24 Mensagem enviada

A terra mudou quando o sol começou a baixar. As colinas eram menores, os matagais, maiores. Era comum que cercas de pedra tombadas envolvendo o que um dia haviam sido plantações tivessem se tornado montes dos quais desabrochavam sebes selvagens, ou que agora contornassem longas sequências de carvalhos, folhas-de-couro e nogueiras, pinheiros e cajeputes, além de outras árvores que Egwene não conhecia. As poucas casas de fazenda estavam destelhadas, e árvores de dez ou quinze passadas de altura cresciam dentro delas, pequenas matas encapsuladas em muros de pedra, completas com pássaros gorjeando e esquilos de cauda preta. O riacho que às vezes surgia gerava tanta conversa entre os Aiel quanto as minúsculas florestas e a grama. Eles já haviam ouvido histórias das terras aguacentas, lido sobre elas em livros comprados de mercadores e mascates como Hadnan Kadere, mas poucos de fato os tinham visto desde a caçada a Laman. No entanto, os Aiel se adaptavam depressa. O marrom-acinzentado das tendas se misturava bem com as folhas mortas debaixo das árvores e com as ervas daninhas e a grama que estava morrendo. O acampamento se espalhava ao longo de milhas, marcado por milhares de pequenas fogueiras no anoitecer dourado.

Egwene ficou mais do que feliz por engatinhar para dentro de sua tenda tão logo os gai’shain terminaram de montá-la. No interior, as lamparinas estavam acesas, e um fogo diminuto ardia na fogueira. Ela desamarrou as botas macias e tirou-as junto com as meias de lã, esparramando-se nos brilhantes tapetes sobrepostos e movimentando os dedos dos pés. Gostaria de ter uma bacia d’água para colocá-los de molho. Não fingia ter tanta resistência quanto os Aiel, mas, se algumas horinhas de caminhada faziam seus pés parecerem ter o dobro do tamanho, era porque estava ficando cada vez mais mole. Claro, água não seria um problema, ali. Ou não deveria ser. Lembrou-se daquele regato meio seco — poderia tomar um banho decente de novo.

Cowinde, tímida e silenciosa em seus trajes brancos, lhe trouxe o jantar, um pouco daquele pão bem claro e achatado feito de farinha de zemai e, em uma tigela com listras vermelhas, um ensopado grosso que Egwene comeu mecanicamente, embora se sentisse mais cansada do que faminta. Reconheceu os feijões e os pimentões desidratados, mas não perguntou do que era aquela carne escura. Coelho, disse a si mesma com firmeza, e torceu para que fosse. Os Aiel comiam coisas que fariam seu cabelo encaracolar mais que o de Elayne. Podia apostar que Rand não conseguia nem olhar para o que vinham servindo. Homens sempre eram chatos para comer.

Assim que terminou o ensopado, esticou-se perto de uma lamparina de prata entalhada com um disco de prata polido que refletia e aumentava a luz. Sentira-se um pouco culpada ao ser dar conta de que a maioria dos Aiel não dispunha de nenhuma luz à noite que não fosse a de suas fogueiras. Tirando as Sábias e os chefes de clãs e ramos, poucos haviam trazido lamparinas ou óleo. Mas não fazia sentido ficar sentada na tênue luminosidade da fogueira quando podia ter luz adequada. Aquilo foi um lembrete: as noites ali não seriam muito diferentes dos dias no Deserto. A tenda já estava começando a ficar desconfortavelmente quente.

Egwene canalizou fluxos de Ar para abafar o fogo e enfiou as mãos nos alforjes em busca do desgastado livro com encadernação de couro que pegara emprestado de Aviendha. Tratava-se de um volume pequeno e grosso com linhas que se amontoavam em letrinhas difíceis de ler, exceto com boa luminosidade, mas de fácil portabilidade. Era intitulado A Chama, a Lâmina e o Coração, uma coleção de histórias sobre Birgitte e Gaidal Cain, Anselan e Barashelle, Rogosh Olho-de-águia e Dunsinin, e mais uma porção de casais. Aviendha afirmava gostar do livro por conta das aventuras e batalhas, e talvez fosse o caso, mas absolutamente todas as histórias também falavam do amor entre um homem e uma mulher. Egwene estava disposta a admitir que era daquilo que gostava, das tramas às vezes turbulentas e às vezes afetuosas de um amor eterno. Estava disposta a admitir para si mesma, pelo menos. Não era bem o tipo de diversão que uma mulher com qualquer juízo poderia confessar publicamente.

