34 Uma Flecha de Prata

Foi Elayne quem cozinhou naquela noite, o que significava que nada na comida era simples, apesar de estarem comendo em banquinhos em torno de uma fogueira, com grilos cricrilando na mata ao redor e, aqui e ali, um canto fraco e triste de algum pássaro noturno ecoando na escuridão cada vez mais profunda. A sopa foi servida fria e gelatinosa, com ferris verdes picadas e salpicadas por cima. Só a Luz sabia onde ela tinha encontrado as ferris, ou as minúsculas cebolas que misturara com as ervilhas. A carne fora cortada tão fina que estava quase transparente, então enrolada em uma trouxinha de cenoura, vagem, cebolinha e queijo de cabra. E havia até um pequeno bolo de mel para a sobremesa.

Tudo estava gostoso, embora Elayne não parasse de repetir que nada saíra como deveria, como se pensasse que dava para reproduzir ali o trabalho dos cozinheiros do Palácio Real de Caemlyn. Nynaeve tinha quase certeza de que a garota não estava apenas em busca de elogios. Elayne sempre fazia pouco caso de elogios, explicando exatamente o que fizera de errado. Thom e Juilin reclamaram por haver tão pouca carne, mas Nynaeve notou que ambos não só comeram cada pedacinho, como pareceram desapontados quando a última ervilha desapareceu do prato. Quando era ela que cozinhava, os dois, por algum motivo, sempre iam jantar em um dos outros carroções. Quando era um dos homens a preparar o jantar, era sempre ensopado ou uma carne com feijões tão cheia de pimenta que sua língua parecia pegar fogo.

Eles não comeram a sós, claro. Luca tratou disso ao trazer o próprio banquinho e posicioná-lo bem ao lado do de Nynaeve, a capa vermelha esparramada para causar o melhor efeito possível, e as pernas compridas esticadas para que as panturrilhas ficassem à mostra, logo acima das botas. O homem aparecia quase toda noite. Estranhamente, só não ia quando Nynaeve cozinhava.

Era até interessante atrair os olhos dele quando havia uma mulher tão bonita quanto Elayne por perto, mas Luca tinha lá seus motivos. Ele se sentava grudado nela — naquela noite, Nynaeve afastou o próprio banco três vezes, mas ele a acompanhou prontamente, como se nem percebesse — e se alternava entre compará-la a várias flores, que sempre saíam perdendo, ignorando o olho roxo que só um cego não veria, e divagar a respeito de como Nynaeve ficaria bonita naquele vestido vermelho, com elogios à sua coragem como adendo. Por duas vezes, deixou escapar sugestões de que fossem caminhar ao luar, convites tão velados que ela não tinha certeza do que eram, até parar para pensar.

— Aquele vestido vai ser a moldura perfeita para a sua coragem — murmurou ele no ouvido dela —, ainda que você a exiba com quatro vezes mais beleza, já que até os lírios-dara chorariam de inveja ao vê-la caminhar às margens da água iluminada pelo luar, assim como eu choraria e me tornaria um bardo, só para lhe cantar elogios sob esta mesmíssima lua.

Ela apenas piscou, tentando assimilar aquilo tudo. Luca pareceu considerar que fosse um flerte. Nynaeve acotovelou sem querer suas costelas antes que ele conseguisse lhe mordiscar a orelha. Ao menos pareceu ser essa a intenção, ainda que ele tenha começado a tossir logo depois, afirmando que se engasgara com farelo de bolo. O homem com certeza era bonito — Pare com isso! — e de fato possuía panturrilhas bem torneadas — O que você está fazendo, olhando para as pernas dele? —, mas deveria achar que ela era uma desmiolada. Tudo para ajudar a melhorar seu maldito espetáculo.

Nynaeve tornou a afastar o banco enquanto ele tentava recuperar o fôlego. Não podia se afastar muito sem deixar claro que estava fugindo, embora estivesse com o garfo a postos para o caso de Luca voltar a segui-la. Thom examinou o prato como se ainda restasse mais do que apenas molho na louça branca. Juilin assobiava desafinado, bem baixinho, espiando com falso interesse o fogo que se apagava. Elayne olhou para ela e balançou a cabeça.

— Foi muito simpático da sua parte ter se juntado a nós — disse Nynaeve, levantando-se. Luca se levantou com ela, os olhos cheios de esperança brilhando à luz do fogo. Ela pôs seu prato em cima do que estava na mão dele. — Thom e Juilin vão ficar agradecidos por sua ajuda com os pratos, tenho certeza. — Antes que a boca do homem terminasse de se abrir, Nynaeve se virou para Elayne. — Já está tarde, e imagino que vamos cruzar o rio bem cedo.

— Claro — murmurou Elayne, com a sombra de um sorriso. A garota também deixou o prato com Luca antes de acompanhá-la para dentro do carroção. Nynaeve quis abraçá-la. Até que a garota disse: — Você não deveria dar corda para ele. — Lamparinas presas em suportes de parede se acenderam.

Nynaeve plantou as mãos na cintura.

