37 Apresentações em Samara

Pelo que parecia ser a centésima vez, Nynaeve ergueu uma mecha do cabelo para examiná-la, então suspirou. Murmúrios abafados e risadas de centenas, senão milhares de pessoas, e uma música distante quase inaudível penetravam as paredes do carroção. Não se incomodara em passar todo o desfile pelas ruas de Samara dentro do carroção com Elayne — olhadelas ocasionais pelas janelas haviam-na convencido de que não preferiria estar em meio à multidão, berrando e tentando abrir caminho para os carroções —, mas, a cada vez que olhava para o cabelo recém-pintado de vermelho, desejava estar dando cambalhotas com os Chavanas, em vez de tingindo os fios.

Tomando o cuidado de não olhar para si mesma, Nynaeve se enrolou por inteiro no xale simples cinza-escuro, virou se, e tomou um susto ao dar de cara com Birgitte à porta. A mulher passara o desfile no carroção de Clarine e Petra, com Clarine ajustando um vestido vermelho sobressalente que Luca mandara fazer para Nynaeve. O homem dera a ordem antes mesmo que Nynaeve concordasse em usar o traje. Birgitte usava o vestido, a trança tingida de preto caindo pelo ombro de modo a se aninhar entre os seios, totalmente indiferente ao ousado decote quadrado. Só de olhar para a mulher, Nynaeve apertou ainda mais o xale. Birgitte não poderia exibir uma nesga a mais do busto pálido, se quisesse manter qualquer nível de decência. Do jeito que estava, o nível já era baixo, bastante escandaloso até. Olhar para a mulher fez o estômago de Nynaeve se embrulhar, mas não por causa da roupa ou da pele exposta.

— Se vai usar o vestido, por que se cobrir? — Birgitte entrou e fechou a porta atrás de si. — Você é mulher. Por que não se orgulhar disso?

— Se você acha que eu não deveria… — respondeu Nynaeve de modo hesitante, deixando o xale deslizar bem devagar até os ombros e revelando o irmão gêmeo do vestido de Birgitte. Sentia-se praticamente nua. — Eu só pensei… Eu pensei… — Segurando com força a saia de seda para manter as mãos nas laterais do corpo, sustentou o olhar da outra mulher. Mesmo sabendo que estava usando a mesma roupa, era mais fácil não olhar.

Birgitte sorriu.

— E se eu quisesse que você baixasse a gola mais uma polegada?

Nynaeve abriu a boca, o rosto ficando tão rubro quanto o vestido, mas, por um momento, não emitiu nenhum som. Quando alguma coisa saiu, ela soou como se estivesse sendo estrangulada.

— Não existe essa polegada para baixar. Olhe para o seu. Não existe nem um fio de cabelo!

Birgitte deu três passos rápidos, a testa franzida, e se curvou levemente para ficar com o rosto colado ao de Nynaeve.

— E se eu dissesse que quero que você baixe essa polegada? — rosnou ela, mostrando os dentes. — E se eu quisesse pintar seu rosto, para que Luca pudesse ter o bobo dele? E se eu arrancasse as suas roupas e lhe pintasse da cabeça aos pés? Que belo alvo você se tornaria. Todos os homens a menos de cinquenta milhas daqui viriam assistir.

Nynaeve moveu os lábios, mas, desta vez, nenhum som emergiu. Ela queria muito fechar os olhos. Talvez, quando os abrisse, nada daquilo estivesse acontecendo.

Com um meneio desgostoso de cabeça, Birgitte se sentou em uma das camas, cotovelo no joelho, e os olhos azuis penetrantes.

— Isso precisa parar. Quando eu olho na sua direção, você se encolhe. Fica me paparicando o tempo todo. Se olho de relance para um banquinho, você vai buscar um. Se passo a língua nos lábios, você põe um copo de vinho na minha mão antes que eu me dê conta de que estou com sede. Você lavaria as minhas costas e colocaria chinelos nos meus pés, se eu deixasse. Não sou nem um monstro, nem uma inválida, e nem uma criança, Nynaeve.

