Deitado de bruços em meio aos cobertores, de olhos fechados, Mat se deleitava com os polegares de Melindhra descendo por suas costas. Não havia nada tão bom quanto uma massagem após um longo dia de montaria. Bem, até havia, mas, naquele momento, ele se daria por satisfeito com os polegares dela.
— Você é bem musculoso para um homem tão baixo, Matrim Cauthon.
Ele abriu um dos olhos e a encarou; ela estava montada em sua cintura. Melindhra deixara o fogo duas vezes mais forte que o necessário, e suor lhe escorria pelo corpo. O cabelo liso e bem curto, exceto por aquele rabo de cavalo Aiel à nuca, estava grudado à cabeça.
— Se me acha baixo demais, sempre pode ir atrás de outra pessoa.
— Você não é baixo demais para o meu gosto. — Ela gargalhou, bagunçando seu cabelo. Era mais comprido que o dela. — E é bonitinho. Relaxe. Nada disto vai adiantar se você ficar tenso.
Mat grunhiu e tornou a fechar os olhos. Bonitinho? Luz! E baixo. Só uma Aiel poderia chamá-lo de baixo. Em todas as outras terras onde já tinha estado, era mais alto que a maioria dos homens, ainda que nem sempre por muito. Lembrava-se de ser alto, mais alto que Rand, quando cavalgara contra Artur Asa-de-gavião. E, ao lutar ao lado de Maecine contra os Aelgari, era um palmo mais baixo do que agora. Havia conversado com Lan, dizendo que ouvira uns nomes por alto. O Guardião lhe contara que Maecine fora rei de Eharon, uma das Dez Nações — essa parte Mat já sabia —, uns quatrocentos ou quinhentos anos antes das Guerras dos Trollocs. Lan duvidava que até a Ajah Marrom soubesse mais que aquilo. Muito se perdera nas Guerras dos Trollocs, e mais ainda na Guerra dos Cem Anos. Aquelas eram as lembranças mais antiga e mais recente que haviam sido plantadas em sua cabeça. Nada depois de Artur Paendrag Tanreall, e nada antes de Maecine de Eharon.
— Está com frio? — indagou Melindhra, incrédula. — Você tremeu. — Ela saiu de cima dele, e Mat escutou quando a mulher colocou mais lenha no fogo. Havia bastante madeira ali para ser queimada. A Aiel lhe deu um forte tapa no traseiro quando voltou a subir e murmurou: — Bela musculatura.
— Se continuar com isso — resmungou ele —, vou achar que você quer me enfiar em um espeto para o jantar, feito um Trolloc. — Não que não gostasse de Melindhra, ainda mais quando ela não ficava dizendo que era mais alta, mas a situação o deixava desconfortável.
— Nada de espetos em você, Matrim Cauthon. — Os polegares da mulher se enterraram profundamente no ombro dele. — É só isso. Relaxe.
Mat supunha que algum dia se casaria, sossegaria. Era o que se costumava fazer. Uma mulher, uma casa, uma família. Acorrentado a um único lugar para o resto da vida. Nunca ouvi falar de uma mulher que gostasse que o marido bebesse ou apostasse. E ainda havia o que aquele pessoal do outro lado do ter’angreal em formato de batente de porta tinha dito. Que ele estava destinado “a se casar com a Filha das Nove Luas”. Mais cedo ou mais tarde, suponho que um homem precise se casar. Mas, com certeza, não pretendia esposar uma Aiel. Queria dançar com o máximo de mulheres que pudesse, enquanto pudesse.
— Acho que você não foi feito para espetos, e sim para grandes honras — afirmou Melindhra suavemente.
— Por mim, tudo bem.
Só que, agora, não conseguia mais fazer qualquer outra mulher olhar para ele, nem Donzelas nem nenhuma outra. Era como se Melindhra tivesse pendurado nele uma placa dizendo “propriedade de Melindhra, dos Shaido Jumai”. Bem, ela não teria escrito essa última parte, não ali. Mas, pensando bem, quem sabia o que uma Aiel faria, ainda mais uma Donzela da Lança? As mulheres não pensavam igual aos homens, e uma Aiel pensava diferente de qualquer outra pessoa no mundo.
— É estranho você se anular assim.
