Uma suave brisa noturna varreu a cidadezinha de Eianrod, então se dissipou. Sentado na balaustrada de pedra da ponte larga e plana no coração da cidade, Rand imaginou que a brisa estivesse quente, ainda que, depois do Deserto, não lhe parecesse. Morna para a noite, talvez, mas não o suficiente para fazê-lo desabotoar o casaco vermelho. O rio abaixo nunca fora dos maiores e estava com metade da largura habitual, mas Rand ainda apreciava observar a água fluir para o norte, com as sombras das nuvens passageiras naquela noite enluarada brincando pela superfície de brilho escuro. Na realidade, era por isso que estava ali fora à noite: para passar um tempo olhando a água corrente. Suas proteções estavam armadas, circundando o acampamento Aiel, que, por sua vez, circundava a cidade. Os próprios Aiel mantinham uma vigilância que não deixaria nem um pardal passar despercebido. Rand podia gastar uma hora se tranquilizando com o correr de um rio.
Certamente era melhor do que mais uma noite mandando Moiraine embora para que pudesse estudar com Asmodean. A mulher tinha até passado a lhe trazer as refeições e ficava falando enquanto ele comia, como se quisesse comprimir tudo o que sabia na cabeça de Rand antes que chegassem à cidade de Cairhien. Ele não conseguiria assisti-la implorando para ficar mais tempo — implorando de verdade! —, como fizera na noite anterior. Para uma mulher como Moiraine, aquele comportamento era tão pouco natural que Rand se sentira impelido a concordar simplesmente para acabar com aquilo. O que provavelmente fora a intenção. Era bem melhor passar uma hora ouvindo o tranquilo ondular líquido do rio. Com sorte, Moiraine já teria desistido, naquela noite.
As oito ou dez passadas de barro entre a água e as ervas daninhas nas duas margens abaixo estavam secas e rachadas. Rand espiou as nuvens acima, que passavam pela lua. Poderia tentar fazer com que chovesse. As duas fontes da cidade estavam secas, e havia poeira em um terço dos poços que não se encontravam irreversivelmente danificados. Porém, a palavra era tentar. Fizera chover certa vez, quando se lembrara do truque. Se conseguisse, desta vez poderia tentar não transformar a chuva em um verdadeiro dilúvio, com tempestades de vento que arrancassem árvores.
Asmodean não seria útil. Não entendia muito de condições climáticas, ao que parecia. Para cada coisa que o homem lhe ensinava, havia duas que ele não sabia ou que lhe mostrava sem muito esmero. No passado, Rand achara que os Abandonados sabiam de tudo, que eram praticamente onipotentes. Mas, se os demais fossem como Asmodean, também tinham suas ignorâncias e fraquezas. Podia até ser que Rand já soubesse mais do que eles sobre alguns assuntos. Do que alguns deles, pelo menos. O problema seria descobrir quem. Semirhage era quase tão ruim quanto Asmodean na manipulação de condições climáticas.
Rand estremeceu como se aquela fosse uma noite na Terra da Trindade. Asmodean jamais lhe dissera aquilo. Se pretendia dormir, era melhor escutar a água e não pensar em nada.
Sulin se aproximou, a shoufa em torno dos ombros de modo a revelar o cabelo branco curto, e se inclinou na balaustrada. A rija Donzela estava armada para a batalha, arco e flechas, lanças, faca e broquel. Assumira o comando da guarda de Rand naquela noite. A dez passadas de distância, mais duas dúzias de Far Dareis Mai estavam agachadas tranquilamente na ponte.
— Noite estranha — disse ela. — Estávamos jogando, mas de repente todo mundo começou a tirar só seis nos dados.
— Me desculpe — respondeu ele sem pensar, fazendo Sulin encará-lo de modo esquisito. Ela não sabia, claro. Rand não revelara nada a respeito. As ondulações que ele produzia como ta’veren se espalhavam de maneira estranha e aleatória. Nem os Aiel iriam querer estar a menos de dez milhas dele, se soubessem.
