa, por conta do calor que teimava em se manter, mesmo tão fora de época —, mas nada que pudesse transportá-los depressa rio abaixo, como Nynaeve desejava. Não que ela soubesse para onde a embarcação deveria levá-los.
Mesmo forçando o cérebro ao máximo, não se lembrava do nome da cidadezinha onde as irmãs Azuis supostamente estavam. Golpeou com violência um dente-de-leão, que se desfez em pluminhas brancas que flutuaram até o solo. Provavelmente não estariam mais lá, de qualquer modo, se é que chegaram a estar. Mas era a única pista que tinham de um lugar seguro, além de Tear. Se ao menos conseguisse lembrar…
A única parte boa de toda a jornada para o norte foi que Elayne parara de flertar com Thom. Não acontecera mais desde que se juntaram à trupe. Mas teria sido bom se Elayne não tivesse decidido fingir que nada acontecera. No dia anterior, Nynaeve parabenizara a garota por ter recuperado o juízo, no que Elayne retrucara, muito calma: Está tentando descobrir se eu vou me meter entre você e Thom, Nynaeve? Ele é bem velho para você, e eu achei que já estivesse interessada em outro, mas você já tem idade suficiente para tomar as próprias decisões. Eu gosto de Thom, e acho que ele gosta de mim. Eu o vejo como um segundo pai. Se quiser flertar com ele, tem minha permissão. Mas realmente pensei que você fosse menos volúvel.
Luca pretendia cruzar o rio pela manhã, e Samara, a cidadezinha na margem oposta, em Ghealdan, não era um bom lugar para ficar. Ele passara a maior parte do dia por lá, desde que haviam chegado, assegurando um local para montar o espetáculo. Sua única preocupação era que várias outras trupes haviam chegado ali primeiro, e a dele não era a única que tinha mais do que animais. Por isso estava tão insistente a respeito do “número” de Thom e Nynaeve com as facas. Teve sorte de Luca não querer que aquilo fosse feito lá nas alturas, junto com Elayne. O homem parecia achar que a coisa mais importante do mundo era que seu espetáculo fosse maior e melhor que qualquer outro. Para ela, a questão preocupante era que o Profeta estava em Samara, seus seguidores atulhando a cidade e se esparramando em tendas, cabanas e choupanas por todo o entorno, formando outra cidade que sobrepujava o tamanho nada desprezível da própria Samara — a cidade possuía uma muralha alta de pedra, e a maioria das edificações também era de seixos, muitas com três andares, e havia mais telhados de ardósia e telha do que de palha.
Aquela margem do Eldar não era melhor. Durante a viagem, tinham passado por três acampamentos de Mantos-brancos, centenas de tendas brancas em fileiras organizadas, e devia haver muitas mais que não avistaram. Mantos-brancos naquela margem do rio, o Profeta e talvez algum tumulto esperando para irromper na outra, e ela não fazia ideia de para onde ir e nem de como chegar lá, a não ser em um pesado carroção que se movia mais devagar do que ela caminhava. Nynaeve queria nunca ter deixado Elayne convencê-la a abandonar a carruagem. Sem enxergar nenhuma outra erva para ser arrancada ao alcance, partiu a macela ao meio, então de novo, até os pedaços ficarem menores que sua mão, e os jogou no chão. Desejou poder fazer o mesmo com Luca. E com Galad Damodred, por obriga-los a fugir. E com al’Lan Mandragoran, por não estar ali. Não que precisasse dele, claro. Mas sua presença teria sido… reconfortante.