— Me anular? — murmurou ele. As mãos dela de fato causavam uma sensação boa. Desatando nós que ele nem sabia que existiam. — Como assim?
Imaginou se tinha algo a ver com aquele colar. Melindhra parecia dar grande importância a ele, ou ao fato de tê-lo ganhado, talvez. Nunca usara a peça, claro. Donzelas não usavam joias. Mas carregava-o na bolsa e mostrava para todas as mulheres que pediam para ver. Parecia que eram muitas.
— Você se coloca à sombra de Rand al’Thor.
— Não estou à sombra de ninguém — respondeu ele, distraído. Não tinha como ser o colar. Já dera joias para outras mulheres, Donzelas e algumas mais. Gostava de presentear mulheres bonitas, mesmo que tudo que recebesse em troca fosse um sorriso. Nunca esperava mais. Se a mulher não fosse aproveitar os beijos e abraços tanto quanto ele, de que adiantaria?
— Claro que há algum tipo de honra em estar à sombra do Car’a’carn. Para estar perto dos poderosos, é preciso se manter à sombra deles.
— Sombra — concordou Mat, sem realmente escutar. Às vezes as mulheres aceitavam as joias, às vezes não, mas nenhuma decidira que era dona dele. Era isso que o incomodava, na verdade. Não estava disposto a ser propriedade de mulher nenhuma, não importava quão linda fosse. Nem quão boas fossem suas mãos em relaxar músculos tensos.
— Suas cicatrizes deveriam ser cicatrizes de honra, adquiridas em seu próprio nome, como um chefe, não isso. — Com um dedo, ela percorreu a cicatriz de enforcamento no pescoço de Mat. — Você ganhou esta servindo ao Car’a’carn?
Mat afastou a mão dela, apoiou-se no cotovelo para se levantar e se virou para encará-la.
— Tem certeza de que “Filha das Nove Luas” não significa nada para você?
— Eu já disse que não. Deite-se.
— Se estiver mentindo para mim, juro que açoito seu traseiro.
Com as mãos na cintura, ela baixou o olhar e o encarou ameaçadoramente.
— Você acha que é capaz… de açoitar meu traseiro, Mat Cauthon?
— Vou tentar ao máximo. — Ela provavelmente lhe atravessaria as costelas com uma lança. — Jura que nunca ouviu falar na Filha das Nove Luas?
— Nunca — respondeu ela, hesitante. — Quem é ela? Ou o quê? Deite-se e me deixe…
Um melro piou, aparentemente em todos os lugares da tenda, assim como do lado de fora, e, logo depois, um tordo. Dois bons pássaros de Dois Rios. Rand escolhera seus alarmes dentre sons familiares, de pássaros que não se via no Deserto.
Melindhra saiu de cima dele imediatamente e enrolou a shoufa em torno da cabeça, cobrindo-se com o véu enquanto apanhava lanças e broqueis. Saiu correndo da tenda daquele jeito mesmo.
— Sangue e malditas cinzas! — resmungou Mat, enquanto se atrapalhava com as próprias calças. O som de tordo significava ataque ao sul. Melindhra e ele haviam montado a tenda ao sul, com os Chareen, o mais longe de Rand que podiam ficar sem sair do acampamento. Mas ele não se enfiaria naqueles arbustos espinhentos nu, como Melindhra saíra. O melro contava um ataque ao norte, onde os Shaarad estavam acampados. Dois flancos ao mesmo tempo.
Enfiando os pés nas botas da melhor maneira que podia na tenda baixa, olhou para a cabeça prateada de raposa repousando ao lado dos cobertores. Lá fora, os gritos e o clangor de metal contra metal aumentavam. Mat enfim se dera conta de que o medalhão, de algum modo, evitara que Moiraine o Curasse na primeira tentativa. Enquanto Mat o tocava, não fora afetado pela canalização da mulher. Nunca ouvira falar de Crias da Sombra capazes de canalizar, mas sempre havia a Ajah Negra — ouvira aquilo de Rand, e acreditava — e também a chance de que um dos Abandonados finalmente tivesse vindo atrás de Rand. Passando a tira de couro pela cabeça para que o medalhão ficasse pendurado no peito, pegou a lança entalhada com o corvo e se abaixou para sair em direção à luz fria do luar.
