Um largo chapéu de palha protegia o rosto de Siuan do sol de fim de tarde enquanto ela permitia que Logain abrisse caminho pelo Portão Shilene de Lugard. As muralhas externas da cidade, altas e cinzentas, estavam precisando de reparos. Em dois pontos que conseguia divisar, desabamentos haviam reduzido a muralha a não mais que uma cerca alta. Min e Leane cavalgavam logo atrás, ambas cansadas do ritmo que o homem havia imposto nas últimas semanas, desde Fontes de Kore. Ele queria estar no comando, e não fora preciso muito para convencê-lo de que estava. Se Logain dizia a hora em que partiriam pela manhã, quando e onde parariam à noite, se guardava o dinheiro, e até se esperava que as mulheres não só servissem suas refeições, como as preparassem, para ela pouco importava. Na verdade, sentia pena do homem. Logain não tinha ideia do que Siuan planejava para ele. Um peixe grande no anzol para pegar um maior ainda, pensava ela, sombriamente.
No papel, Lugard era a capital de Murandy, o trono do Rei Roedran, mas os lordes murandianos juravam lealdade e depois se recusavam a pagar os impostos ou a fazer qualquer outra coisa que Roedran quisesse, e o povo agia da mesma forma. Murandy era uma nação só no papel, um povo que se mantinha unido por pouco: por uma suposta fidelidade ao rei ou à rainha — o trono mudava de mãos com bastante regularidade — e pelo medo de que Andor ou Illian pudessem reclamá-los, caso não mantivessem algum tipo de laço.
Muralhas de pedra entrecortavam a cidade, a maior parte em estado pior do que os bastiões exteriores, uma vez que Lugard crescera de modo desordenado ao longo dos séculos e fora dividida mais de uma vez entre nobres em conflito. Era uma cidade suja, com muitas das ruas largas sem pavimento e todas com bastante poeira. Homens de chapéus de copa alta e mulheres com aventais e saias que revelavam o tornozelo esquivavam-se entre os pesados comboios dos mercadores, enquanto crianças brincavam nos sulcos abertos pelos carroções. Era o comércio que mantinha Lugard viva: o povo fazia negócios com Illian e Ebou Dar, e o comércio se estendia de Ghealdan, a oeste, até Andor, ao norte. Grandes terrenos vazios ao longo da cidade abrigavam carroções estacionados lado a lado, muitos bastante carregados e protegidos por telas, outros vazios, aguardando fretes. Nas ruas principais havia estalagens a se perder de vista, assim como estábulos e áreas para cavalos, que, somados, superavam o número de lojas e casas de pedra cinzas, todas cobertas com telhas azuis, vermelhas, púrpuras ou verdes. A poeira e o barulho tomavam conta do ar, com o tinido dos ferreiros, o ruído dos carroções e os impropérios de seus condutores, as gargalhadas escandalosas que saíam das estalagens. O sol assava Lugard à medida que deslizava para o horizonte, e o ar despertava uma sensação de que talvez nunca mais fosse voltar a chover.
Quando Logain finalmente entrou em um estábulo e apeou atrás de uma estalagem de telhado verde chamada O Engate de Nove Cavalos, Siuan desceu de Bela e deu um tapinha hesitante no focinho da égua desgrenhada, com medo dos dentes. Em sua opinião, sentar no dorso de um animal não era forma de se viajar. Embarcações seguiam conforme o manejo do leme, mas um cavalo poderia decidir agir por conta própria. E barcos nunca mordiam. Bela ainda não tinha feito isso, mas poderia. Ao menos aqueles terríveis primeiros dias de rigidez já haviam passado, quando teve certeza de que Leane e Min estavam rindo pelas suas costas enquanto ela mancava pelo acampamento, à noite. Após um dia inteiro na sela, Siuan ainda sentia como se tivesse sido espancada violentamente, mas conseguia disfarçar.
Assim que Logain começou a barganhar com o dono do estábulo, um velhote magrelo e sardento trajando um colete de couro, mas sem camisa, Siuan se aproximou de Leane.
— Se quer praticar seus truques — disse ela calmamente —, pratique com Dalyn nesta próxima hora.