O acampamento estava calmo, as refeições noturnas sendo preparadas em pequenas fogueiras ao lado dos carroções. Petra alimentava o leão de juba negra, jogando enormes pedaços de carne com uma vara por entre as barras. As leoas já estavam aninhadas amigavelmente umas às outras, deixando escapar um rosnado ocasional caso alguém se aproximasse demais da jaula. Nynaeve parou perto do carroção de Aludra. A Iluminadora estava trabalhando com um pilão e um almofariz de madeira em uma mesa que saía da lateral de seu carroção, resmungando sozinha acerca de qualquer que fosse a mistura que estivesse fazendo. Três dos Chavanas lançaram sorrisos sedutores para Nynaeve, convidando-a para se juntar a eles. Não Brugh, que ainda parecia irritado com o lábio, apesar de ela ter lhe dado um unguento para diminuir o inchaço. Se batesse com a mesma força nos outros irmãos, talvez eles dessem ouvidos a Luca — e, mais importante, a ela! — e percebessem que Nynaeve não queria seus sorrisos. Que pena que Mestre Valan Luca não obedecia às próprias instruções. Latelle se virou da jaula do urso e sorriu timidamente para ela. Foi mais um sorrisinho afetado, na verdade. Mas Nynaeve observava principalmente Cerandin, serrando as grosseiras unhas da pata de um dos imensos s’redit cinzas utilizando o que parecia ser uma ferramenta mais apropriada para metais.
— Aquela ali — disse Aludra — usa as mãos e os pés com uma habilidade notável, não? Não me olhe assim, Nana — acrescentou, esfregando as mãos. — Não sou sua inimiga. Tome. Você tem que experimentar estes novos malabares de fogo.
Nynaeve apanhou cautelosamente a caixa de madeira da mulher de cabelos escuros. Era um cubo que ela poderia ter manuseado facilmente só com uma das mãos, mas usou as duas.
— Pensei que você os chamasse de bastões.
— Talvez sim, talvez não. Malabares de fogo explica bem melhor o que eles fazem do que bastões, não? Eu dei uma polida nos buraquinhos que prendem os malabares, para que não peguem fogo em contato com a madeira. Boa ideia, não? Elas são uma ideia nova, essas pontas. Você vai experimentar e me dizer o que acha?
— Vou, claro. Obrigada.
Nynaeve se afastou antes que a mulher pudesse lhe empurrar outra caixa. Segurava o objeto como se fosse explodir, o que não tinha certeza de que não aconteceria. Aludra queria que todo mundo experimentasse seus bastões, ou malabares de fogo, ou qualquer que fosse o próximo nome escolhido. Com certeza acenderiam uma fogueira ou uma lamparina. Também podiam pegar fogo se as pontas azul-acinzentadas roçassem uma na outra ou em qualquer material áspero. Para ela, era melhor continuar com pedra e aço, ou com carvão devidamente acondicionado em uma caixa de areia. Bem mais seguro.
Juilin a alcançou antes que pusesse os pés nos degraus do carroção que dividia com Elayne, seu olhar indo diretamente para o olho inchado de Nynaeve. Ela o encarou com tanta firmeza que o homem deu um passo para trás e tirou da cabeça aquele chapéu ridículo em forma de cone.
— Eu fui até o outro lado do rio — relatou ele. — Tem mais ou menos cem Mantos-brancos em Samara. Só observando e sendo observados com o mesmo ímpeto por soldados de Ghealdan. Mas eu reconheci um deles. Aquele jovem que estava sentado do outro lado d’A Luz da Verdade, em Sienda.
Ela sorriu para ele, que deu outro passo ligeiro para trás, encarando-a com cautela. Galad em Samara. Era só o que faltava.
— Você sempre traz notícias maravilhosas, Juilin. Deveríamos ter deixado você em Tanchico, ou melhor, na doca de Tear. — Aquilo não era justo. Era melhor ele ter lhe contado a respeito de Galad do que ela dar de cara com o rapaz ao virar uma esquina. — Obrigada, Juilin. Pelo menos agora sabemos que é melhor ficar de olho. — O meneio do homem não fez jus aos agradecimentos tão graciosos, e ele se apressou para ir embora, enfiando o chapéu na cabeça como se esperasse que ela lhe batesse. Homens não tinham modos mesmo.
O interior do carroção estava em melhores condições do que quando Thom e Juilin o compraram. A tinta descascando fora toda retirada — os homens resmungaram por ter de fazer aquilo — e os armários e a minúscula mesinha presa ao piso, lustrados até ficarem brilhando. O pequeno fogão de tijolinhos com a chaminé de metal nunca fora usado — as noites eram sempre quentes e, se começassem a cozinhar enquanto estivessem ali, Thom e Juilin nunca voltariam a assumir a função —, mas era um bom lugar para guardar objetos de valor, bolsas e caixas de joias. A bolsinha de camurça abrigava o selo — que ela enfiara o mais fundo que podia e no qual não encostara desde então.