Dar corda?! O único jeito de dar menos corda seria enfiando uma faca naquele homem! — Ela bufou para enfatizar e olhou feio para as lamparinas. — Na próxima vez, use um dos malabares de fogo de Aludra. Os bastões. Algum dia você vai acabar se esquecendo e canalizando onde não deveria, e aí o que vamos fazer? Fugir da morte com cem Mantos-brancos atrás de nós.

Teimosa como era, Elayne não aceitou a mudança de assunto.

— Posso ser mais nova, mas, às vezes, acho que entendo mais de homens do que você jamais vai entender. Para alguém como Valan Luca, esse seu jeito de sair correndo, hoje à noite, foi como um pedido para ele continuar a perseguição. Se você quebrasse o nariz dele, como fez no primeiro dia, talvez Luca desistisse. Você não o manda parar, nem pede! Fica sorrindo para ele, Nynaeve. Quer que o homem pense o quê? Fazia dias que você não sorria para ninguém!

— Estou tentando controlar meu temperamento — resmungou Nynaeve. Todos reclamavam do gênio dela, e agora que estava tentando controlá-lo, Elayne achava ruim! Não era tola a ponto de se deixar levar pelos elogios de Luca. Claro que não era tão idiota. Elayne gargalhou, e Nynaeve franziu o cenho.

— Ah, Nynaeve, “não se pode impedir o sol de nascer”. É o que Lini diria.

Nynaeve se esforçou para abrandar a expressão. Também controlou seu gênio. Não acabei de provar isso lá fora? Ela estendeu a mão.

— Me dê o anel. Ele vai querer cruzar o rio amanhã cedo, e quero pelo menos dormir de verdade depois que eu terminar.

— Pensei que eu iria hoje à noite. — Havia preocupação na voz de Elayne. — Nynaeve, você tem ido a Tel’aran’rhiod praticamente todas as noites, exceto nos encontros com Egwene. Aquela Bair tem uma questão para discutir com você, aliás. Precisei contar a elas por que você não foi, da outra vez, e ela afirma que você não deveria estar precisando de descanso, não importa o quanto visite o Mundo dos Sonhos, a menos que esteja fazendo algo errado. — A preocupação se transformou em firmeza, e foi a vez dela de plantar as mãos na cintura. — Tive que ouvir uma reprimenda que era para você, e não foi nada agradável, com Egwene lá parada concordando com cada palavra. Então, eu realmente acho que hoje à noite eu deveria…

— Por favor, Elayne. — Nynaeve não recolheu a mão. — Tenho perguntas para Birgitte, e as respostas podem me fazer ter mais perguntas. — Era verdade, em parte. Ela sempre tinha perguntas para Birgitte. Não tinha nada a ver com evitar Egwene ou as Sábias. Se visitava Tel’aran’rhiod com tanta frequência que Elayne sempre acabava indo para os encontros com Egwene, era simplesmente porque calhava de ser assim.

Elayne suspirou, mas pescou o anel de pedra retorcida de dentro da gola do vestido.

— Peça a ela de novo, Nynaeve. É muito difícil encarar Egwene com esse segredo. Ela viu Birgitte. Não diz nada, mas fica me olhando. Quando nos encontramos de novo, depois de as Sábias irem embora, é ainda pior. Ela pode perguntar, nessas ocasiões, mas não pergunta, o que piora tudo. — Ela franziu a testa enquanto Nynaeve transferia o pequeno ter’angreal para o cordão de couro em torno do próprio pescoço, junto com o pesado anel de Lan e o da Grande Serpente. — Por que você acha que nenhuma das Sábias volta com ela? Não descobrimos muita coisa no gabinete de Elaida, mas é de se imaginar que as Sábias fossem ao menos querer ver a Torre. Egwene não quer nem tocar no assunto na presença delas. Se eu chego perto desse tema, ela me olha de um jeito que parece que quer me bater.

— Acho que elas querem evitar a Torre o máximo possível. — E elas eram mesmo sábias em fazer isso. Se não fosse pela Cura, ela mesma evitaria a Torre, e até as Aes Sedai. Não estava treinando para ser uma Aes Sedai. Só esperava aprender mais sobre a Cura. E ajudar Rand, claro. — Elas são mulheres livres, Elayne. Mesmo que a Torre não estivesse a confusão que está, não iam querer Aes Sedai passeando pelo Deserto, recolhendo garotas para levar a Tar Valon.

— Suponho que seja isso. — O tom de voz de Elayne, no entanto, indicava que não entendia. Ela achava a Torre incrível e não via por que alguma mulher iria querer fugir das Aes Sedai. Presa para sempre à Torre Branca, diziam elas, ao colocar aquele anel no dedo de alguém. E falavam sério. Ainda assim, aquela tola não via o ônus disso.

Elayne a ajudou a se despir, e Nynaeve se deitou na cama estreita só de camisola, já bocejando. O dia fora longo, e era surpreendente como podia ser cansativo ficar parada com alguém que não enxergava arremessando facas nela. Fechou os olhos, pensamentos soltos passeando por sua mente. Elayne afirmara que estava só praticando quando bancara a boba com Thom. Não que “o pai afetuoso e a filhinha favorita” que bancavam agora fosse algo menos bobo. Talvez ela também pudesse praticar só um pouquinho com Valan. Ora, isso sim era uma tolice. Os olhos dos homens podiam até passear — melhor que os de Lan não o fizessem! —, mas ela sabia ser fiel. Não usaria aquele vestido. O decote era grande demais.