Mat não teve tempo de sentir frio. Antes mesmo de sair totalmente da tenda, quase foi decapitado pela espada de um Trolloc, curvada como uma foice. A lâmina roçou seu cabelo quando ele se atirou em um mergulho rasante, rolou e se ergueu com a lança em punho.
No escuro, a princípio o Trolloc podia até parecer um homem corpulento, embora bem mais alto que qualquer Aiel, coberto com uma armadura cheia de espinhos nos cotovelos e ombros e usando um elmo ornamentado com chifres de bode. Mas os chifres saíam de uma cabeça que parecia humana, e debaixo dos olhos se projetava um focinho de bode.
Rosnando, o Trolloc investiu contra ele e ganiu em um idioma grosseiro que não fora feito para a língua humana. Mat girou a lança feito um bastão, derrubando aquela pesada espada curva e enfiando a longa ponta da lança na barriga da criatura, aquele aço forjado com o Poder cortando a armadura tão fácil quanto a carne logo abaixo. Soltando um grito áspero, o Trolloc com focinho de bode se curvou, e Mat recuou para liberar sua arma, esquivando-se conforme a criatura caía.
Em torno dele, os Aiel, alguns sem roupa, outros seminus, mas todos de véus negros, lutavam contra Trollocs com fuças de javali, focinhos de lobo ou bicos de águia, alguns com chifres ou cristas, brandindo aquelas espadas estranhamente curvas, machados com pregos, lanças e tridentes com ganchos. Aqui e ali, um deles utilizava um imenso arco para atirar flechas farpadas do tamanho de lanças pequenas. Homens com casacos rústicos e espadas também lutavam ao lado dos Trollocs, gritando desesperadamente à medida que morriam junto aos arbustos espinhentos.
— Sammael!
— Sammael e as Abelhas Douradas!
Os Amigos das Trevas estavam morrendo, a maioria assim que enfrentava um Aiel, mas os Trollocs eram mais difíceis de matar.
— Não sou um maldito herói! — gritou Mat, para ninguém em particular, enquanto enfrentava o terceiro Trolloc, este com focinho de urso e orelhas peludas. A criatura empunhava um machado de cabo comprido com meia dúzia de pregos afiados e uma lâmina brilhante grande o bastante para cortar uma árvore ao meio, balançando-o de um lado para outro feito um brinquedo naquelas enormes mãos peludas. Era a proximidade de Rand que colocava Mat naquele tipo de situação. Tudo que ele queria da vida era um bom vinho, um jogo de dados e uma bela garota, ou três. — Não quero me meter nisto! — Principalmente se Sammael estivesse por perto. — Estão me ouvindo?
O Trolloc caiu com a garganta retalhada, e ele se viu encarando um Myrddraal que tinha acabado de matar dois Aiel que o atacaram ao mesmo tempo. O Meio-homem parecia um humano de pele branca como leite azedo usando uma armadura com escamas negras, feito uma cobra. E também se movia feito uma serpente, rápido e fluido, a capa negra como a noite permanecendo imóvel, não importava como ele se mexesse. E não tinha olhos. Onde seus olhos deveriam estar, havia apenas uma camada de pele tão branca quanto a de um cadáver.
Aquele olhar sem olhos se virou para Mat, que estremeceu, o medo penetrando seus ossos. “O olhar do Sem-olhos é o próprio medo”, diziam nas Terras da Fronteira, onde tinham experiência nisso, e até os Aiel admitiam que a encarada de um Myrddraal disparava arrepios pela espinha. Essa era a primeira arma da criatura. O Meio-homem avançou para ele em uma corrida fluida.
Com um urro, Mat correu para enfrentá-lo, a lança girando feito um bastão, investindo, sempre em movimento. A criatura manejava uma lâmina tão escura quanto a própria capa, uma espada talhada nas forjas de Thakan’dar, e, se aquilo o cortasse, Mat estaria praticamente morto — a não ser que Moiraine aparecesse rápido para Curá-lo. Mas só havia um modo infalível de derrotar um Desvanecido: um ataque brutal. Era preciso destruí-lo antes que ele o destruísse, e parar para pensar em se defender era uma boa forma de morrer. Mat não podia nem pensar na batalha enfurecida que o cercava.