Leane lhe lançou um olhar dúbio — ensaiara sorrisos e olhadelas em algumas das aldeias desde Fontes de Kore, mas Logain não recebera mais que olhares entediados —, depois suspirou e assentiu. Respirando fundo, a mulher avançou daquele incrível jeito sinuoso, já sorrindo para Logain enquanto conduzia sua égua cinza de pescoço arqueado. Siuan não entendia como Leane fazia aquilo. Era como se alguns dos ossos dela deixassem de ser rígidos.
Movendo-se na direção de Min, Siuan falou com a mesma calma:
— Assim que Dalyn tiver terminado com o dono do estábulo, diga a ele que você vai me encontrar lá dentro. Então vá rápido na frente e fique longe dele e de Amaena até eu voltar. — Pelo barulho que ecoava da estalagem, a multidão lá dentro era grande o bastante para esconder um exército. Com certeza era grande o bastante para disfarçar a ausência de uma mulher. Min tinha aquela expressão de mula empacada nos olhos e abriu a boca, sem dúvida para perguntar por quê. Siuan se antecipou.
— Obedeça, Serenla. Ou vai passar a limpar as botas dele, além de entregar o prato de comida. — O olhar teimoso permaneceu, mas Min, emburrada, anuiu.
Siuan passou as rédeas de Bela para a mão da outra mulher, saiu correndo do estábulo e começou a descer a rua no que esperava que fosse a direção certa. Não queria ter de procurar na cidade inteira, não naquele calor e naquela poeira.
Pesados carroções puxados por parelhas com seis, oito ou até dez animais preenchiam as ruas, os condutores estalando longos chicotes e xingando tanto os cavalos quanto os transeuntes que zanzavam em meio aos vagões. Homens em trajes grosseiros e casacos de condutores de carroção se misturavam à multidão, por vezes lançando convites engraçadinhos para as mulheres por quem passavam. As mulheres, usando aventais coloridos, alguns listrados, e com a cabeça enrolada em lenços claros, caminhavam com os olhos fixos à frente, como se nada escutassem. As sem avental, com os cabelos soltos na altura dos ombros e saias que terminavam a um pé ou mais do chão, com frequência gritavam respostas ainda mais grosseiras.
Siuan levou um susto ao perceber que alguns dos homens estavam fazendo propostas a ela. Isso não a deixou com raiva — era difícil pensar que realmente fosse o alvo daquelas palavras —, apenas surpresa. Ainda não estava acostumada às transformações por que passara. Aqueles homens podiam achá-la atraente… Seu reflexo na janela imunda da loja de um alfaiate chamou sua atenção. Não era muito mais do que a imagem turva de uma garota de pele clara usando chapéu de palha. Ela era jovem. Não só parecia jovem, pelo que podia notar, mas realmente era. Pouco mais velha que Min. Do ponto de vista dos anos que de fato tinha vivido, considerava ter a aparência de uma garota.
Uma vantagem de ter sido estancada, disse para si mesma. Conhecera mulheres que pagariam qualquer quantia para rejuvenecer quinze ou vinte anos. Algumas talvez considerassem o preço que Siuan pagara uma barganha justa. Não era raro que se pegasse listando essas vantagens, talvez tentando se convencer de que existiam. Libertada dos Três Juramentos, ao menos podia mentir quanto fosse preciso. E nem o próprio pai a teria reconhecido. Ela não tinha a mesma aparência de quando era jovem. As mudanças que a maturidade promovera ainda estavam lá, mas suavizadas em forma de juventude. Sendo friamente objetiva, Siuan achava que estava mais bonita agora do que quando garota. E “bonita” era o melhor elogio que já recebera. O mais habitual fora “simpática”. Não conseguia pensar naquele rosto como seu, como Siuan Sanche. Só era a mesma por dentro. A mente ainda guardava todo o seu conhecimento. Ali, no pensamento, ainda era a mesma pessoa.
Algumas das estalagens e tavernas de Lugard tinham nomes como O Martelo do Ferrador, ou O Urso Dançante, ou O Porco Prateado, geralmente combinando com espalhafatosas placas pintadas. Outras ostentavam nomes que não deveriam ser permitidos, o mais comportado deles sendo O Beijo da Domanesa, com a pintura de uma mulher de pele cor de cobre — nua até a cintura! — fazendo beicinho. Siuan se perguntou o que Leane acharia daquilo, mas, do jeito que a antiga Curadora vinha se comportando, talvez servisse apenas para lhe dar certas ideias.