Na verdade, estava com menos vontade de ler do que estivera de comer — tudo o que realmente queria era tomar banho e dormir, e talvez aceitasse pular o banho —, mas, naquela noite, ela e Amys se encontrariam com Nynaeve em Tel’aran’rhiod. Onde quer que Nynaeve estivesse no caminho para Ghealdan, ainda não seria noite, e aquilo significava ter de continuar acordada.

Elayne fizera sua nova trupe parecer bastante empolgante, na última vez que se encontraram, embora Egwene não achasse que Galad fosse motivo suficiente para sair correndo daquele jeito. Em sua opinião, o gosto de Nynaeve e Elayne por aventuras simplesmente aumentara. Era uma pena a notícia sobre Siuan. Elas precisavam de uma mão firme para aquietá-las. Era estranho Egwene pensar isso a respeito de Nynaeve, a quem sempre vira como dona da mão firme. Mas, desde aquele episódio na Torre em Tel’aran’rhiod, precisara enfrentar Nynaeve cada vez menos.

Cheia de culpa, Egwene percebeu, ao virar a página, que estava ansiosa para o encontro daquela noite. Não por Nynaeve ser uma amiga, mas porque queria ver se os efeitos tinham durado. Se Nynaeve puxasse a trança, Egwene arquearia uma sobrancelha para ela e… Luz, espero que não tenha durado. Se ela deixar algo escapulir sobre aquele passeio, Amys, Bair e Melaine vão se revezar me esfolando viva, isso se simplesmente não me mandarem embora.

Seus olhos continuavam tentando se fechar enquanto ela lia, sonhando vagamente com as histórias do livro. Egwene poderia ser tão forte quanto qualquer uma daquelas mulheres, tão forte e valente quanto Dunsinin ou Nerein ou Melisinde ou até mesmo Birgitte, tão forte quanto Aviendha. Será que Nynaeve teria juízo suficiente para controlar a língua diante de Amys, naquela noite? Pensou distraidamente em pegar Nynaeve pela nuca e sacudi-la. Bobagem. A mulher era alguns anos mais velha. Arquear uma sobrancelha para ela. Dunsinin. Birgitte. Tão resistente e forte quanto uma Donzela da Lança.

A cabeça de Egwene escorregou para as páginas, e ela tentou aninhar o livrinho debaixo do rosto conforme sua respiração ia desacelerando e ficando mais profunda.


Teve um sobressalto ao se ver em meio às grandes colunas de pedra vermelha do Coração da Pedra, na estranha luz de Tel’aran’rhiod, e levou outro susto ao notar que usava o cadin’sor. Amys não ficaria contente ao vê-la daquele jeito. Não acharia nada engraçado. Egwene se trocou depressa e ficou surpresa quando as roupas se alternaram entre uma blusa de algode e uma pesada saia de lã, e um belo vestido de seda azul bordada, antes de finalmente se decidir pela vestimenta Aiel, completa com seu bracelete de marfim entalhado com chamas e o colar de ouro e marfim. Fazia algum tempo que não ficava indecisa assim.

Por um momento, Egwene pensou em sair do Mundo dos Sonhos, mas suspeitou que estivesse dormindo profundamente em sua tenda. Era muito provável que só adentrasse os próprios sonhos, e não era sempre que tinha consciência neles. Sem consciência, não poderia retornar a Tel’aran’rhiod. E não estava disposta a deixar Amys e Nynaeve a sós juntas. Quem poderia saber o que Nynaeve diria, caso Amys a irritasse? Quando a Sábia chegasse, Egwene diria simplesmente que também tinha acabado de chegar. As Sábias sempre apareciam um pouco antes dela, ou ao mesmo tempo, mas claro que, se Amys acreditasse que Egwene tivesse chegado lá apenas um segundo antes, não haveria problema.