A lâmina do Myrddraal cintilava feito a língua de uma serpente e movia-se feito um relâmpago, mas para contra-atacar as investidas de Mat. Quando o aço com a marca do corvo, forjado com o Poder, encontrava o metal oriundo de Thakan’dar, uma luz azul brilhava em torno deles e ouvia-se um crepitar como o de raios no céu.
De repente, o ataque cortante de Mat atingiu a carne. A espada negra e a mão pálida voaram para longe, e, na volta, o golpe rasgou a garganta do Myrddraal, mas Mat não parou. Uma investida no coração, um corte em um dos tendões atrás do joelho, depois no outro, tudo em rápida sucessão. Só então se afastou da coisa ainda se debatendo no chão, agitando-se com a única mão que restava e o toco de braço cortado, as feridas esguichando sangue negro. Meios-homens levavam um bom tempo para aceitar que estavam mortos. E não morriam completamente, a não ser com o sol se pondo.
Examinando o entorno, Mat percebeu que o ataque havia acabado. Quaisquer Amigos das Trevas ou Trollocs que não estivessem mortos haviam fugido. Ao menos ele não via ninguém de pé, exceto os Aiel. Alguns também tinham sucumbido. Mat arrancou um lenço do pescoço do cadáver de um Amigo das Trevas para limpar o sangue negro do Myrddraal da ponta de sua lança. Se demorasse a fazer isso, o sangue iria corroer o metal.
Aquele ataque noturno não fazia sentido. Pelos corpos que via ao luar, Trollocs e humanos, nenhum passara muito da primeira fileira de tendas. E sem números muito maiores, os inimigos não poderiam esperar fazer melhor que isso.
— O que foi aquilo que você gritou? Carai alguma coisa. Língua Antiga?
Mat se virou para olhar Melindhra. Ela baixara o véu, mas ainda não trajava um fiapo a mais do que a shoufa. Havia outras Donzelas por ali, homens também, usando tão pouco quanto e demonstrando o mesmo descaso, embora a maioria parecesse estar voltando para as tendas sem se demorar. Eles não tinham muito pudor, era isso. Nenhum pudor. Melindhra nem parecia sentir frio, apesar de a respiração soltar vapor. Mat estava tão suado quanto ela e, agora que não estava mais preocupado em lutar pela própria vida, se sentia congelando.
— Foi uma coisa que eu ouvi, certa vez — respondeu. — E gostei de como soa.
Carai an Caldazar! Pela honra da Águia Vermelha. O cântico de guerra de Manetheren. A maioria de suas lembranças eram de Manetheren. Algumas ele ganhara antes do batente retorcido. Moiraine dissera que era o Sangue Antigo surgindo. Contanto que não surgisse esguichando de suas veias, tudo bem.
Melindhra passou o braço em torno dos ombros de Mat enquanto ele rumava de volta para a tenda do casal.
— Vi você com o Mensageiro da Noite, Mat Cauthon. — Era um dos termos dos Aiel para os Myrddraal. — Você tem a altura que um homem precisa ter.
Sorrindo, ele envolveu a cintura dela, mas não conseguia tirar o ataque da cabeça. Queria — os pensamentos eram muito confusos em suas lembranças emprestadas —, mas não conseguia. Por que alguém deflagrara um ataque tão sem perspectivas? Só um tolo atacaria sem motivo uma força tão superior. Era esse pensamento que ele não conseguia afastar. Ninguém atacava sem motivo.
O piar dos pássaros fez Rand despertar imediatamente. Agarrando saidin, jogou os cobertores para o lado e saiu correndo sem nem vestir o casaco ou calçar as botas. A noite estava fria e iluminada pelo luar, sons distantes de batalha flutuavam das colinas abaixo da passagem. Em volta, Aiel se agitavam feito formigas apressadas, disparando pela noite até os pontos que poderiam ser atacados, ali na passagem. As proteções permaneceriam — Crias da Sombra na passagem disparariam o piar de um tentilhão — até que ele as desfizesse, de manhã, mas não havia razão para correr riscos tolos.