— Lembre-se de pedir a ela de novo. — Escutou Elayne dizer, ao longe.

O sono a envolveu.


Nynaeve estava no lado de fora do carroção, à noite. A lua estava alta, e nuvens lançavam sombras sobre o acampamento. Grilos cricrilavam, e pássaros noturnos cantavam. Os olhos dos leões brilhavam ao encará-la de dentro das jaulas. Os ursos de cara branca eram montanhas escuras dormindo por trás de barras de ferro. A corda para amarrar os cavalos estava vazia, os cães de Clarine não estavam nas correias ao lado do carroção que dividia com Petra, e a área onde os s’redit ficavam, no mundo desperto, estava vazia. Ela chegara à conclusão de que apenas animais selvagens tinham reflexos ali, mas, independentemente do que a Seanchan afirmasse, era difícil acreditar que aqueles imensos animais cinzentos haviam sido tão domesticados que já não eram mais selvagens.

De repente, Nynaeve percebeu que estava usando o vestido. De um vermelho abrasador, justo demais nos quadris para ser chamado de decente e com um decote quadrado tão acentuado que seu busto parecia prestes a escapar. Não imaginava mulher alguma usando-o, exceto Berelain. Para Lan, talvez ela usasse. Se estivessem sozinhos. Estivera pensando em Lan ao adormecer. Estava, não estava?

De qualquer modo, não ia deixar Birgitte vê-la com aquele troço. A mulher dizia ser um soldado, e, quanto mais tempo Nynaeve passava com ela, mais percebia que algumas de suas atitudes — e comentários — eram tão ruins quanto as de qualquer homem. Piores. Uma mistura de Berelain com um brigão de taverna. Os comentários não eram frequentes, mas sempre surgiam quando Nynaeve permitia que pensamentos aleatórios criassem qualquer coisa como aquele vestido. Ela o trocou por uma boa e espessa lã escura de Dois Rios, com um xale simples que nem era necessário, o cabelo de novo em uma trança decente, e abriu a boca para chamar Birgitte.

— Por que você se trocou? — perguntou a mulher, saindo das sombras e apoiando-se no arco de prata. A intricada trança dourada pendia sobre o ombro, e o luar reluzia em seu arco e suas flechas. — Lembro de ter usado um vestido muito parecido com esse, certa vez. Foi só para chamar atenção para que Gaidal pudesse passar despercebido, mas os olhos dos guardas se esbugalharam feito olhos de sapos, e foi divertido. Principalmente quando eu usei para dançar com Gaidal, depois. Ele sempre odeia dançar, mas estava tão decidido a não deixar que nenhum outro homem se aproximasse que dançou comigo todas as músicas. — Birgitte soltou uma gargalhada gostosa. — Ganhei cinquenta moedas de ouro dele naquela noite, porque ele me olhava tanto que nem prestava atenção nas cartas. Os homens são estranhos. Não era como se ele nunca tivesse me visto…

— Já entendi — cortou Nynaeve, incomodada, enrolando o xale com firmeza em torno dos ombros.

Antes que pudesse acrescentar uma pergunta, Birgitte disse:

— Eu a encontrei. — E toda a ideia de fazer a pergunta se dissipou.

— Onde? Ela viu você? Pode me levar até ela? Sem ela ver? — Seu estômago se contraía de medo, e Valan Luca diria um bocado sobre sua coragem, se pudesse vê-la naquele momento, mas ela tinha certeza de que o medo viraria raiva assim que visse Moghedien. — Se puder me levar mais… — Sua voz morreu assim que Birgitte levantou a mão.

— Não acho que ela tenha me visto, ou duvido que eu estaria aqui agora. — Ela soou muito séria. Nynaeve achava mais fácil conviver com essa faceta da personalidade de soldado. — Posso levá-la até lá por um momento, caso você queira ir, mas ela não está sozinha. Ao menos… Você vai ver. Precisa ficar em silêncio e não deve fazer nada contra Moghedien. Há outros Abandonados. Pode até ser que você consiga destruí-la, mas conseguiria derrotar cinco de uma vez?

As palpitações no estômago de Nynaeve se espalharam para o peito. E para os joelhos. Cinco. Ela deveria só perguntar o que Birgitte vira ou escutara e deixar por isso mesmo. Então poderia voltar para a cama e… Mas Birgitte a estava encarando. Não estava questionando sua coragem, apenas observava. Pronta para ir em frente, caso ela pedisse.

— Vou ficar calada. E nem vou pensar em canalizar. — Não com cinco Abandonados juntos. Não que ela fosse capaz de canalizar sequer uma centelha naquele momento. Enrijeceu os joelhos para evitar que batessem um no outro. — Ao seu sinal.