— Só estou tentando compensar o… — começou ela timidamente, dando um pulo quando a outra rugiu.

— Compensar? Você está tentando me diminuir!

— Não. Não é nada disso, de verdade. A culpa é minha por…

— Você se responsabiliza pelos meus atos — interrompeu Birgitte, com ferocidade. — Eu decidi falar com vocês em Tel’aran’rhiod. Eu decidi ajudar. Eu decidi rastrear Moghedien. E eu decidi levar você para falar com ela. Eu! Não foi você, Nynaeve, fui eu! Em nenhum momento fui sua marionete, seu cãozinho de caça, e não é agora que vou ser.

Nynaeve engoliu em seco e agarrou as saias com ainda mais força. Não tinha o direito de ficar com raiva daquela mulher. Nenhum direito. Mas Birgitte, sim.

— Você fez o que eu pedi. A culpa é minha por… por você estar aqui. A culpa é toda minha!

— E eu falei em culpa? Não vejo culpa nenhuma. Só homens e garotas idiotas assumem culpa onde ela não existe, e você não é nenhuma das duas coisas.

— Foi meu orgulho bobo que me fez pensar que eu poderia derrotar Moghedien de novo, e foi a minha covardia que fez com que ela… com que ela… Se eu não tivesse ficado com tanto medo que não conseguia nem cuspir, talvez pudesse ter feito algo a tempo.

— Covarde? — Os olhos de Birgitte se arregalaram, claramente incrédulos, e sua voz ganhou um quê de desdém. — Você? Achei que tivesse bom senso suficiente para não confundir medo com covardia. Você poderia ter fugido de Tel’aran’rhiod quando Moghedien a soltou, mas ficou lá para lutar. Não é responsabilidade ou culpa sua não ter conseguido. — Birgitte respirou fundo, esfregou a testa por um momento e voltou a se inclinar para a frente, séria. — Escute bem o que vou dizer, Nynaeve. Eu não me sinto culpada pelo que fizeram com você. Eu vi, mas não podia me mexer. Se Moghedien tivesse lhe amarrado feito um nó ou lhe descaroçado feito uma maçã, eu ainda não me responsabilizaria. Fiz o que pude, quando pude. E você fez o mesmo.

— Não foi igual. — Nynaeve tentou diminuir o fervor na voz. — A culpa de você estar lá foi minha. A culpa de você estar aqui é minha. Se você… — Ela tornou a parar para engolir. — Se você… errar… quando atirar em mim hoje, quero que saiba que eu vou entender.

— Eu não erro a mira — respondeu Birgitte, seca —, e não é em você que eu vou mirar.

Ela começou a retirar objetos de um dos armários e a colocá-los na mesinha. Flechas semiacabadas, hastes raspadas, pontas de aço para flechas, um pote de cola de sapateiro, fios bem finos e penas de ganso para a plumagem. Ela dissera que também faria o próprio arco, assim que possível. Chamara o arco de Luca de “galho torto arrancado de uma árvore morta por um idiota cego, e no meio da noite”.

— Eu gostava de você, Nynaeve — comentou enquanto depositava os objetos. — Com todos os defeitos e imperfeições. Mas, desse jeito de agora, já não gosto mais…

— Você não tem motivos para gostar de mim agora — respondeu Nynaeve, infeliz, mas Birgitte emendou, sem nem levantar a cabeça:

— … e não vou permitir que você me diminua, que diminua as minhas decisões, ao assumir responsabilidade por elas. Tive poucas amigas, mas a maioria era geniosa feito espectros de neve.

— Eu queria que você pudesse voltar a ser minha amiga. — O que, sob a Luz, era um espectro de neve? Alguma coisa de outra Era, sem dúvida. — Eu jamais tentaria diminuir você, Birgitte. Eu só…

Birgitte ignorou-a, mas levantou a voz. Toda a atenção da mulher parecia estar nas hastes das flechas.