Sentada em uma das camas estreitas, Elayne enfiava alguma coisa debaixo dos lençóis quando Nynaeve entrou, mas, antes que pudesse perguntar do que se tratava, a jovem exclamou:
— Seu olho! O que aconteceu? — Precisavam tingir o cabelo dela com pimenta-de-galinha outra vez. Tímidos vestígios dourados surgiam na raiz dos fios pretos. Passavam-se alguns poucos dias e já era preciso pintar as mechas de novo.
— Cerandin me acertou quando eu não estava olhando — resmungou Nynaeve.
Ainda sentia o gosto de samambaia-felina fervida e folha-sábia em pó. Aquele também não foi o motivo para ela ter deixado Elayne ir ao último encontro em Tel’aran’rhiod. Nynaeve não estava evitando Egwene. Era só que ela fazia a maior parte das excursões até o Mundo dos Sonhos, entre um encontro e outro, e era justo dar a Elayne oportunidades de ir também. Só isso.
Com cuidado, guardou a caixa com malabares de fogo em um dos armários, junto de outras duas. A única que realmente pegara fogo já fora descartada há muito tempo.
Não sabia por que estava escondendo a verdade. Era óbvio que Elayne não saíra do carroção, ou já saberia. Ela e Juilin deviam ser as únicas pessoas em todo o acampamento que não sabiam, agora que Thom com certeza já contara todos os detalhes asquerosos para Luca.
Nynaeve respirou fundo, sentou-se na outra cama e se forçou a encarar Elayne. Algo no silêncio da amiga indicava que ela sabia que mais coisa estava a caminho.
— Eu… perguntei a Cerandin sobre as damane e as sul’dam. Tenho certeza de que ela sabe mais do que demonstra. — Fez uma pausa para que Elayne questionasse se ela tinha perguntado ou exigido saber e para dizer que a Seanchan já contara a elas tudo o que sabia, e que Cerandin não tivera muito contato com as damane ou as sul’dam. Mas Elayne continuou em silêncio, e Nynaeve percebeu que só estava tentando adiar a situação com uma briga. — Ela ficou bem nervosa, dizendo que não sabe de mais nada, então eu a sacudi. Você foi mesmo longe demais com ela. Cerandin sacudiu o dedo debaixo do meu nariz! — Elayne apenas a observava, os olhos azuis calmos, quase sem piscar. Nynaeve se esforçou para não desviar o olhar, quando prosseguiu. — Ela… me jogou, de alguma forma, por cima do ombro. Eu levantei e dei um tapa nela, mas ela me derrubou com um soco. Por isso fiquei com olho inchado. — Era melhor também contar o resto. Elayne logo ficaria sabendo. Melhor que fosse por ela mesma. Mas preferia ter arrancado a língua. — Eu não estava disposta a deixar por aquilo mesmo, com certeza. Nós brigamos um pouco mais.
Da parte dela, não foi bem uma briga, a não ser por ter se recusado a desistir. A verdade cruel era que Cerandin só tinha parado de jogá-la de um lado para outro e de derrubá-la com rasteiras porque era como bater em uma criança. Nynaeve tivera tanta chance quanto uma criança. Desejara que pelo menos não houvesse ninguém presente, assim ela teria canalizado. Certamente estava com raiva suficiente. Desejava que pelo menos não houvesse ninguém presente, e ponto final. Nynaeve preferia que Cerandin a tivesse socado até sangrar.
— Aí Latelle deu uma vara para ela. Você sabe que aquela mulher quer se vingar de mim. — Não havia necessidade de contar que Cerandin estava segurando sua cabeça sob o engate de um carroção. Não levava uma surra dessas desde que tinha jogado um jarro d’água em Neysa Ayellin, quando tinha dezesseis anos. — De qualquer jeito, Petra apartou a briga. — E bem na hora, também. O imenso homem pegara as duas pela nuca como se fossem gatinhas. — Cerandin pediu desculpas, e acabou assim.