Birgitte ergueu o arco e pôs a mão em seu braço…

… e Nynaeve perdeu o fôlego. Estavam no meio do nada, uma escuridão infinita envolvendo-as. Não havia cima ou baixo, seria uma queda infinita em qualquer direção. Tonta, ela se obrigou a olhar para onde Birgitte apontava.

Abaixo delas, Moghedien também estava na escuridão, trajando algo tão negro quanto tudo ao redor, curvada, ouvindo com atenção. Mais abaixo, à mesma distância, quatro enormes cadeiras com encostos altos, todas diferentes, repousavam em um piso de ladrilhos brancos e cintilantes que flutuava na escuridão. Estranhamente, Nynaeve conseguia escutar o que as pessoas nas cadeiras diziam, como se estivesse em meio a elas.

— … nunca foi covarde — afirmava uma mulher bela e robusta, de cabelos loiros —, então por que começar agora? — Vestida com o que parecia ser uma bruma cinza-prateada e pedras preciosas, estava refestelada em uma cadeira de marfim entalhada no formato de acrobatas nus. Quatro homens esculpidos seguravam o assento, e os braços dela descansavam sobre as costas de mulheres ajoelhadas. Dois homens e duas mulheres apoiavam uma almofada de seda branca atrás de sua cabeça enquanto, acima, outros mais se contorciam em formas que Nynaeve não acreditava que o corpo humano pudesse assumir. Ela ruborizou ao perceber que alguns estavam protagonizando mais do que meros números de acrobacia.

Um homem atarracado, de altura mediana, com uma cicatriz cortando o rosto e uma barba dourada e quadrada, se inclinou para a frente, parecendo furioso. Sua cadeira de madeira pesada era entalhada com fileiras de homens em armaduras e cavalos, além de um punho calçado com luva de aço segurando um raio, no topo do encosto. O casaco vermelho compensava a simplicidade da cadeira, pois fios de outro derramavam-se pelos ombros e braços.

— Ninguém me chama de covarde — advertiu ele, com severidade. — Mas, se continuarmos como estamos, ele virá direto no meu pescoço.

— O plano foi esse desde o início — respondeu uma melodiosa voz feminina. Nynaeve não via de quem era, com a dona escondida por trás do imenso encosto de uma cadeira que parecia ser toda de prata e de uma pedra branca como a neve.

O segundo homem era grande, de uma beleza sombria, com mechas brancas nas têmporas. Brincava com um ornamentado cálice dourado e estava reclinado em um trono. Era a única descrição possível para aquele assento incrustado de pedras preciosas. Discretos vestígios dourados apareciam aqui e ali, mas Nynaeve não duvidava de que houvesse ouro maciço por baixo de todo aquele cintilar de rubis, esmeraldas e pedras-da-lua. Era de tamanho monumental e parecia pesado.

— Ele vai se concentrar em você — afirmou o homenzarrão, com uma voz profunda. — Se for necessário, mataremos alguém próximo a ele, deixando claro que o ataque veio de você. E ele vai atrás de você. E, enquanto estiver concentrado nessa perseguição, nós três vamos nos unir para pegá-lo. Aconteceu alguma coisa para mudar o plano?

— Não mudou nada — grunhiu o homem com a cicatriz. — Principalmente, não mudou minha confiança em vocês. Eu vou fazer parte da união, ou o plano acaba aqui.

A mulher de cabelos dourados jogou a cabeça para trás e gargalhou.

— Pobre homem — zombou ela, balançando a mão cheia de anéis. — Você acha que ele não perceberia que você está unido? Ele tem um professor, lembre-se. Ruim, mas não um completo idiota. Daqui a pouco você vai pedir para incluirmos um bocado daquelas crianças da Ajah Negra para fazer o círculo passar de treze pessoas, de modo que você ou Rahvin tenham o controle.

— Se Rahvin confia o bastante na gente para se unir permitindo que uma de nós duas esteja no controle — ponderou a voz melodiosa —, você pode demonstrar a mesma confiança.

O homenzarrão encarava o cálice, e a mulher envolta em brumas abriu um ligeiro sorriso.

— Se não confia que não vamos atacá-lo — prosseguiu a mulher fora de vista —, então confie no fato de que estaremos nos vigiando de perto demais para atacar. Você concordou com tudo isso, Sammael. Por que está começando a criar caso?

Nynaeve se sobressaltou quando Birgitte tocou seu braço…

… e as duas estavam de volta em meio aos carroções, com a lua brilhando por entre as nuvens. Parecia quase normal, em comparação com onde haviam estado.

— Por quê…? — começou Nynaeve, e engoliu em seco. — Por que você nos trouxe de volta? — Seu coração pulou para a garganta. — Moghedien nos viu?

Ficara tão atenta aos outros Abandonados, em quanto eram peculiares e comuns ao mesmo tempo, que se esquecera de ficar de olho em Moghedien. Soltou um suspiro aliviado quando Birgitte balançou a cabeça.

— Não tirei os olhos dela em momento algum, e ela não moveu nem um músculo. Mas não gosto de ficar tão exposta. Se ela ou qualquer um dos outros tivesse olhado para cima…

Nynaeve enrolou o xale bem apertado em torno dos ombros, mas ainda assim estremeceu.