A garota já estava quase que acostumada a sentir olhos invisíveis naquela vasta câmara. São só as colunas, as sombras e todo este espaço vazio. Ainda assim, torceu para que nem Amys nem Nynaeve demorassem muito. Mas demorariam. O tempo podia ser tão estranho em Tel’aran’rhiod quanto em qualquer sonho, mas com certeza ainda faltava uma longa hora para o encontro marcado. Talvez Egwene tivesse tempo para…

De repente, percebeu que estava ouvindo vozes — como sussurros distantes em meio às colunas. Agarrando saidar, moveu-se cautelosamente em direção ao som, para o local onde Rand deixara Callandor sob o grande domo. As Sábias afirmavam que, ali, ter controle sobre Tel’aran’rhiod conferia tanto poder quanto canalizar saidar, mas Egwene conhecia bem melhor suas habilidades com o Poder, e confiava mais nelas. Ainda escondida atrás de grossas colunas de pedra vermelha, ela parou e observou.

Não era uma dupla de irmãs Negras, como temera, e também não era Nynaeve. Em vez disso, ali estava Elayne, perto do cabo brilhante de Callandor, que se erguia das pedras do piso, absorta em uma conversa tranquila com uma mulher vestida da maneira mais estranha que Egwene já tinha visto. Usava um casaco branco curto de corte peculiar e calças amarelas com dobras na altura do tornozelo, logo acima de botas de cano curto com saltos altos. Uma intrincada trança de cabelos dourados caía pelas costas, e a mulher tinha nas mãos um arco que reluzia feito prata polida. As flechas na aljava também brilhavam.

Egwene fechou os olhos. Primeiro, as dificuldades com o vestido, depois aquilo. Ler a respeito de Birgitte — o arco de prata certamente a identificara — não era razão para imaginar vê-la. Birgitte esperava, em algum lugar, que a Trombeta de Valere convocasse não só ela, mas a todos os outros heróis para a Última Batalha. Mas, quando Egwene voltou a abrir os olhos, Elayne e aquela mulher de roupa estranha ainda estavam lá. Não entendia o que as duas estavam dizendo, mas desta vez acreditou no que viu. Estava a ponto de dar as caras e anunciar sua presença quando, atrás dela, ouviu-se uma voz.

— Decidiu vir mais cedo? E sozinha?

Egwene girou e ficou diante de Amys, seu rosto bronzeado jovem demais para os cabelos brancos, bem como de Bair e suas bochechas coriáceas. Ambas estavam de pé com os braços cruzados no peito. Até a maneira como os xales estavam apertados contra o corpo sinalizava desprazer.

— Peguei no sono — respondeu Egwene.

Estava adiantada demais para que sua mentira funcionasse. Mesmo enquanto explicava depressa o fato de ter cochilado e o porquê de não ter retornado, tirando a parte sobre não querer que Nynaeve e Amys conversassem sozinhas, a garota ficou surpresa em sentir um quê de vergonha por ter pensado em mentir, e alívio por não tê-lo feito. Não que a verdade fosse necessariamente salvá-la. Amys não era tão rígida quanto Bair — por pouco —, mas era bem capaz de mandá-la ficar empilhando rochas até o fim da noite. Muitas Sábias usavam trabalho inútil como forma de punição. Não havia como se enganar dizendo que se tratava de algo diferente do cumprimento de um castigo quando se estava enterrando cinzas com uma colher. Isso se elas simplesmente não se recusassem a ensiná-la mais nada, claro.

Egwene não conseguiu conter um suspiro de alívio quando Amys assentiu e disse:

— Acontece. Mas, na próxima vez, volte e sonhe seus sonhos. Eu poderia ter ouvido o que Nynaeve tem a dizer e contado a ela o que sabemos. Se Melaine não estivesse com Bael e Dorindha hoje à noite, também estaria aqui. Você assustou Bair. Ela está orgulhosa do seu progresso, e, se algo acontecesse com você…

Bair não parecia orgulhosa. Ao contrário, franziu ainda mais o cenho quando Amys fez uma pausa.

— Você tem sorte de Cowinde ter voltado para recolher seu jantar e ficado preocupada de você não acordar para ir para a cama. Se eu achasse que você passou mais do que alguns poucos minutos aqui sozinha… — Por um momento, seu olhar se aguçou, prometendo algo terrível, e depois a voz ficou mal-humorada. — Agora suponho que tenhamos que esperar Nynaeve chegar, só para evitar ouvir você implorando, se a mandarmos embora. Se temos que esperar, está bem, mas vamos usar o tempo em nosso benefício. Concentre sua mente em…

— Não é Nynaeve — disse Egwene, às pressas. Não queria saber como seria uma aula com Bair naquele estado de espírito. — É Elayne, e… — Sua voz foi falhando enquanto ela se virava. Elayne, trajando uma elegante seda verde apropriada para um baile, caminhava de um lado para outro, não muito longe de Callandor. Não se via Birgitte em lugar nenhum. Eu não estava imaginando coisas.