Naquele dia, o solo cedera sob três Cães de Pedra, fazendo-os cair em um poço de víboras, mas nenhuma das dúzias de mordidas encontrara mais que pano. Rand sabia que havia sido ele, manipulando a sorte. Tal Nethin, o fabricante de selas, sobrevivera a Taien apenas para tropeçar em uma pedra, no meio daquele dia, e quebrar o pescoço ao cair em um gramado plano. Rand também temia que tivesse sido ele. Por outro lado, Bael e Jheran haviam feito uma trégua na rixa de sangue entre os Shaarad e os Goshien, na presença de Rand, durante um almoço de carne seca em plena viagem. Eles ainda não se gostavam, e não pareciam entender o que haviam feito, mas fizeram, assumindo compromissos e fazendo juramentos de água, cada um segurando o copo para o outro beber. Para os Aiel, juramentos de água eram mais fortes que qualquer outro. Várias gerações poderiam se passar antes que os Shaarad e os Goshien voltassem a sequer roubar ovelhas, cabras ou gado um do outro.
Rand se perguntara se, algum dia, aqueles efeitos aleatórios funcionariam a seu favor. Talvez aquilo fosse o mais perto que conseguiria chegar. O que mais acontecera naquele dia que poderia ser atribuído a ele, Rand não sabia. Nunca perguntava e também não queria ouvir. Os Baels e Jherans só compensavam em parte os Tal Nethins.
— Faz dias que não vejo Enaila ou Adelin — disse ele. Era uma mudança de assunto tão boa quanto qualquer outra. Aquelas duas, em particular, pareciam possessivas sobre suas posições na guarda dele. — Elas estão doentes?
O olhar que Sulin lhe lançou foi ainda mais esquisito, se possível.
— Elas vão voltar quando pararem de brincar de boneca, Rand al’Thor.
Ele abriu a boca e tornou a fechá-la. Os Aiel eram estranhos — as lições de Aviendha costumavam fazê-los parecerem ainda mais estranhos, não menos —, mas aquilo era ridículo.
— Bem, diga às duas que elas já são mulheres feitas e que precisam agir como tal.
Mesmo à luz da lua, ele viu que o sorriso dela era de contentamento.
— Será como o Car’a’carn deseja. — O que aquilo significava? Ela o encarou por um momento, os lábios apertados em uma expressão pensativa. — Você ainda não comeu esta noite. Tem comida suficiente para todo mundo, e você não vai encher nenhuma outra barriga ficando com fome. Se não comer, as pessoas vão ficar preocupadas com a sua saúde. Vai acabar adoecendo.
Ele gargalhou suavemente, um chiado rouco. O Car’a’carn em um minuto, e no outro… Se não fosse buscar algo para comer, Sulin provavelmente faria isso para ele. E, além do mais, tentaria lhe dar na boca.
— Eu vou comer. Moiraine já deve estar debaixo dos cobertores a uma hora dessas. — Desta vez, a estranheza no olhar dela foi gratificante. Para variar, ele dissera algo que ela não entendeu.
Ao esticar os pés para descer, Rand escutou o ressoar de patas de cavalo vindo pela rua de pedra em direção à ponte. Todas as Donzelas se puseram imediatamente de pé, os rostos cobertos pelos véus. Metade delas posicionou flechas nos arcos. Rand levou a mão instintivamente à cintura, mas a espada não estava lá. Os Aiel já achavam suficientemente estranho vê-lo cavalgar e carregar o troço na sela, e Rand não vira nenhuma necessidade de ofender ainda mais os costumes deles ao usá-la. Além do mais, não havia muitos cavalos, e eles se aproximavam caminhando.
Quando os cavaleiros apareceram, cercados por uma escolta de cinquenta Aiel, viu que eram menos de vinte, os ombros curvados nas selas. A maioria usava elmos com aro e casacos tairenos de mangas listradas sob a armadura peitoral. Os dois que vinham à frente tinham couraças douradas enfeitadas e grandes plumas brancas presas à parte frontal dos elmos, e as listras de suas mangas cintilavam feito cetim sob o luar. No entanto, meia dúzia de homens mais atrás, mais baixos e fracos que os tairenos, dois deles com pequenos estandartes chamados con presos em mastros curtos atrelados às costas, usavam casacos escuros e elmos com formato de sino cortados para expor seus rostos. Os cairhienos usavam os estandartes para diferenciar os oficiais em batalha e também para identificar a guarda pessoal de um lorde.