— Rahvin e Sammael. — Queria que sua voz não estivesse tão rouca. — Você reconheceu os outros? — Claro que Birgitte reconhecera. Era estranho dizer, mas ela parecia abalada.

— A que estava encoberta pela cadeira era Lanfear. A outra era Graendal. Não pense que ela é uma tola só porque estava sentada em uma cadeira que faria uma arrumadeira Senje enrubescer. Ela é dissimulada e usa seus bichinhos em ritos que fariam até o soldado mais rude que já conheci jurar celibato.

— Graendal é dissimulada — ecoou a voz de Moghedien —, mas não o bastante.

Birgitte girou, o arco de prata se erguendo e uma flecha prateada quase sendo atirada — então, abruptamente, foi lançada a trinta passadas de distância em meio ao luar, chocando-se com tanta força contra o carroção de Nynaeve que ricocheteou de volta cinco passadas e ficou caída, inerte.

Desesperada, Nynaeve tentou agarrar saidar. O medo perpassava sua raiva, mas havia raiva suficiente. Então colidiu com uma parede invisível entre ela e o brilho quente da Fonte Verdadeira. Quase uivou. Alguma coisa agarrou seus pés, arrastando-os para trás e para cima, tirando-os do chão. As mãos voaram para o alto e para trás até os pulsos encontrarem os tornozelos, acima da cabeça. As roupas se transformaram em um pó que deslizou por sua pele, e a trança puxou sua cabeça para trás até os cabelos baterem nas nádegas. Nynaeve tentou freneticamente sair do sonho. Nada aconteceu. Permaneceu pendurada no ar, contorcida feito um animal em uma teia, cada músculo tensionado até o limite. Tremores lhe atravessavam o corpo. Os dedos se contraíam debilmente, roçando seus pés. Pensou que, se tentasse mover qualquer outra parte do corpo, sua coluna quebraria.

Estranhamente, seu medo sumiu, agora que era tarde demais. Tinha certeza de que poderia ter sido rápida o bastante, não fosse o terror que a paralisara quando precisou agir. Tudo o que Nynaeve queria era uma chance de pôr as mãos no pescoço de Moghedien. Grande vantagem isso me dá agora! Cada respiração era fruto de um arfar tenso.

Moghedien se moveu para um ponto onde Nynaeve conseguia vê-la, entre o triângulo trêmulo formado por seus braços. O brilho de saidar circundava a mulher zombeteiramente.

— Um detalhe da cadeira de Graendal — disse a Abandonada. Seu vestido era feito de bruma, como o de Graendal, passando da neblina escura para algo quase transparente, depois voltando a brilhar como prata. O tecido mudava praticamente o tempo todo. Nynaeve já a vira usando-o antes, em Tanchico. — Não é algo em que eu teria pensado sozinha, mas Graendal pode ter… boas ideias. — Nynaeve a fuzilou com os olhos, mas Moghedien pareceu não perceber. — Não acredito que você realmente veio me caçar. Pensou mesmo que, por ter tido a sorte de me pegar desprevenida uma vez, é páreo para mim? — A risada da mulher foi cortante. — Se soubesse o trabalho que tive tentando encontrá-la… E aí você veio até mim. — Ela olhou para os carroções, examinando os leões e ursos por um instante, até voltar a encarar Nynaeve. — Um conjunto itinerante? Ficaria bem fácil encontrar você. Se eu ainda precisasse, não é?

— Faça o pior que puder, que a Luz a queime! — rosnou Nynaeve, da melhor forma que pôde.

Curvada como estava, precisava forçar as palavras uma a uma. Não ousava olhar diretamente para Birgitte — não que fosse conseguir virar a cabeça o bastante para isso —, mas revirando os olhos como estava, oscilando entre a fúria e o medo, teve um vislumbre. Seu estômago ficou oco, mesmo esticado feito pele de ovelha secando. Birgitte estava caída no chão, as flechas de prata se derramando da aljava à cintura, o arco a uma braça da mão inerte.

— Você acha que eu venci da outra vez por sorte? Se não tivesse me pegado de surpresa, eu teria lhe dado uma surra até ver você gemendo. Teria torcido o seu pescoço como se fosse uma galinha. — Se Birgitte estivesse morta, ela só tinha uma chance, e sombria: deixar Moghedien com tanta raiva que, em um rompante, a mulher a matasse rápido. Se ao menos houvesse algum jeito de alertar Elayne… Sua morte teria de ser o bastante. — Lembra que você disse que me usaria como banquinho de montaria? E depois, quando eu disse que faria o mesmo com você? Isso foi quando eu já tinha vencido. Quando você estava choramingando e suplicando pela sua vida. Me oferecendo qualquer coisa. Você é uma covarde! Um excremento de bacurau! Seu monte de…! — Alguma coisa espessa rastejou até a boca de Nynaeve, achatando sua língua e forçando suas mandíbulas.