— Eu queria voltar a gostar de você, sendo isso recíproco ou não, mas só vou conseguir se você voltar a ser quem era. Eu conseguiria aturá-la mesmo que você fosse uma bebê chorona irritante, se fosse mesmo o seu jeito. Aceito as pessoas como elas são, não como eu gostaria que fossem, ou então deixo para lá. Mas você não é assim, e eu não vou aceitar seus motivos para agir desse jeito. Enfim. Clarine me contou sobre sua briga com Cerandin. Agora já sei o que fazer na próxima vez em que você se apropriar das minhas decisões. — Ela fez o pedaço de um galho de freixo zunir vigorosamente. — Tenho certeza de que Latelle vai ficar feliz de providenciar a vara.

Nynaeve se forçou a relaxar a mandíbula e a suavizar o tom de voz o máximo possível.

— Você tem todo o direito de fazer o que bem entender comigo. — Junto às saias, seus punhos tremiam mais que a voz.

— Estou vendo um pouquinho do seu temperamento? Só a pontinha? — Birgitte sorriu para ela, bem-humorada e surpreendentemente ferina. — Quanto tempo até explodir? Estou disposta a gastar a quantidade de varas que for necessária. — O sorriso se dissipou, e ela ficou séria. — Ou consigo fazer você enxergar direito a situação, ou a quero longe de mim. Não tem outra saída. Eu não posso e não vou me afastar de Elayne. Esse elo me honra, e vou honrá-lo, e a ela. E não vou deixar você pensar que toma decisões por mim, ou que tomou. Eu sou eu mesma, não um apêndice seu. Agora vá embora. Preciso terminar estas flechas, caso queira ter algumas hastes que voem direito. Não pretendo matar você, e não vou deixar que aconteça por acidente. — Ela desarrolhou o pote de cola e se curvou sobre a mesa. — Quando for sair, não se esqueça de agir como uma boa garota e fazer uma reverência.

Nynaeve só conseguiu chegar aos degraus antes de bater o punho na coxa, furiosa. Como ela ousava? Será que pensava que podia simplesmente…? Achava que Nynaeve ia aturar…? Pensei que ela pudesse fazer o que quisesse com você, uma vozinha sussurrou em sua mente. Eu disse que ela podia me matar, rosnou de volta, não me humilhar! Dali a bem pouco tempo, todo mundo a estaria ameaçando com aquela maldita Seanchan!

Os carroções estavam abandonados, exceto por alguns tratadores de cavalos usando casacos grosseiros que montavam guarda perto da alta cerca de tela que fora erguida para abrigar o espetáculo de Luca. Daquele grande prado de grama marrom, a meia milha de Samara, as muralhas de pedra cinza da cidade eram claramente visíveis, com as torres atarracadas nos portões e alguns dos edifícios mais altos despontando os telhados de palha ou de telha. Fora das muralhas, aldeias de choupanas toscas e cabanas brotavam feito cogumelos em todas as direções, repletas dos seguidores do Profeta, que tinham arrancado todas as árvores que existiam por milhas e milhas para fazer construções ou ter lenha para fogueiras.

Os clientes entravam no espetáculo pelo outro lado, mas dois dos tratadores de cavalos, munidos de porretes robustos, ficavam por ali para desencorajar qualquer pessoa que não quisesse pagar e resolvesse usar a entrada dos artistas. Nynaeve estava se aproximando, andando rápido e resmungando sozinha, furiosa, quando os sorrisos idiotas dos dois homens fizeram com que ela se desse conta de que o xale ainda estava enrolado nos ombros. O olhar que ela lhes lançou fez desaparecer os risinhos bestas. Foi só então que, bem devagar, Nynaeve se cobriu de maneira adequada. Não queria que aqueles dois estúpidos pensassem que podiam fazê-la ofegar e pular. O magrelo, dono de um nariz que ocupava metade do rosto, segurou a aba da tela para o lado, e ela se agachou e adentrou o pandemônio.