Os tairenos emplumados o encararam, trocando olhares assustados, e desceram de modo desajeitado para se ajoelhar diante dele, os elmos debaixo do braço. Eram jovens, um pouco mais velhos que Rand, ambos com barbas escuras aparadas para formar uma ponta, à moda da nobreza tairena. As armaduras peitorais estavam amassadas, e havia lascas na camada dourada. Tinham cruzado espadas em algum lugar. Nenhum dos dois chegou a dar mais que uma olhadela para os Aiel que os cercavam, como se, caso ignorados, aqueles estrangeiros fossem desaparecer. As Donzelas tiraram os véus, embora não parecessem menos prontas para atravessar uma lança ou uma flecha pelo corpo de um dos homens ajoelhados.
Rhuarc seguia os tairenos acompanhado de um Aiel mais jovem, de olhos cinzentos e um pouco mais alto que ele, e parou logo atrás. Mangin era dos Taardad Jindo, e um dos que havia ido à Pedra de Tear. Os Jindo haviam trazido os cavaleiros.
— Milorde Dragão — disse o fidalgote rechonchudo de bochechas rosadas —, que minha alma queime, mas eles fizeram o senhor de prisioneiro? — O acompanhante, com orelhas de abano e nariz de batata que o faziam parecer com fazendeiro, apesar da barba, não parava de tirar nervosamente finos fios de cabelo do rosto. — Eles disseram que estavam nos trazendo para algum sujeito da Aurora. O Car’a’carn. Se me lembro do que meu tutor me ensinou, significa alguma coisa relacionada a chefes. Me perdoe, milorde Dragão. Sou Edorion, da Casa Selorna, e este é Estean, da Casa Andiama.
— Eu sou Aquele Que Vem Com a Aurora — respondeu Rand, calmo. — E o Car’a’carn.
Já os identificara: jovens lordes que haviam passado o tempo todo bebendo, jogando e abordando mulheres quando ele estava na Pedra. Os olhos de Estean quase saltaram do rosto. Edorion, por um momento, pareceu igualmente surpreso, depois assentiu devagar, como se, de repente, tivesse entendido tudo.
— Levantem-se. Quem são seus acompanhantes cairhienos? — Seria interessante conhecer cairhienos que não estivessem fugindo dos Shaido ou de qualquer outro Aiel. Na verdade, se eles estavam com Edorion e Estean, talvez fossem os primeiros partidários que Rand encontrava naquelas terras. Caso os dois pais daqueles tairenos tivessem obedecido suas ordens. — Traga-os à frente.
Estean piscou, surpreso, ao se levantar, mas Edorion mal hesitou antes de se virar para gritar:
— Meresin! Daricain! Venham cá! — Foi como se chamasse cachorros. Os estandartes cairhienos ondularam quando os dois desceram lentamente dos cavalos.
— Milorde Dragão — cumprimentou Estean, lambendo os lábios como se estivesse com sede. — O senhor… O senhor enviou os Aiel para atacar Cairhien?
— Então eles atacaram a cidade?
Rhuarc aquiesceu, e Mangin respondeu:
— Se for possível acreditar nestes dois, Cairhien ainda resiste. Ou resistia, três dias atrás. — Não havia dúvida de que ele achava que Cairhien já caíra, e menos ainda de que não ligava para uma cidade de Assassinos da Árvore.
— Eu não os enviei, Estean — afirmou Rand, quando os dois cairhienos se juntaram à dupla, ajoelhando-se e retirando os elmos para revelar homens da mesma faixa etária de Edorion e Estean, os cabelos raspados na linha das orelhas e olhos escuros cheios de cautela. — Os que atacam a cidade são meus inimigos, os Shaido. Minha intenção é salvar Cairhien, caso ela ainda possa ser salva.
Rand precisou cumprir o protocolo de mandar os cairhienos ficarem de pé. Sua estada com os Aiel quase que o fizera se esquecer dos hábitos deste lado da Espinha do Mundo, de se curvar e se ajoelhar para lá e para cá. Também precisou pedir para que as pessoas fossem apresentadas, e os próprios cairhienos o fizeram. Lorde Tenente Meresin, da Casa Daganred, cujo con era uma sucessão de linhas verticais onduladas, vermelhas e brancas, e Lorde Tenente Daricain, da Casa Annallin, seu con coberto de quadradinhos vermelhos e pretos. Era uma surpresa ambos serem lordes. Embora comandassem e liderassem soldados em Cairhien, lordes não raspavam as cabeças e se tornavam soldados. Não era o costume, mas, ao que parecia, muita coisa havia mudado.