— Você é tão simplória — murmurou Moghedien. — Acredite, eu já estou com raiva suficiente de você. Não acho que eu usá-la como banquinho de montaria. — O sorriso da Abandonada fez a pele de Nynaeve se arrepiar. — Acho que vou transformar você em um cavalo. Aqui, isso é bem possível. Um cavalo, um rato, um sapo… — Ela fez uma pausa, escutando. — … um grilo. E, toda vez que você vier a Tel’aran’rhiod, vai ser um cavalo, até que eu decida mudar. Ou alguma outra pessoa que saiba como fazer isso. — Ela fez outra pausa, parecendo quase complacente. — Não, não quero lhe dar falsas esperanças. Restam apenas nove pessoas capazes de fazer essa tessitura, e você não vai querer estar na mão de qualquer um dos outros. Você vai ser um cavalo toda vez que eu a trouxer aqui. Vai ter a própria sela e a própria rédea. Vou até fazer uma trança na sua crina. — Nynaeve sentiu um puxão na trança que quase a escalpelou. — Claro que, mesmo assim, você ainda vai se lembrar de quem é. Acho que vou gostar da montaria, embora você talvez não goste. — Moghedien respirou fundo, e seu vestido escureceu até parecer reluzir naquela luz tênue. Nynaeve não tinha certeza, mas achava que talvez fosse da cor de sangue vivo. — Você me deixa igual a Semirhage. Vai ser bom me livrar de você para que eu possa concentrar toda a minha atenção em questões relevantes. A sirigaitazinha de cabelo amarelo está com você nesse conjunto?

A sensação espessa sumiu da boca de Nynaeve.

— Eu estou sozinha, sua estúpida… — Dor. Como se tivesse levado uma surra do tornozelo ao ombro, todos os golpes ao mesmo tempo. Soltou um berro agudo. De novo. Tentou cerrar os dentes, mas o próprio grito interminável lhe preencheu os ouvidos. As lágrimas escorriam miseravelmente pelas bochechas enquanto soluçava e, impotente, esperava a próxima investida.

— Ela está com você? — indagou Moghedien, pacientemente. — Não perca tempo tentando me fazer matá-la. Eu não vou. Você vai passar muitos anos me servindo. Suas habilidades patéticas podem ter alguma serventia, depois que eu terminar seu treinamento. Quando eu decidir treiná-la. Mas posso fazer você achar que o que acabou de sentir foi o carinho de um amante. Agora responda minha pergunta.

Nynaeve conseguiu recuperar o fôlego.

— Não — soluçou. — Ela fugiu com um homem assim que saímos de Tanchico. Um homem com idade suficiente para ser avô dela, mas com dinheiro. Ficamos sabendo do que aconteceu na Torre… — Nynaeve tinha certeza de que Moghedien sabia. — E ela ficou com medo de voltar para lá.

A mulher gargalhou.

— Que historinha deliciosa. Agora quase entendo por que Semirhage adora arrasar a personalidade das pessoas. Ah, você vai me proporcionar grandes momentos de diversão, Nynaeve al’Meara. Mas, primeiro, vai me trazer aquela garota, a Elayne. Você vai blindá-la, amarrá-la e deixá-la aos meus pés. E sabe por quê? Porque algumas coisas são mesmo mais fortes em Tel’aran’rhiod do que no mundo desperto. Por isso é que você vai ser uma égua branca lustrosa sempre que eu a trouxer para cá. E não são só as dores impingidas aqui que duram no mundo desperto. A Compulsão também. Quero que pense nisso por um ou dois segundinhos, antes que comece a acreditar que foi ideia sua. Suspeito que a garota seja sua amiga. Mas você vai trazê-la até mim feito um bichinho de estimação… — Moghedien gritou quando a ponta de uma flecha de prata surgiu de repente abaixo de seu seio direito.

Nynaeve caiu no chão feito uma saca largada. A queda expulsou cada nesga de ar de seus pulmões tão eficientemente quanto um golpe de martelo na barriga. Esforçando-se para respirar, fez força para fazer músculos combalidos se moverem, e para, em meio à dor, agarrar saidar.

Ainda cambaleante, Birgitte tateou em busca de outra flecha da aljava.

— Vá, Nynaeve! — O grito saiu trêmulo. — Saia daqui! — A cabeça de Birgitte vacilou, e o arco de prata bamboleou quando ela o ergueu.

O brilho em torno de Moghedien se intensificou até parecer que ela estava envolta por um sol ofuscante.

A noite engolfou Birgitte feito uma onda, cobrindo-a de escuridão. Quando passou, o arco caiu sobre roupas vazias que desabavam no chão. As vestimentas desvaneceram como névoa que se esvai, e apenas o arco e as flechas permaneceram, brilhando ao luar.

Moghedien caiu de joelhos, ofegando, agarrando a haste saliente da flecha com as duas mãos à medida que o brilho ao seu redor se dissipava e morria. Então ela desapareceu, e o arco de prata caiu no ponto em que a mulher estivera, manchado de sangue escuro.