— Ela já está aqui? — questionou Amys, movendo-se para um local de onde também conseguiria enxergar.

— Outra jovem tola — resmungou Bair. — As garotas de hoje em dia têm menos cérebro e disciplina do que cabras. — Ela saiu andando à frente de Egwene e Amys e se plantou diante de Elayne, do outro lado do cabo reluzente de Callandor, as mãos na cintura. — Você não é minha pupila, Elayne de Andor, embora já tenha extraído de nós o suficiente para evitar que morra aqui, caso tenha cuidado, mas, se fosse eu, a açoitaria da cabeça aos pés e a mandaria de volta para a sua mãe até você estar crescida o bastante para poder ficar longe dos olhos dela. E acho que isso poderia levar tantos anos quanto os que você já viveu. Sei que tem vindo sozinha ao Mundo dos Sonhos, você e Nynaeve. São duas tolas.

Elayne levou um susto quando as mulheres apareceram, mas, conforme a bronca de Bair se desenrolava, ela se empertigou, o queixo erguido daquele jeito gélido. O vestido da garota se tornou vermelho e adquiriu um brilho ainda mais bonito, além de ganhar um bordado nas mangas e em torno do corpete alto, incluindo leões brancos empinando sobre duas patas e lírios dourados, sua própria insígnia. Uma fina tiara dourada repousava em seus cachos louro-avermelhados, um único leão empinando confeccionado com pedras-da-lua acima das sobrancelhas. Elayne ainda não controlava aquilo muito bem. Por outro lado, talvez estivesse usando exatamente o que pretendia, daquela vez.

— Agradeço sinceramente sua preocupação — disse ela de forma majestosa. — Porém, é verdade que não sou sua pupila, Bair dos Shaarad Haido. Sou grata pela orientação, mas preciso trilhar meu próprio caminho nas tarefas que me foram incumbidas pelo Trono de Amyrlin.

— Uma morta — retrucou Bair friamente. — Você reafirma sua obediência a uma mulher morta.

Egwene quase sentia os pelos de Bair eriçados de raiva. Se não fizesse algo, a mulher poderia decidir ensinar a Elayne uma lição dolorosa. A última coisa de que precisavam era daquele tipo de confusão.

— O que… Por que você está aqui, em vez de Nynaeve? — Ia perguntar o que Elayne estava fazendo ali, mas aquilo teria dado uma abertura a Bair, e talvez soasse como se ela estivesse do lado da Sábia. O que queria perguntar era o que Elayne estivera fazendo ao conversar com Birgitte. Eu não estava imaginando coisas. Talvez fosse alguém sonhando que era Birgitte. Mas só quem entrava propositalmente em Tel’aran’rhiod permanecia ali por mais que alguns minutos, e Elayne decerto não teria ficado falando com nenhuma dessas pessoas. E onde Birgitte e os outros heróis ficavam esperando?

— Nynaeve está tratando de uma dor de cabeça. — A tiara sumiu, e o vestido de Elayne se tornou mais simples, com apenas alguns arabescos dourados em torno do corpete.

— Ela está doente? — indagou Egwene, preocupada.

— Só umas dores de cabeça e um ou dois machucados. — Elayne deu risada e fez careta ao mesmo tempo. — Ah, Egwene, você não ia acreditar. Os quatro Chavanas tinham ido jantar conosco. Para flertar com Nynaeve, na verdade. Tentaram flertar comigo nos primeiros dias, mas Thom teve uma conversinha com eles, e eles pararam. Thom não tinha o direito de fazer isso. Não que eu quisesse que flertassem comigo, entende. De qualquer forma, eles estavam lá, flertando com Nynaeve, ou tentando, já que ela prestava tanta atenção neles quanto em moscas zumbindo, quando Latelle chegou e começou a bater em Nynaeve com um pedaço de pau, xingando-a de todos os nomes.