Havia gente aglomerada por toda parte, em amontoados barulhentos de homens, mulheres e crianças, em torrentes que tagarelavam enquanto fluíam de uma atração à outra. Tirando os s’redit, todos se apresentavam em palcos de madeira que Luca mandara construir. Os cavalos-javali de Cerandin atraíam o maior público; os imensos animais cinzentos, incluindo o bebê, se equilibravam nas patas dianteiras, as trombas compridas curvadas sinuosamente para cima. Já os cães de Clarine, mesmo dando cambalhotas para trás e saltando por cima uns dos outros, atraíam o menor. Uma boa quantidade de pessoas parava para encarar os leões e os peludos capars, que pareciam javalis; o veado de chifres estranhos de Arafel, Saldaea e Arad Doman; e os reluzentes pássaros de só a Luz sabia onde, além de algumas criaturas de pelagem marrom e cheias de ginga, com olhos grandes e orelhas redondas, que ficavam sentadas placidamente comendo folhas dos galhos que apanhavam com as patas da frente. A história que Luca contava sobre o local de onde aqueles animais vinham variava — Nynaeve supunha que ele não sabia —, e ainda não encontrara um nome que o satisfizesse. Uma enorme serpente dos pântanos de Illian, quatro vezes maior que um homem, arrancava tantos arquejos quanto os s’redit, embora só ficasse ali parada, aparentemente dormindo. Mas Nynaeve ficou contente ao ver que os ursos de Latelle, naquele momento de pé, rolando em cima de imensas bolas vermelhas de madeira, atraíam pouco mais público que os cães. Aquela gente podia avistar ursos nas próprias florestas, ainda que os da comitiva tivessem a cara branca.

Com suas lantejoulas pretas, Latelle cintilava sob o sol vespertino. De azul, Cerandin brilhava quase o mesmo tanto, assim como Clarine, de verde, embora nenhuma das duas usasse tantos paetês quanto Latelle. E todos os vestidos tinham a gola bem alta, sob o queixo. Claro que Petra e os Chavanas se apresentavam usando apenas reluzentes calças azuis, mas era apenas para exibir os músculos. Bem compreensível. Os acrobatas estavam um sobre os ombros do outro, em colunas de quatro. Não muito longe, o culturista erguia uma barra comprida com uma grande bola de ferro em cada ponta — foram necessários dois homens para entregar aquele troço para ele — e, de imediato, começou a girá-la nas mãos maciças, chegando até a rodopiar a barra em volta do pescoço e das costas.

Thom fazia malabares com fogo, que também engolia. Oito bastões em chamas formavam um círculo perfeito. Então, de repente, ele tinha quatro em cada mão, um dos objetos despontando de cada aglomerado. Enfiando na boca com destreza cada uma das extremidades em chamas, o homem parecia engolir, depois as tirava da boca já apagadas, dando a impressão de ter acabado de comer algo saboroso. Nynaeve não entendia como ele não esturricava o bigode, muito menos como não queimava a garganta. Bastava ele girar os pulsos para os bastões apagados se dobrarem sobre os acesos feito ventarolas. No momento seguinte, já estavam formando dois círculos interligados acima da cabeça dele. Thom usava o mesmo casaco marrom de sempre, embora Luca tivesse dado um vermelho com paetês providenciado. Pelo modo como as sobrancelhas espessas dele se ergueram quando ela passou, Thom não entendeu por que Nynaeve o fuzilou com os olhos. Usando o próprio casaco!