Depois do que pareceu uma eternidade, Nynaeve conseguiu se apoiar nas mãos e nos joelhos. Chorando, rastejou até o arco de Birgitte. Desta vez, não era dor que fazia as lágrimas brotarem. De joelhos, nua e sem ligar para mais nada, abraçou o arco.

— Me desculpe — soluçou. — Ah, Birgitte, me perdoe. Birgitte!

Não houve resposta, exceto o canto fúnebre de um pássaro noturno.


Liandrin se levantou de um salto quando a porta do quarto de Moghedien se escancarou e a Escolhida entrou na saleta cambaleante, o sangue ensopando a camisola de seda. Chesmal e Temaile correram para segurá-la pelos braços e mantê-la de pé, mas Liandrin permaneceu junto à cadeira. As demais haviam saído. Talvez até de Amador, pelo que Liandrin sabia. Moghedien só dizia o que queria que seus interlocutores soubessem e punia qualquer pergunta que não quisesse ouvir.

— O que aconteceu? — indagou Temaile, surpresa.

O breve olhar que Moghedien lhe lançou deveria tê-la fritado imediatamente.

— Você possui certa habilidade de Cura — grunhiu a Abandonada para Chesmal. O sangue lhe manchava os lábios e escorria pelo canto da boca em um fluxo cada vez maior. — Use-a. Agora, sua tola!

A ghealdaniana de cabelos escuros não hesitou em colocar as mãos na cabeça de Moghedien. Quando o brilho de saidar envolveu Chesmal, Liandrin riu desdenhosamente consigo mesma. O rosto de Chesmal, de uma beleza masculina, estava tomado de preocupação, e os delicados traços de raposa da face de Temaile transformaram-se em uma careta de puro medo e nervosismo. Tão fiéis… Duas cadelinhas obedientes. Moghedien ficou na ponta dos pés, a cabeça jogada para trás. Ela estremeceu, os olhos arregalados, a boca escancarada ofegante, como se tivesse sido imersa em gelo.

Tudo acabou em poucos momentos. O brilho em torno de Chesmal desapareceu, e os calcanhares de Moghedien voltaram a tocar o carpete com estampas em azul e verde. Sem o apoio de Temaile, ela talvez tivesse caído. Apenas parte da força necessária para Curar advinha do Poder. O resto vinha da pessoa que estava sendo Curada. Qualquer ferida que tivesse causado todo aquele sangramento sumira, mas Moghedien decerto estava tão fraca quanto se houvesse passado várias semanas acamada feito uma inválida. Ela puxou a bela echarpe de seda dourada e marfim da cintura de Temaile para limpar a boca enquanto a mulher a ajudava a se virar em direção à porta do quarto. Estava fraca, e de costas.

Liandrin investiu com toda a força, com tudo o que decifrara sobre o que a Abandonada fizera com ela.

No mesmo segundo, saidar pareceu preencher Moghedien como uma inundação. A tentativa de Liandrin feneceu quando a Fonte lhe foi bloqueada. Fluxos de Ar a tiraram do chão e a arremessaram com tanta força contra a parede que seus dentes rangeram. Ela ficou ali pendurada, com os braços e pernas abertos, impotente.

Chesmal e Temaile se entreolharam, confusas, como se não tivessem entendido o que ocorrera. Continuaram a segurar Moghedien quando, ainda limpando calmamente a boca com a echarpe de Temaile, a mulher veio se pôr diante de Liandrin. Moghedien canalizou, e o sangue em sua camisola ficou negro e caiu em flocos no carpete.

— N-Não é nada disso, Grande S-senhora — gaguejou Liandrin freneticamente. — Eu só queria ajudá-la a dormir bem. — Pela primeira vez na vida, não se preocupou de recair em seu sotaque de camponesa. — Eu só… — Sua frase foi interrompida com um arquejo esganado quando um fluxo de Ar lhe tomou a língua, esticando-a entre os dentes. Seus olhos castanhos se arregalaram. Um filete a mais de pressão e…

— Arranco? — Moghedien examinava o rosto da mulher, mas parecia falar sozinha. — Acho que não. É uma pena para você que aquela al’Meara me faça pensar como Semirhage. Do contrário, talvez eu simplesmente a matasse.

De repente, a Abandonada começou a amarrar a blindagem, o nó se tornando cada vez mais intricado, até que Liandrin se perdeu completamente em seus giros e voltas. E o processo se estendeu.

— Pronto — disse Moghedien, por fim, soando satisfeita. — Você vai passar muito tempo procurando até encontrar alguém que consiga desatar isso. Só que não vai ter chance de procurar.

Liandrin observou os rostos de Chesmal e Temaile em busca de algum sinal de compaixão, pena, qualquer coisa. Os olhos de Chesmal estavam frios e inflexíveis. Os de Temaile brilhavam, e ela encostou a ponta da língua nos lábios e sorriu. Um sorriso nada amigável.

— Você achou que tinha aprendido algo sobre a Compulsão — prosseguiu Moghedien. — Eu vou lhe ensinar um pouco mais.

Por um instante, Liandrin estremeceu, os olhos de Moghedien preenchendo sua visão assim como a voz da mulher preenchia seus ouvidos e toda sua cabeça.