— Milorde Dragão. — Meresin gaguejou um pouco ao pronunciar as palavras. Tanto ele quanto Daricain eram homens esguios e de pele clara, com rostos afilados e nariz comprido, mas ele era um pouco mais robusto. Nenhum parecia ter comido muito, ultimamente. Meresin se apressou, como se temesse ser interrompido: — Milorde Dragão, Cairhien é capaz de resistir. Por mais alguns dias, talvez não mais que dez ou doze, mas o senhor precisa ir rápido, se pretende salvá-la.
— Foi por isso que viemos — alertou Estean, lançando um olhar sombrio na direção de Meresin. Os dois cairhienos devolveram o olhar, mas o ar de desafio era tingido por resignação. Estean tirou o cabelo grudado na testa. — Para buscar ajuda. Destacamentos foram enviados em todas as direções, milorde Dragão. — Apesar do suor no rosto, ele estremeceu, e sua voz ficou distante e vazia. — Havia mais homens quando começamos. Vi Baran morrer gritando com uma lança atravessada nas tripas. Ele nunca mais vai cortar um baralho. Eu aceitaria uma caneca de algum conhaque forte.
Edorion virou o elmo nas mãos enluvadas e franziu o rosto.
— Milorde Dragão, a cidade consegue resistir um pouco mais, mas mesmo que estes Aiel lutem contra eles, a pergunta é: o senhor é capaz de levá-los até lá a tempo? Eu acho que dez ou doze dias são uma estimativa mais do que generosa da minha parte. Na verdade, só vim até aqui porque achei que morrer atravessado por uma lança seria melhor do que ser levado vivo quando eles cruzassem as muralhas. A cidade está atulhada de refugiados que fugiram dos Aiel. Não sobrou nenhum cão ou pombo por lá, e duvido que em breve ainda haja ratos. A única coisa boa é que ninguém parece muito preocupado com quem vai tomar o Trono do Sol, não com esse tal de Couladin à espreita.
— No segundo dia, ele ordenou que nos rendêssemos Àquele Que Vem Com a Aurora — disse Daricain, recebendo um olhar feio de Edorion por tê-lo interrompido.
— Couladin faz algum tipo de jogo com os prisioneiros — acrescentou Estean. — Bem de longe, mas de um ponto das muralhas que qualquer um podia ver. Também dá para ouvir os gritos deles. Que a Luz queime minha alma, mas não sei se ele está tentando nos subjugar ou se simplesmente gosta de fazer aquilo. Às vezes eles deixam camponeses correrem em direção à cidade só para atirar um monte de flechas neles quando já estão quase em segurança. Se é que Cairhien é segura. São só camponeses, mas… — Ele se interrompeu e engoliu em seco, como se tivesse acabado de se lembrar da opinião de Rand sobre os “só camponeses”. Rand apenas o encarou, mas o homem pareceu encolher e ficou murmurando a respeito do conhaque.
Edorion aproveitou o silêncio momentâneo.
— Milorde Dragão, o ponto é que a cidade pode resistir até sua chegada, caso o senhor vá rápido. Só resistimos ao primeiro ataque porque o Portão Frontal pegou fogo…
— A chamas quase tomaram a cidade — intrometeu-se Estean. O Portão Frontal, que quase delimitava outra cidade, fora das muralhas de Cairhien, era feito principalmente de madeira, pelo que Rand lembrava. — Teria sido um desastre se o rio não estivesse logo ali.
O outro taireno continuou em seguida.
— … mas Lorde Leilan tem a defesa bem planejada, e os cairhienos parecem continuar fortes, até o momento. — Aquilo rendeu a Edorion uma careta de Meresin e Daricain que ele ou não viu ou fingiu não ver. — Sete dias, com sorte, talvez oito, no máximo. Caso o senhor consiga… — Um suspiro profundo pareceu murchar subitamente o aspecto rechonchudo de Edorion. — Não vi nenhum cavalo — disse ele, como que para si mesmo. — Os Aiel não cavalgam. O senhor nunca vai conseguir levar os homens tão longe a pé a tempo.