A passagem logo voltou a ficar tranquila, os gai’shain em suas tendas, proibidos de tocar em armas mesmo naquela situação, os outros Aiel a postos nos locais que talvez precisassem de defesa. Até Adelin e as outras Donzelas tinham partido, como se soubessem que Rand as deteria, caso esperassem. Ele ouvia alguns murmúrios vindos dos vagões perto das muralhas da cidade, mas nem os condutores nem Kadere deram as caras. Rand não esperava que dessem. Os sons distantes de batalha — homens berrando, gritando, morrendo — vinham de duas direções. Ambas abaixo, bem longe dele. Também havia pessoas do lado de fora das tendas das Sábias. Pareciam olhar na direção do confronto.
Um ataque lá embaixo não fazia sentido. Não eram os Miagoma, a menos que Timolan tivesse aceitado Crias da Sombra em seu clã, o que era tão provável quanto Mantos-brancos recrutando Trollocs. Rand se virou para a tenda e, mesmo envolto pelo Vazio, levou um susto.
Aviendha saíra para a luz do luar, um cobertor enrolado no corpo. Logo atrás dela havia um homem alto com um manto escuro. As sombras do luar perpassaram um rosto macilento, pálido demais, com olhos grandes demais. Um canto baixo se fez ouvir, e o manto se abriu — Rand percebeu que na verdade eram compridas asas coriáceas, como as de um morcego. Movendo-se como se hipnotizada, Aviendha caminhou para os braços da criatura.
Rand canalizou, e um fio de fogo devastador passou flamejando por ela, uma flecha de luz sólida que atingiu o Draghkar na cabeça. O efeito daquela corrente mais fina foi mais lento, mas não menos certeiro do que contra os Cães das Trevas. As cores da criatura se inverteram, o preto virando branco e o branco virando preto, até que ela se transformou em partículas brilhantes que se derreteram no ar.
Aviendha estremeceu quando o canto cessou, encarando as últimas partículas que desapareciam, e se virou para Rand, apertando o cobertor contra o corpo. Ela ergueu a mão, e um raio de fogo com a espessura da cabeça de Rand rugiu na direção dele.
Assustado mesmo dentro do Vazio, sem nem pensar em usar o Poder, ele se atirou no chão para fugir das chamas ondulantes. Elas feneceram logo depois.
— O que você está fazendo? — berrou Rand, tão furioso e chocado que o Vazio se rompeu e saidin sumiu de dentro dele. Esforçou-se para ficar de pé e caminhou com firmeza na direção dela. — Isto supera qualquer ingratidão de que eu já tenha ouvido falar! — Ia sacudi-la até fazer os dentes da mulher rangerem. — Acabei de salvar sua vida, caso não tenha percebido, e se ofendi algum maldito costume Aiel, não estou nem…!
— Da próxima vez — retrucou ela —, vou deixar o grande Car’a’carn resolver seus problemas sozinho! — Apertando o cobertor contra o corpo, irritada, ela se abaixou, tensa, para entrar na tenda.
Rand olhou para trás pela primeira vez: havia outro Draghkar, encrespado em chamas no chão. Tinha ficado tão furioso que não escutara o crepitar e os estalos da criatura queimando e não sentira o odor de gordura tostada. Não chegara nem a sentir o mal. Um Draghkar matava primeiro sugando a alma, depois a vida. Precisava ser de perto, por meio do toque, mas aquele estava estirado a não mais que duas passadas de onde Rand estivera. Ele não tinha certeza de quão eficaz o abraço melodioso de um Draghkar seria contra alguém preenchido por saidin, mas estava contente por não ter descoberto.
Respirou fundo e se ajoelhou ao lado da aba da tenda.
— Aviendha? — Não podia entrar. Uma lamparina estava acesa lá dentro, e, até onde ele sabia, ela poderia estar sentada nua, xingando-o de alto a baixo em pensamento, do jeito que Rand merecia. — Aviendha, me desculpe. Peço perdão. Fui tolo por falar daquele jeito sem perguntar o motivo. Eu deveria saber que você não me machucaria, e eu… eu… eu sou um idiota — concluiu, sem saber mais o que dizer.
— Você sabe muita coisa mesmo, Rand al’Thor. — A resposta soou abafada. — Você é um idiota!