— Viver. — O instante passou, e o suor escorria do rosto de Liandrin enquanto a Escolhida sorria para ela. — A Compulsão tem muitos limites, mas comandar que alguém faça o que quer fazer, em seu âmago mais profundo, é algo que dura por toda uma vida. Você vai viver, por mais que pense desejar tirar a própria vida. E você vai pensar nisso. Vai passar muitas noites chorando, desejando a própria morte.

O fluxo que prendia a língua de Liandrin desapareceu, e ela mal fez uma pausa para engolir.

— Por favor, Grande Senhora, eu juro que não queria… — Sua cabeça zuniu, e pontos negros e prateados dançaram diante de seus olhos com o tapa desferido por Moghedien.

— Existem… atrativos… em fazer as coisas fisicamente — sussurrou a mulher. — Quer implorar mais?

— Por favor, Grande Senhora… — O segundo tapa fez seu cabelo balançar.

— Mais?

— Por favor… — Um terceiro tapa quase lhe desarticulou a mandíbula. A bochecha ardia.

— Se não consegue ser mais inventiva que isso, não vou nem dar ouvidos. É você quem vai me ouvir. Acho que meus planos para você deliciariam até a própria Semirhage. — O sorriso de Moghedien foi quase tão sombrio quanto o de Temaile. — Você vai viver, não estancada, mas sabendo que poderia voltar a canalizar, se encontrasse alguém para retirar a blindagem. Mas isso é só o começo. Evon ficará contente com uma nova serviçal, e tenho certeza de que aquela Arene vai querer ter longas conversas com você sobre o marido. Ora, eles vão desfrutar tanto da sua companhia que eu duvido que você chegue a sair desta casa durante os próximos anos. Longos anos para você ficar desejando que tivesse me servido fielmente.

Liandrin balançou a cabeça, articulando “não” e “por favor” com os lábios. Estava chorando demais para obrigar as palavras a saírem.

Moghedien se virou para Temaile.

— Prepare-a para eles. E diga que não é para a matarem ou mutilarem. Quero que ela sempre acredite que talvez consiga fugir. Qualquer esperança fútil a manterá viva para sofrer. — Ela se soltou do braço de Chesmal, e os fluxos que prendiam Liandrin à parede sumiram.

Suas pernas cederam feito palha, fazendo-a se contorcer no carpete. Só a blindagem permanecia. Liandrin investia contra ela, em vão, enquanto rastejava atrás de Moghedien, tentando agarrar a barra da camisola da mulher e soluçando:

— Por favor, Grande Senhora.

— Elas estão acompanhando um conjunto itinerante — informou Moghedien a Chesmal. — Você procurou tanto, e eu é que tive que encontrá-las. Um conjunto itinerante não deve ser muito difícil de localizar.

— Vou servir fielmente — choramingou Liandrin. O medo transformava seus membros em água. Não conseguia rastejar rápido o bastante para alcançá-la. As mulheres nem se viravam para olhá-la, arrastando-se pelo carpete logo atrás. — Me amarre, Grande Senhora. Qualquer coisa. Eu serei seu cão fiel!

— Há muitos conjuntos itinerantes viajando para o norte — comentou Chesmal, a voz cheia de ansiedade em negar sua falha. — Para Ghealdan, Grande Senhora.

— Então preciso ir a Ghealdan — respondeu Moghedien. — Você vai conseguir cavalos rápidos e seguir… — A porta do quarto se fechou, interrompendo suas palavras.

— Serei um cão fiel — soluçou Liandrin, encolhida no carpete. Ergueu a cabeça, piscou para que as lágrimas caíssem e viu Temaile encarando-a, esfregando os braços e sorrindo. — Poderíamos dominá-la, Temaile. Nós três juntas poderíamos…

— Nós três? — gargalhou Temaile. — Você não dominaria nem a gorda da Evon. — Seus olhos se estreitaram enquanto ela examinava a blindagem amarrada a Liandrin. — Daria no mesmo se você tivesse sido estancada.

— Escute. Por favor. — Liandrin engoliu em seco e tentou firmar a voz, mas ainda soou rouca, como se ardesse de urgência, tagarelando em uma velocidade frenética: — Já conversamos sobre as divergências que devem existir entre os Escolhidos. Se Moghedien se esconde assim, deve ser dos outros Escolhidos. Se a pegarmos e entregarmos a eles, pense nas posições que poderíamos conseguir. Poderíamos ser exaltadas acima de reis e rainhas. Poderíamos nos tornar Escolhidas!

Por um momento — um momento maravilhoso e abençoado —, a mulher de rosto infantil hesitou. Então, balançou a cabeça.

— Você sempre foi ambiciosa demais. “Quem tenta alcançar o Sol acaba queimado”. Não, acho que não vou tentar chegar tão alto para me queimar. Acho que vou fazer conforme me mandaram, e amaciar você para Evon. — Então ela sorriu, exibindo dentes que acentuavam seus traços de raposa. — Ele vai ficar tão surpreso quando você rastejar para beijar seus pés…

Antes mesmo de Temaile começar, Liandrin já estava gritando.

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