— Quanto tempo? — Rand perguntou a Rhuarc.
— Sete dias — respondeu ele. Mangin assentiu, e Estean gargalhou.
— Que minha alma queime, mas levamos esse tempo para chegar aqui a cavalo. Se vocês se acham capazes de fazer a viagem de volta a pé no mesmo tempo, devem estar… — Percebendo os olhos dos Aiel em si, Estean tirou o cabelo do rosto. — Tem algum conhaque nesta cidade?
— Não se trata de quão rápido nós conseguimos ir — retrucou Rand, calmo —, e sim de quão rápido vocês conseguem, caso desmontem alguns de seus homens e usem os cavalos deles de reserva. Quero que Meilan e Cairhien sejam avisados de que a ajuda está a caminho. Mas quem quer que vá precisa garantir que será capaz de ficar de boca fechada, caso seja apanhado pelos Shaido. Não quero que Couladin saiba de nada além do que puder descobrir por conta própria. — O rosto de Estean ficou mais branco que o dos cairhienos.
Meresin e Daricain se ajoelharam ao mesmo tempo, cada um tomando uma das mãos de Rand para beijá-la. Ele deixou, com tanta paciência quanto foi capaz de reunir. Um dos conselhos de Moiraine que parecera sensato fora não ofender os costumes dos povos, independentemente de quão estranhos ou repulsivos fossem, a menos que absolutamente necessário, e, ainda assim, pensando duas vezes.
— Nós vamos, milorde Dragão — afirmou Meresin, esbaforido. — Obrigado, milorde Dragão. Obrigado. Sob a Luz, juro que prefiro morrer a revelar uma só palavra para qualquer pessoa, exceto meu pai ou o Grão-lorde Meilan.
— Que a sorte esteja convosco, milorde Dragão — completou o outro. — Que a sorte esteja convosco e que a Luz o ilumine para sempre. Estou com o senhor até a morte. — Rand permitiu que Meresin também afirmasse que estava com ele antes de recolher as mãos com firmeza e ordenar que os dois se levantassem. Não gostava do modo como ambos lhe encaravam. Edorion os chamara feito cães, mas homens não deveriam olhar para ninguém como cães diante de um mestre.
Edorion respirou fundo, inchando as bochechas rosadas, e expirou devagar.
— Suponho que, se consegui sair de lá inteiro, sou capaz de voltar. Milorde Dragão, perdoe-me se o ofendo, mas o senhor se importaria em apostar, digamos, mil coroas de ouro, que realmente consegue chegar lá em sete dias?
Rand o encarou. O homem parecia Mat.
— Não tenho nem cem coroas de prata, muito menos mil de…
Sulin interrompeu:
— Ele tem, taireno — afirmou com propriedade. — Ele cobre a sua aposta, caso aceite dez mil em peso.
Edorion gargalhou.
— Combinado, Aiel. E cada cobre terá valido a pena caso eu perca. Pensando bem, não vou viver para coletar o prêmio, caso eu ganhe. Venham, Meresin e Daricain. — Ele soou como se estivesse mandando cães se sentarem. — Hora de cavalgar.
Rand esperou até que os três tivessem feito as reverências e estivessem na metade do caminho até os cavalos antes de se aproximar da Donzela de cabelo branco.
— O que vocês querem dizer com eu ter mil coroas de ouro? Nunca nem vi mil coroas de ouro, menos ainda dez mil.
As Donzelas trocaram olhares como se ele fosse demente. Rhuarc e Mangin fizeram o mesmo.
— Um quinto do tesouro que estava na Pedra de Tear pertence àqueles que tomaram a Pedra e será recolhido quando eles tiverem como levá-lo — explicou Sulin, como se falasse com uma criança sobre fatos simples da vida cotidiana. — Como chefe e líder da batalha, um décimo desse quinto é seu. Tear se rendeu a você como chefe de direito pelo triunfo, então um décimo de Tear também é seu. E você disse que podemos pegar o quinto destas terras. Um… imposto, foi como você chamou. — Ela tropeçou na palavra. Os Aiel não cobravam impostos. — A décima parte disso também é sua, como Car’a’carn.