— Ela se machucou? — Egwene não tinha certeza sobre de qual das duas estava falando. Se o gênio de Nynaeve fosse atiçado…

— Ela, não. Os Chavanas tentaram tirar Nynaeve de cima de Latelle, e é provável que Tearic manque por alguns dias, sem falar no lábio inchado de Brugh. Petra precisou carregar Latelle até o carroção, e duvido que ela ponha o nariz para fora durante algum tempo. — Elayne balançou a cabeça. — Luca não sabia a quem culpar. Com um dos acrobatas capenga e a treinadora de ursos chorando na cama, ele acabou culpando todo mundo, e achei que Nynaeve também fosse dar uns tapas nele. Pelo menos ela não canalizou. Uma ou duas vezes eu achei que fosse, até ela conseguir derrubar Latelle.

Amys e Bair trocaram olhares indecifráveis. Aquela certamente não era a maneira como esperavam que Aes Sedai se comportassem.

Egwene também ficou um pouco confusa, principalmente de tentar acompanhar todos aqueles nomes que só ouvira de passagem. Pessoas estranhas viajando com leões, cães e ursos. E uma Iluminadora. Não acreditava que o tal de Petra fosse mesmo tão forte quanto Elayne dizia. Mas, em todo caso, Thom estava comendo fogo e fazendo malabarismo, e o que Elayne e Juilin faziam soava tão estranho quanto, mesmo que ela usasse o Poder.

Se Nynaeve tivesse ficado com raiva a ponto de canalizar… Elayne deveria ter visto o brilho dela agarrando saidar. Com ou sem um motivo real para se esconder, as duas não permaneceriam ocultas por muito tempo, caso alguma delas canalizasse de modo que as pessoas percebessem. Os espiões da Torre certamente ficariam sabendo. Aquele tipo de notícia viajava rápido, ainda mais se estivessem em Amadícia.

— Então avise a Nynaeve que é melhor ela controlar o gênio, ou vai ganhar um sermão que não vai gostar de ouvir. — Elayne pareceu surpresa, já que Nynaeve certamente não lhe contara o que se passara entre as duas, e Egwene acrescentou: — Se ela canalizar, você pode ter certeza de que Elaida vai ficar sabendo tão rápido quanto um pombo conseguir voar até Tar Valon.

Não podia dizer mais nada. Aquilo já causou outra troca de olhares entre Amys e Bair. O que elas pensavam sobre a Torre estar dividida e sobre uma Amirlyn que, até onde se sabia, dera ordens para que uma Aes Sedai fosse drogada, nenhuma das duas jamais revelara. Quando queriam, as Sábias podiam fazer Moiraine parecer a fofoqueira da aldeia.

— Na verdade, queria estar sozinha com vocês duas. Se estivéssemos na Torre, nos nossos antigos quartos, eu diria umas palavrinhas para vocês.

Elayne se enrijeceu de modo tão régio e sereno quanto havia feito com Bair.

— Você pode falar comigo sempre que desejar.

Será que Elayne entendera? Sozinha: longe das Sábias. Na Torre. Egwene só podia torcer. Era melhor mudar de assunto e esperar que as Sábias não analisassem suas palavras com tanto cuidado quanto queria que Elayne fizesse.

— Essa briga com Latelle vai causar problemas? — No que Nynaeve estava pensando? Em casa, ela teria feito qualquer mulher de sua idade que agisse daquele jeito ser levada tão rápido ao Círculo das Mulheres que os olhos saltariam do rosto. — A esta altura, vocês já devem estar quase em Ghealdan.

— Mais três dias, segundo Luca, se tivermos sorte. O conjunto não viaja tão rápido.

— Talvez já seja hora de abandoná-lo.

— Talvez — respondeu Elayne, hesitante. — Eu realmente gostaria de andar nos ares na frente de… — Balançando a cabeça, ela olhou para Callandor. A gola do vestido baixou subitamente e logo tornou a subir. — Não sei, Egwene. Não conseguiríamos viajar muito mais rápido sozinhos, e ainda não sabemos exatamente para onde ir. — Aquilo indicava que Nynaeve não se lembrara de onde as Azuis estavam reunidas. Caso o relatório para Elaida estivesse correto. — Sem falar que Nynaeve talvez surte se tivermos que abandonar o carroção para comprar cavalos encilhados ou mais uma carruagem. Além do mais, estamos aprendendo um bocado sobre os Seanchan. Cerandin serviu como tratadora de s’redit na Corte das Nove Luas, sede do trono da Imperatriz Seanchan. Ontem ela nos mostrou coisas que pegou quando fugiu de Falme. Egwene, ela tinha um a’dam.

Egwene deu um passo à frente, as saias roçando Callandor. As armadilhas de Rand não eram físicas, independentemente do que Nynaeve pensasse.