Por fim, em uma rua transversal tão larga quanto a principal, pouco além de uma abertura sem portão em uma das muralhas internas que estava prestes a desabar, ela encontrou a estalagem que procurava, uma casa de três andares de pedra cinza rugosa encimados por telhas roxas. A placa acima da porta exibia uma mulher exageradamente voluptuosa coberta o mínimo possível pelos próprios cabelos, montando um cavalo em pelo. O nome, Siuan fez questão de esquecer assim que leu.
Dentro, o salão estava azulado de tanta fumaça de cachimbo, repleto de homens barulhentos que bebiam e gargalhavam enquanto tentavam beliscar as atendentes que os serviam e que, com sorrisos pacientes, se esquivavam como podiam. Quase imperceptíveis em meio ao burburinho, uma cítara e uma flauta acompanhavam uma jovem que cantava e dançava em cima de uma mesa, na extremidade do cômodo comprido. De vez em quando, a cantora rodopiava as saias tão alto que revelava quase completamente as pernas. O que Siuan entendeu da canção lhe deu vontade de lavar a boca da garota. Por que uma mulher sairia por aí sem roupa? Por que uma mulher cantaria a respeito daquilo para um bando de brutamontes bêbados? Era o tipo de lugar que nunca frequentara. Sua intenção era que a visita fosse o mais breve possível.
Não havia como se enganar quanto à dona da estalagem, uma mulher alta e corpulenta usando um vestido de seda vermelha que praticamente reluzia. Elaborados cachos tingidos — a natureza nunca produzira aquele tom de ruivo, certamente não combinado com olhos tão escuros — emolduravam um queixo protuberante e uma boca carrancuda. Entre uma e outra ordem berrada para as atendentes, ela parava nesta ou naquela mesa para trocar algumas palavras, dar um tapinha nas costas de alguém ou se divertir com seus clientes.
Siuan se manteve inflexível e tentou ignorar os olhares de interesse que os homens lhe lançavam à medida que se aproximava da mulher de cabelos carmesim.
— Senhora Tharne? — Precisou chamar três vezes, cada vez mais alto, antes que a dona da estalagem lhe devolvesse o olhar. — Senhora Tharne, quero trabalhar como cantora. Eu sei cantar…
— Será que sabe mesmo? — A mulher grandalhona riu. — Bom, eu já tenho uma cantora, mas posso ter outra para descansar a primeira. Me deixe dar uma olhada nas suas pernas.
— Eu sei cantar “A Canção dos Três Peixes” — disse Siuan, erguendo a voz. Tinha de ser aquela mulher. Não era possível que duas mulheres na mesma cidade tivessem aquele cabelo, e muito menos o mesmo nome, na mesma estalagem.
A Senhora Tharne gargalhou ainda mais e bateu no ombro de um dos homens à mesa mais próxima, quase derrubando-o do banco.
— Pouca gente pede essa por aqui, não é, Pel? — O sujeito dentuço, com seu chicote de condutor de carroção jogado sobre o ombro, gargalhou junto com a mulher.
— Também sei cantar “O Raiar do Céu Azul”.
A mulher balançou a cabeça e esfregou os olhos como se tivesse rido até chorar.
— Sabe, é? Ah, tenho certeza de que os rapazes vão adorar essa. Agora me mostre suas pernas. As pernas, garota, ou vá embora daqui!
Siuan hesitou, mas a Senhora Tharne só fez encará-la. E um número cada vez maior de homens também estava olhando. Aquela só podia ser a mulher certa. Devagar, Siuan puxou a saia até a altura do joelho. A dona da estalagem gesticulou com impaciência. Fechando os olhos, Siuan acumulou nas mãos cada vez mais pano das saias. Sentiu que o rosto não parava de enrubescer.
— Uma recatada — gargalhou a Senhora Tharne. — Bem, se essas canções são tudo o que você sabe, é melhor ter pernas que façam um homem cair de cara no chão. Não dá para saber até a gente fazer a moça tirar todas estas meias de lã, não é, Pel? Bem, venha comigo. Talvez você até tenha uma boa voz, mas não vou conseguir ouvir aqui. Vamos, garota! Mexa esse traseiro!