Ela seguiu às pressas em direção à multidão apertada, alvoroçada e impaciente que cercava os dois altos postes com uma corda firmemente estendida entre eles. Nynaeve teve de usar os cotovelos para chegar à fileira da frente, apesar de duas mulheres a terem encarado e arrancado os maridos de seu caminho quando o xale escorregou. Se não estivesse tão ocupada enrubescendo e se cobrindo, teria devolvido o olhar. Luca estava lá, parecendo ansioso como um marido do lado de fora do quarto de parto, junto de um sujeito robusto com a cabeça toda raspada, exceto por um coque grisalho. Nynaeve se esgueirou para o outro lado de Luca. O homem da cabeça raspada tinha uma aparência perversa. Uma longa cicatriz cortava a bochecha esquerda, e usava um tapa-olho naquele mesmo lado com um olho ameaçador pintado em vermelho. Poucos homens que vira ali estavam armados com mais do que uma adaga, mas aquele usava uma espada presa às costas, o punho comprido se erguendo acima do ombro direito. Por algum motivo, parecia vagamente familiar, mas o pensamento de Nynaeve estava todo voltado para a corda bamba. Luca franziu o cenho ao ver o xale, sorriu para ela e tentou passar o braço em torno de sua cintura.

Enquanto ele ainda tentava recuperar o fôlego por conta da cotovelada desferida por Nynaeve, e ela ainda reposicionava o xale em um lugar decente, Juilin surgiu vacilante em meio à multidão do lado oposto, o chapéu cônico vermelho inclinado de um jeito malandro, o sobretudo caindo de um dos ombros, e uma caneca de madeira transbordando na mão. Com passos excessivamente cautelosos de um homem cuja cabeça contém mais vinho que miolos, ele se aproximou da escada de corda que levava até o topo de uma das altas plataformas e olhou para cima.

— Suba! — gritou alguém. — Quebre esse pescoço tolo!

— Espere, amigo — clamou Luca, avançando com sorrisos e floreios da capa. — Aqui não é lugar para um homem com a barriga cheia de…

Juilin pousou a caneca no chão e disparou escada acima, chegando cambaleante na plataforma. Nynaeve prendeu a respiração. O homem era bom com lugares altos, o que não era de se estranhar, após uma vida inteira perseguindo ladrões nos telhados de Tear, mas, ainda assim…

Juilin se virou como se estivesse perdido. Parecia bêbado demais para ver ou se lembrar da escada. Os olhos se fixaram na corda. Hesitante, ele pôs um dos pés na corda estreita, então o recolheu. Empurrando o chapéu para trás para coçar a cabeça, examinou a corda retesada e, de repente, ficou visivelmente animado. Abaixou-se devagar até se apoiar nas mãos e nos joelhos e engatinhou, oscilante, até a corda. Luca gritou para que ele descesse, e a multidão gargalhou.

Na metade da travessia, Juilin parou, balançando desajeitadamente, e deu uma espiada para trás, os olhos se fixando na caneca que deixara no chão. Estava claramente conjecturando como voltar para apanhá-la. Devagar, com muito cuidado, o homem se levantou na direção do caminho que já percorrera, vacilando para um lado e para o outro. Um arquejo irrompeu da multidão quando seu pé escorregou e ele caiu, conseguindo se agarrar de algum modo com uma mão e um joelho enganchados na corda. Luca apanhou o chapéu taraboniano quando ele pousou no chão e gritou para todos que aquele homem era maluco e que não era responsável pelo que acontecesse. Nynaeve apertou o estômago com força. Imaginava-se lá em cima, e só isso era o bastante para deixá-la enjoada. O homem era um idiota. O mais perfeito e completo idiota!

Demonstrando dificuldade, Juilin deu um jeito de agarrar a corda com a outra mão e foi se movendo ao longo de sua extensão. Até a plataforma mais distante. Cambaleante, ele limpou o sobretudo, tentou puxar para endireitá-lo, conseguindo apenas mudar o ombro em que a roupa estava caída, e identificou a caneca no chão, junto ao outro poste. Apontando para ela de um jeito animado, tornou a pisar na corda.