Como os Aiel se desculpavam? Nunca perguntara aquilo para ela. Pensando no ji’e’toh, nos costumes matrimoniais e em ensinar os homens a cantar, ele não achava que perguntaria.
— É, eu sou. E peço desculpas. — Não houve resposta desta vez. — Você está debaixo dos cobertores? — Silêncio.
Resmungando sozinho, Rand se ergueu, mexendo os dedos cobertos apenas pela meia no chão gelado. Teria de permanecer ali fora até ter certeza de que ela estava decentemente coberta. Sem botas ou casaco. Tratou de agarrar saidin, com mácula e tudo, só para, dentro do Vazio, se afastar daquele frio de gelar os ossos.
As três Sábias Andarilhas dos Sonhos vieram correndo, claro, e também Egwene, todas fitando os restos fumegantes do Draghkar ao passarem ao lado da criatura, ajustando os xales quase no mesmo movimento.
— Só um — observou Amys. — Agradeço à Luz, mas estou surpresa.
— Eram dois — contou Rand. — Eu… destruí o outro. — Por que estava hesitante? Só porque Moiraine o alertara a respeito do fogo devastador? Era uma arma como qualquer outra. — Se Aviendha não tivesse matado este aí, ele poderia ter me alcançado.
— A canalização dela nos atraiu — explicou Egwene, olhando Rand de cima a baixo. De início, Rand achou que ela estivesse procurando ferimentos, mas a mulher prestou especial atenção a seus pés só de meia e depois olhou para a tenda, onde uma fresta na aba revelava a luz da lamparina. — Você irritou Aviendha de novo, não foi? Ela salvou sua vida, e você… Homens! — Com um meneio desgostoso de cabeça, Egwene passou por ele e entrou na tenda. Rand ouviu vozes distantes, mas não entendeu o que estava sendo dito.
Melaine apertou o xale.
— Se não está precisando de nós, temos que ir ver o que está acontecendo lá embaixo. — Ela se apressou para ir embora e não esperou as outras.
Bair gargalhava enquanto ela e Amys a seguiam.
— Vamos apostar em quem ela vai dar uma olhada primeiro? Meu colar de ametista que você tanto gosta contra aquele seu bracelete de safira?
— Combinado. Eu escolho Dorindha.
A Sábia mais velha tornou a gargalhar.
— Ela ainda só tem olhos para Bael. Uma irmã-primeira é uma irmã-primeira, mas um marido novo…
As duas saíram do alcance do ouvido, e Rand se inclinou na direção da aba da tenda. Ainda não dava para escutar o que as mulheres estavam dizendo, a não ser que enfiasse a orelha na fresta, o que estava prestes a fazer. Claro que, com Egwene lá, Aviendha se cobrira. Por outro lado, pela forma como Egwene assimilara os modos Aiel, havia a chance de que, em vez disso, ela é que tivesse tirado as roupas.
O som suave de chinelos anunciou a chegada de Moiraine e Lan, e Rand se endireitou. Embora ouvisse a respiração de ambos, os passos do Guardião quase não faziam ruído. O cabelo de Moiraine caía no rosto, e ela trajava um roupão escuro, a seda brilhando ao luar. Lan estava totalmente vestido, botas e armas, enrolado naquela capa que o tornava parte da noite. Claro. O clamor do combate já estava morrendo nas colinas lá embaixo.
— Estou surpreso por você não ter vindo antes, Moiraine. — Sua voz soou fria, mas antes a voz do que ele. Rand manteve-se agarrado a saidin, lutando com o Poder, e o frio gelado da noite permaneceu distante. Ele estava ciente da temperatura, ciente de cada pelo arrepiado sob as mangas da camisa, mas o clima não o atingia. — Você costuma vir me procurar assim que sente o perigo.
— Eu nunca dei satisfação de tudo o que faço ou deixo de fazer. — A voz dela soou tão friamente misteriosa quanto sempre, ainda que, mesmo sob o luar, Rand tivesse certeza de que ela estava enrubescendo. Lan parecia incomodado, embora, no caso dele, fosse difícil dizer. — Não posso segurar sua mão para sempre. Em algum momento você tem que caminhar sozinho.