Siuan abriu os olhos em fogo, mas a grandalhona já caminhava a passos largos em direção aos fundos do salão. Rígida feito um vergalhão, Siuan deixou as saias caírem e a acompanhou, tentando ignorar as risadas e propostas indecentes. Seu rosto estava duro feito pedra, mas, por dentro, preocupação e raiva travavam uma guerra.
Antes de ser elevada ao Trono de Amyrlin, administrara a rede de espiões da Ajah Azul. Alguns também haviam sido seus aliados particulares, tanto naquela época quanto depois. Podia até não ser mais a Amyrlin, ou mesmo uma Aes Sedai, mas ainda conhecia todos aqueles agentes. Duranda Tharne já servia à Azul quando Siuan assumira a rede, uma mulher cujas informações eram sempre oportunas. Não se encontrava espiões em qualquer lugar, e sua confiabilidade variava — entre Tar Valon e aquele local, só havia uma espiã em quem Siuan confiava o bastante para procurar. A mulher ficava em Quatro Reis, em Andor, mas havia desaparecido. No entanto, uma vasta quantidade de notícias e boatos passavam por Lugard através dos comboios de carroções dos mercadores. Talvez houvesse espiões de outras Ajahs ali. Era bom ter isso em mente. A cautela conduz o barco de volta para casa, lembrou a si mesma.
Aquela mulher se encaixava perfeitamente na descrição de Duranda Tharne, e era certo que nenhuma outra estalagem poderia ter um nome tão vil, mas por que ela respondera daquele jeito quando Siuan se identificou como agente das Azuis? Tinha de arriscar. Min e Leane, à maneira delas, estavam ficando tão impacientes quanto Logain. A cautela conduzia o barco de volta para casa, mas às vezes a ousadia trazia de volta a frota inteira. Na pior das hipóteses, podia acertar a cabeça da mulher com alguma coisa e fugir pelos fundos. Analisando a largura e a altura da Senhora Tharne, além da força de seus braços robustos, só podia torcer para que desse certo.
Uma porta discreta no corredor que levava às cozinhas se abria para uma sala com mobília esparsa, com uma escrivaninha e uma cadeira em uma tira de carpete azul, um grande espelho na parede e, surpreendentemente, uma estante baixa com alguns livros. Assim que a porta se fechou atrás delas, diminuindo, se não cessando por completo o barulho do salão, a grandalhona se voltou para Siuan com os punhos plantados nos quadris largos.
— E então. O que você quer comigo? Nem se preocupe em me dizer um nome. Eu não quero saber, pouco me importa se o nome é real ou não.
Um pouco da tensão de Siuan se dissipou. Mas não a raiva.
— Você não tinha o direito de me tratar daquele jeito lá fora! Qual era sua intenção ao me obrigar a…?
— Eu tinha todo o direito — irrompeu a Senhora Tharne — e toda a necessidade. Se você tivesse vindo no começo ou no fim do expediente, como deveria, eu poderia ter colocado você para dentro de uma vez. Não acha que alguns daqueles homens estranhariam se eu trouxesse você para cá feito uma amiga que eu não via há muito tempo? Não posso me dar ao luxo de ter gente imaginando coisas a meu respeito. Sorte sua eu não ter obrigado você a tomar o lugar de Susu na mesa para cantar uma ou duas músicas. E veja lá como fala comigo. — Ela levantou a mão larga e pesada de forma ameaçadora. — Já casei filhas mais velhas que você e, quando vou visitá-las, elas se comportam direitinho e falam como devem. Se tentar dar uma de espertinha para cima de mim, vai entender por quê. Não vão nem ouvir você uivar e, mesmo que ouvissem, não iam se intrometer. — Com um meneio cortante de cabeça, como se tivesse esclarecido bem as coisas, ela voltou a plantar os punhos nos quadris. — Então, o que você quer?