Desta vez, pelo menos metade dos espectadores gritou para que o homem voltasse, que havia uma escada atrás dele. Os demais só fizeram soltar gargalhadas rotundas, sem dúvida torcendo para que quebrasse o pescoço. O homem atravessou a corda bamba tranquilamente, deslizou pela escada com as mãos e os pés nas laterais e apanhou a caneca de madeira para dar uma enorme golada. Foi só quando Luca estalou o chapéu vermelho na cabeça de Juilin e ambos se curvaram — Luca fazendo floreios com a capa que metade das vezes cobriam Juilin —, que os espectadores perceberam que tudo havia sido parte da apresentação. Houve um momento de silêncio, então todos explodiram em aplausos, vivas e gargalhadas. Chegara a passar pela cabeça de Nynaeve que as coisas fossem ficar feias depois de a plateia ter sido ludibriada. O sujeito de coque tinha um ar vil mesmo quando ria.

Luca deixou Juilin perto da escada e voltou para se colocar entre Nynaeve e o homem de coque.

— Achei que fosse dar certo. — Ele parecia incrivelmente satisfeito consigo mesmo, e fazia pequenas reverências para o público, como se tivesse sido ele na corda lá no alto.

Nynaeve o olhou com irritação, mas não teve tempo de fazer o comentário ácido que tinha na ponta da língua, já que Elayne veio saltando em meio à multidão e se pôs ao lado de Juilin, os braços erguidos e um dos joelhos dobrados.

Nynaeve apertou os lábios e mexeu no xale de um jeito irritado. Apesar do que achava do vestido vermelho que nem sabia como acabara usando, não tinha certeza se o figurino de Elayne não era ainda pior. A Filha-herdeira de Andor usava uma roupa branca como a neve, paetês brilhando aqui e ali no casaco curto e nas calças justas. Nynaeve duvidara de que Elayne realmente apareceria em público com aquelas roupas, mas estivera preocupada demais com a própria indumentária para dar sua opinião. O casaco e as calças fizeram-na pensar em Min. Nunca aprovara o fato de Min usar roupas de menino, mas a cor e as lantejoulas tornavam aquelas vestimentas ainda mais… descaradas.

Juilin segurou a escada de corda para Elayne subir, embora não houvesse necessidade. A garota subiu até o topo com tanta habilidade quanto ele. Juilin sumiu na multidão assim que ela chegou lá em cima, onde voltou a fazer poses, sorrindo radiante para os estrondosos aplausos como se estivesse sendo adulada por seus súditos. Quando a jovem pisou na corda — que, de alguma maneira, parecia ainda mais estreita do que quando Juilin estivera nela —, Nynaeve praticamente parou de respirar e não pensou mais nada sobre as roupas de Elayne ou as próprias.

Elayne deixou a plataforma para pisar na corda, os braços abertos, e sem canalizar um caminho de Ar. Devagar, foi caminhando pela corda, pé ante pé, sem jamais vacilar. Canalizar seria perigoso demais, caso Moghedien tivesse qualquer pista de onde elas estavam. A Abandonada ou as irmãs Negras poderiam estar em Samara, e sentiriam a urdidura. E, se não estivessem na cidade naquele momento, logo poderiam estar. Na plataforma oposta, Elayne parou para receber bem mais aplausos do que Juilin — Nynaeve não entendeu por quê — e começou a voltar. Quase no fim, girou suavemente, retornou à metade do caminho, tornou a girar. Então bambeou, recuperando-se por pouco. Nynaeve sentiu como se a mão de alguém estivesse apertando sua garganta. Com passadas lentas e ritmadas, a garota caminhou pela corda bamba e alcançou a plataforma, posando mais uma vez para gritos e aplausos ensurdecedores.

Nynaeve engoliu o coração e voltou a respirar, ofegante, mas sabia que ainda não havia acabado.

Elayne ergueu os braços e, de repente, fez uma estrela ao longo da corda, as mechas negras esvoaçando, as pernas cobertas de branco lampejando ao sol. Nynaeve gemeu e agarrou o braço de Luca quando a garota chegou à plataforma oposta, tropeçou na aterrissagem e freou quando já estava prestes a cair.

— Qual é o problema? — murmurou ele sob os arquejos que emergiam da multidão. — Você tem visto ela fazer isso toda noite desde Sienda. E em muitos outros lugares também, eu presumiria.