Petra obrigara a Seanchan a pedir perdão, verdade, mas também exigira o mesmo de Nynaeve, recusando-se a afrouxar o aperto gentil, mas duro feito aço, em torno de seu pescoço até que se desculpasse. Ela batera nele o mais forte que pôde, na boca do estômago, e o homem nem piscara. A mão de Nynaeve também parecia prestes a inchar.
— Não foi nada sério, na verdade. Suponho que Latelle vai tentar espalhar uma história fantasiosa. Quem eu preciso sacudir é ela. Não bati nela nem com metade da força que deveria.
Nynaeve se sentiu melhor ao contar a verdade, mas as dúvidas estampadas no rosto de Elayne fizeram-na querer mudar de assunto.
— O que é isto que você está escondendo? — Esticou-se e puxou o lençol para trás, revelando a extensão prateada do a’dam que haviam conseguido com Cerandin. — Por que, sob a Luz, você quer olhar para isto? E se quer mesmo, por que esconder? É um objeto repugnante, e eu não entendo como você consegue tocar nele, mas, se é o que deseja, a decisão é toda sua.
— Não seja tão chata — rebateu Elayne. Um sorriso lento se abriu em seu rosto, demonstrando animação. — Acho que posso fazer um.
— Fazer um! — Nynaeve baixou a voz, torcendo para que ninguém entrasse correndo para ver quem estava matando quem, mas não a suavizou nem um pouco. — Luz, por quê? Fazer até uma fossa sem tampa seria melhor. Uma pilha de estrume. Ao menos teriam alguma utilidade.
— Eu não pretendo fazer um a’dam. — Elayne se manteve ereta, o queixo inclinado daquele jeito altivo. Soava ofendida e friamente calma. — Mas é um ter’angreal, e já decifrei como ele funciona. Vi que você assistiu a pelo menos uma aula sobre como se unir. O a’dam une duas mulheres. Por isso é que a sul’dam também precisa ser capaz de canalizar. — Ela franziu o cenho de leve. — Mas é um vínculo estranho. Diferente. Em vez de duas ou mais compartilhando o Poder, com uma como guia, nesse caso só uma assume todo o controle. Acho que é por isso que uma damane não pode fazer nada que a sul’dam não queira que ela faça. Não acredito nem um pouco que haja necessidade da corrente. A coleira e o bracelete funcionariam tão bem quanto sem ela, e da mesmíssima forma.
— Tão bem quanto — repetiu Nynaeve, seca. — Você estudou bastante o assunto, para alguém que não pretende reproduzir esse objeto. — Elayne não teve nem a delicadeza de enrubescer. — Você o usaria para quê? Não posso dizer que acharia ruim colocar um em torno do pescoço de Elaida, mas isso não torna a coisa menos repugn…
— Você não entende? — interrompeu Elayne, a arrogância totalmente transformada em empolgação. Quando se inclinou para tocar o joelho de Nynaeve, seus olhos brilhavam, e ela estava felicíssima consigo mesma. — É um ter’angreal, Nynaeve. E eu acho que consigo fazer um igual. — Elayne pronunciou cada palavra pausadamente, então gargalhou, antes de prosseguir, apressada: — Se eu conseguir fazer este, posso fazer outros. Talvez consiga fazer até angreal e sa’angreal. Ninguém na Torre foi capaz de fazer isso nos últimos mil anos! — Ela ficou ereta, estremeceu e cobriu a boca. — Eu nunca tinha pensado de verdade em fazer alguma coisa eu mesma. Não algo que fosse útil. Lembro de certa vez ficar observando um artesão, um homem que tinha feito algumas cadeiras para o palácio. Não eram douradas nem tinham entalhes elaborados, eram apenas para o salão dos servos, mas vi o orgulho nos olhos dele. Orgulho do que tinha feito, um móvel de qualidade. Acho que eu adoraria sentir isso. Ah, se a gente soubesse ao menos uma fração do que os Abandonados sabem! Todo o conhecimento da Era das Lendas na cabeça, e eles o utilizam para servir à Sombra. Pense no que poderíamos fazer com aquilo. Pense no que poderíamos construir. — Ela respirou fundo e pousou as mãos no colo, o entusiasmo ainda todo lá. — Bem, seja como for, aposto que também consigo decifrar como Ponte Branca foi construída. Edifícios que parecem feitos de vidro, só que mais resistentes que aço. E cuendillar, e…
— Devagar aí — advertiu Nynaeve. — Ponte Branca fica a pelo menos quinhentas ou seiscentas milhas daqui, e se você acha que vai canalizar no selo, melhor pensar duas vezes. Quem sabe o que poderia acontecer? Ele vai continuar na bolsa, dentro do fogão, até encontrarmos um lugar mais seguro.