Siuan tentara falar várias vezes durante o rompante, mas a mulher passara por cima dela feito um maremoto. Não estava acostumada com aquilo. Quando a Senhora Tharne terminou, a antiga Azul estava tremendo de raiva, as mãos segurando as saias com os nós dos dedos já brancos de tanto apertar, em busca de algum autocontrole. Fez o mesmo esforço para conter seu temperamento. Meu papel é ser apenas outra agente, lembrou-se com firmeza. Não sou mais a Amyrlin, apenas outra agente. Além disso, suspeitou que a mulher pudesse levar a ameaça a cabo. Isso também ainda era novidade para ela, ter de se preocupar com alguém só por esse alguém ser maior e mais forte.
— Recebi a missão de entregar uma mensagem a um grupo daquelas a quem servimos. — Esperava que a Senhora Tharne interpretasse a tensão em sua voz como temor. A mulher poderia ser mais útil se achasse que ela estava devidamente intimidada. — Elas não estavam onde me disseram que eu as encontraria. Só me resta torcer para que você saiba algo que possa me ajudar a encontrá-las.
Cruzando os braços sob o enorme busto, a Senhora Tharne a examinou.
— Você sabe controlar o gênio quando lhe convém, hein? Bom. O que aconteceu na Torre? E não tente negar que você veio de lá, minha boa e arrogante mocinha. Sua mensagem tem todo o jeito da corte, e não foi em uma aldeia que você aprendeu a ser tão orgulhosa.
Siuan respirou bem fundo antes de responder.
— Siuan Sanche foi estancada. — Sua voz não tremeu, o que a deixou orgulhosa. — Elaida a’Roihan é a nova Amyrlin. — Não conseguiu esconder uma ponta de incômodo nessa parte.
O rosto da Senhora Tharne não exibiu reação alguma.
— Bem, isso explica algumas das ordens que recebi. Algumas, talvez. Estancaram Siuan, foi? Eu pensava que ela fosse ser a Amyrlin para sempre. Eu a vi uma vez, alguns anos atrás, em Caemlyn. De longe. Parecia capaz de mascar couro no café da manhã. — Os cachos escarlates impossíveis balançaram quando ela sacudiu a cabeça. — Bem, o que está feito, está feito. As Ajahs se dividiram, não foi? É a única possibilidade. As minhas ordens, e a velha abutre estancada. A Torre está dividida, e as Azuis estão fugindo.
Siuan rangeu os dentes. Tentou convencer a si mesma de que a mulher era leal à Ajah Azul, e a ela, pessoalmente, mas isso não ajudou. Velha abutre? Ela é que tem idade suficiente para ser minha mãe. E, se fosse, eu me mataria afogada. Ela se esforçou para suavizar a voz.
— Minha mensagem é importante. Preciso seguir caminho o mais rápido possível. Você pode me ajudar?
— Importante, é? Olha, eu duvido. O problema é que eu posso dizer uma coisa, mas cabe a você decifrar. Quer? — A mulher se recusava a facilitar as coisas.
— Quero, por favor.
— Sallie Daera. Não sei quem ela é ou era, mas me disseram para dar o nome dela a qualquer Azul que chegasse aqui parecendo perdida, digamos assim. Talvez você não seja uma das irmãs, mas anda com o nariz suficientemente empinado para ser uma delas, então aí está: Sallie Daera. Faça o que quiser com essa informação.
Siuan suprimiu um arroubo de felicidade e fez uma expressão propositalmente desanimada.
— Também nunca ouvi falar dela. Vou ter que continuar procurando.
— Se encontrar, diga a Aeldene Sedai que ainda sou leal, seja lá o que tiver acontecido. Já trabalho para as Azuis há tanto tempo que nem saberia o que fazer, se parasse.
— Vou dizer — afirmou Siuan. Não sabia que Aeldene a substituíra no controle dos espiões das Azuis. A Amyrlin, qualquer que fosse sua Ajah de origem, era de todas e não fazia parte de nenhuma. — Suponho que você precise de algum motivo para não me contratar. Eu não canto nada. Isso deve bastar.
— Como se isso importasse para aquele pessoal lá fora. — A grandalhona arqueou as sobrancelhas e sorriu de um jeito que Siuan não gostou. — Vou pensar em algo, mocinha. E vou lhe dar um pequeno conselho: se não descer um ou dois degraus, algumas Aes Sedai a farão rolar escada abaixo. Estou surpresa por ainda não terem feito isso. Agora vá. Saia daqui.