— Claro — respondeu Nynaeve, baixinho.

Com os olhos fixos em Elayne, mal se deu conta do braço que Luca passara em torno de seus ombros, pelo menos não o bastante para que tomasse qualquer providência. Nynaeve tentara convencer a garota a fingir um mau jeito no tornozelo, mas Elayne insistira que, depois de todos aqueles treinos usando o Poder, não precisava mais da ajuda. Talvez Juilin não precisasse — e aparentemente não mesmo —, mas Elayne nunca percorrera telhados à noite.

As estrelas do caminho de volta foram perfeitas, assim como a aterrissagem, mas Nynaeve não desviou o olhar nem afrouxou o aperto na manga de Luca. Após o que então pareceu uma inevitável pausa para os aplausos, Elayne retornou à corda para mais giros, uma das pernas subindo e descendo tão rápido que parecia permanecer esticada o tempo inteiro. Ela também se colocou lentamente de ponta-cabeça, em uma pose que a deixava ereta feito uma adaga, os dedos do pé, na sapatilha branca, apontados para o céu. E deu uma cambalhota para trás que fez o público perder o fôlego e a deixou balançando, recuperando o equilíbrio por um fio. Fora Thom Merrilin quem lhe ensinara aquilo, assim como a posição de ponta-cabeça.

Pelo canto do olho, Nynaeve avistou Thom um pouco atrás dela, os olhos cravados em Elayne e equilibrado na ponta dos pés. Parecia orgulhoso feito um pavão. Dava a impressão de estar pronto para correr à frente e apanhá-la, caso ela caísse. Se isso de fato acontecesse, Thom seria ao menos parcialmente culpado. Jamais deveria ter ensinado aquelas coisas para ela!

Uma última travessia fazendo estrelas, as pernas de branco aparecendo e sumindo, reluzindo ao sol, mais rápido que antes. Nynaeve não sabia daquela parte! Teria eviscerado Luca com a língua caso ele não tivesse resmungado cheio de raiva que Elayne ter acrescentado aquilo ao número só para ganhar mais aplausos era uma boa maneira de quebrar o pescoço. Uma pausa final para posar para mais aplausos, e Elayne, por fim, desceu.

Aos berros, o público correu na direção dela. Luca e quatro tratadores de cavalos com porretes cercaram a garota como se tivessem surgido por intermédio do Poder, mas mesmo assim, manco e tudo, Thom chegou primeiro.

Nynaeve pulou o mais alto que pôde, mal identificando Elayne ao olhar por cima de um bom número de cabeças. A garota não parecia assustada, nem mesmo desnorteada, com todas aquelas mãos acenando e tentando tocá-la, estendidas em meio aos seguranças que a cercavam. Com a cabeça erguida e o rosto ruborizado por todo o esforço, ainda mantinha uma graciosidade tranquila e majestosa ao ser escoltada para fora. Como era capaz de fazer aquilo, vestida como estava, Nynaeve simplesmente não conseguia imaginar.

— Tem o rosto igual ao de uma maldita rainha — resmungou sozinho o homem caolho. Ele não saíra correndo como os outros, apenas deixara a multidão passar. Vestido de modo grosseiro, com um casaco simples de lã cinza-escura, com certeza parecia forte o bastante para não ter medo algum de ser derrubado e pisoteado. Parecia bem inclinado a sacar aquela espada. — Que me queime por ser um fazendeiro tripa mole, mas ela tem coragem o bastante para ser uma maldita rainha.

Nynaeve ficou boquiaberta enquanto o homem se afastava a passos largos pelo meio do público, e não por causa do linguajar. Ou melhor, em parte por isso. Tinha se lembrado de onde o vira antes, um homem caolho, de coque, que não conseguia dizer duas frases sem proferir os xingamentos mais repugnantes.

Esquecendo-se de Elayne, que com certeza estava suficientemente segura, Nynaeve começou a abrir caminho na multidão para ir atrás do homem.

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