O entusiasmo de Elayne era muito estranho. Nynaeve também não se importaria em ter um pouco do conhecimento dos Abandonados — longe disso —, mas, se quisesse uma cadeira, contrataria um carpinteiro. Nunca sentira vontade de produzir nada, a não ser emplastros e unguentos. Quando tinha doze anos, sua mãe desistira de ensiná-la a costurar, depois que ficou evidente que Nynaeve não dava a mínima se conseguia ou não fazer uma costura em linha reta, e não havia como obrigá-la a se importar. Quanto a cozinhar… Ela até pensava ser boa cozinheira, mas a questão era que sabia suas prioridades. Curar era importante. Qualquer homem poderia construir uma ponte, e, em sua opinião, era melhor deixar isso a cargo deles.
— Com essa sua história de a’dam — continuou Nynaeve —, eu quase me esqueci de contar: Juilin viu Galad no outro lado do rio.
— Sangue e malditas cinzas — resmungou Elayne, e, quando Nynaeve arqueou as sobrancelhas, a garota prosseguiu com bastante firmeza: — Não venha me dar sermões pelo “meu linguajar”, Nynaeve. O que vamos fazer?
— Temos algumas opções: podemos ficar neste lado do rio e ter os Mantos-brancos de olho em nós, se perguntando por que abandonamos a trupe; podemos atravessar a ponte e torcer para que o Profeta não comece um tumulto e Galad não nos denuncie; ou podemos tentar comprar um barco a remo e fugir rio abaixo. Não são opções muito boas. E Luca vai querer os cem marcos dele. De ouro. — Ela tentou evitar uma careta, mas aquilo ainda a irritava. — Você prometeu, e suponho que não seria honesto fugir na calada da noite sem pagar. — Teria feito aquilo sem pestanejar, caso houvesse algum lugar para ir.
— Com certeza não seria — concordou Elayne, parecendo chocada. — Mas não temos que nos preocupar com Galad, pelo menos não enquanto estivermos com este grupo. Galad não vai se aproximar, ele acha que prender animais em jaulas é uma crueldade. Não vê nada de errado em caçar nem em comer animais, veja bem, só em enjaular.
Nynaeve balançou a cabeça. O fato era que Elayne encontraria alguma maneira de adiar a partida, nem que fosse por um dia, mesmo que tivessem como ir embora. Ela queria mesmo era andar nas alturas diante de uma plateia que não fossem os outros artistas. E Nynaeve provavelmente teria que repetir o número das facas com Thom. Mas eu não vou usar aquele maldito vestido!
— Vamos contratar o primeiro barco que aparecer com tamanho suficiente para transportar quatro pessoas — decidiu ela. — Não é possível que todo o comércio no rio tenha acabado.
— Ajudaria se soubéssemos para onde ir. — O tom de voz de Elayne soou delicado demais. — Poderíamos seguir para Tear, sabe? Não precisamos ficar nessa situação só porque você… — Sua voz foi sumindo, mas Nynaeve sabia o que Elayne queria dizer. Só porque ela era teimosa. Só porque estava tão furiosa por não se lembrar de um simples nome que pretendia se recordar e partir para lá nem que fosse a última coisa que fizesse. Bem, aquilo não era verdade. Nynaeve pretendia encontrar as Aes Sedai que pudessem apoiar Rand e levá-las até ele, não rastejar até Tear feito uma refugiada patética buscando um lugar seguro.
— Eu vou lembrar — afirmou ela, a voz neutra. Terminava com “bar”. Ou era “dar”? “Lar”? — Antes de você cansar de se exibir no espetáculo, vou me lembrar. — Eu me recuso a usar aquele vestido!