— Vocês têm certeza de que ela não era sul’dam? — Sua voz tremia de raiva.

— Tenho certeza — respondeu Elayne, tranquilizadora. — Eu mesma pus o a’dam nela, e não teve nenhum efeito.

Aquele era um segredinho do qual nem mesmo os Seanchan sabiam, ou, se sabiam, escondiam muito bem. Suas damane eram mulheres nascidas com a centelha, mulheres que acabariam canalizando, mesmo que não fossem treinadas. Mas as sul’dam, que controlavam as damane, eram as mulheres que não conseguiriam um domínio profundo do Poder sem treinamento. Os Seanchan pensavam que mulheres capazes de canalizar eram animais perigosos que precisavam ser controlados, e mesmo assim, sem perceber, davam a elas uma posição de honra.

— Eu não entendo esse interesse pelos Seanchan. — Amys pronunciou o nome de modo estranho. Nunca ouvira falar naquilo até Elayne tocar no assunto, no último encontro. — O que fazem é terrível, mas eles se foram. Rand al’Thor os derrotou, e eles fugiram.

Egwene virou as costas e encarou as imensas colunas polidas que se estendiam até as sombras.

— “Se foram” não significa dizer que não voltarão mais. — Não queria que ninguém visse seu rosto, nem mesmo Elayne. — Temos que aprender tudo o que pudermos, caso um dia eles voltem.

Os Seanchan haviam colocado um a’dam nela, em Falme. Pretendiam enviá-la ao outro lado do Oceano de Aryth, até Seanchan, para que passasse o resto da vida feito um cão em uma coleira. Sentia uma fúria brotar dentro de si toda vez que pensava neles. E um medo também. Medo de que, se eles de fato retornassem, acabassem conseguindo capturá-la e mantê-la cativa. Era isso que não podia deixar que as mulheres percebessem: o completo terror que sabia que transparecia em seus olhos.

Elayne tocou o braço dela.

— Se eles realmente voltarem, estaremos prontas — disse, com a voz gentil. — Eles não nos pegarão desprevenidas e ignorantes de novo. — Egwene lhe deu um tapinha na mão, embora quisesse mesmo apertá-la. Elayne compreendia mais do que Egwene desejava, mas, ao mesmo tempo, isso era reconfortante.

— Vamos terminar o que nos trouxe até aqui — ordenou Bair, enérgica. — Você precisa dormir de verdade, Egwene.

— Mandamos gai’shain tirarem sua roupa e colocarem você debaixo dos cobertores. — Surpreendentemente, Amys soou tão gentil quanto Elayne. — Quando retornar ao seu corpo, vai poder dormir até de manhã.

As bochechas de Egwene enrubesceram. Pelos modos Aiel, alguns daqueles gai’shain podiam muito bem ser homens. Teria que falar com as Sábias sobre o assunto — com delicadeza, claro. As mulheres não entenderiam, e não se tratava de algo que ela ficaria à vontade em explicar.

O medo tinha desaparecido, percebeu. Parece que tenho mais medo de passar vergonha do que dos Seanchan. Não era verdade, mas se agarrou àquele pensamento.

De fato, havia muito pouco para contar a Elayne: finalmente estavam em Cairhien, Couladin devastara Selean e arrasara as terras vizinhas, e os Shaido ainda estavam dias à frente e se deslocando para oeste. As Sábias tinham mais informações que ela, já que não haviam ido imediatamente para suas tendas, ao fim do dia. Houvera alguns conflitos à noite, pequenos e com poucos participantes, uns homens montados que fugiram rápido. E outros homens a cavalo tinham sido avistados, mas foram embora sem lutar. Não houvera captura de prisioneiros. Moiraine e Lan pareciam pensar que os cavaleiros podiam ser bandidos ou partidários de uma ou outra Casa que estava tentando tomar o Trono do Sol. Todos igualmente maltrapilhos. Quem quer que fossem, a notícia de que havia mais Aiel em Cairhien logo se espalharia.

— Eles acabariam sabendo mais cedo ou mais tarde. — Foi o único comentário de Elayne.

Egwene ficou observando enquanto Elayne e as Sábias desapareciam — parecia que a garota e o Coração da Pedra estavam se desvanecendo. Sua amiga de cabelos dourados não deu nenhum sinal de que entendera a mensagem.

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