Mulher detestável, grunhiu Siuan, em pensamento. Se pudesse, eu a colocaria para pagar penitências até os olhos saltarem do rosto. A mulher ainda achava que merecia mais respeito?
— Obrigada pela ajuda — agradeceu friamente, fazendo uma reverência boa o bastante para qualquer corte. — Você foi muito amável.
Siuan já avançara três passos no salão quando a Senhora Tharne apareceu atrás, subindo o tom de voz em um grito risonho que irrompeu em meio ao barulho.
— Moça tímida! Pernas brancas e magras o bastante para deixar todos vocês babando, e reclamou feito um bebê quando eu disse que teria que mostrar as coxas! Sentou no chão e começou a chorar! Quadris roliços o bastante para qualquer gosto, e ela…!
Siuan tropeçou quando a onda de gargalhadas subiu, sem jamais abafar o discurso da mulher. Conseguiu dar mais três passos, o rosto vermelho feito uma beterraba, então saiu correndo.
Na rua, fez uma pausa para recuperar o fôlego e deixar que o coração parasse de martelar. Aquela bruxa velha horrorosa! Eu deveria…! O que deveria ter feito não importava. Aquela mulher nojenta dissera o que ela precisava saber. Não era Sallie Daera, uma mulher. Só uma Azul saberia, ou mesmo suspeitaria. Salidar. Terra natal de Deane Aryman, a irmã Azul que se tornara Amyrlin depois de Bonwhin e que resgatara a Torre da ruína para a qual Bonwhin a conduzira. Salidar. Um dos últimos lugares onde alguém procuraria uma Aes Sedai, tirando Amadícia.
Dois homens com mantos cor de neve e armaduras brilhantes desciam a rua na direção de Siuan, movendo os cavalos com relutância para a passagem dos carroções. Filhos da Luz. Ultimamente, podiam ser encontrados por toda parte. Baixando a cabeça e observando com cuidado os Mantos-brancos por sob a aba do chapéu, Siuan se aproximou da entrada azul e verde da estalagem. Ao passar por ela, os dois lhe lançaram um olhar, rostos duros sob reluzentes elmos cônicos, e seguiram em frente.
Siuan mordeu o lábio, irritada. Era provável que tivesse atraído a atenção dos homens ao se encolher. E se eles tivessem visto seu rosto…? Nada aconteceria, claro. Os Mantos-brancos talvez tentassem matar uma Aes Sedai, se a encontrassem sozinha, mas Siuan já não tinha o rosto característico. O problema foi terem visto que tentara se esconder. Se Duranda Tharne não a tivesse deixado tão irritada, não teria cometido um erro tão tolo. Ainda se lembrava do tempo em que bobagens como os comentários da Senhora Tharne não a teriam abalado nem um pouco, em que aquela mocreia de cabelo tingido não teria ousado lhe dizer nada daquilo. Se aquela megera não gosta do meu jeito, vou… O que ia era continuar a tratar do assunto de que já vinha tratando, antes que a Senhora Tharne lhe desse uma surra que tornasse impossível sentar em uma sela. Às vezes, era difícil lembrar que o tempo quando reis e rainhas respondiam à sua convocação era coisa do passado.
Caminhando a passos largos pela rua, Siuan encarava as pessoas com tanta dureza que alguns dos condutores de carroções engoliram os comentários que estavam prestes a fazer para uma bela jovem desacompanhada. Apenas alguns.
Min se sentou em um banco encostado na parede do salão lotado da estalagem O Engate de Nove Cavalos e ficou observando uma mesa rodeada por homens, alguns com chicotes de condutor enrolados, outros portando espadas que os identificavam como guardas de mercadores. Outros seis homens estavam sentados lado a lado em torno da mesa. Só conseguia identificar Logain e Leane, sentados no extremo oposto. Ele tinha a testa franzida, contrariado. Os outros homens prestavam atenção em cada palavra que saía dos lábios sorridentes de Leane.