Rand balançou a cabeça. Em todas as conversas com Aviendha, nunca pensara em perguntar se o quinto se aplicava a ele. Não era um Aiel, Car’a’carn ou não, e aquilo não parecia envolvê-lo. Bem, talvez não fosse um imposto, mas Rand poderia usá-lo como os reis usavam seus impostos. Infelizmente, só tinha uma vaga ideia de como seria aquilo. Teria de perguntar a Moiraine. Ela não abordara o tópico em suas aulas. Talvez a mulher achasse que era tão óbvio que ele já deveria saber.
Elayne saberia para que finalidade os impostos deveriam ser utilizados. Certamente fora mais divertido ser aconselhado por ela do que por Moiraine. Desejou saber onde ela estava. Ainda em Tanchico, provavelmente. Egwene só lhe repassava uma sequência de cumprimentos. Rand queria poder se sentar com Elayne e fazê-la explicar aquelas duas cartas. Donzela da Lança ou Filha-herdeira de Andor, as mulheres eram estranhas. Exceto Min, talvez. Ela gargalhara dele, mas nunca parecera estar falando em alguma outra língua. Agora ela não gargalharia. Se Rand algum dia voltasse a vê-la, Min correria cem milhas para ficar longe do Dragão Renascido.
Edorion desmontou todos os seus homens, pegando um dos cavalos e amarrando os demais pelas rédeas, junto com o de Estean. Não havia dúvida de que estava guardando o próprio animal para a arrancada final por entre os Shaido. Meresin e Daricain fizeram o mesmo com seus homens. Embora aquilo significasse que os cairhienos só teriam duas montarias reservas para cada um, ninguém pareceu pensar que eles deveriam pegar algum dos cavalos tairenos. Partiram juntos trotando para o oeste, acompanhados de uma escolta Jindo.
Estean tomou o cuidado de não olhar para ninguém ao se aproximar dos soldados aos pés da ponte, nervosos por se verem cercados pelos Aiel. Mangin agarrou sua manga com listras vermelhas.
— Você vai poder nos contar sobre a situação dentro de Cairhien, aguacento. — O jovem de nariz de batata parecia a ponto de desmaiar.
— Tenho certeza de que ele vai responder a todas as perguntas que vocês fizerem — disse Rand com rispidez, enfatizando a palavra “perguntas”.
— Serão apenas perguntas — afirmou Rhuarc, tomando o outro braço do taireno. Ele e Mangin pareciam apertando e erguendo o homem, bem mais baixo. — Alertar os defensores da cidade é bom e providencial, Rand al’Thor — prosseguiu Rhuarc —, mas temos que enviar patrulheiros. Correndo, eles podem chegar a Cairhien tão rápido quanto homens a cavalo e voltar para nos encontrar com a informação sobre como Couladin dispôs os Shaido.
Rand sentia os olhos das Donzelas nele, mas manteve o olhar firme em Rhuarc.
— Andarilhos do Trovão? — sugeriu.
— Sha’mad Conde — concordou Rhuarc. Ele e Mangin viraram Estean, a quem estavam mesmo segurando, e partiram em direção aos outros soldados.
— Só perguntas! — gritou Rand para as costas deles. — Ele é seu aliado e meu vassalo.
Não fazia ideia se Estean era seu vassalo ou não — era mais uma pergunta para fazer a Moiraine —, e muito menos quanto o homem era realmente seu aliado — o pai dele, Grão-lorde Torean, tramara muitos planos contra Rand —, mas não permitiria nada parecido com os métodos de Couladin.
Rhuarc virou a cabeça e assentiu.
— Você cuida bem da sua gente, Rand al’Thor. — A voz de Sulin saiu monótona feito uma tábua aplainada.
— Eu tento — retrucou ele. Não estava disposto a morder a isca. Dentre os que fossem patrulhar os Shaido, alguns não retornariam, era um fato. — Agora acho que vou comer alguma coisa. E dormir um pouco.
Não devia faltar muito mais que duas horas para a meia-noite, e o sol ainda se erguia cedo naquela época do ano. As Donzelas o seguiram, observando cautelosamente as sombras, como se esperassem um ataque, gesticulando uma para a outra. Mas, para dizer a verdade, os Aiel pareciam estar sempre à espera de ataques.