— Eu fiz isso hoje, não fiz? — A vergonha deslizou pelo Vazio. A frase soou como se ele tivesse dado conta de tudo sozinho. Então acrescentou: — Aviendha praticamente tirou aquele ali das minhas costas. — As chamas no Draghkar já estavam baixas.
— Então que bom que ela estava aqui — disse Moiraine calmamente. — Você não precisava de mim.
A mulher não ficara com medo, disso ele tinha certeza. Rand já vira Moiraine investir contra Criaturas da Sombra, manejando o Poder com tanta habilidade quanto a de Lan com a espada; vira isso em ocasiões demais para crer que ela sentia medo. Então por que não viera ao sentir os Draghkar? Podia ter ido, e Lan também. Aquele era um dos dons que um Guardião recebia pelo laço com uma Aes Sedai. Rand podia fazê-la falar, encurralá-la entre o juramento que fizera a ele e a incapacidade de mentir. Não, não podia. Ou não queria. Não faria aquilo com alguém que estava tentando ajudá-lo.
— Pelo menos agora sabemos do que se tratava aquele ataque lá embaixo — ponderou Rand. — Queriam me fazer pensar que algo importante estava acontecendo por lá enquanto o Draghkar se esgueirava até mim. Tentaram isso no Forte das Pedras Frias, e também não funcionou. — Só que, desta vez, quase funcionara. Caso essa tivesse sido a intenção. — Seria de se pensar que eles tentariam algo diferente. — Couladin à frente dele e os Abandonados por toda parte, ao que parecia. Por que não podia enfrentar um inimigo de cada vez?
— Não cometa o erro de pensar que os Abandonados são burros — alertou Moiraine. — Isso poderia muito bem ser fatal. — Ela mexia no roupão como se quisesse que ele fosse mais espesso. — Já está tarde. Se não precisa mais de mim…
Os Aiel começavam a voltar quando ela e o Guardião foram embora. Alguns exclamaram coisas sobre o Draghkar e acordaram gai’shain para arrastá-lo para longe, mas a maior parte apenas olhou para a criatura antes de entrar nas tendas. Pareciam já esperar aquele tipo de coisa de Rand.
Quando Adelin e as Donzelas surgiram, estavam arrastando os pés calçados em botas leves. Elas observaram o Draghkar sendo arrastado por homens de roupão branco e trocaram longos olhares antes de se aproximarem de Rand.
— Não aconteceu nada aqui — afirmou Adelin, devagar. — O ataque foi todo lá embaixo, Amigos das Trevas e Trollocs.
— Berrando “Sammael e as Abelhas Douradas”, eu ouvi — completou outra Donzela, com a cabeça enrolada em uma shoufa. Rand não reconheceu quem era. Soou jovem. Algumas das Donzelas não tinham mais que dezesseis anos.
Respirando fundo, Adelin estendeu uma de suas lanças, firme como uma rocha, à frente dele. As demais fizeram o mesmo, uma lança cada.
— Nós… Eu… falhei — disse Adelin. — Deveríamos ter estado aqui quando o Draghkar apareceu. Em vez disso, saímos correndo feito crianças para dançar as lanças.
— E o que eu devo fazer com estas lanças? — perguntou Rand.
— O que quiser, Car’a’carn. Estamos prontas e não iremos resistir — respondeu Adelin, sem hesitar.
Rand balançou a cabeça. Malditos Aiel com seu maldito ji’e’toh.
— Fiquem com elas e voltem a proteger minha tenda. Está bem? Vão. — As mulheres se entreolharam antes de começarem a obedecer, mas de modo tão relutante quanto haviam se aproximado dele de início. — E uma de vocês trate de dizer a Aviendha que vou entrar assim que voltar — completou ele. Não iria passar a noite inteira do lado de fora se perguntando se era seguro ou não voltar para a tenda. Saiu a passos firmes, o chão pedregoso bem duro sob os pés.
A tenda de Asmodean não ficava muito longe da dele. Não se ouvira um som sequer vindo dela. Rand tratou de abrir a aba e se abaixou para entrar. Asmodean estava sentado no escuro, mordendo o lábio. O homem se encolheu quando Rand surgiu, e não lhe deu chance para falar.