O ar estava tomado pela fumaça de cachimbos e por um burburinho que quase abafava a música da flauta e do tambor e a cantoria de uma garota que dançava em uma mesa entre as lareiras de pedra. A canção falava de uma mulher convencendo seis homens de que cada um deles era o único em sua vida. Min estava achando interessante, até a música passar a fazê-la enrubescer. De vez em quando, a cantora disparava olhares enciumados para a mesa lotada. Ou melhor, para Leane.
A domanesa alta entrara na estalagem com Logain já na coleira, e tal como o mel atrai as moscas, atraíra ainda mais homens com aquele andar rebolado e o brilho sugestivo dos olhos. Quase saíra briga, Logain e os guardas dos mercadores com as mãos nas espadas, facas sendo desembainhadas, o proprietário corpulento e dois camaradas musculosos se aproximando com porretes. E Leane extinguira as chamas quase como as inflamara, um sorriso aqui, algumas palavras ali, e um toque na bochecha. Até o taverneiro se demorara ali por perto, sorrindo feito bobo, até que os chamados da clientela o obrigaram a se afastar. E Leane achando que precisava treinar. Não parecia justo.
Se eu conseguisse fazer isso com um homem em particular, ficaria mais do que satisfeita. Talvez ela pudesse me ensinar… Luz, no que estou pensando? Min sempre fora ela mesma, e os outros podiam aceitá-la como era ou não. Mas estava pensando em mudar por causa de um homem. Já era suficientemente ruim ter de se esconder em um vestido, em vez do manto e das calças de sempre. Ele olharia para você em um vestido decotado. Você tem mais para mostrar do que Leane, e ela… Pare com isso!
— Precisamos ir para o sul — anunciou Siuan, perto de seu ombro dando-lhe um susto. Não a vira entrar. — Agora.
Pelo brilho em seus olhos azuis, estava claro que Siuan descobrira alguma coisa. Se ia compartilhar a informação era outra questão. Na maior parte do tempo, a mulher parecia pensar que ainda era a Amyrlin.
— Não temos como chegar em nenhum lugar com estalagens antes de a noite cair — avisou Min. — Podíamos pegar uns quartos e passar a noite aqui.
Era tentadora a ideia de voltar a dormir em uma cama, em vez de debaixo de cercas-vivas e em montes de feno, mesmo que fosse precisar dividir o colchão com Leane e Siuan. Logain queria alugar quartos para todos, mas a antiga Amyrlin controlava o dinheiro, mesmo quando era Logain que o distribuía.
Siuan olhou ao redor, mas todos no salão que não encaravam Leane estavam escutando a cantora.
— Não é possível. Eu… Eu acho que alguns Mantos-brancos devem estar fazendo perguntas sobre mim.
— Dalyn não vai gostar disso — sussurrou Min, com toda a calma.
— Então não fale para ele. — Siuan balançou a cabeça para o grupo em torno de Leane. — Apenas diga a Amaena que precisamos ir. Ele vai nos seguir. Só vamos torcer para que os demais também não sigam.
Min sorriu com ironia. Siuan podia até dizer que não ligava para o fato de Logain — Dalyn — ter assumido o comando, basicamente ignorando-a sempre que ela tentava obrigá-lo a alguma coisa, mas ainda estava determinada a fazer o homem voltar a obedecê-la.
— O que é um Engate de Nove Cavalos, aliás? — perguntou ela enquanto se levantava. Havia ido até a entrada em busca de alguma pista, mas a placa acima da porta continha apenas o nome. — Já vi de oito, de dez, mas nunca de nove.
— Nesta cidade — respondeu Siuan, empertigada —, é melhor não perguntar. — Um rubor súbito a fez achar que a mulher sabia muito bem do que se tratava. — Vá buscá-los. Temos um longo caminho pela frente, e nenhum tempo a perder. E não deixe ninguém ouvir.
Min bufou baixinho. Com o sorrisinho no rosto de Leane, nenhum daqueles homens sequer a enxergaria. Queria saber como Siuan atraíra a atenção dos Mantos-brancos. Era a última coisa de que precisavam, e a antiga Amyrlin não costumava cometer deslizes. Também queria saber como fazer Rand olhar para ela da forma que aqueles homens olhavam para Leane. Se passariam a noite inteira cavalgando, e ela suspeitava que sim, talvez Leane pudesse lhe dar algumas dicas.