— Você não esperava que eu participasse da luta, esperava? Eu senti os Draghkar, mas você podia dar conta deles, e deu. Eu nunca gostei de Draghkar. Nunca deveríamos ter feito esses bichos. Têm menos cérebro que um Trolloc. Dê uma ordem e, ainda assim, eles às vezes matam o que estiver mais perto. Se eu tivesse saído, se tivesse feito alguma coisa… E se alguém percebesse? E se eles se dessem conta de que não tinha como ser você canalizando? Eu…
— Bom para você que não tenha saído — interrompeu Rand, sentando-se de pernas cruzadas no escuro. — Se eu tivesse sentido você canalizando lá fora hoje à noite, poderia tê-lo matado.
A gargalhada do outro homem foi vacilante.
— Também pensei nisso.
— Foi Sammael quem enviou o ataque de hoje. Os Trollocs e os Amigos das Trevas, pelo menos.
— Não é do feitio de Sammael desperdiçar homens — disse Asmodean lentamente. — Mas ele veria dez mil mortos, ou dez vezes mais que isso, se achasse que o preço vale a pena. Talvez um dos outros queira que você pense que foi ele. Mesmo que os Aiel tivessem feito prisioneiros… Trollocs não pensam em muita coisa além de matar, e Amigos das Trevas acreditam no que lhes dizem.
— Foi ele. Uma vez, Sammael usou o mesmo método para tentar me fazer atacá-lo, em Serendahar. — Ah, Luz! O pensamento flutuou pela superfície do Vazio. Eu disse “me”. Rand nem sabia onde ficara Serendahar, ou de nada do que acabara de dizer. As palavras haviam simplesmente saído.
— Eu nunca soube disso — disse Asmodean, hesitante, após um longo silêncio.
— O que eu quero saber é: por quê?
Rand escolheu as palavras com cuidado, torcendo para que todas fossem suas. Ele se recordava do rosto de Sammael, um homem… Não é minha. Essa lembrança não é minha… um homem compacto com uma barba loura cerrada. Asmodean descrevera todos os Abandonados, mas Rand sabia que aquela imagem não era fruto da descrição. Sammael sempre quisera ser mais alto, e se ressentia de que o Poder não fosse capaz de mudar sua altura. Asmodean nunca lhe dissera isso.
— Pelo que você me contou, ele não ia querer me enfrentar, a menos que tivesse certeza da vitória, e talvez nem assim. Você disse que era provável que ele me deixasse para o Tenebroso, se possível. Então por que agora Sammael tem certeza de que vai vencer, caso eu decida ir atrás dele?
Discutiram a questão no escuro por horas, sem chegar a nenhuma conclusão. Asmodean pensava que havia sido um dos outros, esperando jogar Rand contra Sammael e se livrar de um deles ou de ambos. Ao menos foi o que Asmodean disse que achava. Rand sentia os olhos escuros do homem em si, ponderando. Aquele lapso fora grande demais para ser consertado.
Quando finalmente retornou para a própria tenda, Adelin e as doze Donzelas ficaram de pé de um pulo, todas dizendo juntas que Egwene tinha ido embora e que Aviendha dormira havia muito, que estava com raiva dele, que ambas estavam. As mulheres deram tantos conselhos diferentes sobre como lidar com a raiva das garotas, todos ao mesmo tempo, que Rand não entendeu nenhum. Por fim, ficaram em silêncio, entreolhando-se, até Adelin se pronunciar.
— Precisamos conversar sobre hoje à noite. Sobre o que fizemos e o que deixamos de fazer. Nós…
— Não foi nada — disse ele —, e, se tivesse sido, estaria perdoado e esquecido. Agora eu gostaria de ter algumas horas de sono. Se quiserem discutir isso, vão falar com Amys ou Bair. Tenho certeza de que elas vão entender melhor do que eu o que vocês esperam. — Surpreendentemente, aquilo as fez se calar e permitiu que ele entrasse.
Aviendha estava enrolada nos lençóis, com uma das pernas, magra e despida, para fora. Rand tentou não olhar. A garota deixara uma lamparina acesa. Agradecido, ele entrou debaixo dos próprios cobertores e canalizou para apagar a luz antes de soltar saidin. Desta vez, sonhou com Aviendha lançando fogo, só que ela não o lançava em um Draghkar, e Sammael estava sentado ao lado dela, gargalhando.